Thursday, November 21, 2024
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Uma sociedade de criminosos

Recentemente, uma amiga queixou-se sobre um surto de arrombamentos que estavam ocorrendo na vizinhança de sua recém-comprada casa.  Uma casa mais à frente da dela havia sido arrombada há algumas semanas e, não muito tempo depois, foi a vez da casa ao lado.  Nesta, os ladrões levaram uma enorme televisão de plasma e um laptop, sendo que eles aparentemente saíram andando da casa com a mercadoria à plena luz do dia.

Minha amiga estava evidentemente indignada com toda essa roubalheira — exatamente como deveria — e parecia ter dificuldades para entender como os ladrões tiveram a petulância de arrombar uma casa e levar aquilo que não lhes pertencia.  “Como ousam?!”, disse ela.  “O que os fazem pensar que têm o direito de fazer isso?”

É uma pergunta justa.  O que os fazem pensar que têm o direito de fazer isso?  Bom, talvez eles saibam que não têm o direito de fazer isso, mas o fazem assim mesmo porque seu desejo de obter o imerecido (aquilo que não foi ganho pelo trabalho) é maior do que seu respeito pelos direitos de propriedade de terceiros.  Talvez os ladrões racionalizaram seu crime com base em alguma suposta necessidade; necessidade essa produzida — sem dúvida — pelo fato de terem sido “marginalizados” pela sociedade.

Sobre as atitudes desses ladrões em particular, podemos apenas especular.  Porém, em um sentido mais amplo, podemos perguntar: Por que será que um criminoso sente-se confortável tomando uma propriedade que ele não adquiriu por merecimento próprio?

Após ouvir o relato de minha amiga, concordei plenamente que os ladrões que haviam pilhado seus vizinhos (tinha de ser mais de um para poder carregar o grande aparelho de TV) não tinham nenhum direito de obter essa propriedade que não lhes pertencia, e que ela tinha toda razão de estar brava.  Entretanto, por estar sempre em alerta à espera de uma oportunidade para disseminar o pensamento libertário, também aproveitei para informá-la que a conduta dos ladrões em nada diferia fundamentalmente da conduta da maioria das pessoas da sociedade, as quais rotineiramente defendem ou aceitam o roubo de propriedade que não é delas.

Ah, mas é claro que não!  É claro que somente um salafrário dos mais torpes poderia achar que tem o direito de roubar a propriedade dos outros!  Nenhum cidadão “cumpridor das leis” iria aceitar tal coisa!  Iria?

Bem, vejamos: suponha que um indivíduo tenha a grande perspicácia de perceber que algumas pessoas não têm tanto dinheiro quanto as outras, e que seria bom se elas tivessem mais dinheiro do que têm atualmente.  Para remediar esse problema, o iluminado propõe que um grupo de generosos benfeitores crie uma agência cuja função seja tomar forçosamente o dinheiro de terceiros sem a permissão destes (ou seja, roubá-los), e dar uma parte do roubo para aquelas pessoas que consideram “necessitadas”.  O grupo, então, utilizaria o que sobrou do roubo para:

1) deturpar a moral dos recebedores, fazendo-os crer que têm um direito adquirido sobre esse dinheiro roubado;

2) financiar propagandas que mostram a todos o ótimo trabalho que a agência está fazendo; e

3) gradualmente construir um pequeno e lucrativo império para a equipe de funcionários no comando da agência, que têm o sucesso dos grandes bandidos — ganhando muito mais do que ganhariam em outros empregos, ao mesmo tempo em que são enaltecidos pelo seu “serviço público”.

As pessoas ficam indignadas com esse arranjo?  Elas chamam a polícia para denunciar essa extorsão?  Elas formam comitivas para ir aos gabinetes de seus representantes eleitos e exigir que essa abominável agência seja abolida?  Não, elas não fazem nada disso.  Na realidade, ocorre exatamente o oposto: as pessoas se aglomeram e se atropelam para dizer o quanto apóiam esse sistema, tomando o máximo de cuidado para não deixar escapar nenhuma crítica a qualquer excesso que porventura tal sistema possa cometer, como que para deixar claro que elas realmente se “importam” com “os pobres”.

Os exemplos da abundância desse tipo de criminalidade e do abundante apoio aos — ou pelo menos condescendência para com — programas que praticam tais crimes são extremamente extensos.  O fato é que, nesse ambiente, não é de se surpreender que os ladrões tenham poucos escrúpulos e não hesitem em tomar propriedade que não lhes pertence.  A razão para esse sentimento é provavelmente muito similar à razão por que a vasta maioria das pessoas em nossa sociedade acha que tem direito sobre a propriedade dos outros: vivemos em uma sociedade de criminosos.

Mas como assim?  A maioria das pessoas não obedece às leis?  Elas não pagam seus impostos e dirigem apenas quando têm carteira de motorista, como qualquer bom cidadão “cumpridor da lei”?  Elas não obedecem às regulamentações trabalhistas, às regulamentações ambientais, aos regulamentos tributários, e a todas as outras coisas que seus representantes eleitos mandam?

Bom, sim — na medida em que é possível cumprir com esse enorme e frequentemente vago ou contraditório emaranhado de regras, a maioria das pessoas o faz.  Mas isso não é obediência à lei; isso é obediência àlegislação.  Trata-se meramente de obedecer aos decretos dos detentores do poder.

Com efeito, as únicas regras de conduta que podem adequadamente ser chamadas de “leis” são as regras das leis naturais — aquelas regras de conduta objetivas que são tidas como moralmente adequadas em decorrência da natureza do homem.[1]  Essas regras consistem essencialmente no princípio da não agressão e nas regras da apropriação original e da livre troca de propriedade, que são a base da teoria libertária da justiça.  Em sua discussão sobre a lei natural, o grande teórico jurídico Lysander Spooner apresenta as condições desta lei:

As condições são simplesmente essas: primeiro, que cada homem deve fazer, em relação a todos os outros, tudo o que a justiça requer que ele faça; como, por exemplo, que ele deve pagar suas dívidas, que ele deve devolver ao dono a propriedade que foi roubada deste ou que lhe foi tomada emprestada, e que ele deve reparar qualquer dano que porventura possa ter causado para a pessoa ou propriedade de outro.  A segunda condição é que cada homem deve se abster de fazer ao outro qualquer coisa que a justiça o proíba de fazer; como, por exemplo, que ele deve se abster de praticar furto, roubo, incêndio criminoso, assassinato ou qualquer outro crime contra a pessoa ou a propriedade de outro.[2]

Portanto, como as pessoas se saem quando avaliadas em sua conduta em relação a esta lei — em relação à lei?  Nada bem.  Aliás, quando se avalia sob essa perspectiva, a imensa maioria das pessoas aprova atos criminosos.

As pessoas frequentemente se surpreendem com a mentalidade dos “criminosos comuns” (ou seja, criminosos da variedade genuinamente reconhecida como criminosa) porque elas acham que a atitude desses criminosos — de achar que podem adquirir bens imerecidos, que não foram ganhos por meio do trabalho — é um defeito relativamente escasso.  Mas não é.  Com efeito, a vasta maioria dos membros do público se sente perfeitamente no direito de arrebatar a propriedade de terceiros.  Eles exigem que as propriedades de terceiros sejam confiscadas por meio do sistema tributário e de outras “políticas públicas”, ou que se interfira forçosamente nelas por meio de “regulamentações” rotineiras.

Mesmo que eles não sejam os beneficiários líquidos nesse sistema, mesmo que eles entreguem em impostos muito mais do que jamais receberão desse esquema extorsivo, é provável que eles ainda assim apóiem várias “políticas públicas” que, na prática, equivalem a um roubo ou a uma violação da pessoa e da propriedade de terceiros.

E como eles veem aquelas pessoas que discordam dessa mentalidade do direito adquirido, que discordam dessa avidez por coerção e dessa criminalidade em massa?  Ora, tais pessoas são evidentemente insensíveis e desapiedadas!  Elas não possuem consciência social!  Elas são ideólogas perigosas e extremistas sem qualquer espírito prático!

Que Deus não permita que elas jamais venham a exercer qualquer tipo de influência, por mais marginal que seja, sobre as “políticas públicas”.  Claro, esses extremistas podem ter alguma razão em relação a determinados excessos pontuais dos privilégios concedidos pela máquina estatal.  Eles podem nos ajudar a controlar alguns dos problemas criados por políticos e burocratas mais descontrolados.  Porém na maioria das vezes eles exageram muito!  Nada de impostos? Nada de regulamentações?  Direitos de propriedade invioláveis?  Ora, isso é loucura!

Mas, ao contrário, isso não é loucura alguma.  Pois a única diferença entre o ladrão “reconhecido como criminoso” e o membro da máquina estatal é que o ladrão faz ele próprio seu trabalho sujo.  Ele não obtém aparelhos de televisão, aparelhos de som e jóias por meio daquela modalidade de roubo conhecida como “política pública”.  Ao invés de recrutar políticos burocratas para roubar a propriedade alheia em benefício próprio, ele os poupa desse trabalho e faz o serviço sujo por conta própria.

Ao fazer isso, ele não pode justificar seus crimes recorrendo a argumentações baseadas em processos democráticos, mandatos políticos e outras noções estatistas.  É claro que ele pode ter suas próprias explicações racionais, mas estas serão muito mais tíbias do que aquela fervorosa avidez pelo imerecido que é exibida no âmbito político por lobistas, políticos e jornalistas estatistas.  Seja como for, não é de se surpreender que ele se sinta no direito de tomar a propriedade que não lhe pertence.  Essa é a menor das diferenças entre ele e os membros “comuns” da máquina estatal.

A explicação mais comum para aqueles crimes cometidos sob o manto das “políticas públicas” é que essas políticas são a “vontade do povo”, expressada por meio de seus representantes eleitos.  Porém, ainda que esse processo pudesse realmente determinar alguma expressão agregada de desejo popular  — e isso é extremamente duvidoso —, não pode haver algo como um grupo de pessoas com a capacidade de mudar o conteúdo da lei ou de retirar por meio do voto os direitos das pessoas.  Aqui podemos novamente recorrer a Spooner, que observa que

Se a justiça é um princípio natural, então ela é necessariamente um princípio imutável; e, assim como a lei da gravidade, as leis da ótica, os princípios da matemática ou qualquer outra lei natural ou princípio qualquer, a justiça não pode ser alterada por qualquer poder inferior àquele que a estabeleceu.  E todas as tentativas ou pretensões, da parte de qualquer homem ou conjunto de homens — estejam eles chamando a si próprios de governo ou de qualquer outro nome —, de estabelecer suas próprias ordens, vontades, prazeres ou critérios, no lugar da justiça, como uma regra de conduta para todos os seres humanos, representaria um absurdo, uma usurpação e uma tirana tão grandes quanto seriam suas tentativas de estabelecer suas próprias ordens, vontades, prazeres ou critérios no lugar de todas e quaisquer leis físicas, mentais e morais do universo.[3]

O que então quero dizer quando afirmo que vivemos em uma sociedade de criminosos?  Simplesmente estou querendo dizer que a vasta maioria das pessoas em nossa sociedade apóia atos criminosos cometidos contra terceiros.  Esses supostos cidadãos cumpridores da lei apóiam o roubo, a agressão, a transgressão e, algumas vezes, até o assassinato quando esses crimes são camuflados sob o respeitável manto das “políticas públicas”.  O desprezo com que eles veem os criminosos comuns é genuinamente risível quando se examina a criminalidade em massa que eles apóiam.

É claro que isso não quer dizer que todos os membros do público são moralmente equivalentes a ladrões ou outros criminosos.  Sua culpabilidade moral pode ser em certa medida descontada quando se sabe que eles estão rotineiramente submetidos a essa verdadeira enxurrada de propaganda estatista que nos cerca, algo que os ilude e confunde, e os estimula a acreditarem que têm o direito de decidir como os outros devem usar suas propriedades.

De fato podem existir alguns membros do público que ainda não perceberam a conexão entre coerção e “política pública”, e que estão completamente alheios ao fato de que há um paralelo entre essas políticas e as ações dos “criminosos comuns”.  Se esse é um erro honesto, então trata-se de um erro de conhecimento, e não de moralidade.  Entretanto, dificilmente pode-se afirmar que esse erro de conhecimento é amplamente disperso — na maioria dos casos, os membros do público estão bem cientes da natureza coerciva das políticas que defendem.  Ademais, o fato de não serem eles que “vão a campo” e fazem a pilhagem por conta própria, como faz um criminoso comum, não pode ser utilizado como desculpa para suavizar a natureza do delito — como se o fato de que o roubo lhes foi “dado” por seus senhores benevolentes abrandasse a transgressão.  Pois é exatamente essa grande massa do público que apóia o intenso e constante processo de “redistribuição” que ocorre na sociedade.

A atitude do público em relação ao “criminoso comum” gera uma óbvia pergunta.  Qual seria a possível razão que você teria para reclamar das ações desses criminosos quando você próprio apóia ou mesmo defende ações criminosas em escala muito maior?

Há uma lição em tudo isso para os libertários.  Se quisermos ter êxito ao apresentar nossas ideias para um grande público, precisamos ter em mente o fato de que as pessoas comuns rotineiramente apóiam o roubo e outros crimes cometidos pelo estado, mas ficam perplexas quando veem o mesmo crime sendo cometido por “criminosos comuns” (que na realidade são o tipo mais incomum dos bandidos).  Os defensores de uma sociedade genuinamente baseada na lei devem se esforçar para chamar a atenção para a contradição inerente a essa atitude.

Devemos alertar para os paralelos entre as “políticas públicas” do estado e os atos dos “criminosos comuns”.  Devemos aprender a apresentar ao público as políticas estatistas do jeito que elas são — criminalidade em larga escala.  E devemos aprender a convencer as pessoas de que o apoio delas a essas políticas é o equivalente a apoiar o crime.

Ao fazer isso, não basta apenas falar sobre livre mercado, desregulamentação, não intervencionismo etc. — isso seria o equivalente a combater os estatistas em seu próprio território, apresentando a questão como um mero confronto entre “políticas públicas” concorrentes.  O real combate, a verdadeira questão que está na raiz dos debates políticos, não envolve escolher entre uma política ou outra — é sobre escolher entre cometer crimes e não cometer crimes.

Com efeito, aquilo que é chamado de “livre mercado” é simplesmente o arranjo em que não há roubos, agressões, esbulhos etc. socialmente sancionados.  Aquilo que é chamado de “desregulamentação” é na realidade apenas a remoção de políticas que autorizam — isto é, que sancionam socialmente — que a pessoa e a propriedade sejam transgredidas.  Aquilo que é chamado de “descentralização do poder” é na realidade simplesmente a quebra de uma grande agência criminosa e sua consequente redução em várias pequenas agências criminosas concorrenciais, com o objetivo último de torná-las suficientemente diminutas e concorrentes (entre si) de modo a nos permitir escapar totalmente de suas garras.

Em suas raízes, a posição libertária é bastante simples e deve ser comunicada dessa forma.  Ela afirma que não se deve permitir que as pessoas cometam crimes contra as outras.  Toda a disputa acerca de livre mercadoversus intervencionismo, capitalismo versus socialismo, regulamentação versus desregulamentação, e assim por diante, é apenas uma forma mascarada de apresentar a dicotomia básica entre uma sociedade de criminosos e uma sociedade de leis.  Esta é a essência da batalha.

Uma batalha entre o livre mercado e seus antípodas, quando apresentada com a roupagem da filosofia política, é uma batalha esotérica.  É uma batalha que pode ser distorcida e adulterada.  Já uma batalha objetiva e clara entre criminalidade e lei é mais fácil de ser entendida e muito mais poderosa.  Os libertários não deveriam se esquivar de apresentar as “questões políticas” como elas verdadeiramente são: um confronto direto e claro entre criminalidade e leis.

Muitos foram intimidados a evitar essa abordagem, doutrinados que foram pela ideia de que essa “linguagem forte” iria assustar as pessoas, ou fazer com que os libertários parecessem exagerados e irracionais.  Mas é exatamente essa confrontação com o fato elementar — a saber, que o libertarianismo apóia uma sociedade de leis —, que é a mais poderosa arma para seus defensores.  Não há nada de errado em dizer às pessoas que tributação é roubo, que regulamentação é transgressão, que leis antidrogas são agressão e roubo, que políticos são criminosos, e que o estado é uma monstruosa agência criminosa.

__________________________________________________________________

Notas

[1]  Uma boa definição da lei natural é apresentada por Edwin Patterson, que a define como

Princípios da conduta humana que são descobertos pela “razão” e que advêm das mais básicas inclinações da natureza humana, e que são absolutos, imutáveis e de validade universal para todas as épocas e lugares.  Essa é a concepção básica da lei natural escolástica… e da maioria dos filósofos da lei natural.  (Patterson, E.W. (1953)Jurisprudence: Men and Ideas of the Law. Foundation Press: Brooklyn, p. 333.)

Este autor não vê a necessidade de colocar aspas na palavra “razão” na definição acima, mas, mesmo assim, se a razão é em si entendida como um conceito objetivo, então essa definição captura a essência da lei natural.  A ideia de lei natural é oposta à doutrina do positivismo jurídico.  Esta última doutrina afirma que as leis são feitas por seres humanos e que a validade das leis não tem necessariamente nenhuma conexão com a ética.  Leitores interessados podem encontrar uma extensa discussão sobre lei natural e a base deontológica para a teoria libertária em Rothbard, Murray N. A Ética da Liberdade.

[2] Spooner, L. (1992) The Lysander Spooner Reader. Fox and Wilkes: San Franc isco, p. 11.

[3] Ibid., Spooner (1992) p. 16.

Ben O'Neill
Ben O'Neill
é professor de estatística na Univesidade New South Wales, em Canberra, Austrália. Já foi também advogado e conselheiro político. Atualmente é membro do Independent Institute, onde ganhou em 2009 o prêmio Sir John Templeton de competição de ensaios.
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