N. do T.: Antes de virar presidente do Banco Central americano em 1987 e renunciar a todos os seus ideias, Alan Greenspan era um famoso objetivista seguidor das teorias de Ayn Rand. Seu artigo a seguir, de 1966, é uma fantástica defesa do padrão-ouro, das mais completas e incitantes já escritas. É realmente lamentável que, assim que cheguem ao poder, pessoas idealistas abdiquem de suas crenças, vendam-se ao status quo e se curvem às delícias do poder. Como presidente do Fed, Greenspan fez exatamente o oposto do que sempre defendeu ao longo de sua vida em relação ao gerenciamento da oferta monetária de uma economia. Tal abdicação de ideais custou aos EUA sua maior recessão desde a Grande Depressão.
Embora defenda um sistema bancário de reservas fracionárias, lastreado em ouro, o texto o faz com argumentações sólidas, e reconhece que tal sistema é propenso a ciclos econômicos, embora em menor escala e intensidade que o atual sistema.
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Esse artigo apareceu originalmente no panfleto O Objetivista, publicado em 1966, e reproduzido no livro Capitalism: The Unknown Ideal, de Ayn Rand
Um antagonismo praticamente histérico em relação ao padrão-ouro é uma postura que une estatistas de todas as persuasões. Eles parecem sentir — talvez ainda mais clara e sutilmente que muitos defensores consistentes do laissez-faire — que o ouro e a liberdade econômica são inseparáveis, que o padrão-ouro é um instrumento que fomenta o laissez-faire, e que um implica e requer o outro.
Para entender a fonte desse antagonismo, é necessário primeiro entender a função específica do ouro em uma sociedade livre.
O dinheiro é o denominador comum de todas as transações econômicas. É a mercadoria que serve como meio de troca, que é universalmente aceitável por todos os participantes de uma economia como meio de pagamento por seus bens e serviços, e que pode, por conseguinte, ser utilizado como um padrão de mensuração de valor de mercado e como de reserva de valor — isto é, como meio de poupança.
A existência de tal mercadoria é uma pré-condição para uma economia baseada na divisão do trabalho. Se os homens não possuíssem uma mercadoria de valor objetivo que fosse largamente aceita como dinheiro, eles teriam de recorrer a algum tipo primitivo de escambo ou serem forçados a viver em comunidades agrícolas auto-suficientes e, assim, privar-se das inestimáveis vantagens trazidas pela especialização. Se os homens não tivessem meios para calcular o valor e guardá-lo — isto é, poupar —, então nem o planejamento de longo prazo e nem qualquer comercialização seriam possíveis.
Qual meio de troca será aceitável para todos os participantes de uma economia não é algo determinado arbitrariamente. Em primeiro lugar, o meio de troca deve ser durável. Em uma sociedade primitiva, em que a riqueza é escassa, o trigo pode ser suficientemente durável para servir como um meio de troca, dado que todas as trocas ocorreriam somente durante e imediatamente após a colheita, não deixando nenhum excedente para ser acumulado. Porém, em economias nas quais considerações sobre reservas de valor são importantes — como ocorre em sociedades mais ricas e civilizadas —, o meio de troca deve ser uma mercadoria durável, geralmente um metal.
Um metal é escolhido geralmente porque é homogêneo e divisível: cada unidade é exatamente igual a todas as outras, e ele pode ser fundido, misturado e moldado em qualquer quantidade. Jóias preciosas, por exemplo, não são nem homogêneas nem divisíveis. Ainda mais importante, a mercadoria escolhida como meio de troca deve ser um bem de luxo. O desejo humano por bens de luxo é ilimitado e, portanto, bens de luxo sempre serão demandados e sempre serão aceitos. Trigo é um bem de luxo em civilizações subnutridas, mas não em uma sociedade próspera. Cigarros normalmente não serviriam como dinheiro, porém assumiram essa função na Europa imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, onde eles passaram a ser considerados um artigo de luxo. O termo “bem de luxo” implica escassez e alto valor unitário. Por ter um alto valor unitário, tal bem é facilmente portável; por exemplo, uma onça de ouro vale meia tonelada de ferro gusa.
Nos estágios iniciais de uma economia monetária em desenvolvimento, vários meios de troca podem ser utilizados, uma vez que uma ampla variedade de mercadorias poderia satisfazer as condições acima delineadas. Entretanto, uma das mercadorias irá começar gradualmente substituir todas as outras, por ser mais amplamente aceita. As preferências quanto à mercadoria que será utilizada como reserva de valor serão deslocadas para aquela que vem sendo mais amplamente aceita, algo que, por sua vez, irá torná-la ainda mais aceita. Essa mudança será progressiva até o momento em que essa mercadoria finalmente se torna o único meio de troca. O uso de um único meio de troca é altamente vantajoso pelo mesmo motivo que uma economia monetária é superior a uma economia de escambo: possibilita que as trocas ocorram em uma escala incalculavelmente mais ampla.
Se esse meio de troca será o ouro, a prata, conchas do mar, gado ou tabaco, é algo opcional e que irá depender do contexto e do estágio de desenvolvimento de uma dada economia. Com efeito, todos esses bens já foram utilizados, em várias épocas, como meio de troca. Mesmo no presente século, duas grandes commodities, ouro e prata, foram utilizadas como meio internacional de troca, com o ouro se tornando o meio predominante. O ouro, por ter usos tanto artísticos quanto funcionais, e por ser relativamente escasso, possui vantagens significativas em relação a todos os outros meios de troca. Desde o início da Primeira Guerra Mundial, ele passou a ser praticamente o único padrão internacional de troca. Se todos os bens e serviços fossem pagos em ouro, o pagamento de altos valores seria difícil de ser realizado, e isso tenderia a limitar a amplitude da divisão do trabalho e da especialização de uma sociedade.[*]
Sendo assim, a extensão lógica da criação de um meio de troca é o desenvolvimento de um sistema bancário e de instrumentos de crédito (certificados de depósitos) que funcionam como substitutos do ouro — e que são plenamente conversíveis em ouro, é claro.
Um sistema bancário livre e baseado no ouro é capaz de expandir o crédito criando certificados de depósitos de acordo com as necessidades de produção da economia. Os indivíduos que possuem ouro são induzidos, por meio do pagamento de juros oferecidos pelo sistema bancário, a depositar seu ouro em um banco (depósitos esses que podem ser sacados por meio de cheques). Porém, dado que raramente todos os depositantes irão querer sacar todo o seu ouro do sistema bancário ao mesmo tempo, o banco poderá manter como reservas apenas uma fração de todo o ouro depositado. Isso permitirá ao banco emprestar mais do que a quantidade total dos depósitos em ouro que possui (o que significa que ele criará títulos de ouro em quantidade maior do que o total de ouro que possui em suas reservas). Porém, essa quantidade de empréstimos que ele pode criar não é arbitrária: ele terá de saber avaliar o quanto poderá conceder de empréstimos em relação às suas reservas e calibrar tudo de acordo com a condição e a qualidade de seus investimentos.
Quando os bancos emprestam dinheiro para financiar empreendimentos produtivos e lucrativos, os empréstimos são quitados rapidamente, e o crédito bancário continua amplamente disponível. Porém, quando os empreendimentos financiados pelo crédito bancário são menos lucrativos e, consequentemente, mais demorados para serem quitados, os bancos logo descobrem que seus empréstimos pendentes estão em excesso em relação às suas reservas de ouro — e eles começam a restringir novos empréstimos, normalmente cobrando taxas de juros mais altas. Isso tende a restringir o financiamento de novos empreendimentos, além de exigir dos atuais devedores que eles aprimorem sua lucratividade se quiserem obter mais crédito para expansões adicionais.
Assim, sob o padrão-ouro, um sistema bancário livre torna-se o guardião da estabilidade econômica e do crescimento econômico equilibrado. Quando o ouro passa a ser aceito como o meio de troca pela maioria das nações — ou mesmo por todas elas —, um padrão-ouro internacional, livre e desimpedido, passa a fomentar a divisão do trabalho em escala mundial, bem como o mais amplo comércio internacional possível. Ainda que as unidades de troca (o dólar, a libra, o franco, o marco etc.) sejam diferentes de um país para o outro, quando todas elas são definidas em termos de ouro, as economias dos diferentes países tendem a agir como se fossem uma só — desde que não haja restrições no comércio ou nos movimentos de capital. Crédito, taxas de juros e preços tendem a seguir padrões similares em todos os países.
Por exemplo, se os bancos de um dado país expandem o crédito muito frouxamente, as taxas de juros daquele país tenderão a cair, induzindo seus correntistas a retirar dali seu ouro e enviá-lo para outros países cujos bancos paguem juros maiores sobre os depósitos. Isso irá imediatamente causar uma escassez de reservas bancárias no país do “crédito frouxo”, induzindo-o a readotar padrões mais rígidos de concessão de crédito e, com isso, retornando a taxas de juros maiores e mais competitivas.
Até hoje, um sistema bancário completamente livre e desimpedido, em conjunto com um padrão-ouro sólido, jamais foi implementado. Porém, antes da Primeira Guerra Mundial, o sistema bancário dos EUA (e na maior parte do mundo) era baseado no ouro e, mesmo com os governos intervindo ocasionalmente, o sistema bancário era mais livre do que controlado. Periodicamente, como resultado da rápida expansão do crédito, os bancos ficavam alavancados até o limite de suas reservas de ouro, o que levava a um acentuado aumento dos juros, fazendo com que novas concessões de crédito fossem canceladas e que a economia entrasse em uma profunda — porém bastante curta — recessão. (Comparados às depressões de 1920 e 1932, os declínios econômicos anteriores à Primeira Guerra Mundial foram de fato bastante brandos). Eram as limitadas reservas de ouro que impediam que as expansões desequilibradas da atividade econômica chegassem ao tipo desastroso a que nos acostumamos após a Primeira Guerra Mundial. Os períodos de reajuste econômico eram curtos e as economias rapidamente restabeleciam fundamentos sólidos sobre os quais retomavam sua expansão.
Porém, esse processo de cura era erroneamente diagnosticado como sendo a doença: se a escassez de reservas bancárias estava causando declínios econômicos — argumentaram os intervencionistas —, então por que não encontrar um modo de ofertar reservas crescentes aos bancos, de modo que estes não mais precisassem se preocupar com a quantidade delas? Se os bancos puderem continuar emprestando dinheiro indefinidamente — alegaram —, então nunca mais teremos declínios econômicos. E, assim, criou-se o Federal Reserve (o Banco Central americano) em 1913. Ele é formado por doze sucursais regionais que nominalmente são geridas privadamente, mas que, na verdade, são garantidas, controladas e mantidas pelo governo. O crédito expandido pelo Fed é na prática (embora não legalmente) lastreado pelo poder de tributação do governo federal. Tecnicamente, ainda estávamos no padrão-ouro; os indivíduos ainda tinham a liberdade de portar ouro [liberdade essa abolida em 1933 por Roosevelt e só restaurada em 1975], e o ouro continuava sendo utilizado como reservas bancárias. Hoje, porém, o crédito expandido pelo Banco Central (que cria reservas bancárias formadas meramente por dinheiro de papel) passou a servir como moeda de curso forçado utilizada para pagar os correntistas.
Quando a economia americana passou por uma suave contração em 1927, o Fed criou mais reservas bancárias de papel na esperança de evitar qualquer possível escassez de reservas bancárias. Ainda mais desastrosa, entretanto, foi a tentativa do Fed de ajudar a Grã-Bretanha, cujo ouro estava fugindo para os EUA em decorrência da recusa do Banco Central da Inglaterra em permitir que os juros subissem quando as forças de mercado assim exigiam (tal medida era politicamente inaceitável). O raciocínio das autoridades envolvidas era o seguinte: se o Fed injetasse quantias excessivas de dinheiro de papel nas reservas dos bancos americanos, as taxas de juros nos EUA cairiam para níveis comparáveis àqueles vigentes na Grã-Bretanha. Isso ajudaria a interromper a atual fuga de ouro da Grã-Bretanha para os EUA, impedindo assim o embaraço político de o Banco Central da Inglaterra ter de elevar os juros.
O Fed obteve êxito; ele interrompeu a fuga de ouro da Inglaterra, porém quase destruiu a economia mundial nesse processo. O excesso de crédito que o Fed injetou na economia foi parar na bolsa de valores — desencadeando um fantástico frenesi especulativo. Com muito atraso, os burocratas do Fed resolveram enxugar esse excesso de reservas por eles criado. Ao fazerem isso, o boom da bolsa de valores foi interrompido. Mas era tarde demais: já em 1929, os desequilíbrios especulativos haviam se tornado tão estupefacientes, que essa tentativa de enxugamento monetário gerou uma forte redução e uma consequente degradação da confiança na economia. Como resultado, a economia americana entrou em colapso. A Grã-Bretanha saiu-se ainda pior: ao invés de absorver e lidar com as consequências de sua insensatez, ela simplesmente abandonou por completo o padrão-ouro em 1931, destruindo o que restava da confiança no sistema e gerando uma série de falências bancárias em escala mundial.
As economias de todo o mundo mergulharam na Grande Depressão da década de 1930.
Seguindo a lógica reminiscente da geração anterior, os estatistas argumentaram que o padrão-ouro era primariamente o culpado pela débâcle do crédito que levou à Grande Depressão. Caso não houvesse o padrão-ouro, argumentaram eles, a recusa da Grã-Bretanha em honrar seus compromissos em ouro, em 1931, não teria provocado a quebra dos bancos ao redor do mundo. (A ironia é que, desde 1913, o mundo não estava mais no padrão-ouro clássico, mas sim naquilo que passou a ser chamado de “padrão-ouro misto”; ainda assim, foi o ouro quem recebeu toda a culpa). Porém, a oposição ao padrão-ouro sob qualquer arranjo — oposição essa oriunda de um número crescente de defensores do estado assistencialista — foi estimulada por um critério muito mais sutil: a compreensão de que o padrão-ouro é incompatível com déficits orçamentários crônicos (a marca distintiva do estado assistencialista). Despido de seu jargão acadêmico, o estado assistencialista nada mais é do que um mecanismo por meio do qual os governos confiscam a riqueza dos membros produtivos da sociedade para financiar uma ampla variedade de esquemas assistencialistas. Uma parte substancial desse confisco é efetuada por meio da tributação. Porém, os estatistas defensores do assistencialismo rapidamente perceberam que, se quisessem manter seu poder político, a quantia tributada teria de ser limitada, pois os impostos não podem subir ad eternum. Logo, restava-lhes a opção de recorrer aos maciços déficits orçamentários — isto é, eles teriam que gastar mais do que arrecadavam, tendo de cobrir essa diferença com empréstimos, emitindo títulos do governo para financiar os gastos assistencialistas em larga escala.
Sob um padrão-ouro, a quantidade de crédito que uma economia pode sustentar é determinada pelos ativos tangíveis dessa economia, dado que cada instrumento de crédito é, em última instância, um título lastreado por algum ativo tangível. Porém, sob o padrão-ouro, os títulos do governo não são lastreados por riqueza tangível, mas somente pela promessa de que o governo irá quitá-los por meio de futuras receitas tributárias. Isso faz com que tais títulos tenham mais dificuldades de ser aceitos pelo mercado financeiro. Um grande volume de títulos do governo pode ser vendido ao público somente a juros progressivamente maiores. Assim, os déficits orçamentários do governo sob um padrão-ouro tornam-se severamente limitados.
A abolição do padrão-ouro possibilitou aos estatistas defensores do assistencialismo utilizar o sistema bancário como meio de expandir ilimitadamente o crédito. Por meio da compra de títulos públicos em posse dos bancos, o Banco Central aumenta as reservas bancárias dos bancos, as quais são inteiramente formadas por dinheiro de papel. Os bancos passam a ter mais dinheiro em suas reservas, as quais tornam-se “lastreadas” por esses títulos públicos, que passam a ser tratados como se fossem ativos tangíveis e substitutos perfeitos do ouro. Nesse processo, o indivíduo que está em posse de algum título público ou que possua depósitos bancários acredita que possui um título genuinamente lastreado por algum ativo real. Mas o fato é que agora não existem mais ativos reais.
Como a lei da oferta e da demanda não pode ser abolida, à medida que a oferta de dinheiro aumenta em relação aos bens existentes na economia, os preços também terão de subir. Consequentemente, toda a renda que foi poupada pelos membros produtivos da sociedade perde valor em termos de poder de compra.
Quando se contabiliza tudo, o indivíduo descobre que essa perda representa os bens que foram adquiridos pelo governo, para fins assistencialistas ou outros quaisquer, com o dinheiro criado pelo Banco Central para comprar títulos públicos que estavam em posse do sistema bancário — dinheiro esse que, após sua criação, foi utilizado para financiar a expansão tanto do crédito bancário quanto da dívida pública (compra de títulos emitidos pelo Tesouro).
Na ausência do padrão-ouro, não há como o indivíduo proteger sua poupança do confisco que ocorre por meio da inflação. Não existe mais uma reserva de valor confiável. Se existisse, o governo torná-la-ia ilegal, assim como fez com o ouro. Se todos os cidadãos decidissem, por exemplo, converter seus depósitos bancários em prata ou cobre ou em qualquer outro bem, e em seguida se recusassem a aceitar cheques como forma de pagamento por seus bens, os depósitos bancários (formados por dinheiro de papel) perderiam todo o seu poder de compra, e a expansão do crédito bancário fomentada pelo governo passaria a ter valor zero. A política financeira do estado assistencialista requer que não haja maneiras com que os proprietários de riqueza possam se proteger.
Eis aí o prosaico segredo por trás das investivas dos estatistas assistencialistas contra o ouro. Os déficits orçamentários do governo são simplesmente um esquema por meio do qual se confisca a riqueza dos membros produtivos da sociedade. O ouro impede que esse insidioso processo aconteça. O ouro é um protetor dos direitos de propriedade. Quando se compreende isso, não há mais dificuldades para se entender o ódio dos estatistas ao padrão-ouro.
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[*] N. do T.: na época em que esse artigo foi escrito, a onça do ouro valia apenas US$ 35 dólares, o que de fato dificultava grandes transações. Porém, hoje, devido a toda inflação monetária que ocorreu desde aquela época, a situação se inverteu: com a onça do ouro agora valendo US$ 1.400, o problema passou a ser o pagamento de pequenos valores — função essa que a prata poderia assumir sem problemas.