Qualquer pessoa racional consegue perceber que um químico está, em termos éticos, constantemente andando sobre um terreno minado. Os fornos nazistas, por exemplo, possuíam atributos e propriedades criados pelos membros dessa profissão, direta ou indiretamente.
Também não se pode negar que os biólogos frequentemente têm de lidar com dilemas morais: clonagem genética e guerra biológica são exemplos que rapidamente vêm à mente.
O mesmo também vale para médicos (o Dr. Mengele e o Dr. Kevorkian são exemplos notórios), veterinários (maus-tratos aos animais) e físicos (bomba de hidrogênio e bomba atômica).
Mas o que dizer dos geógrafos? Estariam eles protegidos desse tipo de risco? Nem um pouco. Eles também, junto com todos os outros acima mencionados, estão expostos às consequências nefastas de eventuais equívocos éticos cometidos por causa de suas habilidades profissionais. Por exemplo, o Sistema de Informação Geográfica, que é oriundo deste ramo do conhecimento, é de extrema importância para a condução de guerras. Certamente, os cientistas espaciais que ajudaram a desenvolver esse sistema agiram de uma maneira intimamente revestida de preocupações éticas, ainda que as consequências ruins pudessem ter sido previstas. Dois milênios atrás, Estrabão disse que: “A geografia como um todo tem influência direta sobre as atividades dos generais.”
Mas por que a menção aos geógrafos em um artigo sobre controle de armas? Porque qualquer análise sensata sobre controle de armas estaria incompleta se desconsiderasse, além das questões políticas, também as questões espaciais, ambientais e geográficas. Como será demonstrado neste artigo, questões que envolvem localidade, espaço, ambiente e geografia possuem um efeito crucial sobre as conclusões obtidas.
Com efeito, dadas as premissas políticas e econômicas do libertarianismo — filosofia sobre a qual será construído o argumento —, não há questão que seja mais crucial do que a geográfica.
Libertarianismo
O libertarianismo é a filosofia política que seria adorada pelo Occam da Navalha de Occam. O libertarianismo simplesmente diz que o único ato proibido é o uso — ou a ameaça do uso — da força contra uma pessoa ou contra sua propriedade legitimamente adquirida. A propriedade só pode ser obtida, primeiro, por meio daapropriação original de algo até então sem dono, e, segundo, por meio de qualquer ato não-agressivo, como transação voluntária ou doação. Todo o resto é apenas elaboração, explicação, implicação, esclarecimento ou justificativa.
Qual é a posição libertária sobre o controle de armas? À primeira vista, essa filosofia não é compatível com qualquer tipo de legislação sobre controle de armas, dado que a mera propriedade e porte de um fuzil ou revólver, por si só, não constituiu nenhuma agressão ou violência contra terceiros.
Tampouco a propriedade ou posse de uma arma configura uma ameaça, pois certamente somos capazes de distinguir entre uma pessoa que sai brandindo uma arma pelas ruas de maneira belicosa e outra que mantém sua arma dentro de uma gaveta em sua casa ou no porta-luvas do seu carro, ou mesmo que anda pacificamente pelas ruas carregando um revólver seguramente guardado em um coldre axilar ou na cintura. De todos esses atos, apenas o primeiro viola o princípio da não-agressão. Os outros, não.
Sim, há um potencial perigo na posse e no uso de armas, mas se formos proibir todas as ocorrências baseando-nos em riscos teríamos também de banir carros, facas, tesouras, abridores de cartas e garrafas, braços (para boxeadores), pernas (para lutadores de caratê) etc.
E aí vem a objeção irônica: se a posse ou o porte de uma pistola não representa nenhuma violação de direitosper se, então o mesmo vale para um fuzil, uma metralhadora, uma bazuca, um canhão, um tanque, um navio de guerra, um caça e, por que não, uma bomba nuclear.
A resposta libertária para isso se baseia na questão de se é possível utilizar essas armas de maneira puramente defensiva; se sim, então não pode haver objeções a elas per se.
Considere uma bazuca, por exemplo. É possível fazer com que todo o poder dessa arma seja estritamente confinado àqueles para quem ela está apontada? Sim. Consequentemente, ela pode ser utilizada puramente para propósitos de legítima defesa, e sua posse não configura uma violação ipso facto do código libertário.
Por outro lado, se os danos físicos gerados por um determinado armamento não podem ser estritamente limitados aos seus alvos específicos, de modo que os estragos irão necessariamente se expandir sobre terceiros inocentes, então tal armamento não pode ser incluído na categoria de armamentos defensivos.
Quando abordado dessa maneira, torna-se claro que todas as armas acima mencionadas, com a exceção dos aparatos termonucleares, de fato permitem uma mira exata, o que significa que seu poder destrutivo pode ser estritamente confinado sobre os “bandidos”. Consequentemente, seria lícito ser proprietário de todas elas, exceto da bomba nuclear.
(Poder-se-ia levantar uma objeção relacionada à acurácia da mira de cada uma dessas armas. Obviamente, absolutamente nenhuma arma — nem pistolas, nem porretes, nem facas, e nem mesmo unhas — vem com garantia de acurácia perfeita. Erros podem acontecer com todas elas. Mas seria precipitado concluir que, pelo fato de todas elas serem imperfeitas, nenhuma pode ser utilizada defensivamente. O critério que vale é: se for possível utilizar corretamente a mira de uma arma, e se for possível confinar os impactos negativos exclusivamente sobre os malfeitores, então não pode haver objeção ao seu uso. Caso contrário, além das facas e das tesouras, carros e aviões também teriam de ser proibidos, pois seus desastres afetam terceiros inocentes).
No entanto, ainda há espaço para alguns cenários mais exóticos. O que responder, por exemplo, ao crítico que oferece o cenário de uma arma nuclear guardada no porão da casa de alguém, que mora no meio de uma grande cidade, e que quer apenas ter uma arma nuclear para apreciá-la?
A resposta se mantém: é impossível detonar uma bomba nuclear sem violar os direitos de pelo menos um terceiro inocente. Mais ainda: a única maneira como uma bomba nuclear pode ser usada de maneira defensiva é em atividades espaciais, fora do planeta terra. Sendo assim, o indivíduo que quer ter uma arma nuclear terá de ter à sua disposição os meios para lançá-la a um planeta inimigo ou a um meteoro que está se aproximando ameacadoramente da terra. Mas dado que equipamentos desse tipo custam bilhões de dólares, apenas tal consideração já é suficiente para excluir o espectro de um aparato nuclear no porão da casa de um indivíduo.
Vale reiterar. O libertarianismo se opõe à proibição da posse e do porte de armas comuns uma vez que tal ato, por si só, não viola nenhuma premissa básica do princípio da não-agressão. E, quando analisamos apenas as questões terrenas — ignorando as extra-terrenas —, essa filosofia defende a proibição de armas nucleares. Dado que não é possível confinar seu poder de destruição exclusivamente ao alvo, então armas nucleares necessariamente violam o axioma libertário da não-agressão. No entanto, quando incorporamos todo o universo em nossa análise, bem como temas de típicos de ficção científica (invasões alienígenas e chuva de meteoros), então armas nucleares não podem ser banidas, pois passa a existir um propósito defensivo para elas.
Proporcionalidade
Essas considerações fazem surgir aquilo que pode ser chamado de tese geográfica, espacial ou de proporcionalidade. Há uma relação inversa entre, de um lado, densidade populacional e, do outro, o poder de uma arma. Essa relação vai determinar qual tipo de arma pode ser considerada legítima sob uma legislação libertária.
Quando se toma como base todo o universo, a densidade populacional é extremamente pequena, o que significa que, neste contexto, armamentos de destruição em massa se tornam legítimos. Já quando se toma como base apenas o Planeta Terra, a densidade populacional se torna relativamente maior; consequentemente, armas menores ainda seriam permitidas, mas não bombas atômicas ou aparatos piores.
O segredo para a legitimidade em ambos os casos é a capacidade de mirar com acurácia ou de limitar o poder destrutivo. Tudo o mais constante, quanto menor a densidade populacional, mais fácil é fazer isso. Daí a tese da proporcionalidade.
Talvez esse ponto possa ser mais bem entendido se utilizarmos uma série de exemplos em que há uma densidade populacional decrescente.
Quando se toma como base todo o universo, um indivíduo pode ser o proprietário de quantas bombas de hidrogênio ele quiser, uma vez que, dentro deste contexto espacial, é certamente possível utilizar todo e qualquer tipo de arma de maneira puramente defensiva. Suponha que Júpiter fosse habitado por apenas 1.000 pessoas, todas elas uniformemente distribuídas ao longo do planeta. Nesse contexto, seria razoável que cada um desses indivíduos pudesse ter uma bomba atômica, e mantê-la guardada em seu porão. Dada a ínfima densidade populacional envolvida, o poder explosivo desse aparato nuclear, inclusive suas partículas radioativas, poderia facilmente ser confinado ao inimigo, ou ao próprio dono do território, desta maneira não impondo nenhum efeito negativo a terceiros inocentes. Dado que, neste contexto, um uso estritamente defensivo seria possível, não haveria necessariamente nenhuma violação do postulado libertário.
O próximo nível de análise, agora com uma densidade populacional um pouco menor, seria em determinadas localidades do Planeta Terra, como o deserto do Saara ou a Antártida. Talvez não haja uma justificativa libertária para que um indivíduo possa ter uma bomba nuclear mesmo em áreas relativamente vazias como essa, pois sua detonação afetaria pelos menos algumas pessoas inocentes. No entanto, em tais áreas desertas, um indivíduo poderia perfeitamente ser o proprietário de, por exemplo, uma grande quantidade de TNT. Mas não em locais mais povoados do que esse.
A tese da proporcionalidade pode ser ilustrada pelo uso de um gráfico, como veremos mais abaixo. O eixo Y descreve o poder de cada arma, com a bomba de hidrogênio na extremidade superior e as unhas da mão na extremidade inferiores. Já o eixo X descreve a densidade populacional, com o espaço sideral sendo o local menos povoado e as cidades, o mais intensamente habitado.
A relação entre os dois eixos pode ser ilustrada por uma curva descendente, o que indica que, quanto mais povoada for uma localidade, menos poderosa pode ser a arma permitida por meio desse critério libertário.
No eixo Y, o poder de cada arma. (De cima para baixo: bomba de hidrogênio, bomba atômica, maior quantidade de TNT, menor quantidade de TNT, tanque, bazuca, metralhadora, fuzil, pistola, faca, unha.)
No eixo X, a densidade populacional. (Da esquerda para a direita: espaço sideral, júpiter, deserto, meio rural, meio urbano, cabine telefônica lotada.)
Na extremidade direita do eixo X, há o cenário de uma “cabine telefônica lotada”. Qual seria uma política apropriada de controle de armas nesse cenário extremamente malthusiano? Novamente, a tese da proporcionalidade tem de ser o árbitro. E, contrariamente ao que seria de se supor, uma teoria libertária levaria à proibição de armas de fogo, e por um motivo muito simples: seria virtualmente impossível utilizar uma arma de fogo em uma “cabine telefônica lotada” sem afetar terceiros inocentes (eles poderiam, na melhor das hipóteses, sofrer problemas auditivos em decorrência dos disparos).
Sempre que o poder de uma arma puder ser confinado aos malfeitores, isto é, sempre que seu propósito puder ser limitado à defesa contra uma agressão, tal arma por si só não é invasiva e, consequentemente, deve ser legitimada. No entanto, em um hipotético mundo hiper-povoado, nem mesmo uma pistola — e talvez nem mesmo um faca — poderia ser utilizada sem impactar pessoas inocentes. Nesse cenário, e apenas nesse cenário, seria legítima uma proibição de armas de fogo, exatamente como hoje proibimos a posse de bombas nucleares em cidades.
Esse método de analisar as situações leva a conclusões que aparentemente contradizem a teoria libertáriaapenas para os dois extremos do espectro da densidade populacional. Na extremidade inferior da densidade populacional, que é o espaço sideral, é permitida a posse de aparatos termonucleares. E, na extremidade superior da densidade populacional — que seria um mundo tão excessivamente povoado que se assemelharia a uma “cabine telefônica lotada” —, seria proibido o uso de armas de fogo e até mesmo de facas.
Objeções
Para terminar, algumas possíveis objeções.
Se é proibido um indivíduo ter uma bomba nuclear em casa mesmo que seja para o mero propósito de estética e contemplação, por que então não deveria ser proibida a existência de uma usina nuclear? Afinal, quando há um acidente em uma usina nuclear, seus estragos são impossíveis de serem confinados. Logo, pela lógica, os libertários deveriam ser a favor da proibição de usinas nucleares. Mas não são. Qual é a diferença?
A diferença é que, no primeiro cenário, o aparato nuclear é uma arma, e no segundo cenário, não é. Ele é apenas uma ferramenta. No primeiro cenário, caso a arma seja utilizada, é impossível conter os danos apenas ao proprietário da bomba e ao bandido. Se fossemos proibir todos os equipamentos e ferramentas cujos poderes, sob o pior cenário possível, não podem ser confinados apenas às pessoas que os utilizam, então teríamos de proibir todos os aviões, todos os ônibus, todos os trens e todos os laboratórios que fazem experimentos com vírus letais. Aliás, teríamos de proibir até mesmo estádios de futebol e de beisebol que não fossem totalmente cobertos (uma bola chutada ou rebatida com força pode sair do estádio e quebrar uma janela).
A diferença entre todos esses cenários e a bomba atômica do contemplador é que esta última é uma arma. Já nos outros cenários temos apenas uma ferramenta. E, se bomba for utilizada como arma, é impossível confinar os malefícios apenas ao seu proprietário e ao bandido.
Ainda assim, há espaço para uma nova crítica: e se o contemplador quiser realmente ter a bomba atômica apenas para efeitos meramente estéticos, jurando que não irá utilizá-la sob nenhuma circunstância? Não seria uma violação de seus direitos de propriedade proibi-lo de ter um objeto estético para fins de mera contemplação?
Não, não seria. E o ponto é que a avaliação subjetiva da vítima ameaçada, e não do agressor, é que é determinante. Suponha que o indivíduo A venha correndo em direção ao indivíduo B brandindo uma faca de maneira ameaçadora e gritando “Vou te matar!”. Ato contínuo, B saca uma pistola, atira em A e o mata. Mais tarde, descobre-se que A era apenas um ator que estava treinando para um papel, e que a faca era um mero objeto cênico feito de borracha.
B pode ser acusado de homicídio? De maneira nenhuma. Ao contrário, B não fez nada mais do que exercer seu legítimo direito de autodefesa. Qualquer indivíduo sensato também chegaria a essa conclusão. Similarmente, na questão da bomba atômica, se fossemos levar em conta quaisquer considerações subjetivas, não seriam as do contemplador da bomba atômica, mas sim as de seus vizinhos, os quais, presumivelmente, terão uma opinião distinta a respeito do aparato nuclear em mãos deste cidadão.
Mas então, o que dizer de aviões? De vez em quando, alguns desses aparelhos caem e matam pessoas em terra que nada tinham a ver com a situação e que, ao contrário dos passageiros, nem sequer concordaram em correr o risco de uma viagem aérea. No caso da vítima do ataque com a faca, não foi o agressor, mas sim a suposta vítima quem pôde determinar a realidade da situação. Por que então não permitir que as possíveis vítimas de acidentes aéreos determinem se aviões são armas destruidoras (e o são, ao menos da perspectiva de quem morreu em terra)? Se tal determinação fosse feita, obviamente, seria o fim dessa indústria.
A resposta, no entanto, é que nenhuma pessoa sensata poderia chegar a essa conclusão. Sim, aviões de vez em quando caem; no entanto, à exceção daqueles aviões utilizados por pilotos japoneses kamikazes na Segunda Guerra Mundial, aviões não podem de maneira nenhuma ser considerados armas.
Já uma bomba nuclear localizada na mesma área geográfica de milhões de pessoas inocentes pode, sob qualquer interpretação minimamente razoável, ser entendida como um armamento de destruição em massa, não obstante qualquer protesto em contrário de seu proprietário contemplador.
Conclusão e questões ainda em aberto
De uma perspectiva macro-geográfica, a questão está dada. Para determinar as mais apropriadas restrições sobre armas é necessário considerar todo o contexto geográfico.
Quando se toma como base o Planeta Terra, um aparato termonuclear e “apocalíptico”, capaz de destruir todo o planeta e todas as pessoas que vivem nele, é por si só homicida. Seu pode não pode ser confinado exclusivamente aos malfeitores. Ter uma arma dessas em casa configuraria uma agressão, e poderia corretamente ser proibida. No entanto, se tomarmos como base toda a vastidão do espaço sideral, que é um domínio geográfico totalmente diferente, no qual os efeitos de uma explosão nuclear podem ser confinados a agressores, então a posse desse aparato deve ser permitida.
No outro extremo, se o cenário for o de um mundo ao excessivamente povoado a ponto de parecer uma “cabine telefônica lotada”, até mesmo pistolas teriam de ser banidas, pois, por estipulação, seu poder e seus efeitos não podem ser confinados apenas aos malfeitores.
Já no nosso mundo real, o porte de pistolas e revólveres poderia ser permitido em todas as cidades. O porte de fuzis em localidades de menor densidade populacional. O porte de metralhadoras em localidades de ainda menor densidade populacional. Já o porte de bazucas apenas no meio rural. O porte de tanques e TNT apenas no deserto. E o porte de dispositivos termonucleares apenas em outro planeta.
Em sua casa, você pode ter o que quiser, exceto armas nucleares e bombas de hidrogênio.
No entanto, ainda não há conclusões no que tange a determinados aspectos micro-geográficos, pois aí surge um problema de continuum. Por exemplo, a que distância o nariz de B tem de estar do punho de A para que B possa justificadamente fazer uso de uma contramedida defensiva? Nesse caso, e de novo, a única solução é recorrer ao contexto e à opinião do “homem sensato”.
Em termos puramente filosóficos, isso pode não ser tão satisfatório quanto uma resposta definitiva seria. No entanto, dado que o problema advém da natureza contínua da realidade, essa é a melhor resposta que pode ser dada.
Provavelmente um dos assuntos mais complexos do libertarianismo