Capítulo 5 – O Socialismo do Conservadorismo
Grosso modo, existiu antes do século XVIII na Europa e ao redor do mundo, um sistema social de “feudalismo” ou “absolutismo”, que era, de fato, um feudalismo em larga escala.[1] Em termos gerais, a ordem social do feudalismo era caracterizada por um senhor feudal que reivindicava a propriedade de uma parte do território, incluindo todos os bens e recursos naturais, e, muito frequentemente, também de todos os homens que lá estavam, sem ter originariamente se apropriado deles através do uso ou do trabalho, e sem ter uma obrigação contratual com aquelas pessoas. Pelo contrário, o território, ou melhor, as várias partes que o formavam, e os bens que lá estavam, foram ativamente ocupados, utilizados e produzidos anteriormente por diferentes pessoas (os “proprietários naturais”). As reivindicações de propriedade pelos senhores feudais eram, portanto, oriundas do nada. Por isso, a prática, baseada naqueles supostos direitos de propriedade, do arrendamento da terra e de outros fatores de produção para os proprietários naturais em troca dos bens e serviços definidos unilateralmente pelo senhor feudal, tinha que ser imposta pela força bruta e pela violência armada contra a vontade daqueles proprietários naturais e com a ajuda de uma nobre casta de militares que eram recompensados por seus serviços pelo senhor feudal ao poderem participar e compartilhar dos métodos e procedimentos de exploração. Para o homem comum que estava sujeito a essa ordem, a vida significava ser vítima da tirania, exploração, estagnação econômica, pobreza, fome e desespero.[2]
Como seria de esperar, houve resistência contra esse sistema. Curiosamente, porém (sob a perspectiva de hoje), não foi a população camponesa que mais sofreu com aquela ordem existente, mas os mercadores e comerciantes, que se tornaram os principais oponentes do sistema feudal. Comprar por um preço mais baixo num local e viajar e vender por um preço mais alto num lugar diferente como eles faziam, enfraqueceu relativamente a subordinação deles a qualquer ordem feudal. Eles eram essencialmente uma classe de homens “internacionais”, cruzando constantemente as fronteiras de diversos territórios feudais. E como tal, para fazer negócios, eles exigiam um sistema legal internacionalmente válido: um sistema de normas válidas independentemente do tempo e do espaço, uma definição de propriedade e de contrato, o que facilitaria a evolução das instituições de crédito, e de bancos e seguros, essenciais para qualquer comércio em larga escala. Naturalmente, isto causou atrito entre os mercadores e os senhores feudais, que eram os representantes de vários sistemas legais regionais e arbitrários. Os mercadores se tornaram os párias do feudalismo, constantemente ameaçados e perseguidos pela nobre casta militar que tentava colocá-los sob seu controle.[3]
Para escapar dessa ameaça, os mercadores foram obrigados a se organizar e a ajudar a estabelecer lugarejos comerciais fortificados de comércio nas próprias margens dos centros do poder feudal. Como eram locais de extraterritorialidade parcial e, pelo menos, de liberdade parcial, logo atraíram um número crescente de camponeses que fugiam da exploração feudal e da miséria econômica e que cresceram em pequenas cidades, promovendo o desenvolvimento do artesanato e de empreendimentos produtivos, que não poderiam emergir num ambiente de exploração e instabilidade legal, duas características da ordem feudal. Esse processo era mais evidente onde os poderes feudais eram relativamente fracos e onde o poder estava disperso entre muitos senhores feudais rivais de menor importância. Foi nas cidades do norte da Itália, nas da liga Hanseática e nas da região de Flandres que o espírito do capitalismo floresceu e o comércio e a produção atingiram seus níveis mais altos.[4]
Mas essa emancipação parcial das restrições e a estagnação do feudalismo foram apenas temporárias e seguidas de uma reação e declínio. Isso se deveu, em parte, pelas deficiências internas no movimento da nova classe de mercadores. Ainda estava muito arraigada nas mentes dos homens a forma feudal de pensar quanto à atribuir a pessoas diferentes categorias de subordinação e de poder, e a ordem que tem que ser imposta aos homens através da coerção. Por isso, nos recém-criados e emergentes centros comerciais foi logo estabelecido um novo conjunto de regulações e restrições não-contratuais — agora de origem “burguesa” —, criaram-se guildas que restringiam a livre competição e surgia uma nova oligarquia mercantil.[5] Porém, mais importante para esse processo reacionário foi ainda um outro fato. Em seus esforços para se livrarem das intervenções exploradoras de vários senhores feudais os mercadores tiveram que procurar aliados naturais. Compreensivelmente, eles encontraram aliados entre os membros da classe dos senhores feudais que, apesar de comparativamente mais poderosos do que seus colegas nobres, tinham os centros de seu poder a uma distância relativamente grande das cidades comerciais que buscam assistência. Ao se aliarem à classe mercantil, eles procuravam ampliar o seu poder para além do seu limite atual em detrimento de outros senhores feudais inferiores.[6] Para atingir esse objetivo, eles primeiro concediam certas isenções das obrigações “normais”, que recaíam sobre os vassalos da norma feudal, para os crescentes centros urbanos, assim garantindo sua existência como locais de liberdade parcial e a proteção oferecida contra as potências feudais vizinhas. Tão logo a coalizão foi bem-sucedida em sua tentativa conjunta de enfraquecer os senhores locais e os aliados feudais “estrangeiros” das cidades comerciais que tinham se estabelecido como um poder real fora de seu próprio território tradicional, avançando e se consagrando como um super poder feudal, ou seja, como uma monarquia com um rei que impôs as suas próprias regras de exploração em substituição às do sistema feudal existente. Nascia assim o Absolutismo; e na medida em que este não era nada além do feudalismo em larga escala, ocorreu um novo declínio econômico, as cidades se desagregaram, a estagnação e a miséria voltaram.[7]
Não foi até o final do século XIX e início do século XX que o feudalismo foi alvo de um ataque realmente pesado. Dessa vez, o ataque era mais severo porque não era mais simplesmente a tentativa do homem prático (os mercadores) de garantir esferas de relativa liberdade com a finalidade de exercer o seu negócio. Era cada vez mais uma batalha ideológica contra o feudalismo. A reflexão intelectual sobre as causas da ascensão e queda do comércio e da indústria, e um estudo mais profundo sobre o Direito Romano e, particularmente, sobre o Direito Natural, que tinham sido redescobertos no curso da luta dos mercadores para desenvolver um direito internacional mercantil e justificá-lo contra as reivindicações concorrentes da lei feudal, levaram a uma compreensão mais sólida do conceito de liberdade, e da liberdade como um pré-requisito para a prosperidade econômica.[8] Enquanto essas ideias se difundiam e ocupavam as mentes de um círculo de pessoas em constante expansão, culminando em trabalhos como os “Dois Tratados do Governo Civil” (1688), de John Locke, e a “Riqueza das Nações” (1776), de Adam Smith, a ordem antiga perdia a sua legitimidade. A velha maneira de pensar segundo vínculos feudais gradualmente deu lugar à ideia de uma sociedade contratual. Finalmente, como expressões exteriores dessa mudança conjuntural da opinião pública veio junto a Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra, a Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789; e nada mais foi o mesmo após a ocorrência dessas revoluções. Elas provaram, de uma vez por todas, que a antiga ordem não era invencível e espalharam uma nova esperança para o progresso futuro no caminho rumo à liberdade e à prosperidade.
O liberalismo, como veio a ser chamado esse movimento ideológico que provocou esses eventos que fizeram a terra tremer, emergiu dessas revoluções mais forte do que nunca e se tornou por pouco mais de meio século a força ideológica dominante na Europa Ocidental. Foi o partido da liberdade e da propriedade privada adquirida através da ocupação e do contrato, atribuindo ao estado apenas o papel de executor dessas regras naturais.[9] Com os resquícios do sistema feudal ainda em vigor em toda parte, apesar de abalado em sua base ideológica, foi o partido que representava uma sociedade cada vez mais liberalizada, desregulada, contratual, interna e externamente, ou seja, tanto nos assuntos e relações internas quanto nas relações exteriores. E como sob a pressão das ideias liberais as sociedades europeias se tornaram cada vez mais livres das restrições feudais, também se tornou o partido da Revolução Industrial, que foi gerada e estimulada pelo próprio processo de liberalização. O desenvolvimento econômico ocorreu num ritmo nunca antes experimentado pela humanidade. A indústria e o comércio floresceram, e a formação e acumulação de capital atingiram novos patamares. Enquanto o padrão de vida não aumentou para todo mundo imediatamente, tornou-se possível sustentar um número cada vez maior de pessoas, que, poucos anos antes, sob o feudalismo, teriam morrido de fome por causa da ausência de riqueza econômica e que agora poderiam sobreviver. Além disso, com o crescimento da população se estabilizando abaixo da taxa de crescimento do capital, agora todos poderiam realmente acalentar a esperança de elevar os seus padrões de vida muito rapidamente.[10]
É com esse fundo histórico (um pouco simplificado, é claro, da forma como acabou de ser exposto) que o fenômeno do conservadorismo como uma forma de socialismo e a sua relação com as duas versões de socialismo originadas no marxismo deve ser visto e compreendido. Todas as formas de socialismo são respostas ideológicas ao desafio proposto pelo avanço do liberalismo; mas a posição adotada contra o liberalismo e contra o feudalismo — a antiga ordem que o liberalismo ajudou a destruir — difere consideravelmente. O desenvolvimento do liberalismo estimulou a mudança social, até certo ponto, num ritmo e variações jamais vistos até aquele momento. A liberalização da sociedade fez com que cada vez mais pessoas pudessem manter uma determinada posição social após adquiri-la e que poderiam fazê-lo através da produção mais eficiente para atender as necessidades mais urgentes dos consumidores voluntários, com o menor custo possível, e exclusivamente através de relações contratuais no que se refere à contratação de fatores de produção e, em particular, do trabalho. Os impérios mantidos unicamente pela força foram desmoronando diante dessa pressão. E como a demanda do consumidor, para quem a estrutura de produção tinha que cada vez mais se adaptar (e não o contrário), estava mudando constantemente e o surgimento de novos empreendimentos era cada vez menos regulado (na medida em que eram o resultado da apropriação original e/ou por contrato), nenhuma posição relativa na hierarquia da renda e da riqueza estava mais assegurada. Em vez disso, a mobilidade social para cima e para baixo aumentou significativamente, pois nem os proprietários privados dos fatores de produção nem os proprietários dos serviços de trabalho privados estavam mais protegidos das respectivas mudanças na demanda. Eles já não mais tinham garantidos preços e renda estáveis.[11]
O antigo socialismo marxista e a nova social-democracia são as respostas igualitárias e progressistas a esse desafio da mudança, da incerteza e da mobilidade. A exemplo do liberalismo, eles celebraram a destruição do feudalismo e o avanço do capitalismo. Pensaram que foi o capitalismo que libertou o povo dos vínculos da exploração feudal e produziu enormes melhorias na economia; e compreenderam que o capitalismo, responsável pelo desenvolvimento das forças produtivas, era um passo evolutivo necessário e positivo no caminho rumo ao socialismo. O socialismo, da forma como eles concebiam, compartilhava com o liberalismo os mesmos objetivos: liberdade e prosperidade. Mas o socialismo supostamente melhoraria as conquistas do liberalismo pela superação do capitalismo — a anarquia de produção dos concorrentes privados que gerava as já mencionadas mudança, mobilidade, incerteza e a inquietação no tecido social — em seu estágio mais elevado de desenvolvimento mediante a implantação de uma economia racionalmente planejada e coordenada que evitaria que as inseguranças oriundas dessa mudança fossem sentidas a nível individual. Infelizmente, como ficou suficientemente demonstrado nos dois últimos capítulos, essa é uma ideia muito confusa. É precisamente por tornar os indivíduos insensíveis à mudança através de medidas redistributivas que se remove o incentivo para se adaptar rapidamente a qualquer mudança futura, e, por isso, em termos de avaliação do consumidor, o valor do que foi produzido será menor. E é precisamente porque um plano é substituído por muitos outros aparentemente descoordenados que a liberdade individual é reduzida e,mutatis mutandis, aumenta o governo de um homem sobre o outro.
Por outro lado, o conservadorismo é a resposta anti-igualitária e reacionária às mudanças dinâmicas que são desencadeadas por uma sociedade liberalizada; é antiliberal e, em vez de reconhecer as conquistas do liberalismo, tende a idealizar e glorificar o antigo sistema feudal como ordeiro e estável.[12] Enquanto fenômeno pós-revolucionário, não defende necessariamente e completamente um retorno ao status quo ante pré-revolucionário e, embora com pesar, aceita determinadas mudanças como irreversíveis. Mas foi perturbador quando os antigos poderes feudais, que perderam tudo ou parte dos seus bens para os proprietários naturais no curso do processo de liberalização, foram restaurados às antigas posições e defenderam, de forma clara e definitiva, a conservação do status quo, ou seja, a imensamente desigual distribuição de propriedade, riqueza e renda. O objetivo era, tanto quanto possível, interromper ou retardar as mudanças permanentes e o processo de mobilidade trazidos pelo liberalismo e pelo capitalismo e recriar um sistema social estável e ordeiro no qual todos se mantivessem de forma segura naquelas posições que lhes foram atribuídas no passado.[13]
Para realizar esses objetivos, o conservadorismo deve defender, e de fato defende, a legitimidade dos meios não-contratuais de aquisição e conservação da propriedade e da renda que dela deriva, uma vez que foi exatamente a confiança exclusiva sobre as relações contratuais que causaram a própria permanência das mudanças na distribuição relativa da renda e da riqueza. Assim como o feudalismo permitiu a aquisição e a manutenção da propriedade e da riqueza mediante o uso da força, o conservadorismo também ignora se as pessoas adquiriram ou não, se conservaram ou não, suas posições no que se referem à renda — e à riqueza — através da apropriação original ou por contrato. Em vez disso, o conservadorismo considera adequado e legítimo para uma classe de proprietários uma vez estabelecidos ter o direito de interromper qualquer mudança social que considera uma ameaça de sua posição relativa na hierarquia social em relação à renda e à riqueza, mesmo que os vários indivíduos usuários-proprietários dos diversos fatores de produção não estabeleçam contrato em qualquer tipo de acordo. Sendo assim, o conservadorismo deve ser tratado como um herdeiro ideológico do feudalismo. E como o feudalismo deve ser descrito como um socialismo aristocrático (algo que deve estar suficientemente claro a partir da caracterização acima), o conservadorismo deve ser considerado como o socialismo do sistema burguês vigente. O liberalismo, em relação ao qual as versões igualitária e conservadora são respostas ideológicas, atingiu o ápice de sua influência em meados do século XIX. Provavelmente, suas últimas conquistas gloriosas foram a revogação das Leis do Grão (Corn Laws) na Inglaterra em 1846, conseguida por R. Cobden, J. Bright e a liga anti-lei do grão, e as revoluções de 1848 da Europa continental. Em seguida, por causa das fraquezas e inconsistências internas da ideologia liberal[14], além das dissensões e divisões trazidas pelas aventuras imperialistas dos vários estados-nação, e por último mas não menos importante, devido ao apelo que as diferentes versões do socialismo, com suas várias promessas de segurança e estabilidade, tinham e ainda têm no que tange à aversão pública e generalizada a mudanças rápidas e à inconstância[15], ocorreu o declínio do liberalismo. O socialismo cada vez mais o suplantou como força ideológica dominante, revertendo dessa forma o processo de liberalização e, de novo, impondo mais e mais bases não-contratuais sobre a sociedade.[16] Em diferentes épocas e lugares, diferentes tipos de socialismo encontraram apoio na opinião pública em graus variados, de modo que, hoje em dia, os seus rastros podem ser detectados em diferentes níveis e em todos os cantos combinando os respectivos efeitos de empobrecimento no processo de produção, a conservação da riqueza e a formação da personalidade. Mas é a influência do socialismo conservador que deve ser enfatizada, especialmente porque ela é muitas vezes negligenciada e subestimada. Se, atualmente, as sociedades da Europa Ocidental podem ser descritas como socialistas é devido muito mais à influência do socialismo do conservadorismo do que a das ideias igualitárias. Porém, é a forma peculiar pela qual o conservadorismo exerce sua influência que explica por que esta não é, na maioria das vezes, identificada. O conservadorismo não apenas molda a estrutura social pela adoção de determinadas políticas; especialmente em sociedades como as europeias, onde o passado feudal nunca foi completamente superado, mas onde um grande número de sobras do feudalismo sobreviveram até mesmo ao ápice do liberalismo. Uma ideologia como a do conservadorismo também exerce sua influência, de maneira muito imperceptível, pela simples manutenção do status quo e deixando que as coisas continuem a ser feitas de acordo com as antigas tradições. Quais são, então, os elementos especificamente conservadores nas sociedades atuais e como estes geram um empobrecimento relativo? Com essa questão, voltamos à análise sistemática do conservadorismo e suas consequências econômicas e sócio-econômicas. Uma caracterização abstrata das regras de propriedade subjacentes ao conservadorismo e uma descrição dessas normas em termos da teoria natural da propriedade devem ser novamente o ponto de partida. Há duas normas. Em primeiro lugar, o socialismo conservador, assim como o socialismo social-democrata, não torna ilegal a propriedade privada. Muito pelo contrário: tudo (todos os fatores de produção e toda a riqueza usada de maneira improdutiva) pode ser, em princípio, possuído de forma privada, vendido, comprado, alugado, à exceção de áreas como a educação, trânsito e comunicação, banco central e segurança. Mas, em segundo lugar, nenhum proprietário possui tudo relativo à sua propriedade, nem toda a renda que pode ser oriunda de sua utilização. Em vez disso, uma parte pertence à sociedade dos proprietários atuais e aos beneficiários dos rendimentos, e a sociedade tem o direito de alocar a futura e presente renda e riqueza produzidas por seus membros individuais de uma forma que a antiga e relativa distribuição de renda e riqueza seja preservada. E é também direito da sociedade definir o tamanho (grande ou pequeno) da divisão de renda e riqueza que deve ser administrada e o que exatamente é necessário para preservar uma determinada distribuição de renda e riqueza.[17]
Da perspectiva da teoria natural da propriedade, o sistema de propriedade do conservadorismo resulta novamente em agressão contra os direitos dos proprietários naturais. Proprietários naturais podem fazer o que quiserem com a sua propriedade contanto que não modifiquem sem permissão a integridade física da propriedade de terceiros. Isso significa, particularmente, o direito que têm de modificar suas propriedades ou submetê-las a diferentes usos com a finalidade de adaptá-las para antecipar-se às mudanças na demanda e assim preservar ou possivelmente elevar o seu valor; e isso também dá a eles o direito de colher privadamente os benefícios do aumento dos valores da propriedade que resultam de mudanças imprevistas na demanda — isto é, daquelas mudanças frutos da sorte, que eles não previram nem realizaram. Mas, ao mesmo tempo, uma vez que segundo os princípios da teoria natural da propriedade cada proprietário natural só está protegido contra a invasão física, a aquisição não-contratual e a transferência dos títulos de propriedade, isto também significa que todos correm o risco, constante e permanentemente, de que mediante as mudanças na demanda ou pelas ações realizadas por outros proprietários em suas propriedades, os valores irão cair abaixo de seu nível. Porém, de acordo com essa teoria, ninguém é dono do valor de sua propriedade e, portanto, ninguém, a qualquer tempo, tem o direito de preservar e restaurar os valores da sua propriedade. Quando comparado à essa teoria, o conservadorismo visa precisamente tal preservação ou restauração de valores e a sua distribuição relativa. Mas isso só é possível, obviamente, se for executada uma redistribuição na atribuição dos títulos de propriedade. Como os valores da propriedade de ninguém dependem exclusivamente das suas próprias ações realizadas com o seu próprio patrimônio, mas também, e assim de forma inescapável, das ações realizadas por outras pessoas com os meios escassos sob seu próprio controle (além dos de outra pessoa) a fim de preservar os valores da propriedade, alguém — uma pessoa ou grupo de pessoas — teria que possuir legitimamente todos os meios escassos (muito além daqueles que são efetivamente controlados ou usados por esta pessoa ou pelo grupo de pessoas). Além disso, esse grupo deve literalmente possuir todos os corpos das pessoas, uma vez que o uso que uma pessoa faz do seu corpo também pode influenciar (aumentar ou reduzir) os valores existentes da propriedade. Portanto, com a finalidade de realizar o objetivo do conservadorismo, deve ocorrer uma redistribuição dos títulos de propriedade, à revelia dos proprietários-usuários dos recursos escassos, para as pessoas que, independentemente dos seus méritos passados como produtores, atualmente não usam ou adquirem por contrato aquelas coisas cuja utilização levou à mudança na distribuição de valores.
Com esse entendimento, a primeira conclusão em relação ao efeito econômico geral do conservadorismo é a seguinte: com os proprietários naturais das coisas sendo completa ou parcialmente expropriados para beneficiar os não-usuários, não-produtores e não-contratantes, o conservadorismo elimina ou reduz o incentivo dos primeiros de fazer algo em relação ao valor da propriedade existente e adaptar-se para as mudanças na demanda. Os incentivos para estar atento e se antecipar às mudanças na demanda, para ajustar rapidamente a propriedade existente e usá-la de uma maneira consistente com essas circunstâncias alteradas, para aumentar os esforços produtivos, poupar e investir são reduzidos, enquanto os ganhos possíveis desse comportamento podem não mais ser apropriados de forma privada, mas serão socializados.Mutatis mutandis, cresce o incentivo para não fazer nada de forma a evitar o risco permanente da queda dos valores de sua propriedade para um valor inferior ao nível atual, enquanto as possíveis perdas desse comportamento já não têm que ser privadamente apropriadas, pois também serão socializadas. Dessa maneira, como todas essas atividades — prevenção de riscos, alerta, capacidade de adaptação, trabalho e poupança — têm alto custo e requerem tempo e, possivelmente, o uso de outros recursos escassos que poderiam ser usados de formas alternativas (para o lazer e consumo, por exemplo), haverá menor disponibilidade das primeiras atividades e maior das segundas, e, como consequência, o padrão geral de vida cairá. Por isso, ter-se-ia que concluir que o objetivo do conservadorismo de preservar os valores e a distribuição de valores existentes entre diferentes indivíduos só pode ser cumprido às custas de uma queda geral relativa no valor global dos bens recém-produzidos e da manutenção dos antigos, ou seja, de uma redução na riqueza da sociedade.
Provavelmente, já deve ter se tornado evidente que, do ponto de vista da análise econômica, há uma impressionante semelhança entre o socialismo do conservadorismo e o socialismo social-democrata. Ambas as formas de socialismo incluem uma redistribuição de títulos de propriedade à revelia dos produtores/contratantes para não-produtores/não-contratantes, e ambos, desse modo, separam os processos de produção e contratação do da aquisição real de renda e riqueza. Ao fazê-lo, ambos transformam a aquisição de renda e de riqueza em uma questão política — isto é, num problema em cujo desenvolvimento um (grupo de) indivíduo (s) impõe (m) a sua vontade sobre o uso dos meios escassos sobre a vontade de um outro indivíduo relutante; ambas as versões de socialismo, embora em princípio, reivindiquem a propriedade integral de toda a renda e a riqueza produzida em nome dos não-produtores, permitem que seus programas sejam implementados de forma gradual e realizados em vários níveis; e ambos, em consequência de tudo isso, devem, na medida em que a respectiva política é efetivamente promulgada, conduzir a um empobrecimento relativo.
A diferença entre o conservadorismo e o que foi rotulado de socialismo social-democrata reside exclusivamente no fato de que eles apelam a pessoas diferentes ou a sentimentos diferentes nas mesmas pessoas na medida em que preferem uma forma diferente na qual a renda e a riqueza expropriadas dos produtores de maneira não-contratual é, em seguida, redistribuída aos não-produtores. O socialismo redistributivo atribui renda e riqueza a não-produtores independentemente de suas realizações passadas como proprietários de riqueza e beneficiários de rendimentos, ou até mesmo tenta eliminar as diferenças existentes. Por um lado, o conservadorismo aloca renda para não-produtores de acordo com a sua renda desigual anterior e a sua posição na riqueza, e visa estabelecer a distribuição de renda existente e os diferenciais de renda existentes.[18] A diferença é, portanto, meramente sócio-psicológica: ao favorecer diferentes padrões de distribuição, eles concedem privilégios a diferentes grupos de não-produtores. O socialismo redistributivo favorece particularmente os despossuídos no grupo dos não-produtores e prejudica os que têm alguma coisa no grupo dos produtores; e, consequentemente, tende a encontrar seus apoiadores sobretudo entre os primeiros e os seus inimigos entre os segundos. O conservadorismo concede vantagens especiais para aqueles que possuem algo e estão no grupo dos não-produtores e prejudica particularmente os interesses dos despossuídos que estão entre as pessoas produtivas; e assim tende a encontrar seus apoiadores principalmente na classe do primeiros e espalha aflição, desespero e ressentimento entre os do segundo grupo de pessoas.
Mas embora seja verdade que ambos os sistemas de socialismo são muito parecidos de um ponto de vista econômico, a diferença entre eles no que se refere às suas bases sócio-psicológicas ainda tem impacto sobre as suas respectivas economias. Na verdade, esse impacto não afeta as consequências do empobrecimento geral resultante da expropriação dos produtores (conforme explicado acima), que ambos têm em comum. Em vez disso, influencia as escolhas que o socialismo social-democrata, de um lado, e o conservadorismo, de outro, fazem entre os instrumentos específicos ou entre as técnicas disponíveis para atingir seus respectivos objetivos distributivos. A técnica favorita do socialismo social-democrata é a da tributação, como descrita e analisada no capítulo anterior. Obviamente, o conservadorismo também pode usar esse instrumento; e, de fato, deve usá-lo de alguma forma, mesmo que seja apenas para custear a execução de suas políticas. Mas a tributação não é a sua técnica predileta e a explicação pode ser encontrada na psicologia social do conservadorismo. Destinada à preservação de um status quo de posições desiguais de renda, riqueza e status, a tributação é um instrumento muito progressista para se atingir os objetivos conservadores. Recorrer à tributação significa permitir que as mudanças na distribuição de riqueza e de renda aconteçam primeiro e somente depois delas passarem a existir, corrige-se novamente as coisas e restaura-se a antiga ordem. No entanto, agir dessa forma não só provoca sentimentos ruins, especialmente entre aqueles que através de seus próprios esforços melhoraram sua posição relativa e depois foram novamente expropriados, mas também por deixar o progresso acontecer e em seguida tentar desfazê-lo, o conservadorismo enfraquece a sua própria justificativa, ou seja, seu argumento de que uma dada distribuição de renda e de riqueza é legítima porque é o que sempre tem dado resultado. Portanto, o conservadorismo prefere, em primeiro lugar, que as mudanças não ocorram e acha adequado utilizar medidas políticas que prometam realizá-las, ou que ajudem a torná-las menos evidentes.
Há três tipos de medidas políticas nesse sentido: controle de preços, regulações e controle de comportamento, todas elas são, na verdade, medidas socialistas, como é a tributação, mas todas elas, curiosamente, foram quase sempre negligenciadas nas tentativas de estimar o nível geral de socialismo em sociedades diferentes, assim como, nesse aspecto, a importância da tributação foi superestimada.[19]Discutirei posteriormente esses específicos esquemas políticos conservadores.
Qualquer mudança nos preços (relativos), evidentemente, provoca mudanças na posição relativa das pessoas que fornecem os respectivos bens e serviços. Portanto, para manter essa posição relativa parecia que tudo o que precisava ser feito era definir os preços — eis o raciocínio conservador para introduzir o controle de preços. Para verificar a validade dessa conclusão é preciso examinar os efeitos econômicos da fixação de preços.[20] Para começarmos, consideremos que um controle seletivo de preços de um produto ou de um grupo de produtos foi adotado e que o atual preço de mercado foi decretado num valor abaixo ou acima do qual o produto não poderia ser vendido. Agora, se o preço estabelecido for idêntico ao preço de mercado, o controle de preços será simplesmente ineficaz. Os efeitos peculiares da fixação de preços só ocorrem se não houver essa identificação. E como nenhuma fixação de preços elimina as causas que provocam a alteração dos preços, além de simplesmente decretar que nenhuma atenção lhes será dada, isso ocorre tão logo haja quaisquer mudanças na demanda para o produto em questão, seja lá qual for a razão. Se a demanda aumentar (e os preços, não sendo controlados, também subirem), os preços fixados se convertem em preço máximo efetivo, ou seja, um preço acima do qual a sua venda será ilegal. Caso a demanda diminua (e os preços, sem controle, caiam), os preços fixados se tornam um preço mínimo efetivo, ou seja, um preço abaixo do qual a sua venda também será ilegal.[21]
A consequência da imposição de um preço máximo é um excesso na demanda da oferta de bens. Nem todo mundo que deseja comprar pelo preço fixado pode fazê-lo. E essa escassez irá perdurar tanto quanto não seja permitido aumentar o preço diante da demanda crescente e, consequentemente, não existe possibilidade de os produtores (que já tinham considerado produzir acima de um ponto em que os custos marginais, ou seja, o custo de produzir a última unidade do produto concebido, equivalessem à receita marginal) direcionarem recursos adicionais para determinado ramo de produção e assim aumentar a fabricação sem que isso resulte em prejuízos. Filas, racionamento, favorecimento, ágio e mercados negros se tornarão características permanentes da vida. E a escassez e os efeitos colaterais resultantes deles irão até aumentar, assim como a demanda excessiva para os bens de preço controlado irá se alastrar por todos os outros bens não-controlados (em particular, é claro, sobre os substitutos), aumentando seus preços (relativos) e, desse modo, criando um incentivo adicional para mover os recursos de ramos de produção controlados para aqueles não-controlados.
Impor um preço mínimo, ou seja, um preço acima do preço potencial de mercado e abaixo do qual sua venda é ilegal, mutatis mutandis gera um excesso de abastecimento sobre a demanda. Haverá uma superabundância de bens produzidos que simplesmente não encontrará compradores. E, de novo, esse excesso de produção continuará durante todo o período em que não for permitida a queda de preços junto com a demanda reduzida para o produto em questão. Para citar alguns exemplos, haverá lagos de leite e de vinho, montanhas de manteiga e grãos, cada vez em maior quantidade; e como os locais de armazenamento estarão lotados será necessário destruir regularmente o excesso de produção (ou, como alternativa, pagar para que os produtores não mais produzam em excesso). O excesso de produção será ainda pior à medida em que os preços artificialmente elevados atraem investimento mais alto de recursos nesse setor específico e que depois faltarão em outros ramos de produção onde atualmente existe uma grande necessidade deles (em termos de demanda de consumo), e onde, como consequência, os preços dos produtos irão aumentar.
Preços máximos e mínimos, tanto faz, em cada caso o controle de preços resultará no empobrecimento relativo. Sob qualquer circunstância, conduzirão a uma situação na qual há muitos recursos (em termos de demanda de consumo) focados nas linhas de produção de menor importância e disponíveis de forma insuficiente nas linhas de produção de maior importância. Portanto, os fatores de produção não mais poderão ser alocados e as necessidades mais urgentes serão satisfeitas primeiro, a urgência seguinte em seguida, e assim por diante, ou mais precisamente, de modo que a produção de qualquer produto não seja acrescida (ou reduzida) para o nível ao qual a utilidade do produto marginal despenque (ou permaneça acima) em relação à utilidade marginal de qualquer outro produto. Antes, a imposição do controle de preços significa que as necessidades menos urgentes serão satisfeitas em detrimento da redução da satisfação das necessidades mais urgentes. E isso significa dizer que o padrão de vida será reduzido. Que as pessoas desperdicem seu tempo brigando por bens cuja oferta está artificialmente reduzida ou que esses bens sejam descartados porque sua oferta é mantida artificialmente alta, são apenas os dois sintomas mais visíveis dessa riqueza social reduzida.
Mas isto não é tudo. A análise anterior também revela que o conservadorismo não pode atingir seu objetivo de estabilidade distributiva mediante o controle parcial de preços. Com os preços apenas parcialmente controlados ainda devem ocorrer distorções na posição da renda e da riqueza existentes, dado que os produtores das linhas de produção não-controladas ou das linhas de produção com produtos a preços mínimos são favorecidos em detrimento daqueles cujas linhas de produção são controladas ou cujas linhas de produção têm produtos a preços máximos. Portanto, continuará a haver um incentivo para produtores individuais deslocarem-se de um ramo de produção para outro mais lucrativo, com a consequência de que as diferenças na agilidade empresarial e na habilidade de prever e implementar esses deslocamentos lucrativos irão emergir e resultar em distorções da ordem estabelecida. Portanto, o conservadorismo, se estiver de fato determinado em seu compromisso de preservar o status quo, estará direcionado para ampliar constantemente o círculo de bens sujeitos ao controle de preços até um ponto em que não poderá mais controlá-los ou congelá-los.[22] Somente se os preços de todos os bens e serviços, assim como os do capital e dos bens de consumo, forem congelados num determinado patamar e o processo de produção for completamente separado da demanda — em vez de desconectar produção e demanda a apenas alguns pontos e setores assim como sob controle de preço parcial — parecerá possível preservar integralmente uma ordem distributiva existente. Porém, não é surpreendente que o preço a ser pago por esse conservadorismo avançado seja até maior do que aquele do controle parcial de preços.[23] Com o controle de preços em todos os aspectos, a propriedade privada dos meios de produção é, de fato, abolida. Pode ainda existir proprietários privados no nome, mas o direito de determinar o uso de sua propriedade e de se envolver em qualquer troca contratual que seja considerada benéfica é completamente perdido. A consequência imediata dessa silenciosa expropriação dos produtores será uma redução na poupança e no investimento e, mutatis mutandis, um aumento no consumo. Como ninguém mais pode cobrar pelos frutos do trabalho que o mercado poderia suportar, há uma razão a menos para trabalhar. E, além disso, como os preços são fixados há também uma razão a menos para se preocupar com a qualidade de um tipo específico de trabalho ou produto que ainda se realiza ou se produz e, consequentemente, a qualidade de cada um e de todos os produtos será menor.
Mas até mais importante do que isso é o empobrecimento que resulta do caos de alocação criado pelo controle universal de preços. Enquanto todos os preços dos produtos são congelados, incluindo aqueles de todos os fatores de custo e, em particular, o do trabalho, a demanda para os vários produtos continua mudando constantemente. Sem o controle de preços, estes seguiriam a direção dessa mudança e desse modo criariam um incentivo para se mudar de ramos de produção menos valorizados para os mais valorizados. Sob um controle universal de preços, esse mecanismo é completamente destruído. Se houver aumento da demanda por um produto será criada uma escassez, pois não é permitido aumentar os preços, e, portanto, devido ao fato de a lucratividade para produzir um produto específico não ter sido alterada, nenhum fator de produção adicional será atraído. Como consequência, uma demanda em excesso, se não for satisfeita, irá se alastrar nos outros produtos, aumentando a demanda por eles acima do nível que de outra forma seria estabelecido. Mas aqui, de novo, não é permitido aumentar o preço por causa do aumento da demanda e, por isso, será criada uma nova escassez. E, assim, deve seguir adiante o processo de deslocamento da demanda dos produtos de necessidade mais urgente para os de importância secundária e a partir daí para os produtos de menor relevância, uma vez que, novamente, nem todas as tentativas de se comprar a preços controlados podem ser realizadas. Finalmente, uma vez que não existem alternativas disponíveis e o papel-moeda que as pessoas continuam a gastar tem um valor intrínseco menor do que o produto menos valorizado disponível para venda, a demanda excessiva irá se alastrar pelos produtos cuja demanda havia inicialmente caído. Portanto, mesmo naquelas linhas de produção onde foi criado um excedente como resultado do declínio na demanda, mas onde não se permitiu haver uma queda nos preços, as vendas serão mais uma vez retomadas em consequência da demanda insatisfeita em outros setores da economia; apesar dos preços altos artificialmente fixados os excedentes serão vendáveis; e, com o restabelecimento da lucratividade, até mesmo aqui se conseguirá impedir uma fuga de capitais.
A imposição de controle de preços generalizado significa que o sistema de produção se tornou completamente independente das preferências dos consumidores, cuja satisfação destina-se a produção. Os produtores podem produzir qualquer coisa e os consumidores não têm escolha a não ser comprá-la, independente do que seja. Consequentemente, qualquer alteração na estrutura de produção que é feita ou ordenada para ser desenvolvida sem a ajuda oferecida por preços livremente flutuantes não é nada mais do que tatear no escuro, substituindo um conjunto arbitrário de bens oferecido por outro igualmente arbitrário. Simplesmente, não há mais conexão entre a estrutura de produção e a estrutura de demanda. Ao nível da experiência do consumidor isso significa, como foi descrito por G. Reisman, “encher as pessoas de camisas quando elas precisam de sapatos, ou enchê-las de calçados quando elas necessitam de roupas; oferecer-lhes grande quantidade de papel, mas não canetas, ou vice-versa; (…) realmente, oferecer-lhes qualquer combinação absurda de bens”. Mas, obviamente, “(…) oferecer aos consumidores apenas combinações desequilibradas de bens é por si só equivalente a um grande declínio na produção, pois representa tanto quanto uma perda no bem-estar humano”.[24] O padrão de vida não depende apenas de uma fabricação material total da produção; depende muito mais da própria distribuição ou da dosagem de vários fatores de produção específicos na fabricação de uma combinação bem equilibrada de uma variedade de bens de consumo. O controle universal de preços, como ultima ratio (último recurso) do conservadorismo, impede que ocorra essa combinação bem-dosada. Só aparentemente que a ordem e a estabilidade são criadas; na verdade, elas são os meios para se criar o caos e a arbitrariedade de alocação, e, desse modo, reduzir drasticamente o padrão de vida geral.
Além do mais, e isto nos leva à discussão do segundo instrumento político conservador, ou seja, as regulações, mesmo que os preços sejam controlados em todos os aspectos isso pode somente salvaguardar uma ordem existente de distribuição de renda e de riqueza se for considerado de forma irrealista que os produtos e os seus produtores são “fixos”. Porém, mudanças na ordem existente não podem ser descartadas se forem criados produtos novos e diferentes, se forem desenvolvidas novas tecnologias de produção e se brotarem produtores adicionais. Tudo isso levaria a perturbações na ordem existente, e como os antigos produtos, tecnologias e produtores estão sujeitos ao controle de preços teriam que competir com produtos e serviços novos e diferentes (que, uma vez que são novos, não podem ter seus preços controlados) e provavelmente perderiam algo de sua parte definida dos rendimentos para os recém-chegados no decorrer dessa concorrência. Para compensar essas distorções, o conservadorismo poderia uma vez mais utilizar o instrumento da tributação e, de fato, o faz em certa medida. Mas permitir primeiro que as inovações ocorram sem obstáculos e depois tributar os ganhos à revelia dos inovadores e restaurar a antiga ordem é, como já foi explicado, um instrumento muito progressista para uma política conservadora. O conservadorismo prefere regulações como instrumentos para impedir ou desacelerar as inovações e as mudanças sociais trazidas por ambas.
A forma mais drástica de regular o sistema de produção seria simplesmente tornar ilegal qualquer inovação. Essa política, deve-se observar, tem seus adeptos entre aqueles que lamentam o consumismo dos outros, ou seja, o fato de que hoje já existe “tudo em demasia” no que se refere a bens e serviços no mercado e entre os que desejam congelar ou mesmo reduzir essa atual diversidade. E também, por razões ligeiramente diferentes, entre aqueles que querem congelar a tecnologia de produção atual com medo de que as inovações tecnológicas, como instrumentos de economia de trabalho, “destruíssem” os empregos (existentes). Entretanto, uma proibição total de toda mudança inovadora praticamente não foi seriamente tentada — talvez com a exceção recente do regime de Pol Pot — devido à falta de apoio da opinião pública que não poderia ser convencida de que essa política não teria um custo extremamente alto em termos de perdas do bem-estar. Porém, tem sido bastante popular uma perspectiva ligeiramente mais moderada: na medida em que nenhuma norma é descartada, em princípio, qualquer inovação deve ser oficialmente aprovada (isto é, aprovada por outras pessoas que não as inovadoras) antes que possa ser implementada. Dessa forma, segundo argumentam os conservadores, garante-se que o progresso seja gradual, que as inovações sejam socialmente aceitáveis, que possam ser introduzidas simultaneamente por todos os produtores e que todos possam compartilhar seus benefícios. Compulsoriedade, ou seja, imposição pelo governo e cartéis são os meios mais populares para obter esse resultado. Ao exigir que todos os produtores, ou todos os produtores de um segmento econômico, virem membros de uma organização supervisora (o cartel) torna-se possível, através da imposição de cotas de produção, evitar o muito óbvio excesso de oferta criado pelo controle de preço mínimo. Além disso, as distorções provocadas por qualquer medida inovadora poderiam ser centralizadamente controladas e restringidas. Mas enquanto essa abordagem tem ganhou terreno na Europa e num grau menor nos Estados Unidos, e à medida em que certos setores da economia já estão, de fato, sujeitos a controles muito parecidos, o instrumento regulador mais popular e mais comumente utilizado pelo socialismo-conservador ainda é aquele que estabelece padrões pré-definidos para categorias pré-definidas de produtos ou produtores para os quais todas as inovações devem adaptar-se. Essas regulações estabelecem os tipos de qualificação que uma pessoa deve preencher (além daquelas “normais” ao ser o legítimo proprietário das coisas e de não danificar a integridade física da propriedade alheia através de suas próprias ações) para ter o direito de se estabelecer como um tipo de produtor; ou estipulam os tipos de testes a que um produto de um determinado tipo deve se submeter antes que a sua entrada no mercado seja permitida; ou elas prescrevem verificações precisas pelas quais qualquer melhoria tecnológica deve passar para que um novo método de produção seja aprovado. Com esses métodos de regulação, as inovações não podem ser completamente descartadas e nem podem impedir completamente que algumas mudanças sejam até mesmo surpreendentes. Mas como os padrões pré-definidos a que as mudanças devem atender é ser necessariamente “conservador”, ou seja, formulados com base nos produtos, produtores ou tecnologias existentes, servem ao propósito do conservadorismo que será, no mínimo, desacelerar a velocidade das mudanças inovadoras e a gama de possíveis surpresas.
Em todo o caso, todos esses tipos de regulação (a primeira mais do que a segunda), levarão a uma redução no padrão de vida geral.[25] Na verdade, uma inovação só pode ser bem-sucedida, e assim permitir ao inovador romper a ordem existente da distribuição de renda e riqueza, se for, de fato, muito melhor avaliada pelos consumidores em relação aos antigos produtos que com ela competem. No entanto, a imposição das regulações significa uma redistribuição de títulos de propriedade, à revelia dos inovadores, para os produtores, produtos e tecnologias já estabelecidos. Portanto, ao socializar completamente ou parcialmente os possíveis ganhos de renda e de riqueza decorrentes das mudanças inovadoras no processo de produção e,mutatis mutandis, pela socialização completa ou parcial dos eventuais prejuízos não decorrentes da inovação, o processo de inovação será desacelerado, haverá menos inovadores e inovações e, em vez disso, surgirá uma tendência reforçada para se aceitar as coisas como elas são. Isso significa que o processo de aumentar a satisfação do consumidor pela produção de bens e serviços muito melhor avaliados e de forma mais eficiente e econômica é paralisado ou, no mínimo, impedido. Portanto, mesmo que de uma forma um pouco diferente do que o controle de preços, as regulações também farão a estrutura de preços ficar em desacordo com a demanda. E enquanto isso pode ajudar a salvaguardar uma distribuição já existente de riqueza, deve novamente ser o preço a pagar por um declínio geral na riqueza global que for incorporada nessa mesma estrutura de produção.
Finalmente, o terceiro instrumento político especificamente conservador é o controle comportamental. Controle de preços e regulações congelam o lado da oferta de um sistema econômico e desse modo separam-no da demanda. Mas isso não impossibilita que mudanças na demanda venham a existir; apenas faz com que o lado da oferta lhes seja indiferente. E , portanto, pode acontecer que as discrepâncias não só apareçam, mas que também se tornem terrivelmente evidentes. Controles comportamentais são medidas políticas projetadas para controlar o lado da demanda. Eles visam impedir ou retardar as mudanças na demanda com a finalidade de tornar menos evidente a indiferença do lado da oferta e desse modo completar a tarefa do conservadorismo: a preservação de uma ordem existente das mudanças que produzem rupturas de qualquer espécie.
Controle de preços e regulações de um lado e controle comportamental de outro são, portanto, as duas partes complementares de uma política conservadora. Embora as diferentes formas de socialismo favoreçam diferentes categorias de pessoas improdutivas e não-inovadoras assim como qualquer outra variante do socialismo, o conservadorismo tende a gerar pessoas menos produtivas e menos inovadoras, obrigando-as a aumentar o consumo ou a canalizar suas energias produtiva e inovadora para os mercados negros. Mas de todas as formas de socialismo, é só o conservadorismo que, como parte de seu programa, interfere diretamente no consumo e nas trocas não-comerciais. (Na verdade, todas as outras formas também interferem no consumo na medida em que conduzem a uma redução no padrão de vida; mas, diferente do conservadorismo, deixam o consumidor praticamente livre com tudo o que é deixado para ele consumir). O conservadorismo não apenas mutila o desenvolvimento dos seus talentos produtivos; sob o nome de “paternalismo”, também quer congelar o comportamento das pessoas em seus papéis de consumidores isolados ou como parceiros de troca em formas não-comerciais de trocas, sufocando ou suprimindo, desse modo, seu talento para desenvolver um estilo de vida consumidor que melhor satisfaça as suas necessidades recreativas.
Qualquer mudança no padrão do comportamento do consumidor tem efeitos secundários (Se eu deixo meu cabelo crescer, isso afeta os cabeleireiros e a indústria de fabricação de tesouras; se mais pessoas se divorciarem, isso afeta os advogados e o mercado imobiliário; se eu começo a fumar maconha, meu ato tem consequências não apenas no uso da terra destinada à agricultura, mas também na indústria de sorvete etc.; e, acima de tudo, todos esses comportamentos desequilibram o sistema de valor de qualquer um que se sinta afetado). Qualquer mudança poderia parecer um elemento perturbador vis à vis a estrutura de produção conservadora, e o conservadorismo, em princípio, teria que considerar todas as ações — todo o estilo de vida das pessoas enquanto consumidores ou agentes de trocas não-comerciais como objetos adequados ao controle de comportamento. Um conservadorismo plenamente desenvolvido equivaleria a estabelecer um sistema social no qual tudo, exceto o comportamento tradicional (aquele explicitamente permitido), fosse ilegal. Na prática, o conservadorismo nunca poderia ir tão longe uma vez que há custos relacionados aos controles e a forma pela qual ele normalmente teria que enfrentar a crescente resistência crescente na opinião pública. Portanto, o conservadorismo “normal” é caracterizado por uma quantidade maior ou menor de leis específicas e de proibições que tornam ilegal ou punem várias formas de comportamento não-agressivo de consumidores isolados, ou de pessoas envolvidas em trocas não-comerciais — ou seja, ações que se de fato realizadas não modificariam a integridade física da propriedade de terceiros nem violariam o direito de qualquer pessoa de recusar qualquer troca que não parecesse vantajosa, mas que prefeririam (apenas) romper a estabelecida ordem “paternal” de valores sociais.
Mais uma vez, o resultado dessa política de controle de comportamento é, em qualquer caso, um empobrecimento relativo. Mediante a imposição desses controles não apenas um grupo de pessoas é prejudicado pelo fato de que não lhe será mais permitido desenvolver certas formas não-agressivas de comportamento, mas outro grupo é beneficiado por esses controles e não terá mais que tolerar essas desagradáveis formas de comportamento. Mais especificamente, os perdedores dessa redistribuição de direitos de propriedade são os usuários-produtores das coisas cujo consumo está agora obstruído, e aqueles que ganham são os não-usuários/não-produtores dos bens de consumo em questão. Assim, uma nova e diferente estrutura de incentivos em relação à produção e à não-produção é estabelecida e aplicada sobre uma determinada população. A produção de bens de consumo tornou-se mais dispendiosa uma vez que seu valor caiu em decorrência da imposição de controles considerando o seu uso e, mutatis mutandis, a conquista da satisfação do consumidor através de meios não-produtivos e não-contratuais foi relativamente menos dispendiosa. Como resultado, haverá menos produção, menos poupança, menos investimentos e uma elevada tendência de obter satisfação em detrimento de outros através de métodos políticos, ou seja, agressivos. E, em particular, na medida em que as restrições impostas pelos controles de comportamento dizem respeito ao uso que uma pessoa pode fazer de seu próprio corpo, a consequência será um valor mais baixo atribuído a ele e, consequentemente, um investimento reduzido em capital humano.
Com isso, chegamos ao fim da análise teórica do conservadorismo como uma forma especial de socialismo. Mais uma vez, para concluir a discussão, devem ser feitas algumas observações que possam ajudar a ilustrar a validade das conclusões anteriormente expostas. Como na discussão do socialismo social-democrata, essas observações ilustrativas devem ser lidas com algumas precauções: primeira, a validade das conclusões deste capítulo foi, pode e deve ser instituída independentemente da experiência. Em segundo lugar, na medida em que a experiência e a evidência empírica estão em causa, não há, infelizmente, exemplos de sociedades em que possam ser estudados os efeitos do conservadorismo na comparação com outras variantes do socialismo e do capitalismo. Não há um estudo de caso quase-experimental que sozinho possa fornecer uma evidência normalmente considerada como “irrefutável”. O que acontece é que todos esses tipos de medidas políticas — conservadora, social-democrata, marxista-socialista e liberal-capitalista — são tão ligados e misturados que seus respectivos resultados não podem geralmente ser perfeitamente combinados com as causas definitivas, mas devem ser uma vez mais desemaranhados e combinados por meio de recursos puramente teóricos.
Porém, com isso em mente, algo bem poderia ser dito sobre o desempenho real do conservadorismo na história. Mais uma vez, a diferença entre os padrões de vida dos Estados Unidos e dos países da Europa Ocidental (tomados em conjunto) permite uma observação que se encaixa no quadro teórico. Seguramente, como mencionado no capítulo anterior, a Europa tem mais socialismo redistributivo — como indicado aproximadamente pelo nível total de tributação — do que os Estados Unidos, e é mais pobre por causa disso. Porém, ainda mais notável é a diferença que existe entre os dois no que se refere ao grau de conservadorismo.[26] A Europa tem um passado feudal que é perceptível nos dias de hoje, particularmente na forma de numerosas regulações que restringem o comércio, dificultam a entrada nos países e proíbem ações não-agressivas, enquanto os Estados Unidos estão extraordinariamente livres desse passado. Está relacionado a isso o fato de que por longos períodos durante os séculos XIX e XX a Europa foi moldada por políticas desenvolvidas por partidos mais ou menos conservadores e não por outra ideologia política ao passo que um partido genuinamente conservador nunca existiu nos Estados Unidos. De fato, mesmo os partidos socialistas da Europa Ocidental estavam contaminados em larga medida pelo conservadorismo, particularmente sob a influência dos sindicatos dos trabalhadores, e impuseram muitos elementos socialistas-conservadores (ou seja, regulações e controle de preços) sobre as sociedades europeias durante seus períodos de influência (enquanto reconhecidamente ajudaram a abolir alguns controles de comportamento conservadores). Em todo o caso, dado que a Europa é mais socialista do que os Estados Unidos e seus padrões de vida são relativamente mais baixos, isso deve-se menos à grande influência do socialismo social-democrata na Europa e mais pela influência do socialismo do conservadorismo — não tanto indicado pelos seus mais elevados graus de tributação, mas pela quantidade significativamente maior de controle de preços, regulações e controles de comportamento na Europa. Devo me antecipar para acrescentar que os Estados Unidos não são mais rico do que realmente são, e não apresentam mais o vigor econômico do século XIX não só porque adotaram ao longo do tempo cada vez mais políticas de socialismo redistributivo, mas mais ainda porque também se tornaram vítimas da ideologia conservadora de querer proteger da concorrência o status quo de distribuição de renda e riqueza e, em particular, a posição daqueles com recursos entre os produtores existentes por meio de regulações e controle de preços.[27]
Mesmo num nível mais global, outra observação se encaixa no quadro teoricamente derivado do conservadorismo como causador do empobrecimento. Fora do chamado mundo Ocidental, os únicos países que combinam o desempenho econômico miserável dos regimes totalmente marxista-socialista são exatamente aqueles da América Latina e Ásia que nunca romperam seriamente com seu passado feudal. Nessas sociedades, grandes partes da economia estão agora mesmo quase completamente livres do alcance e da pressão da liberdade e da concorrência e estão travadas em suas posições tradicionais mediante regulações impostas, digamos, por agressão direta.
No âmbito das observações mais específicas, os dados também indicam claramente o que a teoria nos levaria a supor. Voltando à Europa Ocidental, não pode haver dúvida de que dentre os principais países europeus, Itália e França são os mais conservadores, especialmente se comparados com as nações do Norte que, tanto quanto no que se refere ao socialismo, foram se inclinando mais em direção à sua versão redistributiva.[28]Enquanto o grau de tributação na Itália e na França (despesa estatal como parte do Produto Nacional Bruto) não é mais elevado do que em outras partes da Europa, esses dois países apresentam claramente mais elementos conservadores-socialistas do que se encontra em qualquer outro lugar. Itália e França estão decoradas com milhares de controle de preços e regulações, tornando altamente duvidoso haver qualquer setor de suas economias que possa ser chamado, com alguma justificativa, de “livre”. Como resultado (e como poderia ser previsto), o padrão de vida em ambos os países é significativamente mais baixo do que no norte da Europa, como pode perceber qualquer um que não esteja viajando exclusivamente para cidades turísticas. Na verdade, nos dois países um dos objetivos do conservadorismo parece ter sido atingido: as diferenças entre aqueles que têm recursos e os que não têm foram bem preservadas — dificilmente se encontrará diferenças extremas na renda e na riqueza na Alemanha Ocidental ou nos Estados Unidos como na Itália ou na França —, mas o preço a pagar é uma queda relativa na riqueza social. Na verdade, essa queda é tão significante que o padrão de vida das classes baixa e média-baixa em ambos os países é, na melhor das hipóteses, apenas um pouco maior do que nos países mais liberais do bloco Oriental. E particularmente as províncias do sul da Itália, onde ainda mais regulações foram amontoadas sobre aquelas que vigoravam em todo o país, mal saíram do grupo das nações do terceiro mundo.
Finalmente, como último exemplo que ilustra o empobrecimento causado por políticas conservadoras deve ser mencionada a experiência com o nacional-socialismo na Alemanha, e, em menor grau, com o fascismo italiano. Muitas vezes não se compreende que ambos eram movimentos conservadores-socialistas.[29] Ou seja, enquanto movimentos orientados contra a mudança e contra as desordens sociais oriundas das forças dinâmicas de uma economia livre — além dos movimentos marxistas-socialistas —, eles poderiam encontrar apoio entre as classes de proprietários, donos de lojas, fazendeiros e empreendedores estabelecidos. Mas extrair dessa conclusão que estes movimentos eram pró-capitalistas ou mesmo considerá-los como o estágio superior no desenvolvimento do capitalismo antes de seu derradeiro fim, como os marxistas normalmente fazem, é completamente equivocado. Realmente, o inimigo do fascismo e do nazismo fervorosamente abominado não era o socialismo, mas o liberalismo. Obviamente, ambos também desprezavam o socialismo dos marxistas e bolcheviques, porque, pelo menos ideologicamente, eram internacionalistas e pacifistas (confiando nas forças históricas que levariam à destruição do capitalismo por dentro), enquanto o fascismo e o nazismo eram movimentos nacionalistas devotados à Guerra e à conquista; e, provavelmente, até mais importante considerando o seu apoio público, porque o marxismo significava que aqueles que tinham recursos seriam expropriados pelos que não tinham e a ordem social seria, portanto, virada de ponta-cabeça, enquanto o fascismo e o nazismo prometiam preservar uma determinada ordem.[30] Mas, se isso é decisivo para classificá-los como movimentos socialistas (em vez de capitalistas), perseguir esse objetivo implicava (como já foi explicado em detalhes) tanto uma negação dos direitos do usuário-proprietário das coisas de fazer com elas o que lhes parecesse melhor (desde que não danificasse a propriedade alheia ou se envolvesse em trocas não-contratuais), quanto uma expropriação dos proprietários naturais pela “sociedade” (isto é, por pessoas que nem produziram nem adquiriram contratualmente as coisas em questão) como faz a política do marxismo. E, de fato, para atingir esse objetivo, fascismo e nazismo fizeram exatamente aquilo que a classificação como conservadores-socialistas nos levaria a esperar que fizessem: instituíram economias altamente controladas e reguladas nas quais a propriedade privada continuaria a existir só no nome, mas não teria qualquer significado uma vez que o direito de determinar o uso das coisas possuídas foi quase completamente perdido para as instituições políticas. Os nazistas, em particular, impuseram um sistema de controle de preços quase completo (incluindo controles de salários), conceberam os planos quadrienais (quase como na Rússia, onde os planos se estendiam por períodos de cinco anos) e estabeleceram o planejamento econômico e as diretorias de supervisão, que tinham que aprovar todas as alterações significativas na estrutura de produção. Um “proprietário” não poderia mais decidir o que ou como produzir, de quem comprar ou para quem vender, quais preços pagar ou cobrar, ou como implementar quaisquer mudanças. Tudo isso, na verdade, criou um sentimento de insegurança. A todos foram atribuídas posições fixas e tanto os assalariados quanto os proprietários do capital recebiam, em termos nominais, uma renda garantida, estável e até mesmo crescente. Além disso, os gigantescos programas de trabalhos forçados, a reintrodução do recrutamento para serviço militar obrigatório, e, finalmente, a implementação de uma economia de Guerra, reforçaram a ilusão de uma expansão econômica e de prosperidade.[31] Mas como seria de se esperar de um sistema econômico que destrói o incentivo do produtor de ajustar a demanda e até impedir que isto seja feito, e que, desse modo, separa a demanda da produção, esse sentimento de prosperidade provou ser nada menos do que uma ilusão. Na verdade, no que se refere aos bens que as pessoas poderiam comprar com o próprio dinheiro, o padrão de vida caiu não só em termos relativos, mas em termos absolutos.[32] Em todo o caso, mesmo desconsiderando toda a destruição causada pela Guerra, a Alemanha e, em menor extensão, a Itália empobreceram severamente após a derrota dos nazistas e dos fascistas.
[1] Sobre o tema, cf., especialmente, o brilhante ensaio de M. N. Rothbard Esquerda e direita – Perspectivas para a liberdade, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010
[2] Sobre a estrutura social do feudalismo, cf. M. Bloch, Feudal Society, Chicago, 1961; P. Anderson, Passages from Antiquity to Feudalism, London, 1974; R. Hilton (ed.), The Transition from Feudalism to Capitalism, London, 1978.
[3] Cf. H. Pirenne, Medieval Cities. Their Origins and the Revival of Trade, Princeton, 1974, capítulo 5, esp. pp. 126 et seq.; também cf. M. Tigar e M. Levy, Law and the Rise of Capitalism, New York, 1977.
[4] Vale a pena salientar que, ao contrário do que diversos historiadores nacionalistas ensinaram, o renascimento do comércio e da indústria foi promovido pelo enfraquecimento dos estados centrais, pelo caráter essencialmente anarquista do sistema feudal. Esse discernimento foi enfatizado por J. Baechler no livro The Origins of Capitalism, New York, 1976, esp. capítulo 7. Ele escreveu: “A expansão constante do mercado, tanto em amplitude quanto intensidade, foi o resultado de ausência de uma ordem política que se estendesse por toda a Europa Ocidental” (p. 73). “A expansão do capitalismo deve sua origem e sua razão de ser à anarquia política. (…) Coletivismo e gestão do Estado só tiveram êxito nos livros-texto (veja, por exemplo, o julgamento constantemente favorável deles em relação ao Colbertismo” (p.77). “Todo poder tende ao absoluto. Se não é absoluto é por causa de alguns tipos de limitações existentes (…). Aqueles que ocupam posições de poder tentam incessantemente destruir essas limitações. Eles nunca têm êxito e por uma razão que também me parece estar ligada ao sistema internacional: uma limitação do poder de agir externamente e a constante ameaça de invasão estrangeira (as duas características de um sistema multipolar) significa que o poder também é limitado internamente e deve contar com centros autônomos de decisão e, portanto, só pode ser usado com moderação” (p.78).
Sobre o papel das pressões ecológicas e reprodutivas para o surgimento do capitalismo, cf. M. Harris,Cannibals and Kings, New York, 1978, capítulo 14.
[5] Cf. sobre o tema o entusiasmado relato feito por H. Pirenne, Medieval Cities, Princeton, 1974, p.208 et seq.
[6] Sobre essa coalizão cf. H. Pirenne, Medieval Cities, Princeton, 1974. “O interesse claro da monarquia era apoiar os adversários do alto feudalismo. Naturalmente, a ajuda era dada sempre que fosse possível fazê-lo sem estabelecer qualquer obrigação com essas classes médias que, ao se levantarem contra os seus senhores, com todas as intenções e propósitos, lutavam no interesse das prerrogativas reais. Aceitar o rei como árbitro de suas disputas era, para as partes em conflito, reconhecer a sua soberania. (…) Era impossível que a realeza não levasse isso em conta e aproveitasse cada oportunidade para mostrar sua boa vontade para com as comunidades que, sem a intenção de fazê-lo, trabalhavam tão proficuamente em seu nome” (p.179-80; cf. também p.227 et seq.).
[7] Cf. P. Anderson, Lineages of Absolutism, London, 1974.
[8] Cf. L. Tigar e M. Levy, Law and the Rise of Capitalism, New York, 1977.
[9] Cf. L. v. Mises, Liberalismus, Jena, 1929; também E. K. Bramsted e K. J. Melhuish (eds.), Western Liberalism, London, 1978.
[10] Cf. F. A. Hayek (ed.), Capitalism and the Historians, Chicago, 1963.
[11] A respeito da dinâmica social do capitalismo tanto quanto o ressentimento causado por isto cf. D. Mc. C. Wright, Democracy and Progress, New York, 1948; e Capitalism, New York, 1951.
[12] Apesar de sua atitude geralmente progressista, a esquerda socialista também não está inteiramente livre dessas glorificações conservadoras do passado feudal. Em seu desprezo pela “alienação” do produtor em relação ao seu produto, que é, obviamente, a consequência normal de qualquer sistema de mercado baseado na divisão do trabalho, a esquerda socialista apresenta frequentemente uma casa senhorial feudal economicamente autossuficiente como se fosse um modelo social benéfico e acolhedor. Cf., por exemplo, K. Polanyi, The Great Transformation, New York, 1944.
[13] Cf. R. Nisbet, “Conservatism,” in: R. Nisbet e T. Bottomore, History of Sociological Analysis, New York, 1978; e também G. K. Kaltenbrunner (ed.), Rekonstruktion des Konservatismus, Bern, 1978; sobre a relação entre liberalismo e conservadorismo cf. F. A. Hayek, “Why I Am Not a Conservative”, in The Constitution of Liberty, Chicago, 1960 (pós-escrito).
[14] Sobre as inconsistências do liberalismo, cf. capítulo 10, n. 21.
[15] Normalmente, as atitudes das pessoas em relação à mudança são ambivalentes: por um lado, em seu papel de consumidores, elas enxergam a mudança como um fenômeno positivo desde que traga uma grande variedade de escolhas. Por outro lado, em seu papel de produtores, tendem a abraçar o ideal da estabilidade, como se isto fosse protegê-las da necessidade de continuamente ter que adaptar seus esforços produtivos para as mudanças circunstanciais. É, então, basicamente em sua capacidade enquanto produtores que as pessoas prestam-se a apoiar os vários regimes e promessas de estabilidade socialistas, só que assim prejudicam a si mesmas como consumidores. Assim escreveu D. Mc. C. Wright em seu livro Democracy and Progress, New York, 1948, p.81: “Através da liberdade e da ciência vieram um rápido crescimento e mudanças. Do rápido crescimento e das mudanças veio a insegurança. Da insegurança vieram demandas que acabaram com o crescimento e com as mudanças. Acabar com o crescimento e com as mudanças acabou com a ciência e com a liberdade”.
[16] Sobre o liberalismo e o seu declínio, e a ascensão do socialismo, cf. A. V. Dicey, Lectures on the Relation Between Law and Public Opinion in England during the Nineteenth Century, London, 1914; W. H. Greenleaf,The British Political Tradition, 2 vols., London, 1983.
[17] Devo novamente mencionar que a caracterização do conservadorismo também tem o status de um tipo ideal (cf. capítulo 3, n. 2; capítulo 4, n. 8). É uma tentativa de reconstruir aquelas ideias que as pessoas aceitam ou rejeitam tanto de forma consciente quanto inconsciente ao vincularem-se a ou desvincularem-se de determinadas políticas ou movimentos sociais. A ideia de uma política conservadora como descrita aqui e a seguir também pode ser definida como uma justa reconstrução de uma força ideológica unificadora e subjacente daquilo que é, de fato, classificado na Europa como “conservador”. No entanto, o termo “conservador” é usado de forma diferente nos Estados Unidos. Aqui, muito frequentemente, todo mundo que não é da esquerda liberal social-democrata é classificado como conservador. Quando comparado com essa terminologia, nosso uso do termo conservador é muito mais restrito, mas também muito mais alinhado com a realidade ideológica. Rotular tudo o que não é “liberal” (no sentido Americano) como “conservador” omite as diferenças ideológicas fundamentais existentes nos Estados Unidos — apesar de alguma concordância parcial em relação à oposição ao “liberalismo” — entre libertários, como defensores de uma ordem capitalista pura baseada na teoria natural da propriedade, e os conservadores propriamente ditos, que, de W. Buckley a I. Kristol, nominalmente celebram a instituição da propriedade privada, mas desconsideram os direitos dos proprietários privados sempre que for considerado necessário para proteger do desgaste os poderes políticos e econômicos estabelecidos durante o processo de competição pacífica. E no âmbito das relações exteriores, eles exibem o mesmo desrespeito pelos direitos da propriedade privada através de sua defesa de uma política de intervencionismo agressivo. Sobre a diferença antagônica entre libertarianismo e conservadorismo, cf. G. W. Carey (ed.), Freedom and Virtue. The Conservative/Libertarian Debate, Lanham, 1984.
[18] D. Mc. C. Wright (Capitalism, New York, 1951, p.198) descreve corretamente que ambos (liberalismo de esquerda, ou social-democracia, e conservadorismo) resultam em expropriação parcial de produtores/contratantes. Em seguida, porém, ele tira conclusões equivocadas sobre a diferença entre ambos quando a vê como uma discordância em relação até quanto essa expropriação deveria avançar. Na verdade, social-democratas e conservadores discordam quanto a isto. Ambos têm seus “radicais” e seus “moderados”. O que os torna social-democratas ou conservadores é uma concepção diferente sobre quais grupos devem ser favorecidos em detrimento de outros.
[19] Observe a interessante relação entre a nossa tipologia sociológica das políticas socialistas e a tipologia lógica das intervenções no mercado estudada por M. N. Rothbard. Rothbard (Governo e Mercado, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012, p. 32 et seq.) estabelece uma distinção entre a “intervenção autística”, onde ‘o interventor pode obrigar um indivíduo a fazer ou deixar de fazer certas coisas quando essas ações envolvem diretamente a pessoa ou a propriedade de alguém (…) (ou seja) quando não envolvem troca”; “intervenção binária” onde ‘o interventor pode obrigar a realização de uma troca coerciva entre ele próprio e outro indivíduo”; e a “intervenção triangular”, onde ‘o interventor pode tanto obrigar ou proibir uma troca entre outros dois indivíduos” (p. 32). Em relação a essa distinção, a marca característica do conservadorismo é, portanto, a preferência pela “intervenção triangular” — e como veremos neste capítulo, a “intervenção autística”, tanto quanto as ações autísticas, também tem repercussões naturais sobre o padrão das trocas inter-individuais — pois essas intervenções são adaptadas de forma única, de acordo com a psicologia social do conservadorismo, para ajudar a “congelar” um determinado padrão de trocas sociais. Quando comparado a isto, o socialismo igualitário, em sintonia com a sua psicologia “progressista”, mostra uma preferência pelas “intervenções binárias” (tributação). Contudo, observe que as políticas atuais dos partidos socialistas e social-democratas nem sempre coincidem de forma precisa com a nossa descrição do tipo ideal do estilo do socialismo social-democrata. Quando geralmente coincidem, é porque, em certa medida, os partidos socialistas — mais notadamente sob a influência dos sindicatos dos trabalhadores — também adotaram políticas tipicamente conservadoras que, em hipótese alguma, são totalmente contrárias a qualquer forma de intervenção triangular.
[20] Sobre o tema, cf. M. N. Rothbard, Governo e Mercado, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012, p.47 et seq.
[21] Enquanto que para estabilizar as posições sociais, o congelamento de preços é necessário e o preço congelado pode resultar em preços máximos e mínimos, os conservadores favorecem de forma distinta o controle do preço mínimo na medida em que é normalmente considerado até mais urgente do que impedir a deterioração da posição na riqueza absoluta, mais do que a da posição relativa.
[22] Com certeza, os conservadores não estão, em hipótese alguma, realmente desejosos de ir tão longe. Mas eles o fazem de forma recorrente — a última vez nos Estados Unidos foi durante a presidência de Richard Nixon. Além disso, os conservadores sempre exibiram uma admiração mais ou menos ostensiva pelo grande espírito de unificação social trazido por uma economia de guerra tipicamente caracterizada por um controle de preços em grande escala.
[23] Cf. G. Reisman, Government Against the Economy, New York, 1979. Para uma abordagem apologética do controle de preços cf. J. K. Galbraith, A Theory of Price Control, Cambridge, 1952.
[24] G. Reisman, Government Against the Economy, New York, 1979, p.141.
[25] Sobre a política e a economia da regulação, cf. G. Stigler, The Citizen and the State. Essays on Regulation, Chicago, 1975; M. N. Rothbard, Governo e Mercado, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012, capítulo III-3; sobre licenças, cf. também M. Friedman, Capitalism and Freedom, Chicago, 1962, capítulo 9.
[26] Cf. também B. Badie e P. Birnbaum, The Sociology of the State, Chicago, 1983, esp. p.107 et seq.
[27] Cf. sobre o tema R. Radosh e M. N. Rothbard (eds.), A New History of Leviathan, New York, 1972.
[28] Cf. Badie e Birnbaum, The Sociology of the State, Chicago, 1983.
[29] Cf. L. v. Mises, Omnipotent Government, New Haven, 1944; F. A. Hayek, The Road to Serfdom, Chicago, 1956; W. Hock, Deutscher Antikapitalismus, Frankfurt/M, 1960.
[30] Cf. um dos principais representantes da “Escola Historicista” alemã, o “Kathedersozialisr’ e apologista do nazismo W. Sombart, Deutscher Sozialimus, Berlin, 1934.
[31] Cf. W. Fischer, Die Wirtschaftspolitik Deutschlands 1918-45, Hannover, 1961; W. Treue,Wirtschaftsgeschichte der Neuzeit, vol. 2, Stuttgart, 1973; R. A. Brady, “Modernized Cameralism in the Third Reich: The Case of the National Industry Group”, in: M. I. Goldman (ed.), Comparative Economic Systems, New York, 1971.
[32] A renda bruta média das pessoas empregadas na Alemanha em 1938 (última cifra disponível) era ainda menor do que a de 1927 (em termos absolutos, ou seja, sem considerar a inflação!). Em seguida, Hitler começou a guerra e os recursos foram cada vez mais deslocados para uso militar, de modo que pode-se considerar com segurança que o padrão de vida diminuiu ainda mais e de forma drástica de 1939 em diante. Cf. Statistisches Jahrbuch fuer die BRD, 1960, p.542; cf. também V. Trivanovitch, Economic Development of Germany Under National Socialism, New York, 1937, p.44.