Caminhoneiros de todo o Brasil estão, há mais de uma semana, bloqueando estradasem vários estados do país em sinal de protesto contra algumas políticas do governo.
Com essa greve, várias cidades estão sendo severamente afetadas, pois toda a cadeia de suprimentos foi quebrada.
No Paraná, há cidades em que o litro da gasolina está sendo vendido a R$ 7. No oeste e no sudoeste do Paraná, indústrias suspenderam a coleta de leite e o abate de aves. Sem alternativas de desvio para seguir viagem, cargas de alimentos e insumos estão estragando em vários pontos de bloqueio nas estradas do sul do país. Fornecedores de frutas reclamam ainda das perdas com saques de cargas nas barreiras.
A operação do porto de Paranaguá, principal terminal de exportação de produtos agrícolas do país, também é prejudicada por causa dos protestos.
Em Santa Catarina, cirurgias foram canceladas em dois hospitais do oeste do estado por falta de medicamentos, que não chegaram devido à falta de transporte. Também no oeste, falta gasolina em 90% dos postos de combustíveis da região. A coleta de leite foi suspensa e algumas indústrias pararam a produção.
Em São Paulo, houve redução de entrega de frutas na Companhia de Entreposto e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp). Já foi registrada queda de 10% na entrada de caminhões carregados de frutas, como a maçã, pêra e melancia, vindas da região Sul do Brasil.
Em Minas Gerais, a produção da Fiat foi afetada. Segundo a empresa, devido à falta de peças que não foram entregues, não é possível retomar a produção, e turnos foram suspensos. No Centro-Oeste do estado está faltando gasolina. Na mesorregião do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba, há filas nos postos de combustíveis. Na quarta-feira, chegou a faltar combustível em estabelecimentos dos dois municípios. Na Ceasa (Centrais de Abastecimento de MG), a oferta de alimentos caiu e os preços subiram, em média, 7,8%.
No Rio Grande do Sul, diversos setores produtivos estão afetados. Indústrias de laticínios e frigoríficos estão com produção reduzida por falta de matéria-prima. Os supermercados afirmam que podem faltar produtos nas prateleiras. Um caminhoneiro que tentou passar por um trecho interditado foi apedrejado na cabeça e está respirando por aparelhos. Seu caminhão capotou e sua carga (avaliada em R$ 35 mil) foi saqueada.
Já o Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados do estado (Sindilat-RS) afirma que, se o bloqueio continuar, em um ou dois dias faltará leite no mercado. Adicionalmente, o maior frigorífico de suínos do estado suspendeu as atividades na manhã de quarta-feira e 3 mil animais deixarão de ser abatidos.
No Mato Grosso, nada menos que dez trechos das BRs 364, 163 e 070 continuavam bloqueados até ontem. Os caminhoneiros tentam impedir, há quase uma semana, que os veículos de cargas façam o escoamento da produção agrícola. Os caminhões com combustíveis seguem presos em bloqueios e, nesta quarta-feira, postos de combustíveis amanheceram fechados em cidades do norte do estado.
No Mato Grosso do Sul, veículos com carga perecível e de combustíveis estão sendo bloqueados.
O que querem
O objetivo do protesto dos caminhoneiros é bastante difuso. Como não há uma liderança específica coordenando todo o movimento, não é possível saber exatamente qual é a lista de exigências. Mas é possível identificar pelo menos três pedidos claros:
1) Redução do preço do diesel;
2) revisão da Lei 12.619, conhecida como Lei do Descanso, que obriga o caminhoneiro a repousar 11 horas em um prazo de 24 horas e parar por uma hora de refeição. Os caminhoneiros querem apenas 8 horas de descanso. (Quanto mais horas obrigatórias de repouso, menos eles ganham por mês).
3) aumento do valor do frete;
Sobre reduzir o preço do diesel, que é controlado pelo governo, não há a menor chance de isso acontecer. Com o balancete destroçado pela corrupção e desesperada para aumentar seu fluxo de caixa, a Petrobras (leia-se: o governo) resolveu apenas jogar a fatura para o consumidor brasileiro. Em um momento em que os preços do petróleo e seus derivados estão em queda no mundo inteiro, no Brasil estão em alta acentuada, graças àcorrupção da estatal monopolista.
Sobre a Lei do Descanso, caso ela não seja revisada, haverá um forte impacto sobre a produtividade e sobre os custos, principalmente em decorrência de uma redução do número de viagens. Será necessário um redimensionamento na quantidade de motoristas para manter os prazos de entrega, principalmente nas viagens de média e longa distância. Em tese, novas contratações seriam necessárias, mas isso não será tarefa fácil, pois atualmente o país já vive um grande déficit de motoristas, estimado em cerca de 160 mil profissionais.
O governo simplesmente está desconsiderando as particularidades do país: o tempo perdido nas barreiras fiscais, as péssimas condições das estradas, e os engarrafamentos das cidades. Com estradas cheias, esburacadas, sem sinalização e sem acostamento, é quase impossível os caminhoneiros desenvolverem uma velocidade padrão e constante que permita se enquadrarem dentro da nova legislação. Viagens que já são demoradas irão se prolongar ainda mais dentro dessa lei.
Uma coisa é impor essas regras na Europa, onde há autoestradas civilizadas, a distância entre as cidades de um mesmo país é muito menor, e há diversas alternativas de transporte (trens são extremamente comuns). Outra coisa é fazer isso no Brasil, país de dimensões continentais, repleto de estradas inacabadas e precárias, com amplos gargalos na infraestrutura. Além do maior dispêndio de horas, tanto o empresário quanto o caminhoneiro autônomo terão de arcar com esses custos adicionais gerados exclusivamente pela inépcia e incompetência estatal. Esses custos mais altos não serão suportados somente pelas empresas do setor; eles terão de ser repassados para o consumidor.
Por último, sobre aumentar o valor do frete, é aí que as coisas ficam extremamente interessantes.
As consequências não-premeditadas das ajudas estatais
Assim como qualquer empreendimento, o transporte rodoviário no Brasil lida com vários custos.
No caso de um caminhoneiro autônomo, ele tem de arcar com o seguro do caminhão, com o IPVA e com o seguro obrigatório, com o combustível, com os pneus, com os lubrificantes, com a manutenção, com o pedágio, com os eventuais danos causados por estradas ruins, e com as eventuais avarias do veículo. (No caso de uma transportadora, além de todos os itens acima, ela também tem de pagar o salário do caminhoneiro e dos seus funcionários.)
Os custos de todos esses itens subiram, e muito, ao longo dos últimos 4 anos. Em decorrência do súbito enfraquecimento do real perante (quase) todas as moedas do mundo, os preços de todos esses bens e serviços dispararam. No que tange a moedas, não há muito segredo. Se uma moeda enfraquece, todos os preços mensurados por ela sobem. E dado que nos últimos 4 anos o real se esfacelou — desvalorizou-se quase 50% em relação ao dólar —, a carestia vivenciada por todos nós, e pelos caminhoneiros, é inevitável.
Só que, no caso dos caminhoneiros e das transportadoras, houve um ingrediente especial, quase que irônico: por causa de políticas do governo criadas justamente com o intuito de ajudá-los, hoje eles estão em situação delicada. Seus custos dispararam, mas suas receitas diminuíram.
Para entender o que houve, veja esse trecho revelador dessa reportagem (negrito meu):
Segundo a Associação dos Transportadores de Cargas de Mato Grosso (ATC), a redução do valor pago pelo frete entre a safra 2013/14 e a safra 2014/15 foi de aproximadamente 25%.
O diretor executivo a ATC, Miguel Mendes, cita exemplos de preços de frete reduzidos de municípios do Médio-norte de Mato Grosso até o porto de Santos (SP). Partindo de Sorriso, o frete passou de R$ 315 em 2014 para R$ 235 em 2015; de Lucas do Rio Verde, passou de R$ 300 em 2014 para R$ 220 em 2015.
Mendes afirma que o maior número de caminhões disponíveis para o frete foi o principal fator responsável pela queda no preço da atividade, já que muitos empresários e motoristas autônomos conseguiram adquirir seu veículo de carga pelo financiamento do BNDES.
[…]
[…] o empresário Édio Moreira de Castro, tem 60 caminhões atualmente, mas no ano passado sua frota era composta por 80 caminhões. Em uma conta rápida, ele calcula que está tendo prejuízo de cerca de R$ 453 por viagem caso faça um frete de Lucas do Rio Verde para Rondonópolis, com um caminhão de 7 eixos cobrando R$ 70 por tonelada.
Castro aguarda agora uma resposta do governo sobre as reivindicações. “Minha vontade é de vender todos os caminhões, porque do jeito que está a atividade fica inviável, estamos tendo prejuízo e assim vamos à falência”, diz.
Trata-se de um perfeito exemplo prático daquilo que a teoria econômica sempre enfatiza: estímulos e benefícios artificiais geram efeitos aparentemente benéficos no curto prazo, mas cobram um preço caro no longo prazo.
Permita-me ser mais claro: o BNDES, por meio de um programa chamado Procaminhoneiro, financia, a juros bem abaixo da SELIC, a compra de caminhões por parte de caminhoneiros autônomos, de empresários individuais e de empresas individuais. Atualmente, os juros são de 9% ao ano, com prazos de financiamento de até 96 meses, incluída a carência de 6 meses. No entanto, nos anos de 2010 a 2013, os juros variavam entre módicos 2,5% a até no máximo 7%.
Esses juros baixos, aliados a todos os estímulos dados pelo governo, impulsionaram uma farta compra de caminhões.
O gráfico abaixo mostra os números das vendas mensais de caminhões no Brasil. Veja como as vendas disparam justamente entre 2010 e 2013:
Fonte: Banco Central
Muito bem.
Isso é positivo, não? Afinal, mais caminhões, mais transportes, mais concorrência entre as transportadoras, menores os preços do frete.
O problema é que esse é apenas um lado da história. Se tudo terminasse aqui, seria ótimo. Só que, infelizmente, há o outro lado, e as consequências não são boas.
A encrenca começa com a maneira como o BNDES arranja esse dinheiro para emprestar barato aos caminhoneiros e aos empresários.
Originalmente, os recursos do BNDES eram oriundos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador — fundo destinado a custear o seguro-desemprego e o abono salarial). E os fundos do FAT advêm das arrecadações do PIS e do PASEP. Sob esse arranjo, o BNDES era uma máquina de redistribuir recursos, mas não era inerentemente inflacionário, pois ele não criava dinheiro.
O problema é que essa matriz, já ruim, foi alterada para pior a partir de 2009. Se antes o BNDES se financiava exclusivamente via impostos, agora ele passou a se financiar também via endividamento do Tesouro, o que significa que ele se financia via inflação monetária.
Funciona assim: como o BNDES não tem todo o dinheiro necessário para fazer todos os empréstimos que o governo quer conceder a seus empresários e grupos favoritos, o Tesouro começou a emitir títulos da dívida com o intuito de arrecadar esse dinheiro para complementar os empréstimos.
E quem compra esses títulos? Majoritariamente, o sistema bancário. Como ele compra? Criando dinheiro do nada, pois opera com reservas fracionárias. Ou seja, a atual forma de financiamento do BNDES é inerentemente inflacionária. Ela aumenta a quantidade de dinheiro na economia.
O gráfico a seguir mostra a evolução dos empréstimos do BNDES, atualmente com um saldo de R$ 638 bilhões. Observe a guinada ocorrida em meados de 2009, quando essa nova modalidade foi implantada.
Evolução dos empréstimos concedidos pelo BNDES. A linha vermelha (que foi descontinuada em 2013) representa a soma da linha azul (empresas) com a linha verde (pessoas físicas).
Portanto, além de aumentar o endividamento do governo, este mecanismo utilizado pelo Tesouro para financiar o BNDES também aumenta a quantidade de dinheiro na economia. E, como mostra o gráfico acima, desde 2009, o BNDES já jogou mais de R$ 400 bilhões na economia.
(Todos os bancos estatais em conjunto despejaram na economia, nesse mesmo intervalo de tempo, R$ 1,100 trilhão, o que significa que apenas o BNDES responde por quase 40% desse valor).
Além de ter causado uma grande inflação monetária — algo que, por si só, pressiona a carestia —, esse mecanismo de financiamento do BNDES, via endividamento do Tesouro, também ajudou a deteriorar o quadro fiscal do governo. A dívida bruta está em 63,4% do PIB. (Para que se tenha uma ideia, no final de 2013, a dívida bruta do Brasil estava em 56,7% do PIB.)
Esse valor da dívida bruta — mais ainda, essa tendência —, além de ameaçar o grau de investimento (investment grade) conferido ao país pela Standard & Poor’s, ajudou a acelerar a depreciação do real, o que turbinou ainda mais a inflação de preços.
Portanto, eis o roteiro trágico:
1) o BNDES, com o intuito de estimular a economia, estimular os caminhoneiros, e ajudar o setor de veículos pesados, decidiu conceder empréstimos baratos para que indivíduos autônomos e também transportadoras comprassem caminhões a juros baixos e a várias prestações;
2) ato contínuo, a quantidade de caminhões em circulação aumentou, bem como o número de caminhoneiros autônomos, o que gerou mais concorrência para as transportadoras e para os caminhoneiros autônomos já estabelecidos. Os preços dos fretes caíram;
3) esses empréstimos concedidos pelo BNDES foram feitos por meio de endividamento do Tesouro, o que deteriorou a situação fiscal do governo (elevou a dívida bruta), e ainda aumentou a quantidade de dinheiro na economia;
4) ambos os efeitos acima desvalorizaram o real e geraram carestia generalizada;
5) como consequência dessa carestia generalizada, os custos operacionais das transportadoras e dos caminhoneiros autônomos dispararam, mas a maior concorrência no setor — gerada pela maior quantidade de caminhões — impediu um que os custos fossem repassados para o preço do frete, que continuou caindo;
6) a subida do preço do diesel terminou por empurrar de vez o setor à bancarrota
7) com custos crescentes, receitas em queda e total inviabilidade operacional, os caminhoneiros resolveram protestar.
Conclusão: uma medida intervencionista que foi criada com o intuito de ajudar um setor acabou deixando-o próximo da insolvência.
Isso vale de lição para todo e qualquer setor da economia, e também para aqueles que defendem intervenções, subsídios e ajudas estatais a determinados setores: uma aparente benesse governamental pode gerar a própria bancarrota do beneficiado.