Quando Itamar Franco assumiu interinamente a Presidência da República no dia 29 de dezembro de 1992, imediatamente após a renúncia de Fernando Collor, a inflação acumulada em 12 meses estava em 1.119%. Em 1991, ela havia sido de 472%. Em 1990, de 1.621%. Com o país mergulhado em uma crise política e com a economia em frangalhos, não havia a menor perspectiva entre a população de que houvesse qualquer arrefecimento na inflação de preços.
Também em decorrência da recessão, a arrecadação tributária não era suficiente para cobrir as despesas. Como consequência, o governo apenas ordenava ao Banco Central — que, na época, podia comprar títulos diretamente do Tesouro — que imprimisse o dinheiro necessário para fazer frente às despesas. O resultado era um moto-perpétuo inflacionário.
Eis o gráfico do singelo crescimento da base monetária — variável totalmente sob o controle do Banco Central — durante o governo Collor. (É preciso dividir o gráfico em dois, pois um aumento de 28.380% não cabe em apenas um só gráfico).
Gráfico 1: evolução da base monetária, março de 1990 a julho de 1991
Gráfico 2: evolução da base monetária, julho de 1991 a dezembro de 1992
Tal prática de imprimir dinheiro para fazer frente às despesas governamentais não cobertas por impostos já era tradicional na economia brasileira; porém, no início da década de 1990, ela havia chegado ao ápice. Em abril de 1990, por exemplo, a inflação acumulada em 12 meses foi de 6.821%, recorde até hoje absoluto em nossa história.
Após mais de uma década com inflação de preços anual acima dos 100% — a média de inflação de preços anual entre 1980 e 1992 foi de incríveis 694% —, uma solução definitiva era urgente.
O problema da hiperinflação
Além de toda a distribuição de renda às avessas que a inflação monetária gera — a qual foi a responsável pela explosão da disparidade de renda no Brasil na década de 1980 —, ela também provoca dois problemas adicionais que inviabilizam qualquer chance de crescimento econômico sustentável:
1) A inflação gera uma falsificação contábil que faz com que as empresas sobrestimem seus lucros e, consequentemente, incorram em um involuntário consumo do capital próprio. Isto ocorre porque, durante a hiperinflação, a depreciação dos bens de capital continua sendo computada em termos de seus custos históricos e não em termos de seus reais custos de reposição (necessariamente mais altos). Esta subestimação da depreciação gera uma superestimação dos lucros, o que consequentemente fará com que a empresa consuma um capital que não possui.
2) Adicionalmente, a hiperinflação impossibilita que os empreendedores sejam capazes de antecipar — mesmo que aproximadamente — quais serão os preços dos bens dali a alguns meses. Logo, qualquer investimento de longo prazo se torna inviável. Os empreendedores passam a se concentrar em projetos de curto prazo, projetos visando ao futuro mais imediato — por exemplo, no setor de serviços, nos setores de atacado e varejo, e até mesmo em empreendimentos que lidam com a especulação de vários de tipos de commodities.
Assim, quando o processo de estimativa empreendedorial se torna incapaz de calcular com alguma exatidão quais recursos podem ser empregados lucrativamente em projetos de longo prazo, a estrutura de produção da economia é radicalmente “encurtada” e deixa de estar de acordo com as preferências dos consumidores, tanto presentes quanto futuras. O caos calculacional impera.
Esta situação gera um círculo vicioso. A hiperinflação contrai a estrutura de produção da economia, o que a deixa menos produtiva. Uma economia menos produtiva significa menos produtos no mercado em relação à demanda. Menos produtos no mercado em conjunto com um acentuado aumento da oferta monetária significam preços maiores. Esta contínua inflação monetária exacerba a hiperinflação de preços, a qual contrai ainda mais a estrutura de produção da economia, reiniciando o ciclo.
Daí a baixa qualidade de vida da maioria da população brasileira durante a década de 1980 e na primeira metade da de 1990.
O início
Estava claro, portanto, que esta situação não poderia perdurar. Os velhos paliativos de trocar o nome da moeda e cortar três zeros já haviam se comprovado um redundante fracasso. E não era necessário ser nenhum gênio monetário — tampouco seguidor da Escola Austríaca — para entender que uma hiperinflação contínua e crescente levaria à total destruição do sistema monetário, destruindo por completo a divisão do trabalho (a qual é possibilitada justamente pela existência do dinheiro) e retornando a economia ao estado do escambo.
Vários planos heterodoxos já haviam sido tentados desde meados da década de 1980: Plano Cruzado (I e II) em 1986; Plano Bresser em 1987; Plano Verão em 1988/1989; e Plano Collor (I e II) em 1990 e 1991, respectivamente. Todos envolviam congelamento de preços (alguns deles, cortes de zeros das moedas). O governo congelava os preços, mas continuava imprimindo dinheiro impavidamente, o que significa que os geniais burocratas restringiam a oferta mas estimulavam a demanda. Ao final de cada plano, a inflação de preços ressurgia com vigor redobrado. E ninguém entendia por quê.
Em maio de 1993, partindo para o tudo ou nada, Itamar Franco nomeou Fernando Henrique Cardoso — então Ministro das Relações Exteriores — para o Ministério da Fazenda. Naquele mês, a inflação de preços acumulada em 12 meses já estava em 1.348%.
Por gozar de grande prestígio e por ter reconhecida capacidade intelectual, a indicação de FHC foi recebida com entusiasmo. Vislumbrava-se pela primeira vez alguém com genuína capacidade de apresentar um plano econômico que ao menos reduzisse sensivelmente a inflação.
Embora sempre houvesse admitido não entender nada de economia, Fernando Henrique ao menos possuía bons contatos no mundo acadêmico, principalmente junto a um grupo de economistas da PUC do Rio de Janeiro. E foi a eles que FHC delegou a tarefa de debelar em definitivo a inflação.
A equipe de economistas encarregada desta espinhosa função era composta por Gustavo Franco, Pedro Malan, André Lara Resende, Persio Arida, Edmar Bacha e Winston Fritsch.
O Plano
Embora repleto de jargões técnicos à primeira vista indecifráveis, o Plano Real na verdade era como um livro de John Grisham: uma trama aparentemente complexa encobrindo um enredo totalmente simples. O objetivo da reforma monetária era lançar uma moeda cujo valor fosse, senão atrelado, pelo menos muito próximo ao dólar. Na prática, o objetivo era fazer uma dolarização da economia, mas sem que houvesse uma dolarização de fato, algo que ofenderia nossos brios nacionalistas.
Como iremos ver mais abaixo, fazer uma dolarização da economia — isto é, simplesmente passar a utilizar o dólar como a moeda oficial do país (exatamente como fez o Panamá) — teria sido algo mais eficaz, muito pouco custoso e, principalmente, mais propício à liberdade do fatigado e espoliado povo brasileiro. Porém, tanto por questões nacionalistas quanto por motivos estatais, preferiu-se o caminho mais complexo, que foi a criação e emissão de (mais uma) nova moeda. Afinal, utilizar uma moeda estrangeira significa que o governo não mais teria capacidade de imprimir dinheiro para financiar seus déficits, passando a depender exclusivamente de impostos e empréstimos para cobrir seus gastos. E, como sabemos, um governo só aceita vestir uma camisa-de-força se ela tiver um zíper na frente. Logo, a opção pela criação de (mais) uma moeda foi uma esperta manobra do governo para manter intacto seu poder de imprimir dinheiro, não obstante todos os estragos que já haviam sido causados em decorrência da hiperinflação por ele gerada.
O Plano Real dependia de cinco fatores essenciais:
1) Zerar o déficit público — justamente o fator que gerava a emissão de dinheiro. Para isso, haveria um aumento de cinco pontos percentuais em todos os impostos federais e privatizações de estatais, principalmente dos bancos estaduais;
2) Desindexar a economia — isto é, acabar com as correções automáticas de preços e salários, que eram reajustados automaticamente de acordo com a inflação passada (prática essa determinada por lei). Em termos técnicos, isso ficou conhecido como “acabar com a inércia inflacionária”;
3) Reindexar a economia de acordo com a taxa de câmbio — isto é, fazer com que preços e salários variassem de acordo com o dólar. Na prática, o dólar se tornava o novo indexador.
4) Abrir a economia por meio da redução das tarifas de importação — tudo era válido para combater qualquer escalada preços (bons tempos);
5) Aumentar acentuadamente as reservas internacionais — isto é, o governo deveria comprar dólares continuamente, acumulando-os até o momento da introdução da nova moeda. Quanto mais dólares o governo tivesse em suas reservas, maior seria a confiança dos investidores internacionais na seriedade e na robustez do plano, e menores seriam as chances de um ataque especulativo e de uma fuga de capitais.
Uma vez cumpridas estas cinco medidas, a nova moeda nasceria com um valor praticamente igual ao dólar.
As etapas
No dia 1º de agosto de 1993, houve a primeira medida, embora de efeito apenas cosmético: mudou-se, mais uma vez, o nome da moeda, e cortou-se três zeros. A moeda deixava de se chamar Cruzeiro e passava a se chamar Cruzeiro Real. A inflação de preços continuava em forte ascensão: seria de 33% só no mês de agosto e de 1.730% no acumulado de 12 meses.
Esta ascensão inflacionária decorria do fato de que, além de imprimir dinheiro para saldar o seu déficit, o governo também imprimia para comprar dólares, algo que ele continuaria fazendo até o dia da introdução do real.
No dia 7 de dezembro de 1993, finalmente foi apresentado o plano de estabilização especificando os cinco itens elencados acima. Veja aqui um curto vídeo de uma reportagem do Jornal Nacional.
A mudança seguinte — e a mais importante — ocorreria só em 28 de fevereiro de 1994: a introdução da URV, Unidade Real de Valor. (A inflação de fevereiro foi de 40,3% e a acumulada em 12 meses já estava em 3.025%).
A URV foi apenas um nome técnico tupiniquim para se evitar a palavra ‘dolarização’. Na prática, a URV nada mais era do que a cotação do dólar do dia anterior. A taxa de câmbio do final de cada dia era estabelecida como sendo o valor da URV do dia seguinte. Este valor serviria de indexador para todos os valores da economia. Assim, os bens e serviços precificados em Cruzeiro Real deveriam ser divididos pela URV (taxa de câmbio determinada no dia anterior) para se encontrar os preços em Real.
Veja aqui um exemplo aleatório: no dia 28 de março de 1994, a URV foi determinada em CR$895,03. Isto significa que, no dia 29 de março, os preços em Cruzeiro Real deveriam ser divididos por 895,03 para se obter o preço em Real. Este processo era repetido diariamente. Dizia-se, assim, que a economia estava “urvizada“.
O objetivo desta indexação em URV era, paradoxalmente, o de desindexar toda a economia, apagando aquilo que era chamado de “memória inflacionária”. Todos os contratos e negociações salariais deveriam ser urvizados. A intenção era fazer com que, no dia da transição do Cruzeiro Real para o Real (a moeda só entraria em circulação no dia 1º de julho), os preços fossem exatamente aqueles do dia anterior, de modo a não gerar sobressaltos e nem confusão. Veja aqui uma curta reportagem do Jornal Nacional, ainda em junho, ensinando as pessoas a como fazer esta conta básica, já as preparando para o dia da transição.
Finalmente, no dia 29 de junho de 1994, uma quarta-feira, a taxa de câmbio encerrou o dia com o dólar valendo CR$2.750,00. Portanto, no dia 30 de junho, quinta-feira, todos os valores em Cruzeiro Real deveriam ser divididos por 2.750 para se obter os valores em Real. Todas as contas bancárias, todas as aplicações e investimentos foram automaticamente convertidos em Real. CR$2.750 foi, portanto, a paridade estabelecida entre o Cruzeiro Real e o Real. Morria o Cruzeiro Real e, na sexta-feira, dia 1º de julho, nascia o Real, valendo exatamente 1 dólar (pelo menos naquela sexta-feira). Toda a base monetária foi trocada de acordo com esta paridade de CR$2.750,00 para cada R$1,00. Quem estivesse em posse de cédulas de Cruzeiro Real deveria trocá-las nos bancos por cédulas e moedas de Real.
Em junho de 1994, a inflação de preços foi de 47,43% e a inflação acumulada em 12 meses foi de 4.922%.
Alguns gráficos
A seguir, veja o gráfico da variação da base monetária desde 1º de agosto de 1993, quando surgiu o Cruzeiro Real, até 30 de junho de 1994, quando ele morreu. Em menos de um ano de existência, ela aumentou 3.100%.
Gráfico 3: evolução da base monetária do Cruzeiro Real, de agosto de 1993 a junho de 1994
Este aumento foi majoritariamente para a compra de dólares para se acumular reservas internacionais. Veja abaixo a cotação diária do dólar para este mesmo período. Como era de se imaginar, observe a incrível desvalorização ocorrida no período, decorrente desta enorme impressão de dinheiro.
Gráfico 4: taxa de câmbio do Cruzeiro Real, de 1º agosto de 1993 a 29 de junho de 1994.
Agora, o gráfico da variação das reservas internacionais desde janeiro de 1980. Observe que elas começaram a crescer em definitivo a partir do final de 1991, sob a gestão de Marcílio Marques Moreira no Ministério da Fazenda, indicando que já havia um plano esboçado desde aquela data.
Gráfico 5: evolução das reservas internacionais, janeiro de 1980 a junho de 1994
E o gráfico da taxa de inflação acumulada em 12 meses desde 1987. A queda acentuada se deveu ao Plano Collor, que envolveu sequestro de poupança e congelamento de preços e salários. Porém, tão logo os ativos confiscados foram sendo desbloqueados, os preços voltaram a disparar.
Gráfico 6: IPCA acumulado em 12 meses, de janeiro de 1987 a junho de 1994
Transição sem susto
A transição do Cruzeiro Real para o Real, na sexta-feira, 1º de julho de 1994, foi sem susto e sem tumultos. Obviamente, em um país acostumado a confiscos, congelamentos e tabelamentos, houve quem remarcasse os preços de maneira mais “abusada”, justamente tentando se precaver contra estas possíveis surpresas, algo que obviamente irritou o governo. Porém, fora estes incidentes localizados, a transição se deu de maneira suave e tranquila. A inflação de preços, que havia sido de 47,43% em junho, passou para 6,84% em julho, 1,86% em agosto, 1,53% em setembro, 2,62% em outubro, 2,81% em novembro e 1,71% em dezembro.
Câmbio fixo?
Um dos maiores mitos que persistem até hoje é aquele que afirma que o Plano Real baseou-se um uma “âncora cambial” ou em um “câmbio fixo”. Isso é falso. O câmbio nunca foi fixo, sequer por um dia. Já no primeiro dia útil após a transição — segunda-feira, 4 de julho de 1994 — a taxa de câmbio passou a flutuar. A partir daí, seu valor foi sendo determinado ora pelo mercado ora pela pura intervenção do Banco Central. O BACEN se limitava a, diariamente, estabelecer um piso e um teto para a taxa de câmbio — algo tecnicamente chamado de ‘banda cambial’ —, mas estes valores aumentavam diariamente (ver gráfico 7). E assim permaneceu até o “fim” daquilo que se convencionou chamar de “primeira fase” do Plano Real, no dia 13 de janeiro de 1999.
Obviamente, houve períodos de intervenção intensa, principalmente no segundo semestre de 1998 e no início de 1999, quando o BACEN se esforçou — leia-se ‘vendeu reservas internacionais’ — para tentar manter um determinado valor para o câmbio (detalhes mais abaixo). Mas câmbio genuinamente fixo nunca houve. A seguir, um gráfico com as cotações diárias do câmbio, de 1º de julho de 1994 a 12 de janeiro de 1999.
Gráfico 7: taxa de câmbio diária, de 1º de julho de 1994 a 12 de janeiro de 1999
Por que o Real foi aceito
Adeptos da teoria austríaca sabem que uma moeda só é imediatamente aceita após o seu surgimento caso ela já possua um histórico como meio de troca. Se você criar uma moeda de papel hoje, do nada, é muito provável que ninguém irá aceitá-la. Da mesma forma, um país que troque o seu sistema monetário, introduzindo uma nova moeda, pode até ser capaz de fazer — por meio da força, da coerção e das leis de curso forçado — com que seus cidadãos a utilizem; porém, dificilmente conseguirá fazer com que investidores estrangeiros confiem nesta moeda. Tampouco os governos de outros países.
Por isso, caso o Brasil simplesmente trocasse o nome da sua moeda, é bastante provável que ela não fosse levada a sério pela comunidade internacional — principalmente levando-se em conta nosso histórico nada favorável de libertinagem monetária. Logo, apenas a criação de uma nova moeda não seria capaz de fazer com que, logo em seus primeiros meses, ela se apreciasse como o Real se apreciou, indo de uma taxa de câmbio de R$1/US$ para R$0,84/US$. Portanto, qual foi o segredo?
O segredo é aquilo que pode ser chamado de “qualidade da moeda”. A qualidade da moeda é determinada ou pelos ativos que a lastreiam ou pelos ativos pelos quais ela pode ser trocada sob demanda e sem restrição. No caso do Real, o segredo estava justamente no tamanho das reservas internacionais em dólares.
Ao final de julho de 1994, a quantidade de reais em poder do público e em contas-correntes (ou seja, o M1) era de R$10,687 bilhões. Já a quantidade de reservas internacionais era de US$43,09 bilhões.
Isso significa que mesmo se todos os reais em circulação na economia brasileira fossem convertidos em dólares, ainda sobrariam (muitos) dólares. Em outras palavras, na eventualidade de uma crise econômica mundial que assustasse os investidores estrangeiros e os levasse a retirar todos os seus investimentos do Brasil, eles não teriam por que se preocupar em não conseguir converter reais em dólares. Havia dólares sobrando. Foi justamente esta “qualidade do Real” — o fato de estar lastreado abundantemente em dólares — que garantiu a confiança dos investidores, levando à sua imediata apreciação logo após o seu surgimento.
E foi exatamente neste lastro em dólares que o Real manteve boa parte da sua credibilidade desde seu lançamento. Enquanto as reservas internacionais fossem maiores que o M1, os investidores estrangeiros estariam seguros de que não haveria perigo de não conseguirem converter reais em dólares. Mais ainda, eles estariam seguros de que o governo não recorreria — como já fizera várias vezes no passado — às maxidesvalorizarções cambiais para evitar que uma repentina fuga de dólares gerasse um total esgotamento das reservas internacionais.
As reservas em dólares foram toda a base do Plano Real. Daí a importância das compras de dólares iniciadas ainda no final de 1991.
Porém, manter estas reservas internacionais não era fácil, principalmente levando-se em conta que a balança comercial e de serviços (tecnicamente chamada de ‘Transações Correntes’) tornou-se negativa a partir de outubro de 1994 (e assim permaneceu até o fim da “primeira fase” do Plano Real). Dado que havia esta saída de dólares por meio deste déficit nas transações correntes, o país tinha de manter juros elevados para atrair capital externo (via investimentos em títulos do governo, no mercado financeiro e em investimentos diretos; em terminologia contábil, diz-se que esses dólares estão entrando na conta capital e financeira) para mais do que compensar esta saída de dólares.
E esta foi justamente a “mácula” da primeira fase do Plano Real: a necessidade de manter juros altos para atrair dólares e, com isso, manter a confiança da comunidade internacional no Plano. Não bastasse isso, o governo ainda apresentava um déficit orçamentário de aproximadamente 7% do PIB (não havia sequer superávit primário). Tamanha necessidade de financiamento contribuía ainda mais para a elevação dos juros.
Eis um gráfico das taxas de juros determinadas pelo Banco Central para garantir este influxo contínuo de dólares via conta capital.
Gráfico 8: taxa de juros do determinada pelo Banco Central, de 1º julho de 1994 a 31 de dezembro de 1998
Observe a disparada dos juros em outubro de 1997, em decorrência da crise asiática, que gerou uma fuga de capitais ao redor do mundo, e em meados de 1998, quando a primeira fase do Plano Real começou a desabar, pelos motivos que serão vistos logo abaixo.
A boa fase
Como explicado acima, a genuína âncora do Plano Real e da sua estabilidade era o volume de suas reservas internacionais. Enquanto o volume de dólares fosse maior do que o M1, toda e qualquer conversão de reais em dólares estava garantida, o que trazia tranquilidade aos investidores, que assim não precisavam se preocupar com desvalorizações cambiais repentinas para impedir o esgotamento das reservas internacionais.
Enquanto esta estabilidade fosse garantida, o real desfrutaria do status de moeda forte e segura. Justamente para garantir que o volume de reservas internacionais fosse maior que o M1, a expansão monetária era contida. Isso trouxe uma substancial redução na inflação de preços, que caiu de 916% em 1994 para 1,65% em 1998 (o menor valor em toda a história do real). Eis o gráfico da inflação de preços acumulada em 12 meses (a partir de julho de 1995, exatamente um ano após a introdução do real):
Gráfico 9: IPCA acumulado em 12 meses, de julho de 1995 a dezembro de 1998
Para ajudar neste controle da inflação de preços, a economia passou por um processo de modernização. Além da privatização de empresas estatais ineficientes, houve também a extremamente importante privatização de bancos estaduais, genuínas usinas de expansão monetária, pois eram utilizados por seus respectivos governos como fonte fácil e farta de financiamento. Estes bancos operavam praticamente sem lei e sob ordens de seus governos estaduais, criando meios de pagamento a rodo apenas para financiar seus descalabros. Os desvalidos de todo o resto do país pagavam a conta
Os melhores exemplos eram o Banespa e o BANERJ. A dupla Quércia-Brizola punha fogo nessas instituições, fazendo-as conceder empréstimos para apaniguados políticos, para estatais deficitárias e, principalmente, para seus vorazes governos estaduais, ao mesmo tempo em que esses próprios bancos incorriam em déficits vultosos. E quem socorria esses bancos era o Banco Central, que injetava dinheiro neles sempre que necessário, aumentando tanto a base monetária quanto o M1. Não à toa, a inflação só passou a ser menor após esses bancos terem sido tirados da órbita de seus governos estaduais.
Mas a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, o Banco Meridional, o Banco da Amazônia, o Banco do Nordeste, o os bancos estaduais de Santa Catarina, Ceará, Goiás, Pará, Alagoas, Minas Gerais, Mato Grosso, Bahia, Acre e Maranhão não ficavam atrás. Todos aprontavam e recebiam vultosas injeções do Banco Central. Os bancos estaduais não tinham de prestar contas a ninguém. Sua gerência política fazia a farra com os recursos, o Banco Central imprimia o dinheiro para cobrir a farra e o resto da população sofria as consequências da libertinagem.
Toda esta depravação, felizmente, foi interrompida durante a segunda metade da década de 1990. Sem esta medida, dificilmente a inflação de preços cairia para menos de um dígito.
Por que o Plano Real acabou
As coisas vinham aparentemente bem até o segundo semestre de 1998, quando começaram a degringolar. E no dia 13 de janeiro de 1999, o Plano Real, ao menos como havia sido originalmente concebido, acabou.
Por quê?
O gráfico a seguir mostra a variação das reservas internacionais e a variação do M1, de julho de 1994 a janeiro de 1999.
Gráfico 10: reservas internacionais (linha azul, eixo da direita) vs. M1 (linha vermelha, eixo da esquerda)
Observe que, enquanto as reservas internacionais (linha azul) se mantiveram acima do M1 (linha vermelha), a situação se manteve relativamente tranquila.
Já no segundo semestre de 1997, as reservas caíram US$10 bilhões (de US$62,5 para US$52,5 bilhões) em decorrência da crise asiática. Consequentemente, o Banco Central deu uma pancada nos juros, elevando-os de 18,75% para 46%, como mostrado no gráfico 8. Isso não apenas estancou a fuga de capitais, como ainda foi eficaz em atrair um volume ainda maior de capital estrangeiro. Em abril de 1998, o país atingiria um volume até então recorde de reservas internacionais: US$74,656 bilhões, com um M1 na casa dos R$ 42 bilhões. O câmbio, como mostra o gráfico 7, estava por volta de R$ 1,13. Ou seja, mesmo se todo o M1 fosse convertido em dólares, ainda sobraria uma enormidade de reservas internacionais. Logo, o cenário parecia tranquilo.
Até que no dia 17 de agosto de 1998, a coisa voltou a degringolar. A Rússia entrou em crise financeira, e o governo russo anunciou uma forte desvalorização do rublo seguida de uma moratória. Adicionalmente, a retomada dos confrontos na Chechênia e o início de uma nova guerra entre os separatistas e o governo russo pioraram ainda mais o humor dos investidores estrangeiros, que ainda estavam abalados pela crise asiática. Houve uma maciça fuga para o dólar.
Em julho, as reservas internacionais do Brasil estavam em US$70,2 bilhões. Em novembro, elas já haviam despencado para US$41,2 bilhões. E no início de janeiro de 1999, continuaram caindo para US$36 bilhões. Simultaneamente, o M1 havia crescido de R$42 bilhões para R$49 bilhões.
Por que as reservas internacionais despencaram assim tão maciçamente? Porque o Banco Central queria impedir de qualquer maneira a inevitável apreciação do dólar, ainda que ela fosse apenas momentânea. A explicação é a seguinte:
A crise asiática no segundo semestre de 1997 havia gerado fortes desvalorizações no baht tailandês, no novo dólar taiwanês, na rúpia indonésia, no ringgit malaio, no won sul-coreano, no peso filipino e no dólar cingapuriano. O dólar de Hong Kong, que opera sob um Currency Board, conseguiu manter sua taxa de câmbio intacta.
Com a crise russa, um ano depois, Hong Kong voltou a ser atacada por especuladores. As autoridades monetárias do país venderam, em duas semanas, US$15 bilhões de suas reservas de US$96,5 bilhões. A âncora cambial se manteve. Com isso, o Brasil se tornou a bola da vez. Especuladores e investidores desconfiavam que o Banco Central não fosse capaz de manter sua política de venda de dólares a fim de manter o câmbio relativamente inalterado (na Ásia, apenas Hong Kong havia obtido sucesso). O crescente endividamento do governo prenunciava calotes. Temerosos quanto a este calote e quanto a uma iminente desvalorização do real, investidores estrangeiros começaram a tirar seus dólares do Brasil. Paralelamente, os especuladores também atacaram.
Durante todo este período de grande demanda por dólares, houve obviamente uma forte tendência de valorização da moeda americana, algo que, deixada à lei da oferta e da demanda, poderia mandar o câmbio para valores “indesejados” pelo governo. Ato contínuo, para evitar esta desvalorização do real, o Banco Central vendeu maciçamente os dólares de suas reservas internacionais, justamente para impedir essa valorização da moeda americana. US$34 bilhões foram queimados apenas para evitar que o câmbio se alterasse mais acentuadamente (algo nada bom às vésperas de uma eleição presidencial). Daí a redução de US$70,2 bilhões para US$36 bilhões de dólares nas reservas internacionais em menos de seis meses. E o gráfico 7 mostra que o Banco Central obteve êxito: até o final de 1998, a trajetória de valorização do dólar se manteve exatamente dentro da tendência histórica.
Porém, tal política obviamente era insustentável. Chegaria um momento em que as reservas internacionais estariam em um ponto crítico. Se a tendência se mantivesse, elas poderiam ser totalmente aniquiladas. Por outro lado, caso o BACEN nada tivesse feito, o dólar realmente se valorizaria acentuadamente. De novo, em época eleição presidencial, isto não seria tolerável.
Até que, no dia 13 de janeiro de 1999, com as reservas na metade de onde estavam em abril de 1998, o Banco Central simplesmente desistiu de vender dólares para segurar o câmbio. Simplesmente deixou que ele flutuasse.
Veja o completo histórico cambial do real.
Gráfico 11: taxa de câmbio diária, de 1º de julho de 1994 a 29 de junho de 2012
A segunda fase do real
O Plano Real original, portanto, acabou no dia 13 de janeiro de 1999. Dali em diante, foi adotado o famoso tripé macroeconômico que conhecemos: câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário. Nenhum destes conceitos existia no Plano Real.
Ao menos em termos de inflação de preços, é muito difícil dizer que o atual arranjo, no qual o Banco Central tem total liberdade para imprimir dinheiro, seja superior ao arranjo anterior, no qual, embora também houvesse liberdade para se imprimir dinheiro, o BACEN ao menos tinha de se preocupar com as reservas internacionais e com a taxa de câmbio.
Veja a evolução da inflação de preços acumulada em 12 meses. Ao passo que havia uma nítida tendência de queda durante a primeira fase do real, a coisa desandou bastante na segunda fase.
Gráfico 12: IPCA acumulado em 12 meses, de janeiro de 1996 a maio de 2012
Durante o Plano Real, a menor taxa de inflação de preços obtida foi de 1,65%. Na segunda fase do real, foi de 3%.
Adicionalmente, o atual arranjo monetário é mais propício à formação de bolhas e ciclos econômicos, justamente pela maior liberdade do Banco Central em imprimir dinheiro e por ele poder manipular os juros sem, ao menos em teoria, ter de levar em conta qual será o efeito na taxa de câmbio.
O que poderia ter sido feito
O processo de transição para o real, com a implementação da URV, foi muito bem feito. Somente o fato de não ter havido congelamentos, confiscos e tabelamentos já torna o Plano Real merecedor de grandes elogios.
No entanto, o inevitável desejo de se criar uma nova moeda própria subtrai muito do brilhantismo do plano. Se, no dia 30 de junho de 1994, todas as cédulas de Cruzeiro Real, bem como todos os depósitos em conta-corrente, fossem simplesmente convertidos em dólar (e havia dólares de sobra para isso, como ilustrado no gráfico 10), de modo que a moeda americana se tornasse a moeda corrente do Brasil, a situação teria sido bastante diferente.
Para começar, não teria havido maiores confusões na precificação de bens, serviços e salários, pois os próprios valores destes nos EUA já nos serviriam de base. Adicionalmente, não haveria motivos para reclamações sobre taxas de câmbio sobrevalorizadas. Indústrias que quisessem exportar mais teriam apenas de reduzir seus preços. Não haveria alternativas artificiais. Não haveria como o governo selecionar vencedores e perdedores. Não haveria como o setor exportador fazer lobby para manipulações na taxa de câmbio.
Do ponto de vista da inflação de preços, também certamente estaríamos, até hoje, em melhor situação. A oferta monetária no Brasil — isto é, a oferta de dólares — iria variar de acordo com a demanda dos brasileiros por moeda. Não haveria uma política monetária doméstica: a oferta de dólares iria variar automaticamente de acordo com as variações no balanço de pagamentos (transações correntes mais conta capital e financeira). Se houvesse um aumento na demanda por dólares, isto faria com que empresas e famílias gastassem menos, o que reduziria a demanda por bens e serviços não monetários. Seus preços inevitavelmente cairiam, o que tornariam suas exportações mais atraentes no mercado internacional. Este aumento nas exportações geraria um superávit no balanço de pagamentos, trazendo mais dólares para o Brasil. Este aumento na oferta monetária faria com que os preços voltassem a subir, restaurando o equilíbrio inicial no balanço de pagamentos. E se houvesse uma redução na demanda por dólares, de modo que os brasileiros aumentassem seus gastos, os preços subiriam, as importações ficariam mais atraentes, dólares seriam enviados para fora, isto aumentaria a demanda por dólares e reduziria os gastos dos brasileiros, os preços voltariam a cair e o equilíbrio de antes seria restaurado. É justamente assim que uma economia funciona também sob um padrão-ouro.
Adicionalmente, houvéssemos nós adotado o dólar, que é a moeda internacional de troca, certamente teríamos atraído muito mais investimentos estrangeiros, os quais não precisariam se preocupar com desvalorizações cambiais. Consequentemente, os investidores não teriam de planejar fugas repentinas. Ataques especulativos como os de 1997 e 1998 não teriam ocorrido.
Outro fator importante é a taxa de juros: operando diretamente com dólares — e não com uma moeda dependente do dólar —, não haveria necessidade de se elevar artificialmente os juros apenas para se manter uma elevada reserva de dólares. Sem estes juros artificialmente elevados — que restringem os investimentos —, a economia poderia ter se desenvolvido muito mais.
Os gastos do governo também seriam bem mais contidos. Sem o poder de imprimir dinheiro para financiar seus gastos, o governo brasileiro só poderia se financiar via impostos e via empréstimos. O primeiro método é impopular, e possui um limite natural de crescimento. E caso recorresse majoritariamente ao segundo método, os juros se tornariam inviáveis, pois o governo simplesmente não teria como ficar pegando empréstimos ad eternum da população. Tal esquema de endividamento contínuo só funciona bem quando o governo detém a impressora de dinheiro, pois assim ele pode imprimir dinheiro não apenas para pagar parte do serviço de sua dívida, como também para manipular os juros da sua própria dívida. Sem essa impressora, o governo é forçado a se manter estritamente dentro de um orçamento. Com gastos governamentais contidos, a expansão do estado é restringida. A liberdade da população aumenta.
Sim, hoje sabemos que o dólar não mais é o que era na década de 1990. Porém, naquela época, só havia esta opção. Ademais, a adoção do dólar não implicaria a obrigatoriedade do seu uso; moedas paralelas deveriam também ser liberadas, sejam elas estatais (como euro, iene, franco suíço, iuane) ou privadas (que poderiam ser emitidas tendo como lastro metais preciosos, por exemplo). A conversão para outra moeda qualquer (tanto de outros países quanto privada) ou para um padrão-ouro seria muito mais fácil neste ambiente. O exemplo do Panamá, que utiliza o dólar como moeda corrente, que não possui Banco Central, e que por isso é o único país da América Latina que nunca passou por uma crise financeira, é uma boa mostra prática desta teoria.
Portanto, a criação do real, embora bem executada, foi uma pirotecnia desnecessária. No final, foi apenas um estratagema que permitiu ao estado manter — agora sem o descontentamento popular gerado pela hiperinflação — sua principal fonte de financiamento, aquela instituição que garante a ininterrupta expansão do seu tamanho e do seu poder: o Banco Central.
Perdemos, em 1994, uma ótima chance de termos nos tornado muito mais livres.