I.
Vícios são aqueles atos pelos quais um homem prejudica a si mesmo ou sua propriedade. Crimes são aqueles atos pelos quais um homem prejudica a pessoa ou a propriedade de outrem.
Vícios são simples erros cometidos por um homem em sua busca pela felicidade. Ao contrário dos crimes, eles não implicam nenhuma malícia em relação aos outros e nenhuma interferência em suas pessoas ou propriedades.
Nos vícios, a própria essência do crime — isto é, o desejo de prejudicar a pessoa ou a propriedade de outrem — inexiste.
É uma máxima da lei a de que não é possível haver crime sem intento criminoso; isto é, sem o intento de invadir a pessoa ou a propriedade de outrem. Porém, ninguém jamais pratica um vício com tal intento criminoso. Pratica-se um vício visando-se a própria felicidade tão-somente, e não por qualquer malícia em relação aos outros.
A não ser que essa clara distinção entre vícios e crimes seja feita e reconhecida pelas leis, não é possível que existam na terra quaisquer direitos, liberdades ou propriedades individuais; quaisquer direitos de um homem de controlar sua pessoa e propriedade, e o correspondente e igual direito de outro homem de controlar sua pessoa e propriedade.
Quando um governo declara que um vício é um crime, e o pune como tal, há uma tentativa de falsear a própria natureza das coisas. É tão absurdo quanto seria uma declaração de que uma verdade é uma mentira ou de que uma mentira é uma verdade.
II.
Todo ato voluntário da vida de um homem ou é virtuoso, ou é vicioso. Isto significa dizer que eles estão de acordo ou em conflito com as leis naturais da matéria e da mente, sobre as quais sua saúde física, mental e emocional e bem-estar dependem. Em outras palavras, todo ato de sua vida tende a levar, pelo todo, a sua felicidade ou a sua infelicidade. Nem um único ato em toda a sua existência é indiferente.
Além disso, cada ser humano difere de todos os outros seres humanos em sua constituição física, mental e emocional, e também pelas circunstâncias pelas quais é envolvido. Portanto, muitos atos que são virtuosos e tendem a levar à felicidade no caso de uma pessoa são viciosos e tendem a levar à infelicidade no caso de outra.
Similarmente, muitos atos que são virtuosos e tendem a levar à felicidade no caso de um homem, num dado momento, sob um conjunto de circunstâncias, são viciosos e tendem à infelicidade no caso do mesmo homem, em outro momento, sob outras circunstâncias.
III.
Saber quais ações são virtuosas e quais são viciosas — em outras palavras, saber quais ações tendem a levar, no todo, à felicidade, e quais tendem a levar à infelicidade — no caso de cada um dos homens, em cada uma das situações nas quais eles se encontrem, é o estudo mais profundo e complexo ao qual a maior mente humana já pôde ou jamais poderá se dedicar. É, contudo, o estudo constante ao qual todos os homens — tanto o mais humilde em intelecto quanto o maior — são necessariamente levados pelos desejos e necessidades de sua própria existência. É também o estudo do qual todas as pessoas, desde seus berços até seus túmulos, precisam tirar suas próprias conclusões; porque ninguém mais sabe ou sente, ou pode saber ou sentir, o que outro homem sabe ou como ele se sente, os desejos e necessidades, as esperanças e medos, os impulsos da natureza de outra pessoa ou a pressão das circunstâncias à que ela está submetida.
IV.
Frequentemente não é possível dizer que aqueles atos que são chamados de vícios realmente o sejam, exceto em grau. Isto é, é difícil dizer que quaisquer ações, ou cursos de ação, que são chamadas de vícios, são realmente vícios se paradas antes de certo ponto. A questão da virtude ou do vício, portanto, em todos esses casos, é uma questão de quantidade e grau, e não do caráter intrínseco de qualquer ato único, por si mesmo. Este fato se soma à dificuldade, para não dizer à impossibilidade, para qualquer um — exceto para o próprio indivíduo — estabelecer uma linha exata, ou qualquer coisa como uma linha exata, entre a virtude e o vício; isto é, dizer onde acaba a virtude e começa o vício. E esta é outra razão por que toda essa questão da virtude e do vício deva ser deixada para cada pessoa decidir por si mesma.
V.
Vícios são normalmente prazerosos, pelo menos no momento em que se passa, e frequentemente não se revelam como vícios, por seus efeitos, senão depois de serem praticados por muitos anos, talvez por uma vida inteira. Para muitos, talvez para a maioria, daqueles que os praticam, eles jamais se revelam como vícios durante a vida. As virtudes, por outro lado, frequentemente parecem tão duras e severas, requerem o sacrifício de tanta felicidade presente, e os resultados, os quais provam que elas são virtudes, estão frequentemente tão distantes e obscuros, tão absolutamente invisíveis às mentes de muitos, especialmente às dos jovens, que, pela própria natureza das coisas, não pode haver conhecimento universal, ou mesmo geral, de que são virtudes. Na verdade, estudos de profundos filósofos foram empreendidos — senão totalmente em vão, certamente com resultados bem pouco expressivos — para delimitar a fronteira entre as virtudes e os vícios.
Então, se é tão difícil, quase impossível, na maioria dos casos, determinar o que é e o que não é um vício; se é tão difícil, em quase todos os casos, determinar onde termina a virtude e começa o vício; e se essas questões, às quais ninguém pode realmente e verdadeiramente resolver senão para si mesmo, não devem permanecer livres e abertas para experimentação por todos, cada pessoa é privada do maior de seus direitos como ser humano, a saber: seu direito de inquirir, investigar, raciocinar, experimentar, julgar e determinar por si mesmo o que é, para si, uma virtude, e o que é, para si, um vício; em outras palavras: o que, no todo, conduz à sua felicidade, e o que, no todo, conduz à sua infelicidade. Se este grande direito não permanecer livre e aberto a todos, então todos os direitos do homem, como seres humano racionais, à “liberdade e à busca pela felicidade” são negados.
VI.
Todos nós vimos ao mundo em ignorância de nós mesmos e de tudo a nossa volta. Por uma lei fundamental de nossa natureza, todos somos constantemente impelidos pelo desejo de alcançar a felicidade e pelo medo sofrer a dor. Mas nós temos tudo a aprender quanto ao que pode nos trazer a felicidade e evitar a dor. Nenhum de nós é totalmente igual a outra pessoa, física, mental ou emocionalmente; ou, consequentemente, em nossos requerimentos físicos, mentais ou emocionais para a aquisição da felicidade e para a evasão da infelicidade. Nenhum de nós, portanto, pode aprender essa indispensável lição da felicidade e da infelicidade, da virtude e do vício, através de outra pessoa. Cada um deve aprender por si mesmo. Para aprendê-la, o indivíduo precisa ter liberdade de tentar todas as experiências que são recomendadas por seu julgamento. Algumas de suas experiências terão sucesso e, por conta desse sucesso, são chamadas de virtudes; outras falham e, por causa dessa falha, elas são chamadas de vícios. Ele acumula conhecimento tanto através de suas falhas quanto através de seus sucessos; tanto através de seus vícios quanto de suas virtudes. Ambos são necessários para sua aquisição do conhecimento — de sua própria natureza, do mundo que o envolve e de suas adaptações ou não-adaptações um com o outro — que mostrará a ele como a felicidade é alcançada e a dor evitada. E, a não ser que ele possa tentar essas experiências para sua própria satisfação, sua aquisição de conhecimento é restringida e, consequentemente, também o é a busca do grande propósito e dever de sua vida.
VII.
Um homem não tem obrigação alguma de aceitar a palavra de alguém, ou de dar autoridade a alguém, numa questão tão vital para si mesmo, em relação à qual ninguém mais tem ou pode ter tanto interesse quanto ele. Ele não pode seguramente confiar nas opiniões de outros homens, porque ele vê que as opiniões dos outros homens não são as mesmas. Certas ações ou cursos de ação têm sido praticadas por muitos milhões de homens, através de sucessivas gerações, e foram consideradas por eles como sendo, no todo, conducentes à felicidade e, portanto, virtuosas. Outros homens, em outras eras ou países, ou sob outras condições, consideraram, como resultado de suas experiências e observações, que essas ações conduziam, no todo, à infelicidade e que, portanto, eram viciosas. A questão da virtude e do vício, como já se notou numa seção anterior, também tem sido, na maioria das mentes, uma questão de grau; isto é, da extensão à qual certas ações devem ser executadas, não do caráter intrínseco de qualquer ato individual em si. As questões da virtude e do vício, assim, têm sido tão variadas e, de fato, tão infinitas quanto as variedades da mente, dos corpos e das condições dos diferentes indivíduos que habitam o mundo. E a experiência das eras deixou um número infinito dessas questões não resolvidas. Na verdade, mal se pode dizer que alguma tenha sido resolvida.
VIII.
No meio dessa infindável variedade de opiniões, que homem ou conjunto de homens tem o direito de dizer, em relação a qualquer ação ou curso de ação particular “Nós fizemos esse experimento e resolvemos todas as questões envolvidas nele. Nós as resolvemos não apenas para nós mesmos, mas para todos os homens. E todos aqueles que forem mais fracos que nós serão coagidos a agir em obediência a nossa conclusão. Não serão feitas mais quaisquer experiências ou pesquisas por ninguém, e, consequentemente, não haverá mais aquisição de conhecimento por ninguém”?
Quais os homens que têm o direito de dizer isso? Certamente não há nenhum. Os homens que de fato dizem isso são grandes impostores e tiranos que impediriam o progresso do conhecimento e usurpariam o absoluto controle sobre as mentes e os corpos dos outros homens; deve-se, portanto, resistir a eles imediatamente e até o fim; eles são demasiado ignorantes em relação às próprias fraquezas e em relação às suas relações com os outros homens para serem dignos de algo que não piedade ou desprezo.
Nós sabemos, porém, que existem tais homens no mundo. Alguns deles tentam exercer seus poderes somente dentro de uma pequena esfera: sobre seus filhos, sobre seus vizinhos, sobre aqueles que moram em sua cidade e sobre seus compatriotas. Outros tentam exercê-lo numa maior escala. Por exemplo, um velho homem em Roma, auxiliado por alguns poucos subordinados, tenta decidir todas as questões sobre virtudes e vícios; isto é, sobre a verdade e a falsidade, especialmente em questões religiosas. Ele diz saber e poder ensinar que ideias e práticas religiosas são conducentes ou fatais à felicidade do homem, não apenas neste mundo, mas também naquele que está por vir. Ele diz ter sido milagrosamente inspirado para executar tal trabalho; ele reconhece assim, sensatamente, que nada além de uma inspiração milagrosa poderia qualificá-lo para isso. Essa inspiração, no entanto, tem sido inútil para capacitá-lo para resolver mais que algumas poucas questões até aqui. O máximo que os mortais comuns podem ter é uma crença implícita em sua (do papa) infalibilidade! E, em segundo lugar, que os piores vícios de que eles podem ser culpados são o de acreditar e o de declarar que o papa é apenas um homem como todos os outros!
Foram necessários quinze ou dezoito séculos para que ele fosse capaz de alcançar conclusões definitivas quanto a esses dois pontos vitais. No entanto, parece que o primeiro deles deve ser preliminar à resolução de quaisquer outras questões, porque, até que sua própria infalibilidade seja estipulada, ele não possui autoridade decidir nada. Ele tem, entretanto, até hoje tentado ou fingido resolver algumas outras questões. E ele pode, talvez, tentar ou fingir resolver algumas outras no futuro, se continuar a encontrar pessoas que o escutem. Mas seu sucesso, até aqui, certamente não encoraja a crença de que ele será capaz de resolver todas as questões sobre a virtude e o vício, mesmo em seu peculiar departamento religioso, em tempo de responder às necessidades da humanidade. Ele, ou seus sucessores, sem dúvida serão compelidos, num dia não muito distante, a reconhecer que ele assumiu uma tarefa à qual toda a sua inspiração milagrosa era inadequada; e que, necessariamente, todo ser humano deve ser deixado para resolver todas as questões desse tipo por si mesmo. Não é despropositado esperar que todos os outros papas, em esferas diferentes e mais baixas, terão motivos para chegar à mesma conclusão. Ninguém, certamente, sem alegar ter inspirações sobrenaturais, deveria assumir uma tarefa à qual obviamente nada menos que essa inspiração seja necessária. E, claramente, ninguém deveria abdicar de seu próprio julgamento em favor dos ensinamentos dos outros, a não ser que estivesse convencido de que esses outros possuem mais do que o conhecimento normal do assunto em questão.
Se essas pessoas, que consideram possuir tanto o poder quanto o direito de punir os vícios dos outros, voltassem seus pensamentos para si mesmas, elas provavelmente veriam que têm muito trabalho para fazer em casa; e que, quando esse trabalho for completado, eles não terão disposição para fazer mais do que deixar que os outros conheçam os resultados de suas experiências e observações. Nesta esfera, seus esforços podem ser úteis; mas na esfera da infalibilidade e da coerção, elas, por razões bem conhecidas, provavelmente terão ainda menos sucesso no futuro do que tiveram os homens do passado.
IX.
É óbvio agora, pelas razões já apresentadas, que o governo seria completamente impraticável se fosse tomar conhecimento dos vícios e puni-los como crimes. Todo ser humano tem seus próprios vícios. Quase todos os homens têm muitos. E eles são de todos os tipos; fisiológicos, mentais, emocionais; religiosos, sociais, comerciais, industriais, econômicos, etc., etc. Se o governo deve tomar conhecimento de quaisquer desses vícios e puni-los como crimes, então, para ser consistente, deve tomar conhecimento de todos eles e puni-los imparcialmente. A consequência seria a de que todos estariam na prisão por seus vícios. Não haveria ninguém livre para trancar as portas daqueles que estivessem atrás das grades. De fato, não existiriam suficientes cortes para processar os réus, nem prisões suficientes para abrigá-los. Toda a empreitada humana de aquisição de conhecimentos, e até mesmo de aquisição dos meios de subsistência, seria eliminada: pois todos nós seríamos constantemente processados e estaríamos sempre aprisionados por nossos vícios. Mas mesmo se fosse possível aprisionar todos os viciosos, nosso conhecimento da natureza humana nos diz que, via de regra, eles seriam muito mais viciosos na prisão do que jamais foram fora dela.
X.
Um governo que puna todos os vícios imparcialmente é uma impossibilidade tão óbvia que ninguém jamais foi, ou jamais será, tolo o suficiente para propô-lo. O máximo que alguns propõem é que os governos devessem punir algum, ou no máximo alguns, vícios considerados mais grosseiros. Mas essa discriminação é completamente absurda, ilógica e tirânica. Que direito tem qualquer conjunto de homens de dizer “Os vícios dos outros homens nós puniremos, mas nossos próprios vícios ninguém punirá. Nós impediremos que os outros homens busquem sua própria felicidade de acordo com suas convicções, mas ninguém poderá nos impedir de buscar nossa própria felicidade de acordo com nossas próprias convicções. Nós impediremos que outros homens adquiram qualquer conhecimento experimental do que é conducente ou necessário às suas próprias felicidades, mas ninguém poderá nos impedir de adquirir conhecimento experimental daquilo que é conducente ou necessário à nossa própria felicidade”?
Ninguém além de tratantes ou estúpidos jamais tem pretensões absurdas como essas. E, no entanto, evidentemente, é somente com esse tipo de pretensão que uma pessoa pode alegar ter o direito de punir os vícios dos outros e, ao mesmo tempo, alegar ser ela mesma isenta da punição.
XI.
Algo como um governo, formado por uma associação voluntária, nunca teria sido imaginado se o objetivo proposto tivesse sido a punição de todos os vícios imparcialmente; porque ninguém deseja tal instituição ou estaria disposto a se submeter voluntariamente a ela. Mas um governo, formado por uma associação voluntária, para a punição de todos os crimes é uma ideia razoável; porque todos desejam para si proteção contra todos os crimes cometidos pelos outros, e também reconhecem a justiça de sua punição, se cometem um crime.
XII.
É uma impossibilidade natural que o governo tenha o direito de punir os homens por seus vícios; porque é impossível que um governo tenha quaisquer direitos, exceto aqueles que os indivíduos que o compõem tinham anteriormente, enquanto indivíduos. Eles não poderiam delegar a um governo quaisquer direitos que eles próprios não possuíssem. Eles não poderiam contribuir ao governo com quaisquer direitos, exceto com aqueles que eles mesmos possuíam como indivíduos. Agora, ninguém, a não ser um tolo ou um impostor, pretende ter, como indivíduo, o direito de punir outros homens por seus vícios. Mas todos têm um direito natural, enquanto indivíduos, de punir os outros homens por seus crimes; pois todos têm um direito natural não apenas de defender suas pessoas e propriedades de agressores, mas também de assistir e defender todos os outros cujas pessoas ou propriedades sejam invadidas. O direito natural de cada indivíduo de defender sua própria pessoa e propriedade contra uma agressão, e de ir em assistência e em defesa dos outros que têm suas pessoas ou propriedades invadidas, é um direito sem o qual nenhum homem poderia existir na terra. E o governo não tem existência legítima, exceto quando incorpora e é limitado por esse direito natural dos indivíduos. Mas a ideia de que cada homem tem um direito natural de decidir o que são virtudes e o que são vícios — isto é, o que contribui para sua felicidade e o que não contribui —, e que deve ser punido por tudo aquilo que faz que não contribui para sua felicidade, é algo que ninguém jamais teve a impudência ou a estupidez de dizer. Somente aqueles que alegam que o governo tem algum poder legítimo, o qual nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos jamais delegou ou poderia delegar a ele, alegam que o governo tem qualquer poder legítimo de punir vícios.
É suficiente para um papa ou para um rei — que diz ter recebido sua autoridade diretamente do Paraíso para governar os outros homens — alegar possuir o direito, como enviado de Deus, de punir os homens por seus vícios; mas é um gritante e completo absurdo que qualquer governo que alegue derivar seu poder do consentimento de seus governados, pretender ter tal poder; porque todos sabem que os governados nunca poderiam concedê-lo. Eles o concederem seria uma absurdidade, porque seria a concessão de seus próprios direitos de buscar suas próprias felicidades, uma vez que ceder o direito de julgar o que é conducente para suas felicidades é o mesmo que abrir mão de todo o direito de buscar a própria felicidade.
XIII.
Nós agora podemos ver quão simples, fácil e razoável é um governo que puna crimes, em comparação a um que puna vícios. Crimes são poucos, e facilmente distinguíveis de todos os outros atos; e a humanidade geralmente concorda quanto a quais atos são crimes. Em contraste, vícios são inúmeros; e não há duas pessoas que concordem, exceto em comparativamente poucos casos, quanto a o que são vícios. Além disso, todos desejam ter suas pessoas e propriedades protegidas contra a agressão de outros homens. Mas ninguém deseja ter sua pessoa e propriedades protegidas contra si mesmo; porque é contrário às leis fundamentais da natureza humana que alguém deseje prejudicar a si próprio. O indivíduo só deseja promover sua própria felicidade e ser seu próprio juiz quanto a o que promoverá, e pode promover, sua felicidade. Isso é o que todos desejam e a que têm direito como seres humanos. E embora nós todos cometamos muitos erros, e necessariamente devamos cometê-los dada a imperfeição de nosso conhecimento, esses erros não são argumento contra o direito, porque eles todos tendem a nos dar o próprio conhecimento de que precisamos, que buscamos e que não podemos adquirir de outra forma.
Logo, o objetivo de punir crimes não só é totalmente diferente do objetivo de punir vícios, mas se opõe diretamente a ele.
A punição de crimes pretende assegurar a todo homem a maior liberdade de que ele possa desfrutar — em consistência com os iguais direitos dos outros — para buscar sua própria felicidade através do uso de seu próprio julgamento e de sua própria propriedade. Por outro lado, a punição de vícios pretende privar todo homem de seu direito e de sua liberdade naturais de buscar sua própria felicidade através do uso de seu próprio julgamento e de sua propriedade.
Estes dois objetivos, portanto, estão em direta oposição um ao outro. Eles se opõem tão diretamente quanto a luz e a escuridão, a verdade e a mentira ou a liberdade e a escravidão. São completamente incompatíveis um com o outro, e a pretensão de que os dois sejam adotados pelo mesmo governo é uma absurdidade, uma impossibilidade. Seria como pretender que os cidadãos de um governo cometessem crimes e impedissem crimes; que destruíssem a liberdade individual e protegessem a liberdade individual.
XIV.
Finalmente, sobre a liberdade individual: todo homem deve necessariamente julgar e determinar para si o que é conducente e necessário a seu próprio bem-estar e o que o destrói; pois, se ele se omite da realização desta tarefa para si mesmo, ninguém mais pode realizá-la. E ninguém mais tentaria realizá-la para ele, a não ser em alguns poucos casos. Papas, padres e reis pretenderão realizá-la para ele em certos casos, se tiverem permissão para isso. Mas eles só a realizarão de forma que, ao fazê-la, possam auxiliar no cometimento de seus vícios e crimes. Em geral, eles somente a realizarão para fazerem o homem de idiota ou para o tornarem seu escravo. Pais, com melhores motivos que os outros, sem dúvida, também tentam frequentemente fazer o mesmo trabalho. Quando coagem ou obrigam uma criança a se abster de fazer algo que não seja realmente perigoso para ela, lhe fazem um mal, não um bem. É uma lei da Natureza a de que, para adquirir conhecimento e para incorporar esse conhecimento em sua pessoa, cada indivíduo deve obtê-lo por si próprio. Ninguém, nem mesmo seus pais, podem lhe dizer qual é a natureza do fogo, de maneira que ele a conheça. Ele precisa experimentá-lo, ser queimado pelo fogo, antes que possa conhecer sua natureza.
A Natureza sabe, mil vezes melhor que qualquer pai, a que ela tornou apto cada indivíduo, que conhecimento ele requer e como ele deve obtê-lo. Ela sabe que os processos que utiliza para comunicar esse conhecimento não são apenas os melhores, mas os únicos que podem ser efetivos.
As tentativas dos pais de tornarem virtuosos seus filhos em geral nada mais são que tentativas de mantê-los em ignorância dos vícios. Nada mais são que tentativas de ensinar seus filhos a conhecer e preferir a verdade mantendo-os na ignorância das mentiras. Nada mais são que tentativas de impeli-los a buscar e apreciar a saúde mantendo-os na ignorância das doenças e de tudo o que causa doenças. Nada mais são que tentativas de fazer seus filhos amarem a luz mantendo-os na ignorância da escuridão. Ou seja, nada mais são que tentativas de tornar seus filhos felizes mantendo-os na ignorância de tudo o que os torna infelizes.
Que os pais auxiliem seus filhos na busca destes pela felicidade, ao dar-lhes simplesmente os resultados de seus raciocínios e experimentos, é correto, natural e apropriado. Mas a prática da coerção em questões nas quais as crianças são razoavelmente competentes para julgar por si mesmas é apenas uma tentativa de mantê-las na ignorância. E esta é uma tirania tão grande, e uma violação tão grave do direito das crianças de adquirir conhecimento por si mesmas da forma que desejarem, quanto é a mesma coerção praticada sobre pessoas mais velhas. Tal coerção, praticada sobre crianças, é uma negação do direito delas ao desenvolvimento das faculdades que a Natureza lhes concedeu e do direito delas a serem o que a Natureza lhes capacitou para ser. É uma negação do direito delas a si mesmas e ao uso de suas próprias capacidades. É uma negação dos direitos delas à aquisição do mais valioso de todos os conhecimentos, a saber, o conhecimento que a Natureza, a grande professora, está pronta a conceder-lhes.
Esta coerção não torna as crianças sábias ou virtuosas, mas as faz ignorantes e, consequentemente, fracas e viciosas; tal coerção perpetua através das crianças, de era para era, a ignorância, as superstições, os vícios e os crimes de seus pais. Isto é provado por toda página da história mundial.
Os que sustentam opiniões contrárias a estas são aqueles cujas teologias falsas e viciosas, ou cujas ideias viciosas em geral, os ensinaram que a raça humana é naturalmente inclinada ao mal em vez do bem, ao falso em vez do verdadeiro; que a humanidade não volta naturalmente seus olhos para a luz, que ama a escuridão em vez da luz; que encontra sua felicidade apenas naquelas coisas que levam à sua miséria.
XV.
Mas estes homens que dizem que o governo deveria usar seu poder para impedir os vícios dirão, ou costumam dizer: “Nós reconhecemos o direito de um indivíduo a buscar sua felicidade à sua maneira e, consequentemente, o direito de ser tão vicioso quanto lhe aprouver; nós apenas defendemos que o governo proíba a venda para ele daqueles artigos usados por ele para cometer seus vícios.”
A resposta a isto é que a simples venda de qualquer artigo — independentemente do uso que é feito dele — legalmente é um ato perfeitamente inocente. A qualidade do ato de venda depende totalmente da qualidade do uso para o qual a coisa é vendida. Se o uso de determinada coisa é virtuoso e lícito, então a venda dessa coisa, para esse uso, é virtuoso e lícito. Se o uso que se faz dela é vicioso, então sua venda é também viciosa. Se seu uso é criminoso, então sua venda, para esse uso, é criminoso. O vendedor é, no máximo, um cúmplice no uso que é feito do artigo vendido, seja ele virtuoso, vicioso ou criminoso. Quando o uso que se faz é criminoso, o vendedor é cúmplice de um crime e é punível como tal. Mas quando seu uso somente é vicioso, o vendedor é somente cúmplice de um vício e, portanto, não é punível.
XVI.
Mas se perguntará: “Não há o direito, da parte do governo, a impedir as ações daqueles que se inclinam à autodestruição?”
A resposta é que o governo não tem quaisquer direitos na questão, dado que essas pessoas que são chamadas viciosas permaneçam sãs, compos mentis, capazes de exercer discernimento racional e autocontrole; pois, enquanto permanecerem sãs, elas devem poder julgar e decidir por si mesmas se o que se considera que são seus vícios são de fato vícios; se eles realmente as estão levando à destruição; e se, no todo, elas serão destruídas ou não. Quando se tornarem insanas, non compos mentis, incapazes de discernimento racional ou autocontrole, seus amigos ou vizinhos, ou o governo, devem cuidar delas e protegê-las de males e de todos aqueles que lhes infligiriam danos, da mesma maneira que fariam caso a insanidade lhes tivesse acometido por qualquer outra causa que não os supostos vícios.
Porém, da suposição, por parte de seus vizinhos, de que um homem está no caminho da autodestruição, por causa de seus vícios, não se segue que ele seja insano, non compos mentis, incapaz de discernimento racional e autocontrole, de acordo com o significado legal destes termos. Homens e mulheres podem ser dados a vícios dos mais repugnantes, e a muitos deles — tais como a gula, o alcoolismo, a prostituição, a jogatina, as brigas, a mastigação de tabaco, o fumo, o uso do rapé, do ópio, o uso de espartilhos, a apatia, o desperdício, a avareza, a hipocrisia, etc., etc. —, e ainda assim serem sãos, compos mentis, capazes de discernimento racional e autocontrole, dentro do significado legal. E, enquanto forem sãos, devem poder controlar a si mesmos e suas propriedades, e serem seus próprios juízes quanto a onde seus vícios os levarão ao fim. Os observadores podem esperar, em cada caso individual, que o vicioso veja o fim para o qual ele tende e que seja induzido a modificar suas ações. Mas se ele escolher continuar no caminho chamado de destruição por outros homens, ele deve poder fazer isso. E tudo que se pode dizer sobre ele, em relação a sua vida, é que ele cometeu um grande erro em sua busca pela felicidade, e que os outros fariam bem em tomá-lo como exemplo. Em relação a sua condição em outra vida, esta é uma questão teológica com a qual a lei, neste mundo, não tem mais a ver do que tem com qualquer outra questão teológica relacionada com uma vida futura.
Caso se pergunte como determinar a sanidade ou a insanidade de um homem vicioso, a resposta será: pelos mesmos tipos de evidência que determinam a sanidade ou insanidade daqueles que são chamados virtuosos, e de nenhuma outra forma. Isto é, pelos mesmos tipos de evidência pelos quais os tribunais legais determinam se um homem deve ser mandado a um asilo de lunáticos ou se ele tem competência para tomar decisões ou dispor de suas propriedades. Quaisquer dúvidas devem pesar em favor de sua sanidade, como em todos os casos, e não de sua insanidade.
Se uma pessoa realmente se tornar insana, non compos mentis, incapaz de discernimento racional ou autocontrole, então é um crime que outros homens deem ou vendam a ela os meios pelos quais ela pode ferir a si mesma.[1] Não há crimes mais facilmente puníveis, não há casos nos quais os júris estariam mais prontos a condenar, que aqueles nos quais uma pessoa sã vende ou dá a um insano um artigo pelo qual este último provavelmente ferirá a si próprio.
XVII.
Mas será dito que alguns homens se tornam, por conta de seus vícios, perigosos a outras pessoas; que um bêbado, por exemplo, às vezes é briguento e perigoso para sua família e outras pessoas. Perguntar-se-á: “Não tem a lei nada a dizer neste caso?”
A resposta é: se, por conta de sua bebedeira ou por qualquer outra causa, um homem for de fato perigoso a sua família ou a outras pessoas, não apenas ele pode ter suas ações legitimamente reprimidas, tal como requer a segurança das outras pessoas, mas todas as outras pessoas — que sabem ou têm bases razoáveis para acreditar que ele é perigoso — podem ter reprimidos quaisquer de seus atos que forneçam os meios que podem torná-lo perigoso.
Só que do fato de que um homem se torna briguento e perigoso após ingerir bebidas alcoólicas, e do fato de ser um crime dar ou vender bebidas a tal homem, não se segue que seja um crime vender bebidas a centenas de milhares de outras pessoas, que não se tornam briguentas ou perigosas ao bebê-las. Antes que um homem possa ser condenado de um crime por vender bebidas alcoólicas a um homem perigoso, deve-se demonstrar que aquele certo homem para quem se vendeu as bebidas era perigoso e que o vendedor sabia, ou tinha bases razoáveis para supor, que o homem se tornaria perigoso ao bebê-las.
A presunção da lei é, em todos os casos, de que a venda é inocente; e o ônus da prova do crime, em todo caso particular, está com o governo. E o caso particular deve ser provado criminoso independentemente de todos os outros.
A partir destes princípios, não há dificuldades em condenar e punir os homens pela cessão de quaisquer artigos a um homem que se torne perigoso pelo uso deles.
XVIII.
Frequentemente se diz que alguns vícios são transtornos (públicos ou privados), e que transtornos podem ser condenados e punidos.
É verdade que qualquer coisa que de fato e legalmente for um transtorno (público ou privado) pode ser condenado e punido. Mas não é verdade que os meros vícios privados de um homem sejam, em qualquer sentido legal, transtornos a outros homens, ou ao público.
Nenhum ato de uma pessoa pode ser um transtorno a outra, a não ser que obstrua ou interfira de alguma forma na segurança e tranquilidade do uso ou gozo do que é legitimamente dela.
O que quer que obstrua uma via pública é um transtorno e pode ser condenado e punido. Mas um hotel onde sejam vendidas bebidas, uma loja de bebidas ou mesmo um botequim não obstruem mais uma via pública do que um armazém comum, uma loja de joias ou um açougue.
O que quer que envenene o ar, o torne ofensivo ou insalubre é um transtorno. Mas nem um hotel, nem uma loja de bebidas, nem um botequim envenenam o ar ou o tornam ofensivo ou insalubre a outras pessoas.
O que quer que obstrua a luz à qual um homem tem o direito legal é um transtorno. Mas nem um hotel, nem uma loja de bebidas, nem um botequim obstruem a luz de qualquer pessoa, a não ser nos casos em que uma igreja, uma escola ou uma residência igualmente a obstruem. Neste sentido, portanto, os primeiros não são transtornos maiores do que seriam os últimos.
Algumas pessoas têm o hábito de dizer que uma loja de bebidas é perigosa da mesma forma que um armazém de pólvora é perigoso. Mas não há nenhuma analogia entre os casos. O armazém pode explodir acidentalmente, e especialmente por incêndios como os que frequentemente ocorrem nas cidades. Por essas razões ele é perigoso para as pessoas e propriedades em sua vizinhança imediata. Mas bebidas não podem explodir dessa maneira, e portanto não são perigosos transtornos à sociedade como são os armazéns de pólvora nas cidades.
Mas se diz, novamente, que locais para se beber frequentemente estão cheios de homens barulhentos e violentos que perturbam a quietude da vizinhança e o sono do resto dos vizinhos.
Isso pode ser verdade ocasionalmente, embora não frequentemente. Mas quando isso ocorrer, em qualquer caso, o transtorno poderá ser suprimido pela punição do proprietário e de seus consumidores, e, se necessário, pelo fechamento do estabelecimento. Mas uma reunião de bebedores não é um transtorno maior que qualquer outra reunião barulhenta. Um beberrão alegre ou jovial não perturba mais a quietude de uma vizinhança que a gritaria de um fanático religioso. Uma reunião de beberrões barulhentos não é um transtorno maior que uma reunião de fanáticos religiosos barulhentos. Ambos são transtornos quando perturbam o descanso, o sono ou a quietude de seus vizinhos. Até mesmo um cachorro latindo, e assim perturbando o sono ou a quietude de uma vizinhança, é um transtorno.
XIX.
Diz-se que incitar outra pessoa a cometer um vício é um crime.
Isso é absurdo. Se qualquer ato particular é somente um vício, então um homem que incita outro a cometê-lo é simplesmente um cúmplice de um vício. Ele evidentemente não comete qualquer crime, porque o cúmplice não pode cometer ofensa maior que o responsável principal.
Presume-se que toda pessoa sã, compos mentis, dotada de discernimento racional e autocontrole, seja mentalmente competente para julgar por si mesma a validade de todos os argumentos, prós e contras, que lhe sejam dirigidos para persuadi-la a fazer alguma coisa, dado que não seja empregada fraude para enganá-la. E se ela for persuadida ou induzida a executar o ato, o ato então é seu; e embora o ato possa vir a ser danoso a ela própria, ela não pode reclamar que a persuasão ou os argumentos, aos quais ela assentiu, foram crimes em si mesmos.
Quando a fraude é praticada, o caso é, obviamente, diferente. Se, por exemplo, eu ofereço veneno a um homem assegurando-o de que é uma bebida segura e saudável, e ele, de boa-fé, o ingere, meu ato é um crime.
Volenti non fit injuria é uma máxima do direito. A quem consente não se comete injúria. Isto é, nenhuma infração legal. E toda pessoa sã, compos mentis, capaz de discernimento racional ao julgar a validade ou a falsidade dos argumentos aos quais assente, está “consentindo”, aos olhos da lei; ela toma para si toda a responsabilidade por seus atos quando nenhuma fraude intencional foi exercida sobre si.
Este princípio, de que a quem consente não se comete injúria, não tem limites, a não ser em caso de fraudes ou no de pessoas incapazes de discernimento racional para o julgamento do caso particular. Se uma pessoa dotada de discernimento racional e não enganada por fraude consente à prática do mais grosseiro vício, impondo a si, dessa forma, os maiores sofrimentos morais ou físicos ou as maiores perdas pecuniárias, ela não pode alegar que sofreu uma injúria legal. Para ilustrar este princípio, tome-se o caso do estupro. Possuir uma mulher contra a vontade dela é o maior crime, a seguir do assassinato, que lhe pode ser cometido. Mas possuí-la com o consentimento dela não é crime; é, no máximo, um vício. E normalmente se sustenta que uma menina de não mais que dez anos de idade tem o discernimento requerido para que seu consentimento, embora incitado por recompensas ou promessas de recompensas, seja suficiente para converter o ato, que de outra forma seria um grave crime, num simples vício.[2]
Nós observamos o mesmo princípio no caso dos boxeadores. Se eu pousar meus dedos sobre outro homem contra a vontade dele, não importa quão levemente e quão pouco ele tenha sido injuriado, o ato é um crime. Mas se dois homens concordarem em dar suas caras a bater até que elas fiquem deformadas, isso não é um crime, é somente um vício.
Nem mesmo duelos são considerados crimes, em geral, porque todo homem é dono da própria vida, e as partes concordam que uma pode tirar a vida da outra, se puder, pelo uso das armas acordadas e em conformidade com certas regras mutuamente aceitas.
E esta é a avaliação correta da questão, a não ser que se diga (embora provavelmente não seja possível) que a “raiva é uma loucura” que tanto priva o homem de sua razão a ponto de torná-lo incapaz de qualquer discernimento.
O jogo é outra ilustração do princípio de que a quem consente não se comete injúria. Se eu tomar um único centavo da propriedade de outro homem sem seu consentimento, o ato é criminoso. Mas se dois homens, que estejam compos mentis, dotados de razoável discernimento para julgar a natureza e os prováveis resultados de seus atos, se reúnem e voluntariamente apostam dinheiro nos dados, fazendo com que um deles perca todas as suas terras (não importando quão grandes sejam), isso não é um crime, mas somente um vício.
Não é um crime nem mesmo auxiliar uma pessoa a cometer suicídio, se ela estiver de posse de sua razão.
É uma ideia um tanto comum a de que o suicídio é, em si mesmo, uma evidência conclusiva de insanidade. Porém, embora possa ser normalmente uma evidência bastante forte de insanidade, não é conclusiva em todos os casos. Muitas pessoas, de posse, sem dúvidas, de suas faculdades racionais, já cometeram suicídio para escapar à exposição pública de seus crimes ou para evitar alguma outra grande calamidade. O suicídio, nesses casos, pode não ter sido o ato mais sábio, mas certamente não foi prova de qualquer tipo de insanidade.[3] Estando dentro dos limites do discernimento racional, não foi um crime que outras o auxiliassem, através do fornecimento dos instrumentos necessários ou de qualquer outra forma. E se, em tais casos, não seria um crime auxiliar um suicídio, quão absurdo seria dizer que é um crime auxiliar algum ato verdadeiramente prazeroso e considerado útil por grande parte da sociedade?
XX.
Algumas pessoas têm o hábito de dizer que as bebidas alcoólicas são a maior fonte de crimes; que “elas enchem nossas prisões de criminosos”, e que este é motivo suficiente para proibir sua venda.
Aqueles que dizem isso, se falam sério, são cegos e tolos. Eles evidentemente pretendem dizer que uma grande percentagem de todos os crimes que são cometidos entre os homens são cometidos por pessoas cujas paixões criminosas estão excitadas, no momento, pela ingestão de bebidas, em consequência da ingestão de bebidas.
Essa ideia é totalmente absurda.
Em primeiro lugar, os grandes crimes cometidos no mundo são incitados pela avareza e pela ambição.
O maior de todos os crimes são as guerras engendradas pelos governos para saquear, escravizar e destruir a humanidade.
Os outros grandes crimes cometidos no mundo são igualmente incitados pela avareza e pela ambição; e são cometidos não por uma paixão repentina, mas por homens calculistas que mantêm suas mentes calmas e claras, e que não pretendem ir para a prisão para pagar por eles. São cometidos não tanto por homens que violam as leis, mas por homens que, direta ou indiretamente, fazem as leis; por homens que se uniram para usurpar o poder arbitrário e para mantê-lo pelo uso da força e da fraude, e cujo objetivo ao usurpá-lo e mantê-lo, através de legislações injustas e desiguais, é assegurar para si mesmos vantagens e monopólios que os permitam controlar e explorar o trabalho e as propriedades dos outros homens, empobrecê-los e, assim, aumentar suas riquezas e poderes.[4] As injustiças cometidas por esses homens, em conformidade com as leis — isto é, suas próprias leis —, são como montanhas em relação a montículos, quando comparadas com os crimes cometidos por todos os outros criminosos, em violação das leis.
Mas, em terceiro lugar, há um grande número de fraudes, de vários tipos, cometidas em transações comerciais, cujos praticantes, com sua frieza e sagacidade, escapam do funcionamento das leis. E somente suas mentes frias e racionais poderiam habilitá-los a fazer isso. Homens sob a excitação de bebidas tóxicas não têm a disposição ou a constância necessárias para a prática bem sucedida dessas fraudes. Eles são os mais imprudentes, mal sucedidos, ineficientes e inofensivos de todos os criminosos com os quais as leis têm que lidar.
Quarto. Os tais ladrões, salteadores, bandoleiros, falsários, fraudadores e vigaristas que assolam a sociedade podem ser qualquer coisa, mas não são beberrões descuidados. O ramo de atuação deles é perigoso demais para admitir os riscos em que a bebida os poria.
Quinto. Os crimes que se pode dizer serem cometidos sob a influência de bebidas alcoólicas são assaltos e pilhagens, não muito numerosos e em geral não muito graves. Alguns outros crimes leves, como pequenos furtos ou outras pequenas invasões de propriedade, são às vezes cometidos sob a influência da bebida por pessoas de mente fraca, em geral não dadas ao crime. São poucas as pessoas que cometem esses crimes. Não se pode dizer que elas “enchem nossas prisões”; ou, se for possível dizer tal coisa, devemos ser parabenizados por precisar de tão poucas e pequenas prisões para mantê-los.
O Estado de Massachusetts, por exemplo, tem um milhão e meio de pessoas. Quantas dessas estão presas agora por terem cometido crimes — não pelo vício da intoxicação, mas por crimes — contra pessoas ou propriedades instigadas por bebidas fortes? Eu duvido que haja uma em dez mil, isto é, cento e cinquenta entre todas as pessoas; e os crimes pelos quais elas estão presas são infrações bem pequenas, em sua maioria.
E eu acho que se verá que se deve apiedar desses homens muito mais do que puni-los, pois foi a pobreza e a miséria, não a paixão pela bebida ou pelo crime, que os levaram a beber e a cometer seus crimes sob a influência do álcool.
A acusação de que a bebida “enche nossas prisões de criminosos” é feita, penso eu, apenas por aqueles homens que não são capazes de fazer mais do que chamar um bêbado de criminoso, e que não têm melhores fundamentos para suas acusações que o vergonhoso fato de sermos pessoas tão brutais e insensíveis a ponto de condenar pessoas tão fracas e infelizes quanto os alcoólatras, como se eles fossem criminosos.
Os legisladores que autorizam e os juízes que praticam atrocidades como essas são intrinsecamente criminosos, a não ser que a ignorância deles seja tão grande — como provavelmente não é — que os desculpe. E, fossem eles punidos como criminosos, haveria mais razão em nossa conduta.
Um juiz policial em Boston certa vez me disse que tinha o hábito de julgar alcoólatras (mandando-os para a prisão por trinta dias — eu acho que esta era a sentença estereotipada) à taxa de um a cada três minutos!, e às vezes mais rápido do que isso; condenando-os assim como criminosos e mandando-os à prisão sem piedade e sem investigar as circunstâncias, por uma enfermidade que os faria merecer compaixão e não punição. Os verdadeiros criminosos nesses casos não foram os homens que foram enviados à prisão, mas o juiz e seus auxiliares, que os mandaram para lá.
Eu recomendo a essas pessoas, que estão tão perturbadas com a lotação de criminosos das prisões de Massachusetts, que empreguem ao menos alguma parte de sua filantropia para evitar que nossas prisões sejam ocupadas por pessoas que não cometeram crimes. Eu não lembro de já ter ouvido que as simpatias delas tenham sido exercidas nesse sentido. Pelo contrário, elas parecem ter uma paixão tão grande pela punição de criminosos que mal se preocupam em investigar se um candidato particular a punição é de fato um criminoso. Tal paixão, asseguro-as, é muito mais perigosa, e digna de muito menos caridade, moral e legal, que a paixão por bebidas alcoólicas.
Parece estar em muito maior conformidade com o caráter impiedoso desses homens enviar um homem infeliz para a prisão por beber, e, assim, destruí-lo, degradá-lo, abatê-lo e arruinar sua vida, do que estaria alçá-lo da condição de pobreza e miséria que o levaram a se tornar um alcoólatra.
Somente essas pessoas que têm pouca capacidade ou disposição para esclarecer, incentivar ou auxiliar a humanidade são possuídas pela paixão violenta de governar, comandar e punir. Se, em vez de apenas observarem e darem consentimento e sanção a todas as leis pelas quais o fraco é explorado, oprimido, desencorajado e, então, punido como criminoso, elas voltassem sua atenção para o dever de defender os direitos dele e de melhorar sua condição, de fortalecê-lo e permitir que ele ande com as próprias pernas, suportando as tentações que o rodeiam, elas teriam, penso eu, pouca necessidade de falar sobre leis e prisões para vendedores ou bebedores de rum, ou mesmo para qualquer outra classe de criminosos comuns. Se, em suma, esses homens, que estão tão ansiosos para suprimir o crime, suspendessem por um tempo seus pedidos de auxílio ao governo para que ele suprima os crimes dos indivíduos, para então pedir auxílio ao povo para suprimir os crimes do governo, eles demonstrariam maior sinceridade e bom senso do que demonstram agora. Quando as leis forem todas tão justas e equitativas a ponto de permitirem que todos os homens e mulheres vivam honestamente, virtuosamente, confortáveis e felizes, haverá muito menos ocasiões do que ora há para acusá-los de viver desonesta ou viciosamente.
XXI.
Mas se dirá, novamente, que o uso de bebidas alcoólicas tende a levar as pessoas à pobreza, tornando-as assim um fardo para os contribuintes, e que esta é razão suficiente por que a venda delas deveria ser proibida.
Há várias respostas a esse argumento.
1. Uma resposta é a de que se o fato de que o uso de bebidas leva à pobreza e à miséria for razão suficiente para proibir a venda delas, então é razão igualmente suficiente para a proibição do uso delas; pois é o uso, não a venda, que leva à pobreza. O vendedor é, no máximo, um cúmplice do bebedor. E é uma regra do direito e da razão a de que se o responsável principal de qualquer ato não é punível, o cúmplice não pode ser.
2. Uma segunda resposta ao argumento é a de que, se o governo tem o direito e o dever de proibir qualquer ato — que não seja criminoso — apenas porque ele supostamente leva à pobreza, então, pela mesma regra, ele tem o direito e o dever de proibir todo e qualquer outro ato — não criminoso — que, na opinião do governo, tende a levar à pobreza. E, a partir deste princípio, o governo não apenas teria o direito, mas o dever, de investigar cuidadosamente os assuntos privados de todo homem e os gastos pessoais de todas as pessoas, para determinar quais deles tenderam e quais não tenderam à pobreza, e proibir e punir todos aqueles da primeira classe. Um homem não teria direito de gastar um centavo de sua propriedade de acordo com sua vontade ou julgamento, a não ser que a legislatura fosse da opinião de que aquele gasto não o levaria à pobreza.
3. Uma terceira resposta ao mesmo argumento é a de que se um homem é levado à pobreza, ou mesmo à extrema miséria — por suas virtudes ou por seus vícios — o governo não tem qualquer obrigação de auxiliá-lo, a não ser que deseje. Ele pode deixá-lo perecer nas ruas ou depender da caridade privada, se assim quiser. Ele pode usar de seu livre arbítrio e julgamento na questão, pois ele está acima de qualquer responsabilidade legal no caso. Não é, necessariamente, um dever do governo auxiliar os pobres. Um governo — isto é, um governo legítimo — é simplesmente uma associação voluntária de indivíduos que se une para aqueles propósitos, e apenas para aqueles propósitos, que consideram apropriados. Se auxiliar os pobres — sejam eles virtuosos ou viciosos — não for um desses propósitos, então o governo, enquanto governo, não tem maior direito ou obrigação de ajudá-los do que uma companhia bancária ou ferroviária.
A despeito de quaisquer reclamações morais à caridade que um homem pobre — sendo ele virtuoso ou vicioso — possa ter em relação aos outros homens, ele não tem reclamações legais para com eles. Ele deve depender totalmente da caridade deles, se eles desejarem. Ele não pode exigir, como direito legal, que eles o alimentem ou o vistam. Ele não tem maiores reclamações legais ou morais em relação a um governo — que não é senão uma associação de indivíduos — do que ele tem para com os indivíduos enquanto indivíduos privados.
Assim, tanto quanto um homem pobre — virtuoso ou vicioso — não tem maior reclamação legal ou moral a comida e vestimentas em relação ao governo do que tem para com os indivíduos privados, um governo não tem maior direito que um indivíduo privado a controlar ou proibir os gastos ou as ações de um indivíduo com base no fato de que o levam à pobreza.
O sr. A, enquanto indivíduo, claramente não tem nenhum direito de proibir quaisquer atos ou gastos do sr. Z por um medo de que esses atos ou gastos tendam a levar Z à pobreza, o que faria com que Z, consequentemente, em algum futuro incerto, fosse até A em desespero pedir caridade. E se A não tem o direito, enquanto indivíduo, de proibir quaisquer atos ou gastos da parte de Z, então o governo, que é uma mera associação de indivíduos, não pode ter tal direito.
Certamente nenhum homem, que esteja compos mentis, sustenta seu direito de dispor e de usar sua propriedade por qualquer título sem valor que permitisse a qualquer um ou a todos os seus vizinhos — chamando a si mesmos pelo nome governo ou não — interferir e proibi-lo de fazer quaisquer gastos exceto aqueles que não o levassem à pobreza e a se tornar um esmoléu a implorar pela caridade deles no futuro.
Se um homem, que esteja compos mentis, vier a ficar pobre por suas virtudes ou vícios, nenhum homem ou conjunto de homens pode ter qualquer direito de intervir em suas questões com base no fato de que poderá haver apelos futuros às suas caridades em favor dele; porque, se houvesse tais apelos, eles têm perfeita liberdade tanto de agir de acordo com suas próprias vontades ou discrições quanto de atender às solicitações.
Este direito de recusar caridade aos pobres — sendo estes últimos virtuosos ou viciosos — é um direito sempre usado pelos governos. Nenhum governo faz mais provisões para os pobres do que deseja. Por consequência, os pobres dependem, em grande medida, da caridade privada. Em verdade, eles frequentemente sofrem de doenças, e até mesmo morrem, porque nem a caridade pública nem a privada vêm em auxílio. Quão absurdo é dizer, então, que um governo tem o direito de controlar o uso de um homem de sua propriedade pelo medo de que ele venha a empobrecer e suplicar por caridade.
4. Uma quarta resposta ao argumento é a de que o grande e único incentivo que cada indivíduo tem a trabalhar e a criar riqueza é que ele possa dispor dela de acordo com suas vontades e discrições, para a promoção de sua própria felicidade e da felicidade daqueles que ama.[5]
Embora um homem possa frequentemente, por inexperiência ou mau julgamento, gastar alguma porção dos produtos de seu trabalho de maneira imprudente, de uma forma que não promova seu maior bem-estar, ele ganha sabedoria, da mesma forma que em todas as outras questões, através da experiência; por seus erros tanto quanto por seus sucessos. E essa é a única maneira pela qual ele pode adquirir sabedoria. Quando ele se convence de que fez um gasto tolo, ele aprende a não mais fazê-lo. Ele precisa poder tentar seus próprios experimentos, e tentá-los para sua própria satisfação, nesta tanto quanto noutras questões; pois caso contrário ele não terá maior motivo para trabalhar ou criar riquezas.
5. Uma quinta resposta ao argumento é a de que se o dever do governo é vigiar os gastos de uma pessoa individual — que esteja compos mentis e não seja uma criminosa — para ver quais deles levam à pobreza e quais não, para proibir e punir os primeiros, então, pela mesma regra, ele deve vigiar os gastos de todas as outras pessoas, e proibir e punir todos aqueles que, em seu julgamento, tendam a levar à pobreza.
Se tal princípio fosse executado imparcialmente, o resultado seria o de que todas as pessoas estariam tão ocupadas na vigia dos gastos umas das outras, e no testemunho, no processo e na punição de todos aqueles que tendessem a levar à pobreza, que não teriam tempo para criar qualquer riqueza. Todos aqueles capazes de trabalho produtivo estariam na prisão ou estariam ocupados exercendo os papéis de juízes, jurados, testemunhas ou carcereiros. Seria impossível criar cortes suficientes para os processos ou construir prisões suficientes para prender os transgressores. Todo trabalho produtivo cessaria; e os tolos que tanto desejavam evitar a pobreza não só seriam levados eles próprios à pobreza, à prisão e à fome, como levariam todos os outros à pobreza, à prisão e à fome.
6. Se for dito que um homem pode, ao menos, ser legitimamente compelido a sustentar sua família e, consequentemente, se abster de fazer gastos que, na opinião do governo, tendam a incapacitá-lo a exercer seu dever, várias respostas podem ser dadas. Mas esta é suficiente, a saber: nenhum homem, a não ser um tolo ou um escravo, reconheceria que qualquer família fosse a sua, se esse reconhecimento se tornasse uma desculpa, para o governo, para privá-lo de sua liberdade pessoal ou do controle de sua propriedade.
Quando se permite a um homem desfrutar de sua liberdade natural e do controle de sua propriedade, sua família é, normalmente, quase universalmente, o objeto maior de seu orgulho e afeição; e ele empregará, não apenas voluntariamente, mas com o maior prazer, seus maiores poderes mentais e físicos não só para prover a ela as necessidades e os confortos normais da vida, mas também para esbanjar sobre ela todos os luxos e regalias que seu trabalho puder adquirir.
Um homem não tem obrigação moral ou legal de fazer nada em favor de sua esposa ou de seus filhos, a não ser aquilo que ele possa fazer em conformidade com sua própria liberdade pessoal e com o seu direito natural de controlar sua propriedade de acordo com as próprias vontades.
Se um governo pode interferir e dizer a um homem — que esteja compos mentis e que esteja cumprindo seus deveres para com sua família, da forma que ele os encara, de acordo com seu melhor julgamento, apesar de suas imperfeições — “Nós (o governo) suspeitamos que você não esteja empregando seu trabalho para o maior bem de sua família; nós suspeitamos que seus gastos e sua disposição de sua propriedade não são tão sensatos quanto poderiam ser, para o bem de sua família; portanto nós (o governo) colocaremos você e sua propriedade sob nossa vigilância especial e prescreveremos a você o que você pode e o que não pode fazer consigo próprio e com sua propriedade; sua família de agora em diante terá que procurar a nós (o governo), não a você, para ter suporte” — se um governo pode fazer isso, todo o orgulho, toda a ambição e toda afeição de um homem para com sua família seriam esmagados até o ponto em que a tirania humana pode esmagá-los; ele preferiria jamais ter uma família (que ele publicamente reconhecesse ser sua) ou preferiria arriscar tanto sua propriedade quanto sua vida para derrubar tal absurda, ultrajante e intolerável tirania. E qualquer mulher que desejasse que seu marido — estando ele compos mentis — se submetesse a tal afronta e injustiça não merece seu afeto ou qualquer outra coisa que não nojo e desprezo. E ele provavelmente logo a faria entender que, se ela escolhesse depender do governo, e não dele, para seu sustento e para o sustento de seus filhos, ela deveria depender exclusivamente do governo.
XXII.
Uma resposta diferente e definitiva ao argumento de que o uso de bebidas alcoólicas tende a levar à pobreza é a de que, via de regra, ele coloca o efeito à frente da causa. Ele assume que é o uso de bebidas que causa a pobreza, em vez de ser a pobreza que causa o uso de bebidas.
A pobreza é a mãe natural de quase toda a ignorância, todo o vício, todo o crime e toda a miséria que há no mundo.[6] Por que é que uma parte tão grande da população trabalhadora da Inglaterra é bêbada e viciada? Certamente não é por que os trabalhadores são de natureza pior que a dos outros homens. É porque a pobreza extrema a que eles estão submetidos os mantêm em ignorância e servidão, destrói suas coragens e respeitos próprios, os sujeita a constantes insultos e injustiças, a amargas e incessantes misérias de todos os tipos, e finalmente os leva a tal desespero que a pequena trégua que a bebida e outros vícios possibilitam é, por ora, um alívio. Essa é a causa principal do alcoolismo e dos outros vícios de que sofrem os trabalhadores da Inglaterra.
Se aqueles trabalhadores da Inglaterra, que ora são bêbados e viciosos, tivessem as mesmas chances na vida que as classes mais afortunadas tiveram; se tivessem sido criados em lares confortáveis, felizes e virtuosos, em vez dos lugares esquálidos, desgraçados e viciosos nos quais cresceram; se houvessem tido aquelas oportunidades de adquirir conhecimento e propriedades, de se tornarem inteligentes, felizes, independentes e respeitáveis, de assegurar para si próprios todos os prazeres intelectuais, sociais e domésticos a que as honestas e justamente recompensadas indústrias permitissem — se eles pudessem ter tido tudo isso em vez de terem uma vida de trabalho sem esperanças e sem recompensas, com a certeza de morte na fábrica, eles estariam tão livres de seus presentes vícios e fraquezas quanto estão aqueles que agora os reprovam.
É inútil dizer que o alcoolismo, ou qualquer outro vício, apenas piora suas situações; pois tal é a natureza humana — a fraqueza da natureza humana, se assim você desejar — que os homens podem aguentar não mais que um certo nível de miséria antes que sua esperança e coragem desapareçam e que eles cedam a quase qualquer coisa que prometa alívio, embora ao custo de uma miséria ainda maior no futuro. Pregar moralidade ou temperança para tais infelizes pessoas, em vez de aliviar seus sofrimentos ou melhorar suas condições, é um insulto à condição delas.
Será que aqueles que costumam atribuir a pobreza dos homens a seus vícios, em vez dos vícios à pobreza — como se toda pessoa pobre, ou a maioria delas, fosse especialmente viciosa —, nos dirão que toda a pobreza do último ano e meio[7] foi imposta repentinamente — como se fosse num momento — a pelo menos vinte milhões de pessoas como consequência natural do alcoolismo ou de quaisquer outros vícios delas próprias? Teria sido o alcoolismo ou outro vício que paralisou, como um raio, todas as indústrias pelas quais elas viviam e que eram tão prósperas alguns dias antes? Teriam sido seus vícios que desempregaram os adultos dentre aqueles vinte milhões de pessoas, compeliram-nos a consumir suas parcas economias, se tinham alguma, e os obrigaram a se tornar pedintes — pedintes de trabalho e, fracassando, pedintes de pão? Teriam sido seus vícios que, simultânea e repentinamente, encheram suas casas de necessidades, miséria, doenças e morte? Não. Claramente não foi o alcoolismo nem qualquer outro vício dos trabalhadores que os levou à ruína e à desgraça. E se não foi isso, o que foi?
Este é o problema que deve ser respondido; pois ele é recorrente, se coloca constantemente ante nós, e não pode ser ignorado.
De fato, a pobreza de grande parte da humanidade, em todo o mundo, é o grande problema mundial. Que essa extrema e quase universal pobreza exista em todo o mundo, e que tenha existido durante todas as gerações passadas, prova que ela se origina em causas as quais a natureza humana comum daqueles que sofrem com ela não foi até hoje capaz de superar. Mas os que sofrem estão, ao menos, começando a ver essas causas e decidindo-se por eliminá-las, custe o que custar. E aqueles que imaginam que não têm nada a fazer além de atribuir a pobreza das pessoas a seus vícios, e repreendê-las por isso, então despertarão para o dia em que toda essa conversa estará no passado. E a questão então não mais será quais são os vícios dos homens, mas quais são seus direitos?
NOTAS:
[1] Dar a um homem insano uma faca, ou qualquer outra arma ou coisa pela qual ele provavelmente se ferirá, é um crime.
[2] O livro de estatutos de Massachusetts estipula que dez anos seja a idade na qual se presume que uma menina tenha discernimento suficiente para ser possuída com virtude. Mas o mesmo livro de estatutos estipula que nenhuma pessoa, homem ou mulher, de qualquer idade, de qualquer grau de sabedoria ou experiência, tem discernimento para poder comprar e beber um copo de bebida álcoólica por seu próprio julgamento! Que grande ilustração da inteligência legislativa de Massachusetts!
[3] Catão cometeu suicídio para não cair nas mãos do César. Quem jamais suspeitou que ele fosse louco? Brutus fez o mesmo. Colt cometeu suicídio pouco mais de uma hora antes de ser enforcado. Ele fez isso para evitar a desgraça do enforcamento a seu nome e ao de sua família. Este, sendo um ato sábio ou não, claramente foi executado dentro das suas faculdades mentais normais. Alguém supõe que a pessoa que forneceu a ele o instrumento necessário foi um criminoso?
[4] Uma ilustração deste fato é encontrada na Inglaterra, cujo governo, por mais de mil anos não tem sido mais que um bando de ladrões, tendo conspirado para monopolizar as terras e, tanto quanto possível, todas as outras riquezas. Esses conspiradores, chamando a si mesmos de reis, nobres ou freeholders, tomaram para si, através da força e da fraude, todos os poderes civis e militares; eles se mantêm no poder somente pela força, pela fraude e pelo uso corrupto de suas riquezas; eles empregam seus poderes exclusivamente para o roubo e para a escravização da grande massa de seu próprio povo, e para o espólio e escravização de outros povos. O mundo sempre esteve, e está atualmente, cheio de exemplos substancialmente similares. E o governo de nosso país não difere tanto dos outros neste aspecto quanto alguns de nós imaginam.
[5] É a este incentivo somente que devemos toda a riqueza que já foi criada pelo trabalho humano e acumulada para o benefício da humanidade.
[6] Excetuando-se aqueles grandes crimes os quais alguns poucos, chamando a si mesmos de governos, praticam sobre a maioria, por meio de tirania e extorsão organizadas e sistemáticas. E é somente a pobreza, a ignorância e a consequente fraqueza da maioria que permite que uma minoria unida e organizada adquira e mantenha tal poder sobre ela.
[7] Isto é, de 1º de setembro de 1873 a 1º de março de 1875.
Tradução Erick Vasconcelos