CAPÍTULO III – O SOCIALISMO
1. DEFINIÇÃO DE SOCIALISMO
Definiremos socialismo como todo o sistema de agressão institucional ao livre exercício da função empresarial. Por agressão ou coerção devemos entender toda a violência física ou ameaça de violência física iniciada e exercida sobre o agente por outro ser humano ou grupo de seres humanos. Como consequência e para evitar males maiores, o agente, que, de outra forma, teria exercido livremente a sua função empresarial, vê-se forçado a agir de forma diferente da que teria feito noutras circunstâncias, modificando, assim, o seu comportamento e adequando-o aos fins daquele ou daqueles que exercem alguma coerção sobre ele.[1] Podemos considerar a agressão, assim definida, como a ação anti–humana por excelência, uma vez que a coerção impede que uma pessoa exerça livremente a sua função empresarial, ou seja, que, segundo a definição dada no capítulo anterior, persiga os fins que vai descobrindo, utilizando para isso os meios que, de acordo com a sua informação e os seus conhecimentos, acredite ou considere que se encontram ao seu alcance para os alcançar. Assim, a agressão é um mal, porque impede o ser humano de desenvolver a atividade que lhe é mais própria e que, por essência e de forma mais íntima, lhe corresponde.
A agressão pode ser de dois tipos: sistemática ou institucional, e assistemática ou não institucional. Este segundo tipo de coerção, que tem um caráter disperso, arbitrário e mais difícil de prever, afeta o exercício da empresarialidade na medida em que o agente considere como mais ou menos provável, dentro do contexto de uma ação concreta, a possibilidade de ser violentado por um terceiro no curso da ação e que poderia chegar arrebatar-lhe pela força os resultados da sua própria criatividade empresarial. Embora o aparecimento de surtos assistemáticos de agressão tenha diferentes níveis de gravidade, dependendo das circunstâncias, muito mais grave ainda, se tal for possível, para o exercício coordenado da interação humana é a agressão institucional ou sistemática que, como vimos, é o elemento central da definição de socialismo por nós apresentada. De fato, a coerção institucional caracteriza-se por ser altamente previsível, repetitiva, metódica e organizada.[2] A principal consequência desta agressão sistemática contra a empresarialidade é a de impossibilitar em grande medida e desviar de forma perversa o exercício da empresarialidade em todas as áreas da sociedade em que incida de forma mais efetiva. No gráfico seguinte, representamos a situação tipicamente resultante do exercício da coerção.
Na figura III-1, assumimos que, de forma sistemática e organizada, se impede coercivamente a atuação humana livre de «C» em relação a «A» e «B» numa área concreta da vida social. Este fato representa-se pela barras verticais que separam «C» de «A» e «B». Logo, impedido pela coerção sistemática, sob ameaça de graves males, «C» não terá a possibilidade de descobrir e aproveitar a oportunidade de lucro que surgiria se pudesse interatuar livremente com «B» e com «A». Ora, é muito importante compreender claramente que a agressão não só impede o agente de tirar proveito da oportunidade de lucro, mas também de almejar descobrir a referida oportunidade.[3] Como explicamos no capítulo anterior, a possibilidade de obter lucros funciona como incentivo para descobrir as oportunidades para tal. Por isso, se determinada área da vida social se encontra restringida pela coerção sistemática, os agentes tendem a se adaptar à referida situação, dando-a como adquirida, e, assim, não chegam sequer a criar, descobrir ou compreender as oportunidades latentes de lucro. Representamos esta situação no nosso gráfico colocando uma cruz sobre a lâmpada, que, de acordo com a nossa convenção, indica o ato criativo de descoberta empresarial pura.
Logicamente, se a agressão incidir sistematicamente em determinada área social e, como consequência, os agentes não puderem exercer a empresarialidade nessa área, não se produzirá nenhum dos outros efeitos típicos do ato empresarial que analisamos no capítulo anterior. De fato, em primeiro lugar, não será criada informação nova, nem transmitida de uns agentes para outros, e, em segundo lugar, não se verificará o necessário ajuste nos casos de descoordenação social, o que ainda é mais preocupante. E, na verdade, não sendo permitido o livre aproveitamento das oportunidades de lucro, não existirá o incentivo necessário para que os agente percebam as situações de desajuste ou descoordenação social que vão surgindo. Em suma, não será criada informação, a informação não será transmitida de uns agentes para outros e os diferentes seres humanos não aprenderão a disciplinar o seu comportamento em função dos seus pares.
Assim, na Figura III-1, vemos que, por «C» não poder exercer a função empresarial, o processo social se mantém continuamente descoordenado: «A» não pode perseguir o fim «Y» por falta de um recurso que «B» tem em abundância. Como não tem o que fazer com este recurso, «B» dilapida-o e não o utiliza corretamente, sem saber que existe um «A» que precisa dele com urgência. De acordo com a nossa análise, podemos, então, concluir que o principal efeito do socialismo, tal como o definimos, é o de impedir a atuação das forças coordenadas que permitem a vida em sociedade. Significa isto que os proponentes do socialismo advogam por uma sociedade caótica ou descoordenada? Pelo contrário, salvo raras exceções, os proponentes do ideal socialista defendem-no porque, tácita ou explicitamente, creem ou supõem que o sistema de coordenação social não só não será perturbado pela existência da agressão institucional e sistemática que preconizam, como, pelo contrário, será muito mais eficaz, uma vez que a coerção sistemática é exercida por um órgão diretor que acreditam ser dotado de juízos e conhecimentos (tanto quanto aos fins como quanto aos meios) quantitativa e qualitativamente muito melhores do que os dos agentes alvo de coerção. A partir desta perspectiva, podemos agora completar a definição de socialismo dada no início deste ponto afirmando que socialismo é toda a coerção ou agressão sistemática e institucional que restringe o livre exercício da função empresarial em determinada área social e que é exercida por um órgão diretor que se responsabiliza pelas necessárias tarefas de coordenação social nessa área. No próximo subcapítulo, iremos analisar até que ponto o socialismo, tal como o acabamos de definir, é ou não um erro intelectual.
2. O SOCIALISMO COMO ERRO INTELECTUAL
No capítulo anterior, vimos que a vida social era possível porque os indivíduos, espontaneamente e sem perceberem, aprendiam a modificar o seu comportamento de forma a adequá-lo às necessidades dos demais. Este processo inconsciente de aprendizagem é o resultado natural do exercício da função empresarial por parte do ser humano. Assim, todas as pessoas, ao interagirem com outras, iniciam espontaneamente um processo de ajuste ou coordenação no qual continuamente se cria, descobre e transmite informação nova — tácita, prática e dispersa — de umas mentes para as outras. O socialismo consiste essencialmente numa agressão institucional contra o livre exercício da ação humana ou função empresarial, pelo que o problema que se coloca é o de saber se é possível que este mecanismo coercivo permita o processo de ajuste e de coordenação das condutas dos diferentes seres humanos, umas em função das outras, processo esse que é imprescindível para a vida em sociedade; tudo isto num contexto de constante descoberta e criação de informação prática nova que possibilite o avanço e desenvolvimento da civilização. O ideal do socialismo é, pois, altamente arrojado e ambicioso,[4] uma vez que envolve a crença de que não só o mecanismo de criatividade, coordenação e ajuste social poderá ser realizado pelo órgão diretor que exerce institucionalmente a coerção na área social relevante, mas também de que o referido ajuste poderá até ser melhorado através de tal procedimento coercivo.
Na Figura III-2, representamos de forma esquemática o conceito de socialismo tal como o definimos. Na parte «inferior» da figura, encontram-se os seres humanos, dotados de conhecimento ou informação prática, que, por isso, tentam interatuar livremente uns com os outros, ainda que, em determinadas áreas, tal interação não seja possível devido à existência de coerção institucional. Esta coerção é representada por meio das barras verticais que separam os bonecos palito de cada grupo de três. No nível superior, representamos oórgão diretor, que exerce institucionalmente a coerção em determinadas áreas da vida social.[5] As flechas verticais emanadas dos bonecos palito e apontadas para a esquerda e para a direita de cada grupo de três representam a existência de planos pessoais desajustados, sinal típico de descoordenação social. Os casos de descoordenação não podem ser descobertos e eliminados empresarialmente devido às barreiras impostas pela coerção institucional ao exercício da empresarialidade. As flechas que partem da cabeça do boneco-palito diretor em direção a cada um dos seres humanos indicados no nível mais baixo representam osmandatos coativos nos quais se manifesta a agressão institucional típica do socialismo e através dos quais se pretende obrigar os cidadãos a agir de forma coordenada e a perseguir o fim «F» considerado «justo» peloórgão diretor.
O mandato pode ser definido como toda a instrução ou disposição específica de conteúdo concreto que, independentemente da sua aparência jurídica formal, proíbe, ordena ou obriga as pessoas a efetuar determinadas ações em circunstâncias particulares. O mandato caracteriza-se por não permitir que o ser humano exerça livremente a sua função empresarial em determinada área social. Além disso, os mandatos são obra deliberada do órgão diretor que exerce coerção institucional. Pretende-se através deles forçar todos os agentes a cumprir ou perseguir, não os seus fins particulares, mas os fins daqueles que exercem o governo ou a autoridade.[6]
Ora, o socialismo é um erro intelectual porque não é teoricamente possível que o órgão encarregado de exercer a agressão institucional disponha da informação suficiente para tornar os seus mandatos capazes de coordenar a sociedade. Este simples argumento, que vamos aprofundar detalhadamente, pode ser desenvolvido de pontos de vista diferentes mas complementares: em primeiro lugar, do ponto de vista do conjunto de seres humanos que constituem a sociedade e que são alvo de coerção; em segundo lugar, a partir da perspetiva da organização coerciva que exerce a agressão de forma sistemática. A seguir, vamos analisar separadamente o problema colocado pelo socialismo a partir de cada um destes pontos de vista.
3. A IMPOSSIBILIDADE DO SOCIALISMO DO PONTO DE VISTA DA SOCIEDADE
O argumento «estático»
Recorde-se, em primeiro lugar, que cada um dos seres humanos que interatuam entre si constituindo a sociedade (o denominado nível «inferior» na Figura III-2) possui informação prática e dispersa privada, em grande parte de natureza tácita e, logo, inarticulável. Por isso, é logicamente impossível conceber a sua possível transmissão ao órgão diretor (aquele a que chamamos nível «superior» na Figura III-2). De fato, o volume agregado de informação prática sentida e manejada de forma dispersa por todos os seres humanos a nível individual não só tem uma magnitude tal que não é possível conceber a sua aquisição consciente por parte do órgão diretor, como, mais importante ainda, se encontra disperso na mente de todos os homens em forma de conhecimento tácito não articulável, pelo que não pode ser expresso de modo formal nem explicitamente transmitido a qualquer centro diretor.
No capítulo anterior, vimos que a informação relevante para a vida social é criada e transmitida de forma implícita, descentralizada e dispersa, ou seja, não consciente e deliberada, pelo que os diferentes agentes sociais aprendem a disciplinar o seu comportamento em função do próximo, mas sem entenderem explicitamente que são protagonistas do referido processo de aprendizagem nem de que estão adaptando o seu comportamento ao dos outros seres humanos: apenas têm consciência de que estão agindo, ou seja, tentando atingir os seus fins particulares, utilizando para tal os meios que acreditam ter ao seu alcance. Assim, o conhecimento de que falamos é um conhecimento de que só os seres humanos que atuam em sociedade dispõem e que, pela sua própria natureza, não pode ser transmitido explicitamente a nenhum órgão coercivo central. Uma vez que este conhecimento é imprescindível para a coordenação social dos diferentes comportamentos individuais que tornam possível a sociedade e não pode ser transmitido ao órgão diretor, devido ao seu caráter não articulável, é logicamente absurdo pensar que um sistema socialista possa funcionar.[7]
O argumento «dinâmico»
O socialismo é impossível não só porque a informação que os agentes possuem é pela sua própria natureza explicitamente intransmissível, mas também porque, do ponto de vista dinâmico, os seres humanos, ao exercerem a função empresarial, ou seja, ao agir, criam e descobrem constantemente informação nova. Além disso, dificilmente se poderia transmitir ao órgão diretor a informação ou o conhecimento que ainda está por criar, mas que vai surgindo como resultado do próprio processo social, na medida em que este não seja agredido.
Na Figura III-3, são representados os agentes que vão criando e descobrindo informação nova ao longo do processo social. À medida que o tempo (entendido, como já vimos, no seu sentido subjetivo ou bergsoniano) passa, aqueles que exercem a função empresarial em interação com os seus congêneres vão identificando constantemente novas oportunidades de lucro que tentam aproveitar. Consequentemente, a informação que cada um possui vai se modificando de forma contínua. Isto é representado no gráfico por meio das diferenteslâmpadas que vão acedendo à medida que o tempo passa. Ora, é evidentemente impossível que o órgão diretor obtenha a informação necessária para coordenar a sociedade através de mandatos, não só por esta informação ser, como vimos, de aspecto disperso, privado e não articulável, mas também porque tal informação vai se modificando e surgindo ex nihilo de forma constante à medida em que o tempo passa e sempre que a função empresarial é exercida livremente. Além disso, dificilmente se pode assumir como possível a transmissão ao órgão diretor da informação que em cada momento é imprescindível para coordenar a sociedade, quando tal informação não chegou sequer a ser criada pelo próprio processo empresarial, nem poderá alguma vez ser gerada se tal processo for alvo de coerção institucional.
Assim, por exemplo, quando o dia amanhece com cara de chuva ou com qualquer outra série de alterações meteorológicas, o agricultor compreende que, como consequência da mudança na situação, deve modificar o seu plano no que se refere às tarefas do campo que convém realizar durante esse dia; e isso sem que ele seja capaz de articular formalmente as razões por que toma essa decisão. Não é, portanto, possível transferir essa informação, que é resultado de muitos anos de experiência e de trabalhos realizados no campo, a um hipotético órgão diretor (digamos, por exemplo, a um Ministério da Agricultura na capital) e ficar esperando receber instruções. O mesmo pode ser dito de qualquer outra pessoa que exerça a função empresarial em determinado contexto, seja para decidir se investe ou não em determinada empresa ou setor, se vai comprar ou vender determinados títulos ou ações, se contrata ou não determinadas pessoas para colaborarem no seu trabalho, etc., etc. Podemos, pois, considerar que a informação prática não só se encontra, digamos,encapsulada, no sentido em que não é acessível ao órgão superior que exerce a agressão institucional, como se modifica e gera constantemente novas formas, à medida que o futuro vai sendo criado pelos agentes.
Recordemos finalmente que, à medida em que a coerção socialista for exercida de forma mais contínuo e efetiva, impedirá a livre busca de fins individuais, porque estes não serviram de incentivo e não será possível descobrir ou gerar empresarialmente a informação prática necessária para coordenar a sociedade. O órgão diretor encontra-se, então, perante um inevitável dilema, uma vez que precisa absolutamente da informação que é gerada de forma contínua pelo processo social e que em caso algum poderá obter, uma vez que, se intervém coercivamente neste processo, destrói a capacidade de criação da informação e, se não intervém, também não obtém qualquer informação.
Em suma, podemos concluir que, na perspectiva do processo social, o socialismo é um erro intelectual, uma vez que é inconcebível que o órgão diretor encarregado de intervir por meio de mandatos possa obter a informação necessária para coordenar a sociedade. E não pode fazê-lo pelos seguintes motivos: primeiro, por razões de volume (é impossível que o órgão de intervenção assimile conscientemente o enorme volume de informação prática disseminada nas mentes dos seres humanos); segundo, dada a natureza tácita e não articulável da informação, que não pode ser transferida para o órgão central); terceiro, porque, além do mais, não se pode transmitir a informação que ainda não foi descoberta ou criada pelo agenets e que só surge como resultado do livre processo de exercício da função empresarial; e quarto, porque o exercício da coerção impede o processo empresarial de descobrir e criar a informação necessária para coordenar a sociedade.
4. IMPOSSIBILIDADE DO SOCIALISMO DO PONTO DE VISTA DO ÓRGÃO DIRETOR
Em segundo lugar, e agora a partir da perspectiva a que chamamos nas nossas figuras de nível «superior», ou seja, do ponto de vista da pessoa ou grupo de pessoas mais ou menos organizadas, que, de forma sistemática e institucional, pratica a agressão contra o livre exercício da função empresarial, interessa fazer uma série de considerações que confirmam ainda mais a conclusão de que o socialismo não passa de um erro intelectual.
Começaremos por assumir, para efeitos de discussão, e seguindo Mises,[8] que o órgão diretor (não importa se se trata de um ditador ou caudilho, de uma elite, de um grupo de cientistas ou intelectuais, de um departamento ministerial, de um conjunto de deputados eleitos democraticamente pelo «povo», ou, em suma, de qualquer combinação, mais ou menos complexa, de todos ou alguns destes elementos) é dotado da máxima capacidade técnica e intelectual, experiência e sabedoria, bem como das melhores intenções, quehumanamente se possam conceber (em seguida veremos, porém, que estas hipóteses não acontecem na realidade e por quê). Mas o que não é possível admitir é que o órgão diretor seja dotado de capacidades sobre-humanas nem, concretamente, que tenha o dom da omnisciência, isto é, que seja capaz de assimilar, conhecer e interpretar simultaneamente toda a informação disseminada e privada que se encontra dispersa na mente de todos os seres humanos que atuam na sociedade e que estes vão gerando e criando ex novocontinuamente.[9] A realidade é que o órgão diretor, por vezes também chamado de órgão de planejamento ou intervenção central ou parcial, na sua maior parte, não tem conhecimento ou terá apenas uma ideia muito vaga de qual será o conhecimento que se encontra disponível de forma dispersa na mente de todos os agentes que possam estar submetidos às suas ordens. Assim, são reduzidas ou inexistentes as possibilidades de o planejador poder chegar a saber o que procurar ou como fazê-lo e onde encontrar os elementos de informação dispersa que vão sendo gerados no processo social e de que tanto precisa para controlá-lo e coordená-lo.
Por outro lado, o órgão de coerção terá obrigatoriamente que ser composto por seres humanos de carne e osso com todas as suas virtudes e defeitos, os quais, como quaisquer outros agentes, terão os seus fins pessoais que servirão de incentivo para os levar a descobrir a informação que seja relevante em função dos seus interesses particulares. O mais provável é, então, que os homens que constituem o órgão diretor, exercendo bem a sua função empresarial e tendo em conta os seus próprios fins e interesses, gerem a informação e a experiência necessária para, por exemplo, se manterem indefinidamente no poder e justificarem e racionalizarem os seus atos diante de si próprios e terceiros, exercerem a coerção de forma cada vez mais sofisticada e eficaz, apresentarem a sua agressão aos cidadãos como algo inevitável e atrativo, etc., etc. Ou seja, contrariamente à hipótese «das boas intenções» apresentada no início do parágrafo anterior, normalmente serão estes o incentivos mais comuns e que prevalecerão em relação a outros e, em especial, em relação ao interesse em descobrir a informação prática concreta e relevante que exista em cada momento de forma dispersa na sociedade e que seja necessária para permitir o seu funcionamento coordenado por meio de mandatos. Esta motivação peculiar determinará ainda que o órgão diretor não chegue sequer a compreender, ou seja, a tomar consciência de qual é, o grau de inevitável ignorância em que se encontra, afundando-se cada vez mais num processo de progressivo alheamento precisamente das realidades sociais que pretende controlar.
Além disso, o órgão diretor se verá incapacitado de realizar o cálculo econômico necessário,[10] no sentido de que não poderá saber se os custos nos quais incorre para perseguir os seus fins, independentemente de quais sejam (e podemos até assumir de novo que se trate dos fins mais «humana» e «moralmente elevados»), têm para o órgão diretor um valor superior ao valor que ele próprio atribui subjetivamente aos mesmos. O custo é apenas o valor subjetivo que o agente atribui àquilo a que renuncia ao agir tentando alcançar um determinado fim. É evidente que o órgão diretor não pode obter o conhecimento e a informação necessária para compreender o verdadeiro custo no qual incorre de acordo com as suas próprias escalas valorativas, uma vez que a informação sobre as circunstâncias específicas de tempo e lugar necessária para estimar os custos se encontra dispersa na mente de todos os seres humanos ou agentes que constituem o processo social e que são alvo de coerção por parte do órgão diretor (democraticamente eleito ou não) encarregado de exercer a agressão sobre o corpo social de forma sistemática.
Neste sentido, se definirmos o conceito de responsabilidade como a qualidade de uma ação exercida por quem conheceu e teve em conta o seu custo através do correspondente cálculo estimativo de expresssão econômica, poderemos concluir que o órgão diretor, independentemente da sua composição, sistema de eleição e juízos de valor, tenderá sempre a agir de forma irresponsável, uma vez que está impossibilitado dever e determinar os custos nos quais incorre. Surge assim o insolúvel paradoxo segundo o qual quanto mais o órgão diretor se empenhe em planificar ou controlar determinada parcela da vida social, menos possibilidade terá de alcançar os seus objetivos, uma vez que não poderá obter a informação necessária para organizar coordenadamente a sociedade, criando ainda novos e mais graves desajustes e distorções, precisamente na medida em que a sua coerção seja exercida de forma mais eficaz e mais limite dessa forma a capacidade empresarial dos seres humanos.[11] Concluiremos, então, afirmando que é um erro grave pensar que o órgão diretor pode fazer o cálculo econômico como faz o empresário individual. Pelo contrário, quanto maior for o nível de organização socialista mais se perderá a informação prática de primeira mão imprescindível para realizar o cálculo econômico, chegando até a ser completamente impossível efetuá-lo precisamente na medida em que o órgão de coerção institucional dificulte de forma mais efetiva a livre atuação humana.
5. POR QUE RAZÃO O DESENVOLVIMENTO DOS COMPUTADORES IMPOSSIBILITA AINDA MAIS O SOCIALISMO
Já ouvimos muitas vezes o argumento, da parte de diferentes pessoas que não têm um entendimento claro da peculiar natureza do conhecimento relevante para efeitos sociais, de que o extraordinário avanço no campo da informática, das comunicações e dos computadores poderia tornar possível o funcionamento do sistema socialista, quer do ponto de vista teórico quer do ponto de vista prático. Não obstante, um simples argumento teórico permitirá demonstrar que jamais será possível que por meio do desenvolvimento dos sistemas informáticos e da capacidade dos computadores se resolva o problema de ignorância inerradicável inerente ao socialismo.
O argumento baseia-se na suposição de que o fruto de todo o desenvolvimento tecnológico no campo da informática estará disponível tanto para o órgão diretor como para os diferentes seres humanos agentes que intervêm no processo social. Se assim for, a capacidade de criar e descobrir informação nova — prática, dispersa e tácita — será enormemente aumentada como consequência dos novos instrumentos informáticos disponíveis para os agentes em todos os contextos nos quais exerçam a sua função empresarial. A informação nova criada empresarialmente em grandes quantidades com a ajuda das novas tecnologias será cada vez mais profunda e detalhada, chegando a um nível inconcebível tendo em conta o conhecimento atual. E, logicamente, continuará a ser impossível que o órgão diretor possa adquirir a referida informação dispersa,mesmo que tenha à sua disposição os mais modernos, capazes e revolucionários computadores da atualidade.
Ou seja, o conhecimento gerado no processo social, relevante para efeitos empresariais, será sempre um conhecimento tácito e disperso, e, por isso, não transmissível a qualquer centro diretor, e o futuro desenvolvimento dos sistemas informáticos e dos computadores aumentará ainda mais o grau de complexidade do problema para o órgão diretor, uma vez que o conhecimento prático gerado com a ajuda desses sistemas se tornará cada vez mais complexo, volumoso e rico.[12] Assim, o desenvolvimento da informática, da internet e dos computadores não só não ajuda no problema do socialismo como o torna ainda muito mais complicado, na medida em que permite criar e gerar empresarialmente um volume muito maior de informação prática, com um grau de complexidade e pormenor cada vez mais rico e profundo e, em qualquer caso, sempre maior do que aquele que o órgão diretor é capaz de processar informaticamente. Na Figura III-4, representamos graficamente este argumento.
Por outro lado, é preciso salientar que as máquinas e os programas informáticos elaborados pelo homem nunca poderão agir ou exercer a função empresarial, ou seja, criar ex nihilo ou do nada informação prática nova, descobrindo e aproveitando novas oportunidades de lucro que até aí tinham passado despercebidas.[13]
A «informação» que se armazena nos computadores não é uma informação «conhecida», ou seja, assimilada ou interpretada conscientemente por mentes humanas e capaz de ser convertida em informação prática relevante do ponto de vista social. A «informação armazenada» num disco de computador, ou em qualquer outro suporte informático, é idêntica à «informação» incluída nos livros, gráficos, mapas, jornais ou nas revistas especializadas e que constituem um simples instrumento a ser utilizado pelo agente no contexto de ações concretas e relevantes para a conquista dos seus fins particulares. Dito de outra forma, a «informação armazenada» não é informação no sentido por nós usado de conhecimento prático relevante, interpretado, conhecido e utilizado pelo agente no contexto de uma ação concreta.
Além disso, é evidente que a informação prática que ainda não existe, por não ter sido descoberta ou criada empresarialmente, não pode ser tratada informaticamente. Assim, os sistemas informáticos de nada servem no que se refere à possibilidade de coordenação do processo social por meio de mandatos. A coordenação do processo social só funciona e avança como consequência do caráter essencialmente criativo da ação humana. Os computadores só podem tratar a informação já criada e que foi possível articular e são, sem dúvida, um instrumento muito útil e poderoso a serviço do agente, mas são incapazes de criar, descobrir ou identificar novas oportunidades de ganho ou lucro, ou seja, de agir empresarialmente. Os computadores são instrumentos a serviço do agente, mas não agem nem agirão algum dia. Ou seja, a informação que pode ser tratada pelos computadores terá de ser informação articulada, formalizada e objetiva. No entanto, a informação relevante na esfera social é uma informação basicamente não articulável e sempre subjetiva. Por isso, os computadores não só são incapazes de criar informação nova como são essencialmente incapazes de tratar a informação já criada se, como acontece nos processos sociais, essa informação for basicamente de natureza não articulável. No exemplo da figura II-2 do Capítulo II, embora «A» e «B» tenham sido capazes de expressar pormenorizada e formalmente os recursos de que precisavam para alcançar os respectivos fins e tenham de alguma forma conseguido transmitir essa informação a uma gigantesca e moderníssima base de dados, o ato através do qual uma mente humana (a de «C») consegue entender que o recurso de um poderia ser utilizado para os fins do outro é um ato empresarial de pura criatividade, essencialmente subjetivo e não assimilável nos termos objetivos e formalizados próprios de uma máquina. Para que o computador possa orientar a ação de forma adequada é necessário não só que a informação tenha sido transmitida de forma articulada mas também que o equipamento tenha sido programado previamente, ou seja, que se tenha definido detalhada e formalmente a regra ou norma de atuação em função da qual, por exemplo, sempre que uma pessoa tenha um recurso «R» com determinado nível de abundância, o mesmo passe a ser utilizado pela pessoa que persegue os fins «X». Ora, a existência formalizada de tal norma pressupõe a descoberta anteriordo curso de ação adequado do ponto de vista empresarial, relativamente à utilização dos recursos «R» para a consecução dos fins «X». Assim, é evidente que os sistemas informáticos só podem aplicar conhecimentos já descobertos a situações dadas, mas nunca criar informação nova em relação a situações que ainda não tenham sido descobertas e nas quais é preponderante a criação ou geração ex novo do conhecimento subjetivo, tácito e disperso típico do processo social.
Assim, confiar no computador como instrumento que torna possível o socialismo é tão absurdo como pensar que numa sociedade muito menos avançada o invento da imprensa e de outros procedimentos mais elementares de coleta e tratamento da informação articulada faria com que fosse possível dispor do conhecimento prático e subjetivo relevante na esfera social. O resultado da descoberta dos livros e da imprensa foi precisamente o contrário: tornar a sociedade ainda mais rica e difícil de controlar. Poderia apenas se pensar que o problema do socialismo poderia ser de alguma forma menos grave do ponto de vista quantitativo, mas sem nunca se chegar a resolver, se o órgão diretor pudesse aplicar os mais modernos computadores sobre uma sociedade na qual a geração contínua de informação prática nova tivesse sido reduzida à mínima expressão. Isso só poderia ser conseguido por meio de um sistema muito rígido que pela força, por um lado, impedisse ao máximo o exercício da função empresarial e, por outro, proibisse que os seres humanos dispusessem de qualquer tipo de computadores, máquinas, instrumentos de cálculo, livros, etc. Só nesta hipotética sociedade de brutos escravizados, o problema do cálculo econômico no socialismo poderia parecer um pouco menos complexo. Não obstante, nem em tão extremas circunstâncias, se poderia solucionar teoricamente o problema, uma vez que o ser humano possui, mesmo nas condições mais adversas, uma capacidade empresarial criativa inata[14] que é impossível de replicar e controlar.
Por fim, tendo em conta as considerações acima, não deve surpreender o fato de serem precisamente os cientistas informáticos e os programadores de software mais habilitados os profissionais mais céticos na hora de avaliar das possibilidades de aplicação da informática no controle e na organização dos processos sociais. De fato, para estes profissionais, não só é evidente o princípio de que se a informação incluída na máquina for inexata os resultados multiplicarão os erros («garbage in, garbage out»), mas também de que a sua experiência diária revela claramente que quanto mais extensos e complicados são os programas que pretendem desenvolver, mais dificuldades encontram na eliminação de vícios lógicos necessária para colocá-los em funcionamento. Desta forma, está fora de questão pensar que se pode conseguir programar um processo social com um grau de complexidade tal que seja capaz de integrar as capacidades criativas mais essenciais do ser humano. Mais, em vez de ajudar o intervencionista, como muitos «engenheiros sociais» ilusoriamente pretenderam e sonharam, os últimos desenvolvimentos na ciência informática aconteceram precisamente graças à recepção no campo das intuições e dos conhecimentos dos economistas teóricos dos processos sociais espontâneos, em geral, e do próprio Hayek em particular, cujas ideias se considera hoje serem de enorme importância prática para potencializar e facilitar a concepção e o desenvolvimento de novos sistemas de comunicação e programas informáticos.[15]
6. OUTRAS CONSEQUÊNCIAS TEÓRICAS DO SOCIALISMO
Nas seções anteriores, demonstramos que o socialismo é um erro intelectual que tem a sua origem napresunção ou arrogância fatal[16] de acreditar que o homem é suficientemente inteligente para organizar a vida em sociedade. Neste ponto, nos propomo a analisar de forma sucinta e sistemática as inevitáveis consequências decorrentes do fato de o homem, ignorando a impossibilidade lógica que o socialismo representa, se empenhar em estabelecer um sistema institucional de regulação e coerção que, em maior ou menor medida, restringe o livre exercício da ação humana.
Descoordenação e desordem social
a) Já vimos que quando se impede, em maior ou menor medida, o exercício da função empresarial, se impossibilita que ela descubra as situações de desajuste que acontecem na sociedade. Ao serem coercivamente impedidos de tirar proveito das oportunidades de lucro que todos os desajustes geram, os agentes não chegam sequer a percebê-las. Assim, as oportunidades passam despercebidas e não são estimadas pelos agentes. E mesmo que, por acaso, algum agente alvo de coerção identificasse alguma oportunidade de lucro, isso de nada valeria, uma vez que a própria coerção institucional o impediria de agir de forma a aproveitá-la.
Por outro lado, também não é concebível que o órgão diretor encarregado de exercer a coerção institucional seja capaz de coordenar o comportamento social através das suas ordens e dos seus mandatos. Para isso, teria de dispor de um tipo de informação que não lhe é possível adquirir, uma vez que se encontra disseminada e dispersa de forma privada na mente de todos os agentes que constituem a sociedade.
Assim, segundo a teoria, a primeira consequência de qualquer tentativa de estabelecer um sistema socialista será o aparecimento de uma descoordenação ou desajuste social generalizado, caracterizado pela ação sistemática e contraditória de múltiplos agentes, que não disciplinarão o seu comportamento em função do que os outros fazem nem entenderão que estarão, em geral, cometendo erros sistemáticos. Como consequência, um número significativo de ações humanas não será bem-sucedido e não poderá ser realizado devido aos desajustes existentes. Esta frustração de planos ou descoordenação generalizada afeta a própria essência da vida social e irá se manifestar tanto intratemporal como intertemporalmente, ou seja, tanto em relação às ações do momento, como no que se refere à vital e imprescindível coordenação que deve existir em qualquer processo social entre as ações presentes e as ações futuras.
De acordo com Hayek, «ordem» é todo o processo no qual uma multitude de elementos de espécie diversa se relaciona entre si de tal forma que o conhecimento de uma parte do conjunto permite predizer corretamente o conjunto de expectativas adequadas.[17] Tendo em conta esta definição, torna-se evidente o papel do socialismo como gerador de desordem social, uma vez que assim como dificulta e pode até impossibilitar o necessário ajuste entre os comportamentos descoordenados no âmbito individual, também dificulta e pode impedir que os seres humanos atuem com base em expectativas que não saiam frustradas sobre o comportamento dos seus congêneres, uma vez que, sempre que se dificulta o livre exercício da função empresarial, os desajustes sociais existentes permanecem ocultos e não são eliminados. Assim, o desejo voluntarista de «ordenar» a sociedade por meio de mandatos coercivos é, na sua essência, gerador de desordem, e quanto mais complexa for a ordem social no sentido hayekiano, será ainda mais impossível o ideal socialista, pois um volume muito maior de decisões e atividades deverá ser confiado a pessoas e dependerá de circunstâncias que serão completamente desconhecidas por aqueles que se empenham em «reger» a sociedade.
b) Paradoxalmente, a generalizada descoordenação no âmbito social é muitas vezes utilizada como umpretexto para justificar doses ulteriores de socialismo, ou seja, de agressão institucional, em novas áreas da vida em sociedade ou com um nível de profundidade e de controle ainda maiores. Isto só costuma acontecer porque, embora o órgão diretor não seja capaz de entender em detalhes as ações contraditórias e desajustadas que a sua intervenção provoca em concreto, mais cedo ou mais tarde se torna evidente que o processo social em geral não funciona. A partir da sua limitadíssima capacidade de valorização, o órgão diretor interpreta esta circunstância como um resultado lógico da «falta de colaboração» dos cidadãos que não querem cumprir corretamente os seus mandatos e ordens, pelo que estes se tornam cada vez mais amplos, detalhados e coercivos. Este aumento do grau de socialismo provocará uma descoordenação ou um desajuste ainda maior no processo social, que se utilizará para justificar novas «doses» de socialismo, e assim sucessivamente. Explica-se desta forma a irresistível tendência do socialismo para o totalitarismo, entendido este como o regime que tende a «exercer uma forte intervenção em todas as áreas da vida».[18] Em outras ocasiões, este processo totalitário de crescimento progressivo da coerção é acompanhado de guinadas ou mudanças contínuas de política, seja modificando radicalmente o conteúdo dos mandatos, a área sobre a qual se aplicam ou ambos, e tudo isto com a vã esperança de que a «experimentação» assistemática de novos tipos e graus de intervencionismo permita resolver os insolúveis problemas em questão.[19]
c) As medidas de intervenção coerciva que caracterizam o socialismo produzem efeitos ou resultados sociais que costumam ser precisamente o contrário daqueles que o próprio órgão diretor pretende alcançar. Uma vez que este órgão pretende atingir os seus fins por meio de mandatos coercivos que incidem diretamente sobre as áreas sociais mais relacionadas com os referidos fins, ocorre o paradoxal resultado de tais mandatos impedirem, de forma particularmente mais eficaz, o exercício da ação humana nas áreas mencionadas. Ou seja, a força empresarial que é indispensável para coordenar a referida área social com vista a alcançar os fins perseguidos paralisa-se precisamente onde ela é mais necessária. Em suma, o necessário processo de ajuste, em vez de ser ativado, retrai-se, e o processo social afasta-se dos fins a que se propõe em vez de os alcançar. Por sua vez, quanto mais eficazmente forem impostos, mais os mandatos distorcem o exercício empresarial, pois não só não incorporam a informação prática necessária como desmotivam a sua criação, não podendo ser utilizados como guia de coordenação por parte dos agentes econômicos. Este efeito autodestrutivo do socialismo, também denominado de «paradoxo do intervencionismo ou de planejamento», é conhecido desde há muito tempo, embora só recentemente tenha sido formulado nos precisos termos da teoria da função empresarial.[20]
d) Embora o efeito inibidor que o socialismo tem na criação de informação prática se manifeste em todas as áreas sociais, talvez o efeito sobre a área econômica seja o mais evidente. Por exemplo, em primeiro lugar, afalta de qualidade dos bens e serviços produzidos é uma das manifestações mais típicas da descoordenação socialista, e tem a sua origem precisamente na ausência de incentivo para que, quer os agentes que constituem o processo social quer os próprios membros do órgão diretor, gerem informação e descubram quais são os verdadeiros desejos das pessoas no que se refere aos padrões de qualidade.
Em segundo lugar, o socialismo torna as decisões de investimento puramente arbitrárias, devido à ausência da informação necessária para permitir estimativas mínimas de cálculo econômico, tanto quantitativa como qualitativamente, não se chegando nunca a saber qual é o verdadeiro custo de oportunidade de cada investimento (impossível de estimar num contexto socialista), e tudo mesmo que se imponha a toda a sociedade a taxa de preferência temporal do órgão diretor. Por outro lado, a falta de informação do órgão diretor não permitirá também o cálculo de taxas de depreciação minimamente confiáveis para o equipamento capital. Desta forma, o socialismo cria e mantém um mau investimento generalizado dos recursos e fatores produtivos, que em muitas ocasiões adquire ainda, e como fator adicional de agravamento, um caráter cíclico mais ou menos errático, resultado das mudanças súbitas de políticas, típicas deste sistema e que já foram comentadas no final do ponto b) acima.
Em terceiro lugar, o socialismo provoca um grave problema de escassez generalizada em todos os níveis sociais. A principal razão para este fenômeno reside no fato de a coerção institucional eliminar na origem a possibilidade de a enorme força do engenho empresarial humano se dedicar sistematicamente a descobrir os estados de escassez bem como de procurar novas e mais eficazes formas de eliminá-los. Por outro lado, a impossibilidade de calcular economicamente os custos leva, como já vimos, à dilapidação de grande parte dos recursos produtivos em investimentos sem sentido, o que aprofunda e agrava ainda mais o problema da escassez.[21] Além disso, de mãos dadas com a escassez, surge um ineficiente e redundante excesso de determinados recursos, motivado não só pelos erros de produção cometidos, mas também pelo fato de os agentes econômicos monopolizarem e guardarem todos os bens e recursos que podiam, uma vez que a escassez sistemática torna inseguro e errático o adequado fornecimento de bens, serviços e fatores de produção.
Por último, os erros na distribuição de recursos se tornam especialmente graves no que se refere à mão de obra, que tende a ser sistematicamente mal empregada, o que provoca um elevado volume de desemprego, mais ou menos encoberto dependendo do tipo específico de socialismo em questão. Este é um dos mais típicos resultados da coerção institucional sobre o exercício da função empresarial no âmbito dos processos sociais relacionados com o mundo laboral.
Informação errônea e comportamentos irresponsáveis
O socialismo não se caracteriza apenas por inibir a criação de informação, mas também por ativar processos que atraem e geram sistematicamente informação errônea ou equivocada, dando lugar a um comportamento generalizadamente irresponsável.
a) Nada assegura que o órgão diretor que exerce coerção sistemática seja capaz de identificar as oportunidades concretas de lucro que surgem no processo social. Dado que o referido órgão não dispõe da informação prática das pessoas coagidas não podemos imaginar que seja capaz de descobrir, salvo em casos muito isolados e por mero acidente ou casualidade, quais são os desajustes sociais existentes. Mais, mesmo que algum membro do órgão diretor descubra casualmente a existência de um desajuste, o mais provável é que tal «achado» seja encoberto ou ocultado pela própria inércia da organização coerciva, que, salvo em muito raras ocasiões, não terá qualquer interesse em evidenciar problemas impopulares e cuja solução exige sempre mudanças e medidas «incômodas». Por outro lado, o órgão diretor não terá sequer consciência da grave situação de ignorância inerradicável em que se encontra. Por isso, a informação gerada por meio de mandatos será uma informação repleta de erros, equívocos e essencialmente irresponsável, dado que o órgão diretor, no seu processo de tomada de decisões, não poderá ter em conta o verdadeiro custo ou valor das alternativas a que renuncia quando decide seguir um determinado curso de ação, por não ser capaz de obter a informação prática e dispersa referente a elas.[22]
b) O fato de se encontrar inexoravelmente separado do processo social por um véu de ignorância inextirpável, na qual só é capaz de distinguir os aspectos mais grosseiros ou visíveis, faz com que o órgão diretor se concentre na conquista dos seus objetivos de forma extensiva e voluntarista. Voluntarista no sentido em que pretende que, por mera vontade coerciva manifestada nos mandatos, sejam alcançados os fins propostos. Extensiva no sentido de que a realização desses objetivos é medida e avaliada com base nos parâmetros mais fáceis de definir, articular e transmitir, ou seja, parâmetros meramente estatísticos ou quantitativos e que ignoram, ou não incluem suficientemente, todos os matizes qualitativos e subjetivos que constituem precisamente o conteúdo mais valioso e característico da informação prática que se encontra dispersa nas mentes dos seres humanos.
A proliferação, utilização excessiva e preponderância das estatísticas é, assim, outras das características do socialismo, e não é de todo surpreendente que a palavra «estatística» tenha a sua origem etimológica precisamente no termo utilizado para nomear a organização por excelência da coerção institucional.
c) O efeito combinado da geração sistemática de informação errônea que leva, de forma generalizada, a comportamentos irresponsáveis, juntamente com o caráter voluntarista e extensivo da busca dos fins por parte do órgão diretor que exerce a coerção, possui, entre outras, consequências trágicas sobre o ambiente natural. Norma geral, o ambiente natural se deteriorará precisamente nas áreas e zonas geográficas nas quais o socialismo tenha maior incidência (ou seja, onde se permita menos liberdade para o exercício da função empresarial), e quanto mais ampla e profunda for a intervenção coerciva maior será a deterioração.[23]
Efeito corrupção
O socialismo têm o efeito de corromper ou desviar de forma perversa a força da função empresarial em que se materializa toda a ação humana. O Dicionário da Real Academia Espanhola define «corromper» como «desperdiçar, depravar, danificar, apodrecer, perverter, estragar ou viciar»; e menciona especificamente que este efeito destrutivo incide sobretudo nas instituições sociais, entendidas como hábitos repetitivos de conduta. Ora, a corrupção é uma das consequências mais típicas e essenciais do socialismo, na medida em que tende a perverter sistematicamente o processo de criação e de transmissão da informação gerada na sociedade.
a) Em primeiro lugar, do ponto de vista dos seres humanos coagidos ou administrados, que rapidamente compreendem que têm mais possibilidades de alcançar empresarialmente os seus fins se, em vez de tentarem descobrir e coordenar os desajustes sociais aproveitando as oportunidades de lucro que os mesmos geram, dedicarem o seu tempo, a sua atividade e o seu engenho humano a influenciar os mecanismos de tomada de decisão do órgão diretor. Assim, uma impressionante quantidade de engenho humano — tanto maior quanto mais intenso seja o socialismo — se dedicará constantemente a pensar em novas e mais eficazes formas de influenciar o órgão diretor com a esperança real ou imaginária de conseguir obter vantagens particulares. Desta forma, o socialismo não só impede que cada membro da sociedade aprenda a disciplinar o seu comportamento em função do dos demais, como cria um incentivo fortíssimo para que os diferentes indivíduos e grupos tentem obter o poder ou a capacidade de exercer influência sobre o órgão diretor, com o objetivo de utilizar os seus mandatos coercivos para impor pela força vantagens ou privilégios particulares à custa dos demais. O processo social espontâneo de coordenação é corrompido e substituído por um processo de luta pelo poder, em que o conflito e a violência sistemática entre os diferentes indivíduos e grupos sociais que tentam influenciar ou obter o poder se torna a nota mais característica e dominante da vida em sociedade. Assim, como consequência do socialismo, os seres humanos perdem o hábito de se comportarem moralmente (ou seja, seguindo princípios ou normas pautadas e repetitivas de ação), e modificam gradualmente a sua personalidade e forma de agir, que se torna cada vez mais amoral (ou seja, menos submetida a princípios) e agressiva.[24]
b) Em segundo lugar, verifica-se uma outra manifestação do efeito corruptor do socialismo quando os grupos ou indivíduos que não conseguiram obter o poder se vêem forçados a dedicar uma parte significativa do seu engenho ou atividade empresarial a tentar desviar ou evitar, nas suas circunstâncias particulares, os efeitos mais prejudiciais ou drásticos dos mandatos coercivos, concedendo privilégios, vantagens ou determinados bens e serviços às pessoas encarregadas de controlar, vigiar e fazer cumprir os mandatos. Esta atividade corruptora é uma atividade de aspecto defensivo, pois funciona como uma verdadeira «válvula de escape» e permite uma certa diminuição do dano social provocado pelo socialismo, podendo ter o efeito positivo de tornar possível a manutenção de vínculos sociais minimamente coordenadores, mesmo nos casos mais graves de agressão socialista. Em todo o caso, a corrupção ou o perverso desvio da função empresarial que estamos a comentar terá, como corretamente indica Kirzner,[25] um caráter sempre supérfluo e redundante.
c) Em terceiro lugar, também o órgão diretor, ou seja, o conjunto de pessoas mais ou menos organizado que exerce sistematicamente a coerção, tenderá a exercer a sua capacidade empresarial, ou seja, o seu próprio engenho individual de forma mais perversa. O objetivo essencial da sua atividade será o de tentarmanter-se no poder e de justificar a sua ação coerciva sobre os demais agentes. Os detalhes e particularidades da atividade corruptora do poder irão variar de acordo com o tipo concreto de socialismo em causa (totalitário, democrático, conservador, científico, etc.). O que interessa no momento ressaltar é que a perversa atividade empresarial daquele que em última instância controla o órgão diretor tende a gerar e a estimular criativamente situações em que esse poder possa aumentar, ampliar-se ou justificar-se.[26] Assim, por exemplo, os órgãos de poder fomentarão o aparecimento de grupos privilegiados de interesse que respaldem o poder em troca de lucros e privilégios que estes possam garantir-lhes. O sistema socialista tenderá também a abusar da propaganda política, através da qual tentará dar uma visão idílica dos efeitos das ordens do órgão diretor sobre o processo social, ressaltando sobretudo como seriam negativas as consequências sociais da não existência de tal intervenção. O engano sistemático da população, a distorção dos fatos, a fabricação artificial de falsas crises para convencer o público de que é preciso que o poder se mantenha e seja reforçado, etc., são características típicas do efeito perverso e corruptor que o socialismo sempre exerce sobre os seus próprios órgãos ou centros de poder.[27] Além disso, estas características serão comuns tanto nos órgãos máximos de decisão da agressão institucional como nos órgãos burocráticosintermédios que é preciso utilizá-las no estabelecimento e supervisão dos mandatos coercivos. Estas organizações burocráticas secundárias sempre tenderão a expandir-se em demasia, a procurar apoios de grupos concretos de interesse e a criar a necessidade artificial da sua existência, exagerando os resultados «benéficos» da sua intervenção e ocultando sistematicamente os seus efeitos perversos.
Por último, torna-se evidente o caráter megalômano do socialismo. Não só as organizações burocráticas tendem a expandir-se sem limite, como tentam instintivamente refletir as suas macroestruturas no corpo social sobre o qual atuam, forçando, mediante todo o tipo de pretextos, a formação de unidades, organizações e empresas cada vez maiores, uma vez que, por um lado intuitivamente consideram que isso facilita a sua atividade de controle do cumprimento dos mandatos coercivos emanados do poder e, por outro, lhes proporciona uma falsa sensação de segurança contra o genuíno esforço empresarial, que é sempre o resultado de um microprocesso eminentemente individualista e criativo.[28]
Economia oculta ou «irregular»
Outra consequência típica do socialismo é o fato de induzir uma inexorável reação social, na qual os diferentes agentes desobedecem sistematicamente, na medida das suas potencialidades, os mandatos coercivos emanados do órgão diretor, empreendendo um conjunto de ações e interações à margem do esquema regular que as decisões pretendem estabelecer. Surge assim todo um processo social que se desenvolve por trás daquele que é considerado «regular» pelo órgão diretor e que revela até que ponto a coerção institucional está condenada ao fracasso a longo prazo, uma vez que contraria a mais íntima essência da ação humana. Por isso, em muitas ocasiões, não resta ao órgão diretor outro remédio senão exercer o seu poder tolerando ou consentindo implicitamente a existência e o desenvolvimento de processos sociais «irregulares» que convivem paralelamente com as suas muito rígidas estruturas. Assim, o aparecimento de uma sociedade ou economia oculta, subterrânea ou «irregular» é uma característica inseparável do socialismo e que se manifesta sempre na medida e nas áreas em que este órgão exerça a sua atividade coerciva. As características básicas da corrupção e da economia subterrânea são as mesmas nos países de socialismo real e nos países de economia mista. A única diferença é que nestes últimos a corrupção e a economia subterrânea aparecem e se desenvolvem precisamente nas áreas da vida nas quais o estado exerce a sua intervenção.[29]
Atraso social (econômico, tecnológico, cultural)
a) É evidente que o socialismo implica uma agressão à criatividade humana e, portanto, ao desenvolvimento da sociedade e ao progresso da civilização. De fato, se se impedir pela força, por meio de mandatos coercivos, o livre exercício da ação humana, os agentes não podem criar nem descobrir informação nova, impedindo dessa forma o avanço da civilização. Por outras palavras, o socialismo significa o estabelecimento sistemático de um conjunto de barreiras à livre interação humana que congelam o desenvolvimento social. Este efeito incide sobre todas as áreas de evolução social, e não apenas sobre as áreas estritamente econômicas. Assim, uma das características mais típicas do sistema socialista é a sua lentidão para inovar e introduzir as inovações tecnológicas que vão sendo descobertas, pelo que este tipo de sistema se encontra sempre atrasado em relação aos seus concorrentes do ponto de vista do desenvolvimento e da aplicação prática das novas tecnologias.[30] Isto apesar de os socialistas, como sempre de forma extensiva e voluntarista, pretenderem forçar, por meio de ordens, o desenvolvimento tecnológico da sociedade, criando estrondosos institutos ou conselhos dedicados à investigação científica e ao planejamento do desenvolvimento futuro das novas tecnologias. Não obstante, a própria criação destes organismos burocráticos para o desenvolvimento da inovação é a manifestação mais clara e evidente de que o sistema se encontra bloqueado no que se refere ao progresso científico e técnico. Na verdade, é impossível planificar a futura evolução de um conhecimento que ainda não foi criado e que só surge num ambiente de liberdade empresarial que não pode ser simulado por meio de mandatos.
b) As anteriores considerações são também aplicáveis a quaisquer outras áreas nas quais se verifique o desenvolvimento e evolução social de forma espontânea e constante. Nos referimos concretamente às áreas culturais, linguísticas e, em geral, a todas as áreas que sejam resultado da evolução e do desenvolvimento espontâneo dos hábitos e costumes sociais. A cultura não é mais do que o resultado de um processo social no qual interagem múltiplos agentes, cada um contribuindo com o seu pequeno «grão» de experiência, originalidade e capacidade de visão. Se for coagido de forma sistemática pelo poder, este processo é interrompido e corrompido, se não paralisado na sua totalidade (mais uma vez o órgão diretor pretenderá apresentar-se como o «defensor» do impulso cultural, criando todo o tipo de órgãos, ministérios, conselhos ou comissões encarregadas de estimular e «fomentar», por meio de mandatos, o «desenvolvimento» da cultura).[31]
c) Também a evolução e o desenvolvimento de novos hábitos sociais são fundamentais na medida em que permitem que os seres humanos continuem aprendendo qual deve ser o seu comportamento tendo em conta as novas circunstâncias, produtos, serviços, etc. que vão surgindo no processo de desenvolvimento social. Não há nada mais trágico do que observar uma sociedade congelada devido à agressão institucional exercida sobre a interação dos seus membros, que impede e dificulta o processo de aprendizagem necessário para enfrentar os novos desafios e as novas oportunidades que surgem constantemente.[32]
O aviltamento dos conceitos tradicionais de lei e de justiça. A perversão moral criada pelo socialismo
a) No capítulo anterior, vimos que o processo social, movido pela força da função empresarial, era possível graças a um conjunto de normas de caráter consuetudinário, que, por sua vez, também surgiam desse processo. Estes hábitos de conduta constituem o direito contratual privado e o direito penal e não foram deliberadamente concebidos por ninguém. Pelo contrário, trata-se de instituições evolutivas que surgem como resultado da informação prática nelas incorporada por um número muito elevado de agentes ao longo de um período muito extenso. Nesta perspectiva, o direito é constituído por um conjunto de normas ou leisem sentido material, gerais (ou seja, aplicáveis a todos por igual) e abstratas (uma vez que estabelecem apenas um amplo quadro de atuação individual, sem prever qualquer resultado concreto do processo social).
Por se basear na agressão institucionalizada e sistemática contra a ação humana exercida por meio de ordensou mandatos coercivos, o socialismo significa o desaparecimento do conceito tradicional de lei que acabamos de explicar e a sua substituição por um «direito» espúrio, constituído por um conglomerado de ordens, regulamentos e mandatos de aspecto administrativo que especificam qual deve ser o conteúdo concreto do comportamento de cada ser humano. Desta forma, à medida em que o socialismo se amplia e se desenvolve, as leis em sentido tradicional deixam de funcionar como normas de referência para o comportamento individual e o seu papel passa a ser desempenhado pelas ordens ou pelos mandatos coercivos emanados do órgão diretor (tenha sido eleito democraticamente ou não). A lei perde assim o seu âmbito de implantação prática, sendo relegada para âmbitos, regulares ou irregulares, não influenciados de forma direta e eficaz pelo regime socialista.
Por outro lado, e como efeito secundário de grande importância, os agentes, ao perderem a referência que constitui a lei em sentido material, vão modificando a sua personalidade e perdendo os hábitos ou costumes de adaptação a normas gerais de caráter abstrato, o que leva a que assimilem cada vez mais mal e respeitem cada vez menos as normas tradicionais de conduta. Mais, uma vez que contornar as ordens é, muitas vezes, uma exigência imposta pela própria necessidade de sobrevivência e, noutras ocasiões, uma manifestação do êxito da função empresarial corrompida ou perversa que, como vimos, é uma decorrência típica do socialismo, o descumprimento da norma passa a ser considerado, pela população em geral, mais como uma louvável manifestação do engenho humano que se deve procurar e fomentar do que como uma violação de um sistema de normas que prejudica a vida em sociedade. Desta forma, o socialismo incita à violação da lei, a esvazia de conteúdo e a corrompe, desprestigiando-a completamente no âmbito social e fazendo com que os cidadãos percam todo o respeito por ela.
b) O aviltamento do conceito de lei que explicamos no tópico anterior é inexoravelmente acompanhado de um aviltamento paralelo do conceito e da aplicação da justiça. A justiça, no seu sentido tradicional, consiste na aplicação a todos por igual das normas abstratas de conduta de aspecto material que constituem o direito privado e o direito penal. Assim, não é por acaso que a justiça foi retratada com os olhos vendados, pois a justiça deverá ser, antes de mais, cega, no sentido em que não deve se deixar influenciar no momento de aplicação do direito «nem pelas dádivas do rico nem pelas lágrimas do pobre».[33] Ao corromper sistematicamente o conceito tradicional do direito, o socialismo modifica também esta concepção tradicional da justiça. De fato, no sistema socialista, a «justiça» consiste sobretudo no juízo arbitrário realizado pelo órgão diretor, com base na informação mais ou menos emotiva que obteve do «resultado final» e concreto do processo social, que acredita entender e que, audaciosamente, tenta organizar de cima para baixo mediante mandatos coercivos. Desta forma, já não são os comportamentos humanos que são julgados, mas antes o «resultado» percebido dentro de um contexto espúrio de «justiça», a qual é acrescentado o qualificativo social com o objetivo de a tornar mais atraente para aqueles que a sofrem.[34]Da perspectiva oposta da justiça tradicional, não existe nada mais injusto do que o conceito de «justiça» social, uma vez que se baseia numa visão, impressão ou estimativa dos «resultados» dos processos sociais independentemente de qual tenha sido o comportamento individual de cada agente do ponto de vista das normas do direito tradicional.[35] A função do juiz no direito tradicional é de índole meramente intelectual, sendo que não deve se deixar influenciar pelas suas inclinações emocionais nem pela sua apreciação pessoal do resultado que a sentença terá em cada parte. Se, como sucede no socialismo, se impede a aplicação objetiva do direito e se permite a tomada de decisões jurídicas com base em impressões mais ou menos subjetivas e emotivas, desaparece toda segurança jurídica e rapidamente os agentes começam a entender que qualquer pretensão pode obter amparo judicial desde que se consiga impressionar favoravelmente o julgador. Consequentemente, cria-se um fortíssimo incentivo para litigar, o que, juntamente com a situação caótica criada pelo emaranhado de mandatos coercivos cada vez mais imperfeitos e contraditórios, coloca os juízes numa situação de tamanha sobrecarga que o seu trabalho se torna cada vez mais insuportável e ineficiente. E o processo se replica numa espiral de progressiva decomposição que termina apenas com o virtual desaparecimento da justiça no seu sentido tradicional e dos juízes, que passam a ser mais uns burocratas ao serviço do poder, encarregados de controlar o cumprimento dos mandatos coercivos daí emanados. Abaixo, apresentamos num quadro sistemático as mais importantes diferenças existentes entre o processo espontâneo baseado na função empresarial e na livre interação humana e o sistema de organização baseado no mandato e na coerção institucional (socialismo) no que diz respeito aos seus efeitos opostos sobre os conceitos e a aplicação do direito e da justiça.
c) A perda dos hábitos de adaptação do comportamento individual a normas gerais que se formaram através da tradição, e cuja função essencial não é completamente compreendida por nenhuma parte, é outra das características do socialismo. A moral é enfraquecida a todos os níveis e pode até desaparecer, sendo substituída pelo reflexo do misticismo organizador do órgão de direção da sociedade, que tende a se reproduzir igualmente no âmbito do comportamento individual de cada agente. Desta forma, prevalecerá também na esfera individual o típico voluntarismo socialista no que se refere à conquista dos fins que sejam perseguidos mais por caprichos ou «mandatos» pessoais alimentados pelos próprios desejos e instintos e enunciados ad hoc pelo sujeito em cada caso particular do que por meio do exercício da interação humana submetida a normas gerais de caráter moral e legal.
Entre os expoentes máximos desta perversão moral fruto do socialismo podemos apontar Lord Keynes, um dos mais conspícuos impulsionadores da coerção sistemática e do intervencionismo na área monetária e fiscal, que explicava a sua posição «moral» da seguinte forma: «Recusamos inteiramente qualquer obrigação de acatar normas gerais. Proclamamos o direito a julgar cada caso segundo os seus próprios méritos e acreditamos que tínhamos a sabedoria, a experiência e o autocontrole suficientes para o fazermos acertadamente. Tratava-se de uma parte essencial da nossa fé, que defendíamos com violência e agressividade, o que, para os demais, era a nossa característica mais óbvia e perigosa. Repudiávamos inteiramente a moral estabelecida, assim como todo o tipo de convenção derivada do saber tradicional.Estávamos, pois, no sentido mais estrito do termo, contra a moral. Não reconhecíamos a existência de qualquer obrigação moral nem sanção íntima que devêssemos seguir ou acatar. Reivindicávamos perante o céu o direito de sermos juízes únicos da nossa própria causa»; e acrescentava: «No que me diz respeito, é demasiado tarde para adotar outra postura. Continuo e continuarei a ser contrário à moral.»[36]
Assim, o socialismo surge como um produto natural do racionalismo falso e exagerado do chamado «Séculos das Luzes» e ao mesmo tempo como um resultado dos mais básicos e atávicos instintos e paixões humanas. De fato, ao acreditarem que não existem limites para a capacidade da mente humana, os ingênuos racionalistas rebelam-se, como Keynes, Rousseau e muitos outros, contra as instituições, hábitos e comportamentos que tornam possível a ordem social e que, por definição, não podem ser completamente racionalizados e que são qualificados irresponsavelmente de «repressivas e inibitórias tradições socialistas». O paradoxal resultado desta «deificação» da razão humana é não mais do que o de eliminar os princípios morais, as normas e as pautas de conduta que tornaram possível a evolução da civilização, afastando inevitavelmente o homem, carente de guias e referências de atuação tão vitais, das suas mais tradicionais e primitivas paixões.[37]
QUADRO III-I
PROCESSO SOCIAL ESPONTÂNEO
Baseado na função empresarial (interação social não agredida) |
SOCIALISMO
(Agressão institucional e sistemática contra a função empresarial e a ação humana) |
1) A coordenação social ocorre espontaneamente, graças à função empresarial, que descobre e elimina continuamente os desajustes sociais, que se tornam oportunidades de lucro (ordem espontânea). | 1) Tenta-se impor a coordenação social a partir de cima de forma deliberada e coerciva através de mandatos, ordens e regulamentos coercivos emanados pelo poder (ordem hierárquica — de hieros, sagrado e archein, mandar — e organizada). |
2) O protagonista do processo é o homem, que age e exerce a função empresarial criativa. | 2) O protagonista do processo é ogovernante (democrático ou não) e ofuncionário (a pessoa que atua em conformidade com as ordens e os regulamentos administrativos emanados do poder). |
3) Os vínculos de interação social são de aspecto contratual, e as partes implicadas trocam bens e serviços de acordo com normas jurídicas de aspecto material (lei). | 3) Os vínculos de interação social são detipo hegemônico, em que uns mandam e os outros obedecem. Se se tratar de uma «democracia social», as «maiorias» exercem coerção sobre as «minorias». |
4) Prepondera o conceito tradicional de lei em sentido material, entendida como norma abstrata de conteúdo geral, que se aplica a todos por igual sem ter em conta qualquer circunstância particular. | 4) Prevalece o mandato ou regulamentoque, independentemente da sua aparência como lei formal, é uma forma específica de conteúdo concreto que manda fazer determinadas coisas em circunstâncias particulares e que não se aplica a todos por igual. |
5) As leis e instituições que permitem o processo social não foram criadas deliberadamente, mas antes têm uma origem evolutiva e consuetudinária, e incorporam um enorme volume de experiência e informação prática acumulada ao longo de gerações. | 5) Os mandatos e regulamentos emanam deliberadamente do poder organizado e são altamente imperfeitos e equívocos dada a situação de ignorância inerradicável em que o poder se encontra sempre em relação à sociedade. |
6) O processo espontâneo torna possível a paz social, uma vez que cada agente, dentro do âmbito da lei, tira proveito do seu conhecimento prático e persegue os seus fins particulares, cooperando pacificamente com os demais e disciplinando espontaneamente o seu comportamento em função dos outros seres humanos que perseguem fins distintos. | 6) Exige que um fim ou conjunto de finsprevaleça e se imponha a todos mediante o sistema de mandatos, o que gera conflitos e violências sociais insolúveis e intermináveis que impedem a paz social. |
7) A liberdade entendida como ausência de coerção ou agressão (tanto institucional como assistemática). | 7) A «liberdade» entendida como o poder de atingir os fins concretos desejados em cada momento (mediante um simples ato de vontade, mandato ou capricho). |
8) Prevalece o sentido tradicional dejustiça, que implica a aplicação da lei material de forma igual para todos, independentemente dos resultados concretos que se produzam no processo social. A única igualdade que se persegue éa igualdade perante a lei, aplicada por uma justiça cega perante as diferenças particulares dos homens. | 8) Prevalece o sentido espúrio de «justiça dos resultados» ou «justiça social», entendida como igualdade nos resultadosdo processo social, independentemente de qual tenha sido o comportamento (correto ou não do ponto de vista do Direito tradicional) dos indivíduos envolvidos. |
9) Prevalecem as relações de aspectoabstrato, econômico e comercial. Os conceitos espúrios de lealdade, «solidariedade» e de ordem hierárquica não são levados em consideração. Cada agente disciplina o seu comportamento com base nas normas do direito material e participa de uma ordem social universal, não existindo para ele nem «amigos» nem «inimigos», nem próximos nem afastados, mas apenas múltiplos seres humanos, a maior parte deles desconhecidos, com os quais interage de forma mutuamente satisfatória e cada vez mais ampla e complexa (sentido correto do termosolidariedade). | 9) Prevalece o político na vida social e os vínculos básicos são de tipo «tribal»: a)lealdade ao grupo e ao seu chefe; b) respeito pela ordem hierárquica; c) ajuda ao «próximo» conhecido («solidariedade») e esquecimento e até desprezo em relação aos «outros» seres humanos mais ou menos desconhecidos, membros de outras «tribos», em relação aos quais se tem receio e são considerados «inimigos» (sentido espúrio e míope do termo «solidariedade»). |
O socialismo como «ópio do povo»
O último efeito sistemático do socialismo é o de tornar muito difícil que os cidadãos descubram quais são as suas consequências negativas. Pela sua própria essência, o socialismo impede o surgimento de informação relevante necessária para o criticar ou eliminar. Ao serem impedidos pela força de exercer criativamente a sua própria ação humana, os agentes não chegam sequer a ganhar consciência daquilo que deixam de criar no ambiente institucional coercivo em que vivem imersos.
Como diz tão claramente o antigo ditado «o que olhos não veem, o coração não sente».[38] Vai-se criando assim uma miragem na qual os diferentes agentes identificam o órgão coercivo com a existência dos bens e serviços considerados essenciais para a vida e que são proporcionados pela agência. Os agentes não imaginam sequer que o resultado imperfeito dos mandatos coercivos poderia ser alcançado de forma muito mais criativa, rica e eficaz através da livre ação humana empresarial. Desta forma, verifica-se a expansão da autocomplacência, do cinismo e da resignação. Só a existência de uma economia subterrânea e o conhecimento do que acontece noutros regimes comparativamente menos socialistas podem levar ao desencadear dos mecanismos de desobediência civil que são necessários para desmontar, por via evolutiva ou revolucionária, o sistema institucional e organizado de coerção contra o ser humano. Além disso, o socialismo, como qualquer droga, produz «vício» e «rigidez», uma vez que, como vimos, tende a justificar doses cada vez mais elevadas de coerção e faz com que seja muito doloroso e difícil que os seres humanos que se tornam dependentes dele voltem a adquirir os hábitos e comportamentos de aspecto empresarial não baseados na coerção.[39]
Conclusão: o caráter essencialmente antissocial do socialismo
Se nos lembrarmos da definição do conceito de sociedade que demos no final do capítulo anterior, torna-se agora evidente em que sentido não há nada mais antissocial do que o socialismo. De fato, a nossa análise teórica mostrou claramente que, na esfera moral, o socialismo corrompe os princípios que constituem as regras de conduta indispensáveis para a manutenção do tecido social, desprestigiando a lei, cujo conceito se perverte, incitando à sua violação e acabando com a justiça no seu sentido tradicional. Na esfera política, o socialismo tende inevitavelmente para o totalitarismo, uma vez que a coerção sistemática tende a se ampliar a todos os recantos sociais e a destruir a liberdade e a responsabilidade individual. No plano material, o socialismo impede e dificulta em grande medida a produção de bens e serviços, constituindo-se, assim, como um obstáculo para o desenvolvimento econômico. Na área cultural, o socialismo tolhe a criatividade, impossibilitando o desenvolvimento e a aprendizagem de novos padrões de comportamento e dificultando a descoberta e a introdução de inovações. E, no campo científico, o socialismo não é senão um erro intelectual, que decorre da ideia de que a capacidade da mente humana é muito superior a que realmente tem e que, portanto, é possível obter informação precisa para melhorar a sociedade por meio de coerção.[40] Em suma, o socialismo constitui a atividade anti-humana e antissocial por excelência, uma vez que se baseia na coerção sistemática contra a mais íntima e natural essência do ser humano: a sua própria capacidade para agir criativa e livremente.
7. DIFERENTES TIPOS OU CLASSES DE SOCIALISMO
Enunciada a definição teórica de socialismo, explicada a razão por que se trata de um erro intelectual e estudadas as consequências teóricas do mesmo, neste ponto analisaremos os casos particulares mais importantes de socialismo que surgiram ao longo da história. Pretendemos, numa primeira abordagem, ligar a nossa análise teórica com a realidade, utilizando-a para interpretar as características particulares mais importantes de cada tipo de socialismo. Todos os casos que vamos mencionar têm em comum o fato de se tratar de sistemas socialistas, ou seja, de se fundamentarem de forma sistemática na agressão institucional contra o livre exercício da função empresarial. Como veremos, as diferenças entre eles residem não só nos motivos ou objetivos gerais que perseguem, mas também e sobretudo, no grau de extensão e profundidade com que exercem a agressão institucional.
O socialismo real ou das economias de tipo soviético
Este sistema se caracteriza pela grande extensão e profundidade com que é exercida a agressão institucionalizada sobre a ação humana individual e, em concreto, por essa agressão se manifestar, no mínimo, pela tentativa de impedir o livre exercício da função empresarial em relação aos denominados bens econômicos de ordem superior ou fatores de produção. Fatores de produção (bens de capital e recursos da natureza) são todos os bens econômicos que não satisfazem diretamente as necessidades humanas, mas que requerem a intervenção de outros fatores de produção e, em especial, do trabalho humano para, ao longo de um processo produtivo que exige sempre tempo, dar origem a bens e serviços de consumo. Do ponto de vista da teoria da ação humana, são fatores de produção ou bens econômicos de ordem superior todas as etapas intermediárias subjetivamente consideradas como tal pelo agente, que fazem parte de um processo de ação anterior ao seu fim último. Compreendemos agora, portanto, o tremendo efeito que a agressão institucionalizada terá se for ampliada à área dos fatores de produção, uma vez que afetará, em maior ou menor medida e de forma intrínseca, todas as ações humanas. Por isso, este tipo de socialismo foi considerado durante muito tempo como o socialismo mais puro ou o socialismo por excelência. É também conhecido como socialismo real e, para muitos teóricos e pensadores não familiarizados com a teoria dinâmica da função empresarial, é, de fato, o único tipo de socialismo que existe. No que se refere aos seusmotivos, o socialismo real pretende geralmente e de maneira muito apaixonada não só «libertar a humanidade das suas amarras» como alcançar uma igualdade nos resultados, que é considerada o ideal de «justiça». É de grande interesse realizar um estudo detalhado sobre as principais características e a evolução deste primeiro tipo de socialismo, que atualmente se encontra numa situação de franca decadência e decomposição.
Socialismo democrático ou social-democrata
Trata-se do tipo de socialismo mais popular da atualidade. Historicamente surge como uma separação táticado socialismo real, distinguindo-se deste pelo fato de procurar alcançar os seus objetivos através da utilização dos mecanismos democráticos tradicionais que se formaram nos países ocidentais. Mais tarde, e sobretudo como consequência da evolução da social-democracia em estados como a Alemanha Ocidental[41]e outros, o socialismo democrático foi gradualmente abandonando o seu objetivo de «socializar» os meios ou fatores de produção, colocando cada vez mais a ênfase na ideia de exercer a agressão sistemática e institucionalizada sobretudo na área fiscal, com o desejo de equilibrar as «oportunidades sociais» e os resultados do processo social.
Ressalte-se que, ao contrário da impressão que o socialismo social-democrata pretende criar no público, a diferença entre o socialismo real e o socialismo democrático não é uma diferença categórica ou de classe, mas apenas uma diferença de grau. De fato, a extensão e a profundidade da agressão institucional na social-democracia são muito elevadas, tanto no que se refere ao número de áreas e processos sociais afetados como no que se refere ao grau de intervencionismo, regulação e coerção efetiva que é exercido sobre a ação de milhões de seres humanos, que vêem sistematicamente expropriada pela via fiscal uma parte significativa dos resultados da sua própria criatividade empresarial, sendo também forçados a intervir, devido a mandatos e regulamentos, em múltiplas ações que voluntariamente não empreenderiam, ou que realizariam de outra forma.
O socialismo democrático também costuma perseguir causas aparentemente «nobres», como o favorecimento da «redistribuição» de renda e riqueza e um «melhor funcionamento» da sociedade. Além disso, este sistema tende a criar a ilusão de que, por o seu ideal prioritário ser precisamente o ideal «democrático», não existe qualquer problema com a agressão institucional, uma vez que, em última instância, essa agressão é exercida por «representantes» democraticamente eleitos pelos cidadãos. Assim se esconde o fato de as consequência teóricas do socialismo aparecerem inexoravelmente, seja ou não o órgão diretor constituído por representantes eleitos democraticamente. Na verdade, existirem ou não existirem eleições democráticas não afeta em nada o problema básico de ignorância inerradicável na qual se encontra qualquer órgão diretor encarregado de exercer a coerção sistemática. Tenha ou não origem numa câmara democrática, a agressão implica sempre que se impeça, em maior ou menor medida, a interação humana baseada na função empresarial criativa, pelo que impossibilita a coordenação social e provoca todas as outras consequências teóricas próprias do socialismo que já analisamos.
Assim, o problema básico que se coloca na convivência social não é o fato de estar ou não «democraticamente» organizada, mas, pelo contrário, o grau de extensão e profundidade com que é exercida a coerção sistemática contra a livre interação humana. Neste sentido, o próprio Hayek esclarece que se o chamado «ideal democrático» significa colocar ao dispor dos órgãos de representação popular um poder ilimitado de agressão institucional, esse ideal não pode ser considerado democrático nesse sentido. Hayek defende um sistema no qual prevaleça, antes de mais nada, o limite ao poder estatal e a desconfiança em relação à sua própria agressão institucional, sustentado através de um conjunto de órgãos de autocompensação integrados por representantes eleitos democraticamente. A este sistema político, Hayek propõe que se chame «demarquia».[42]
Por fim, verifica-se em toda a extensão do socialismo democrático o efeito de «miragem» descrito no ponto anterior: com a generalização deste sistema em maior ou menor medida na totalidade dos países que não são de socialismo real, não existe um sistema social comparativo que revele aos cidadãos as consequências negativas da agressão institucional social-democrata e que alimente, como acontece com o socialismo real, as correntes necessárias, revolucionárias ou não, em favor do seu desmantelamento e reforma. Apesar de tudo, cada vez se tornam mais evidentes para a população as consequências negativas do estado agressor social-democrata, seja pelos últimos avanços da teoria[43] seja pela prática (pois, na verdade, apesar das várias tentativas realizadas, a social-democracia não conseguiu se manter perfeitamente imune ao fracasso do socialismo real), o que está levando um número cada vez maior de sociedades a iniciar determinadas tendências, já mais ou menos consolidadas, com vista a diminuir a área e a profundidade da coerção sistemática inerente à social-democracia.
Socialismo conservador ou «de direita»
Podemos definir o socialismo conservador ou «de direita» como aquele que utiliza a agressão institucional para manter o status quo social e as situações de privilégio alcançadas por determinadas pessoas ou grupos de pessoas. O objetivo essencial do socialismo «de direita» é, pois, o de manter as coisas tal como estão, impedindo que o livre exercício da função empresarial e da ação humana criativa possa perturbar o esquema pré-estabelecido de organização social. Para conseguir este objetivo, o socialismo «de direita» recorre à agressão sistemática e institucionalizada em todos os níveis necessários. Neste sentido, a única distinção entre o socialismo conservador e o socialismo democrático assenta na diferença de motivos que inspiram os diferentes grupos sociais que cada um pretende privilegiar.
O socialismo conservador ou «de direita» caracteriza-se também pelo seu acentuado paternalismo, entendido como a tentativa de congelar o comportamento dos seres humanos, por meio da atribuição dos papéis de consumidores ou produtores considerada adequada pelo órgão de controle conservador. Além disso, neste tipo de socialismo se pretende geralmente impor através de determinadas ordens comportamentos considerados morais ou religiosos.[44]
Estreitamente relacionado com o socialismo conservador ou «de direita» encontra-se o chamado socialismo militar, que é definido por Mises como o socialismo no qual todas as instituições são concebidas com o fim de fazer guerra e em que a escala de valores para determinar o status social e o rendimento dos cidadãos se baseia, de forma exclusiva ou preferencial, na posição que cada um deles ocupa na relação com as forças armadas.[45] Podem também ser considerados tipos de socialismo conservador ou de direita o socialismo corporativo e o socialismo agrário, que pretendem, respectivamente, organizar a sociedade com base numa estrutura hierárquica de especialistas, gerentes, capatazes, oficiais e trabalhadores ou dividir a terra pela força entre determinados grupos sociais.[46]
Por fim, é preciso ressaltar que o conservadorismo é uma filosofia ancorada no passado, contrária à inovação e à criatividade, que desconfia de tudo o que pode ser criado pelos processos de mercado, e essencialmente oportunista e órfã de princípios gerais, pelo que tende a recomendar que o exercício da coerção institucional seja confiado ao critério ad hoc de governantes «bons e sábios ». Em suma, o conservadorismo é uma doutrina obscurantista que ignora, em geral, o funcionamento dos processos sociais movidos pela empresarialidade e, que, em particular, fecha os olhos ao problema da ignorância inerradicável na qual se encontram imersos todos os governantes.[47]
A engenharia social ou o socialismo cientista[48]
O socialismo cientista é aquele que é patrocinado pelos cientistas e intelectuais, que, por disporem de informação e de conhecimento articulado «superior» ao do resto dos cidadãos, se sentem legitimados a aconselhar ou dirigir o uso sistemático da coerção na esfera social. O socialismo cientista é especialmente perigoso, uma vez que legitima os restantes tipos de socialismo do ponto de vista intelectual, e, em especial, costuma acompanhar o socialismo democrático e o despotismo iluminado próprio do socialismo «de direita». Este tipo de socialismo tem a sua origem na tradição intelectual do chamado nacionalismo cartesiano ou construtivista, de acordo com a qual a razão do intelectual é capaz de tudo, e, concretamente, criou ou inventou de forma deliberada todas as instituições sociais, pelo que pode modificá-las e planificá-las a seu bel-prazer. Assim, este «racionalismo» não reconhece limites às possibilidades da razão humana e, obcecado pelos impressionantes avanços no campo das ciências naturais, da técnica e da engenharia, pretende utilizar na esfera social os mesmos métodos usados naquelas áreas, construindo umaengenharia social que seja capaz de organizar a sociedade de uma forma mais «justa» e «eficiente».
O principal erro do intelectual socialista ou engenheiro social cientista é o de assumir que a informação prática dispersa que os agentes criam e transmitem constantemente no processo social pode ser observada, articulada, armazenada e analisada de forma centralizada por meios científicos. Por outras palavras, o cientista acredita que pode e deve ocupar o nível superior do órgão diretor socialista, em virtude do seu melhor conhecimento e da sua situação de superioridade intelectual relativamente ao resto dos cidadãos, o que o legitima para coordenar a sociedade baseando-se em mandatos e regulamentos coercivos.[49]
O racionalismo cartesiano não é mais do que um falso racionalismo, na medida em que não reconhece os próprios limites da razão humana.[50] Incorre no gravíssimo erro intelectual, especialmente significativo por provir dos seres humanos que pretensamente gozam de uma maior formação intelectual e que deveriam, por isso, ser mais humildes na avaliação das suas próprias possibilidades, de assumir que as normas e instituições sociais que tornam possível o processo de interação humana são um resultado deliberadamente procurado, criado e concebido pelo homem. Não compreendem que essas instituições e normas possam ser o resultado de um processo evolutivo no qual intervieram milhões e milhões de pessoas ao longo de um período muito dilatado de tempo, cada uma delas contribuindo com o seu pequeno acervo de informação e experiência prática gerada ao longo do processo social. É precisamente por isso que não é possível que estas instituições sejam o resultado de uma criação deliberada da mente humana, que não tem a capacidade necessária para absorver toda a informação ou conhecimento prático incorporado pelas referidas instituições.
Hayek se referiu à série de erros em que caem todos os cientistas socialistas, resumindo-os aos seguintes: 1) a ideia de que não é razoável seguir um curso de ação que não possa ser justificado cientificamente ou provado por meio da observação empírica; 2) a ideia de que não é razoável seguir um curso de ação que não seja compreensível (pelo seu caráter tradicional ou de hábito ou costume); 3) a ideia de que não é razoável seguir determinado curso de ação a menos que o seu propósito tenha sido explicitamente definido a priori(incorreram neste grave erro intelectuais da dimensão de Einstein, Russel e o próprio Keynes); 4) a ideia, intimamente relacionada com as anteriores, de que não é razoável empreender qualquer curso de ação a menos que os seus efeitos tenham sido previstos prévia e completamente, tendo sido considerados benéficos do ponto de vista utilitarista, e a menos que sejam plenamente observáveis depois de empreendida a ação.[51] Estes são os quatro erros básicos cometidos pelo intelectual socialista, e todos eles se devem ao erro essencial de considerar que a informação prática que os observados criam e utilizam pode ser aprendida, analisada e melhorada de forma «científica» pelo intelectual observador.
Por outro lado, sempre que acredita ter descoberto uma contradição ou um desajuste no processo social e justifica ou aconselha «cientificamente» o estabelecimento de um determinado mandato que implique uma coerção ou agressão institucionalizada destinada a solucionar esse desajuste, o engenheiro social comete, ainda, outros quatro tipos de erro. São eles: 1) não entender que muito provavelmente a sua «observação» sobre o problema social descoberto é errônea por não ter sido capaz de incorporar toda a informação prática relevante; 2) ignorar que, se de fato existe tal desajuste, o mais provável é que já tenham entrado em funcionamento os processos espontâneos de tipo empresarial que tenderão a eliminá-lo, com uma rapidez e eficácia muito maiores do que a do mandato coercivo proposto; 3) desconhecer que, se prevalece o conselho do cientista e se inicia o «arranjo» social por via coerciva, o mais provável é que essa típica manifestação do socialismo detenha, impeça ou impossibilite o necessário processo empresarial de descoberta e eliminação do desajuste, pelo que o mandato da engenharia social, em vez de resolver o problema, irá agravá-lo ainda mais, tornando impossível a sua eliminação; e 4) o intelectual socialista ignora especificamente que, como consequência da sua atuação, será modificado todo o contexto de referência para o exercício da ação humana e da função empresarial, tornando-as supérfluas e perversas e orientando-as, como vimos, para áreas nas quais normalmente não teria razões para intervir (corrupção, compra de favores do governo, economia subterrânea, etc.).[52] Acrescente-se por fim que a engenharia social se fundamenta numa concepção metodológica errônea da ciência da economia e da sociedade, sustentada no estudo exclusivo dos estados finais de equilíbrio e na arrogante presunção de que toda a informação necessária se encontra dada e disponível para o cientista. Na prática, tais pressupostos e características impregnaram a maior parte da análise econômica desenvolvida até os nossos dias, tornando-a inútil.[53]
Outros tipos de socialismo (cristão-solidário, sindicalista, etc.)
O socialismo de tipo cristão ou «solidário» surge quando determinados resultados do processo social são avaliados de forma negativa do ponto de vista «moral», defendendo-se o uso sistemático da coerção para modificar tais situações de «injustiça». Neste sentido, não existe qualquer diferença entre o socialismo cristão baseado na «santa coerção» e os outros tipos de socialismo que analisamos anteriormente, e só o mencionamos agora separadamente pelos diferentes motivos de aspecto mais ou menos religioso que o justificam. Outra característica típica do socialismo cristão é o fato de se basear num total desconhecimento acerca do funcionamento dos processos sociais movidos pela força da empresarialidade. Nos juízos morais emitidos, prepondera uma vaga ideia de «solidariedade» para com o próximo, sem que se verifique o entendimento de que o processo social de interação humana torna possível o desenvolvimento da civilização não só para os «próximos», mas também para os distantes ou desconhecidos, de uma forma espontânea e através de um processo em que todos cooperam perseguindo os seus fins particulares mesmo sem se conhecerem. Por último, o socialismo cristão não considera a coerção moralmente negativa no caso de esta ser destinada à realização de fins moralmente superiores. No entanto, embora seja «santa», a coerção sistemática não deixa de ser coerção anti-humana e, portanto, continuamos a ter socialismo com todas as consequências analíticas que lhe são próprias e que já enumeramos acima.[54]
Por sua vez, o socialismo sindicalista pretende exercer a coerção de forma sistemática e institucional para criar um sociedade na qual os trabalhadores sejam proprietários diretos dos meios de produção. Este socialismo, por vezes denominado de socialismo de autogestão, não deixa de ser socialismo, na medida em que recorre ao uso generalizado e sistemático da coerção e, consequentemente, reproduz todas as características e consequências do socialismo já analisadas neste capítulo. Além disso, o socialismo sindicalista provoca formas muito peculiares de descoordenação que não aparecem em outros tipos de socialismo, especialmente se não se limitar a uma simples redistribuição da riqueza e pretender manter-se como um sistema econômico e social perdurável. As particularidades típicas deste tipo de socialismo foram analisadas teoricamente com alguma profundidade, e as conclusões da teoria foram perfeitamente ilustradas pelos poucos casos históricos nos quais se pretendeu levar o socialismo sindicalista efetivamente à prática, como foi o caso da Iugoslávia.[55]
8. CRÍTICA DOS CONCEITOS ALTERNATIVOS DE SOCIALISMO
O conceito tradicional e o processo de formação do novo conceito
Tradicionalmente, definiu-se o socialismo como o sistema de organização social baseado na propriedade estatal dos meios de produção.[56] Esta definição, que, na prática, coincide com a definição de «socialismo real» dada anteriormente, foi durante muito tempo a mais generalizada por razões históricas e políticas, tendo também sido a definição originalmente utilizada por Mises no seu tratado crítico sobre o socialismo em 1922.[57] Mais tarde, foi considerada pelo mesmo e pelo resto da sua escola como ponto de referência ao longo da posterior discussão em torno da impossibilidade do cálculo econômico socialista que teremos a oportunidade de estudar ao pormenor nos próximos capítulos.
No entanto, logo desde a origem, esta definição tradicional de socialismo se revela pouco satisfatória. Por um lado, tinha um caráter marcadamente estático, uma vez que era formulada em função da existência ou não de uma determinada instituição jurídica (o direito de propriedade) em relação a uma categoria econômica específica (os meios de produção). A utilização desta definição exigia, assim, a explicação prévia daquilo que se entendia por direito de propriedade e das implicações do conceito na área da economia. Além disso, a própria discussão em torno da impossibilidade do socialismo mostrou que os diferentes cientistas nela envolvidos tinham dificuldades significativas de comunicação entre si, precisamente pelo seu conceito de direito de propriedade ter significados e conteúdos implícitos diferentes. Por último, a definição tradicional parecia excluir do seu âmbito o intervencionismo e a regulação econômica, que, apesar de não exigir uma estabilização completa dos meios de produção, acabava por provocar efeitos de descoordenação muito semelhantes. Por todas estas razões, parecia muito conveniente continuar a procurar e encontrar uma definição de socialismo que fosse à própria raiz da questão, estivesse tão livre quanto possível de conceitos que pudessem se prestar a interpretações equívocas e, tal como os processos sociais aos quais se haveria de aplicar, tivesse um caráter acentuadamente dinâmico.
Por outro lado, uma das consequências mais importantes do debate sobre a impossibilidade do cálculo econômico socialista foi o desenvolvimento e aperfeiçoamento por parte dos economistas da Escola Austríaca (Mises, Hayek e, sobretudo, Kirzner) de uma teoria da função empresarial na qual esta surgia como a principal força criadora de todos os processos sociais. A descoberta de que era precisamente a capacidade empresarial inata do homem, manifestada através da sua própria ação criativa, o que tornava a vida em sociedade possível ao entender os desajustes sociais e ao criar e transmitir a informação necessária para que cada agente aprendesse a disciplinar o seu comportamento em função dos seus congêneres indicou definitivamente o caminho para a elaboração de um conceito de socialismo verdadeiramente científico.
O mais importante passo seguinte do processo de formação de uma definição adequada de socialismo foi dado por Hans-Hermann Hoppe em 1989.[58] Hoppe demonstrou que a característica essencial do socialismo é o fato de se basear numa agressão ou interferência institucional contra o direito de propriedade. A sua definição é mais dinâmica e, logo, muito mais funcional do que a definição tradicional. Nesta definição, não se fala da existência ou não de direitos de propriedade, mas sim de se saber se institucionalmente, ou seja, de forma repetitiva e organizada, se exerce coerção ou violência física contra o direito de propriedade. Embora consideremos a definição de Hoppe um avanço importante, não nos parece ainda completamente satisfatória, uma vez que, por um lado, exige a explicitação ou definição ab initio do que se entende por direito de propriedade e, por outo lado, não faz qualquer referência ao exercício da função empresarial como força motriz de todos os processo sociais.
Combinando a intuição de Hoppe, no sentido em que todo o socialismo implica a utilização sistemática de coerção, com as últimas contribuições da teoria da função empresarial devidas ao Professor Kirzner, chegamos à conclusão de que a definição mais adequada de socialismo é aquela que foi proposta e utilizada no presente capítulo, e segundo a qual socialismo é todo o sistema organizado de agressão institucional contra a função empresarial e a ação humana. Esta definição tem, em primeiro lugar, a vantagem de ser de fácil compreensão para qualquer pessoa, sem necessidade de exigir a priori um explicação elaborada sobre o que se entende por direito de propriedade e qual deverá ser o seu conteúdo. Qualquer pessoa compreende que a ação humana pode ser agressora ou não e que, quando não o for ou consistir especificamente na defesa a agressões arbitrárias e assistemáticas exteriores, essa ação é a mais íntima e típica manifestação do ser humano e, logo, algo completamente legítimo que é preciso respeitar.
Ou seja, consideramos que a nossa definição de socialismo é a mais adequada uma vez que é expressa em termos da ação humana e, logo, da mais íntima essência do homem. Além disso, concebe o socialismo como uma agressão institucionalizada precisamente contra as forças que tornam possível a vida em sociedade, e, neste sentido, a afirmação de que não há nada mais antissocial do que o próprio sistema socialista só aparentemente é paradoxal. Demonstrar esta realidade é uma das maiores virtudes da definição de socialismo que propomos. Não há dúvida de que o processo de interação social livre de agressões exige o cumprimento de todo um conjunto de leis, normas ou hábitos de conduta, que constitui o direito em sentido material, ou seja, o quadro dentro do qual se podem realizar as ações humanas. No entanto, o direito não precede o exercício da ação humana, sendo, antes, o resultado evolutivo e consuetudinário do próprio processo social de interação. Por isso, de acordo com a nossa definição, o socialismo não é um sistema de agressão institucional contra uma consequência evolutiva da função empresarial (o direito de propriedade), mas um sistema de agressão contra a própria ação humana ou função empresarial. A nossa definição de socialismo permite relacionar diretamente a teoria da sociedade com a teoria sobre o direito, o seu surgimento, desenvolvimento e evolução. Além disso, não impede que, no plano teórico, nos perguntemos que direitos de propriedade surgem do processo social não coercivo, quais são os direitos de propriedade justos e até que ponto o socialismo é ou não eticamente admissível.
Socialismo e intervencionismo
Outra vantagem da definição de socialismo dada acima é que engloba ou integra no seu âmbito o sistema social baseado no intervencionismo. De fato, quer se considere o intervencionismo uma típica manifestação do socialismo ou, como é mais comum, um sistema intermediário entre o «socialismo real» e o processo social livre,[59] torna-se evidente que, uma vez que qualquer medida intervencionista é uma agressão institucional exercida coercivamente em determinada área social, o intervencionismo, independentemente do seu grau, classe ou motivação, é, na perspectiva da nossa definição, socialismo e, consequentemente, produzirá inexoravelmente todos os efeitos descoordenadores detalhadamente analisados neste capítulo.
A equiparação dos termos socialismo e intervencionismo, longe de ser uma ampliação injustificada dos sentidos que estes termos habitualmente transmitem, é uma exigência analítica da teoria dos processos sociais baseados na função empresarial. De fato, embora os primeiros teóricos da Escola Austríaca que se ocuparam do intervencionismo o tenham considerado como uma categoria conceitual distinta do socialismo, à medida que a discussão sobre a impossibilidade do cálculo econômico socialista foi avançando, as fronteiras entre ambos os conceitos foram se diluindo, até aos dias de hoje, em que se tornou evidente para os cultivadores da teoria da função empresarial que não existe qualquer diferença qualitativa entre o socialismo e o intervencionismo,[60] embora se possa admitir que, coloquialmente, os termos sejam usados para se referir aos diferentes graus em que pode manifestar uma mesma realidade.
Além disso, a definição de socialismo proposta permite que a ciência cumpra o importante papel de desmascarar as tentativas, muito comuns atualmente nos âmbitos político, social e cultural, de imunizar o intervencionismo dos naturais e inevitáveis efeitos exercidos sobre ele pelo desmoronamento econômico, social e político daquele que não é senão o seu antecedente mais próximo e a sua inspiração intelectual: o «socialismo real». Socialismo real e intervencionismo são, no máximo, não mais do que duas manifestações, com diferentes graus de intensidade, de uma mesma realidade coerciva e institucional e partilham na íntegra o mesmo erro intelectual essencial e as mesmas perniciosas consequências sociais.[61]
A vacuidade dos conceitos «fantasiosos» de socialismo
Torna-se vácuo e inútil definir o socialismo com base em valorações idílicas e subjetivas. Este tipo de definições, preponderante desde o princípio, nunca desapareceu por completo e adquiriu um novo impulso recentemente como um subproduto do desmantelamento do «socialismo real» e do firme desejo de muitos intelectuais de salvar pelo menos um conceito idílico do socialismo capaz de manter alguma atração popular. Assim, não é incomum encontrar definições que identificam o socialismo com a «harmonia social», a «união harmoniosa do homem com a natureza»,[62] ou a «simples maximização do bem-estar social».[63] Todas estas definições carecem de conteúdo enquanto não permitirem explicitar se o autor que as propõe pretende justificar ou não o exercício sistemático da coerção institucional contra a livre interação humana. Desta forma, é preciso definir em cada caso quando nos encontramos perante oportunismo simples e grosseiro, perante um desejo deliberado de mascarar com uma maquiagem apelativa a agressão institucional ou, simplesmente, perante casos de confusão intelectual e falta de clareza de ideias.
O termo «socialismo» poderá algum dia ser reabilitado?
Embora não seja impossível, será muito difícil e altamente improvável que o sentido do termo «socialismo», baseado em tão crasso erro intelectual e fruto de tão fatal arrogância científica, possa mudar de tal modo no futuro, que permita a sua reabilitação e uma redefinição baseada numa análise teórica dos processos sociais livre de erros científicos. A única possibilidade disso acontecer seria com base na redefinição do socialismo utilizando o conceito de sociedade como ordem e processo espontâneo, movido pela capacidade empresarial inata do homem que apresentamos e explicamos detalhadamente no capítulo anterior. Desta forma, desapareceria o caráter essencialmente antissocial que o conceito de socialismo tem atualmente, passando a significar qualquer sistema coercivo que respeita os processos de livre interação humana e convertendo-se assim em sinônimo de termos como «liberalismo econômico» ou «economia de mercado livre» ou «livre empresa» que têm um sentido de maior respeito em relação aos processos sociais espontâneos e de minimização da coerção sistemática exercida sobre eles pelo estado.[64] No entanto, o desencanto e a decepção decorrentes da intensa e contínua busca pelo ideal socialista, juntamente com a natureza essencialmente arrogante do ser humano em todas as áreas, e especialmente na área científica, política e social, fazem com que seja quase impossível imaginar que essa evolução semântica positiva possa, na prática, algum dia acontecer.
[1] O Diccionario de la Real Academia Española define coerção como a «a força ou violência que se exerce sobre uma pessoa para que execute alguma coisa». Procede do latim cogere, impelir, e de coactionis, que fazia referência à coleta de impostos. Sobre o conceito de coerção e os seus efeitos sobre o agente, consultar o livro de F.A. Hayek, The Constitution of Liberty, Routledge, Londres, reimpressão de 1990. Ver especialmente as pp. 20-21. Murray N. Rothbard, por sua vez, define a agressão da seguinte forma: «Aggression is defined as the initiation of the use or threat of physical violence against the person or property of someone else.» Ver Murray N. Rothbard, For a New Liberty, Macmillan Publishing, Nova Iorque, 1973, p. 8. A coerção pode ser de três tipos: autista, binária e triangular. A agressão autista é aquela em que existe um mandato dirigido estritamente a um sujeito, que modifica o comportamento do agente alvo de coerção, mas sem que isso afete qualquer interação com outro ser humano; agressão binária é aquela em que o órgão diretor exerce coerção sobre o agente com o objetivo de obter deste algo contra a sua vontade, ou seja, o órgão diretor força uma troca com o agente alvo de coerção que reverterá a seu favor; e, coerção triangular é aquela em que o mandato e a coerção do órgão diretor são usados para forçar uma troca entre dois agentes distintos. Esta classificação encontra-se em Murray N. Rothbard, Power and Market.Government and the Economy, Institute for Humane Studies, Menlo Park, Califórnia, 2.ª ed., 1970, pp. 9 e 10; Scholar’s Edition, juntamente com Man, Economy, and State, Ludwig von Mises Institute, Auburn, Alabama, 2004, pp. 1047-1407.
[2] Já em junho de 1850, F. Bastiat fez a distinção entre os conceitos de coerção sistemática e assistemática em «La Ley», Obras Escogidas, Unión Editorial, Madri, 2004, pp. 192-193. É óbvio que não incluímos no conceito de agressão sistemática descrito no texto o nível mínimo de coerção institucional que é necessário para prevenir e corrigir os efeitos negativos da agressão arbitrária não institucional ou assistemática. Até o agressor não institucional deseja este nível mínimo de coerção, fora do âmbito da sua agressão assistemática, para poder tirar proveito mesmo que de forma pacífica. A solução do problema, que se coloca em qualquer sociedade no que se refere à prevenção e correção dos efeitos da agressão assistemática ou não institucional, exige o desenvolvimento de uma teoria ética dos direitos de propriedade, cujo principal fundamento consiste em considerar que o agente é o justo proprietário de tudo o que seja resultado da sua criatividade empresarial, praticada sem o exercício de qualquer tipo de agressão ou coerção contra ninguém. Consideramos que é socialismo qualquer ampliação do âmbito da coerção sistemática para além do mínimo necessário para a manutenção das instituições jurídicas que definem e regulam o direito de propriedade. O estado é, por excelência, a organização da coerção sistemática ou institucional e, neste sentido, sempre que se ultrapasse o mínimo de coerção necessário para prevenir e erradicar a agressão assistemática, estado e socialismo tornam-se conceitos intimamente ligados. Embora este não seja o lugar para apresentar os diferentes argumentos utilizados na interessante discussão que está se desenvolvendo no campo da teoria liberal entre os defensores de um sistema de governo estritamente limitado e os partidários do sistema anarco-capitalista, é preciso salientar que estes últimos argumentam que é utópico pensar que uma organização monopolista da coerção pode autolimitar-se de forma eficaz. De fato, todas as tentativas históricas de limitar o poder estatal ao nível mínimo já referido fracassaram, sendo que os teóricos anarco-capitalistas propõem um sistema de organizações competitivas de registro voluntário para enfrentar o problema da definição e defesa dos direitos, bem como da prevenção e repressão da delinquência. Além disso, se o estado estritamente limitado se financia coercivamente por meio de impostos, ou seja, agredindo sistematicamente a cidadania e a sua liberdade de ação no campo da definição e defesa do direito de propriedade, então, em sentido estrito, também o estado limitado poderia ser qualificado de socialista. Por sua vez, os defensores do governo limitado argumentam que até as agências privadas de defesa se veriam forçadas a chegar a acordos de princípio e organização entre si, sendo que, mais uma vez, se tornaria inevitável o surgimento de fato do estado como um resultado do próprio processo de evolução social. Sobre o conteúdo desta interessante discussão podem ser citadas, entre outras, as seguintes obras: David Friedman, The Machinery of Freedom, Open Court, Ilinóis 1989; Murray N. Rothbard, For a New Liberty, Macmillan, Nova Iorque, 1973; e A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, São Paulo, 2010, Capítulo 23; Robert Nozick, Anarquia, Estado e Utopia, Martins Fontes, São Paulo, 2011. Por sua vez, Hayek não se pronunciou categoricamente sobre as possibilidades futuras de desenvolvimento de um sistema anarco-capitalista. Contra esta possibilidade, assinala o fato de até agora não ter surgido uma sociedade sem estado em nenhum processo de evolução social, para depois apontar que, de qualquer forma, o processo evolutivo de desenvolvimento social ainda não parou, sendo que é impossível saber hoje se, no futuro, o estado desaparecerá, convertendo-se numa triste e obscura relíquia histórica, ou se, pelo contrário, subsistirá como estado mínimo de poder estritamente limitado (o autor descarta a existência a longo prazo do estado intervencionista ou de socialismo real, dada a impossibilidade teórica de ambos os modelos). Ver,The Fatal Conceit: The Errors of Socialism. João Paulo II (Centesimus Annus, obra citada, Capítulo V) assinala que a primeira incumbência do estado é garantir a segurança da liberdade individual e a propriedade, de modo que «quem trabalha e produz possa gozar dos frutos do próprio trabalho e, consequentemente, se sinta estimulado a cumpri-lo com eficiência e honestidade», acrescentando que, além disso, o estado só deve intervir em circunstâncias de excepcional urgência, de forma temporária e sempre tendo por base o princípio da subsidiariedade com a sociedade civil. Assinale-se por fim que, em muitas sociedades, a agressão sistemática não só é exercida diretamente pelo estado, como, em muitas áreas, é realizada por grupos ou associações, como os sindicatos, que, na prática, gozam do «privilégio» de poder exercer impunemente a violência sistemática contra o resto da cidadania com o consentimento do estado.
[3] «Onde o interesse individual é violentamente suprimido, acaba substituído por um pesado sistema de controle burocrático, que esteriliza as fontes da iniciativa e criatividade», João Paulo II, Centesimus Annus, 1 de maio de 1991, obra citada, Capítulo III, n.º 25, terceiro parágrafo, http://www.vatican.va/edocs/POR0067/__P5.HTM.
[4] Ludwig von Mises já tinha afirmado que «the idea of socialism is at once grandiose and simple. We may say, in fact, that it is one of the most ambitious creations of the human spirit, so magnificent, so daring, that it has rightly aroused the greatest admiration. If we wish to save the world from barbarism we have to refute socialism, but we cannot thrust it carelessly aside». Socialism. An Economic and Sociological Analysis, Liberty Classics, Indianapolis, 1981, p. 41.
[5] João Paulo II utiliza esta mesma terminologia na sua encíclica Centesimus Annus, onde afirma expressamente, num contexto de crítica ao estado «assistencial» ou do Bem-estar, que «uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências» (obra citada, Capítulo V, n.º 48, quarto parágrafo, http://www.vatican.va/edocs/POR0067/__P7.HTM). Em última instância, a coerção típica da ordem superior poderá ser exercida por uma só pessoa ou, como é mais normal, por um grupo de pessoas que irá agir geralmente de forma organizada embora nem sempre coerente. Num e noutro caso, a agressão é exercida por um número relativamente diminuto de pessoas em comparação com o total da população alvo de coerção que constitui os grupos sociais de ordem inferior.
[6] F.A. Hayek opõe o conceito de mandato ao conceito de lei em sentido material, que, por contraste, poderíamos definir como a norma abstrata de conteúdo geral que se aplica a todos os seres humanos por igual sem ter em conta qualquer tipo de circunstância particular. Contrariamente ao indicado no texto acerca do mandato, a lei estabelece um quadro dentro do qual é possível que cada agente crie e descubra conhecimento novo e que tire proveito do mesmo perseguindo os seus fins particulares em cooperação com os demais, e tudo independentemente de quais sejam os referidos fins, desde que ao abrigo da lei. Além disso, as leis, ao contrário dos mandatos, não são criações deliberadas da mente humana, tendo, antes, uma origem consuetudinária, ou seja, são instituições que se foram formando ao longo de um período muito longo de tempo como consequência da participação de muitos indivíduos, cada um dos quais, através do seu comportamento, foi integrando nas mesmas o seu pequeno acervo de experiência e informação. Esta distinção clara entre lei e mandato passa muitas vezes despercebida para a maioria das pessoas, como consequência da evolução da legislação estatal que, na sua maioria, é constituída quase exclusivamente por mandatos que são promulgados com forma de lei. Ver F.A. Hayek, The Constitution of Liberty, obra citada. No quadro n.º III-1 deste capítulo, resumimos a forma como o socialismo corrompe a lei e a justiça, substituindo-as pela imposição arbitrária de mandatos.
[7] Nas palavras do próprio Hayek: «This means that the, in some respects always unique, combinations of individual knowledge and skills, which the market enables them to use, will not merely, or even in the instance, be such knowledge of facts as they could list and communicate if some authority ask them to do so. The knowledge of which I speak consists rather of a capacity to find out particular circumstances, which becomes effective only if possesors of this knowledge are informed by the market which kind of things or services are wanted, and how urgently they are wanted.» Ver «Competition as a Discovery Procedure» (1968), incluído em New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1978, p. 182. Da mesma forma, na p. 51 do Capítulo II do volume I, intitulado «Rules and Order», da obra de F.A. Hayek, Law, Legislation and Liberty (The University of Chicago Press, Chicago, 1973; podemos ler o seguinte: «This is the gist of the argument against interference or intervention in the market order. The reason why such isolated commands requiring specific actions by members of the spontaneous order can never improve but must disrupt that order is that they will refer to a part of a system of interdependent actions determined by information and guided by purposes known only to the several acting persons but not to the directing authority. The spontaneous order arises from each element balancing all the various factors operating on it and by adjusting all its various actions to each other, a balance which will be destroyed if some of the actions are determined by another agency on the basis of different knowledge and on the service of different ends» (itálico acrescentado).
[8] Ludwig von Mises, Ação Humana, cit., p. 792.
[9] Qual é o preço justo ou matemático das coisas?, perguntavam-se os teóricos espanhóis dos séculos XVI e XVII, chegando à conclusão de que o preço justo depende de uma quantidade tão grande de circunstâncias particulares, que só Deus pode conhecê-lo, sendo que, para efeitos humanos, o preço justo é o que resulta espontaneamente do processo social, ou seja, o preço de mercado. João Paulo II expressa esta mesma ideia na sua encíclica Centesimus Annus (obra citada, Capítulo IV, n.º 32, p. 66) quando afirma que o preço justo é aquele «estabelecido de comum acordo, mediante uma livre negociação». Talvez na própria raiz ou fundamento do socialismo se oculte o atávico desejo que o homem tem de querer ser como Deus, ou melhor, de acreditar que é Deus, e, portanto, que pode dispor de um volume de conhecimento ou informação muito maior do que é humanamente possível. Assim, o cardeal jesuíta Juan de Lugo (1583-1660) escreveu que «pretium iustum mathematicum, licet soli Deo notum» (Disputationes de Iustitia et Iure, Lyon 1643, volume II, D.26, S.4, N.40). Por sua vez, Juan de Salas, também jesuíta e professor de filosofia e teologia em diversas universidades de Espanha e em Roma afirmou, tal como Juan de Lugo, referindo-se à possibilidade de se conhecer o preço justo que «quas exacte comprehendere et ponderare Dei est, non hominum» (Commentarii in Secundam Secundae D. Thomae de Contractibus, Lyon 1617, Tr. de Empt. et Vend., IV, número 6, p. 9). Outras citações interessantes de teóricos espanhóis da época foram reunidas por F.A. Hayek em Law, Legislation and Liberty, obra citada, volume II, pp. 178 e 179. Pode se encontrar um resumo das importantes contribuições de ciência econômica dos teóricos espanhóis dos séculos XVI e XVII no artigo de Murray N. Rothbard intitulado «New Light on the Prehistory of the Austrian School», The Foundations of Modern Austrian Economics, Sheed and Ward, Kansas City, 1976, pp. 52-74 (reeditado em The Logic of Action I, Edward Elgar, Chetelham, Inglaterra, 1997, pp. 173-194).
[10] No seu artigo «Die Wirtschaftsrechnung im sozialistischen Gemeinwesen», publicado no Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, volume 47, pp. 86-121, Mises deu uma contribuição original e genial em 1920, quando chamou a atenção para a impossibilidade de se realizar cálculos econômicos sem se fazer uso da informação ou do conhecimento prático disperso que só pode ser gerado num mercado livre. A verão inglesa deste artigo encontra-se incluída, com o título «Economic Calculation in the Socialist Commonwealth», na obra editada por F.A. Hayek Collectivist Economic Planning, Augustus M. Kelley, Clifton, 1975, pp. 87 a 130. A ideia-chave de Mises é apresentada na p. 102, quando diz que «the distribution among a number of individuals of administrative control over economic goods in a community of men who take part in the labour of producing them, and who are economically interested in them, entails a kind of intellectual division of labour, which would not be possible without some system of calculating production and without economy» (itálico acrescentado). Dedicaremos todo o capítulo seguinte a estudar detalhadamente todas as implicações do argumento misesiano, bem como a análise do debate que o texto gerou.
[11] «O paradoxo do “planejamento” é a impossibilidade de se fazer um plano onde não exista cálculo econômico. O que se denomina de economia planificada pode ser tudo, menos economia. É apenas um sistema de tatear no escuro. Não permite uma escolha racional de meios que tenham em vista atingir objetivos desejados. O que se denomina de planejamento consciente é, precisamente, a eliminação da ação com um propósito consciente. » Ludwig von Mises, Ação Humana, obra citada, pp. 797-798. Sobre o «paradoxo do planejamento» e o conceito de responsabilidade, ver o ponto 6 deste capítulo.
[12] Ou seja, existirá sempre um «lag» ou «salto qualitativo» entre o grau de complexidade que o órgão diretor pode suportar com os seus equipamentos informáticos e o criado de forma descentralizada e espontaneamente pelos atores sociais que disponham de equipamentos similares (pelo menos da mesma geração), que será sempre muito mais complexo. Talvez Michael Polanyi tenha sido quem melhor explicou este argumento quando afirmou que «our whole articulate equipment turns out to be merely a tool box, a supremely effective instrument for deploying our inarticulate faculties. And we need not hesitate then to conclude that the tacit personal coefficient of knowledge predominates also in the domain of explicit knowledge and represents therefore at all levels man’s ultimate faculty for acquiring and holding knowledge. (…) Maps, graphs, books, formulae, etc. offer wonderful opportunities for reorganizing our knowledge from ever new points of view. And this reorganization is itself, as a rule, a tacit performance.» Ver The Study of Man, cit., pp. 24 e 25. Ver também o argumento de Rothbard que comentamos na nota 84 do Capítulo VI.
[13] Além disso, de acordo com Hayek, é um contradição lógica pensar que a mente humana poderá algum dia explicar a si própria, e, mais, que a sua capacidade de geração de informação nova possa ser reproduzida. O argumento de Hayek, já por nós mencionado na nota 16 do Capítulo II, é o de que uma ordem, constituída por um determinado sistema conceitual de categorias, pode explicar ordens mais simples (ou seja, compostas por um sistema de categorias mais simples), mas é inconcebível que se explique ou reproduza a si própria e que dê conta de ordens mais complexas, uma vez que, logicamente, é impossível que um sistema de categorias se explique a si mesmo, ou uma estrutura ou um sistema conceitual de categorias mais complexo. Ver F.A. Hayek, The Sensory Order, cit., pp. 185-188. Ver também os argumentos desenvolvidos por Roger Penrose contra as possibilidades futuras de desenvolvimento da inteligência artificial no livro citado na nota 26 do capítulo anterior. Assinale-se, por fim, que mesmo que o projeto do paradigma da inteligência artificial viesse a ter êxito no futuro (o que considero impossível pelas razões já apontadas), isso significaria apenas a criação adicional de novas inteligências «humanas», que seriam integradas no processo social, complicando-o e afastando-o ainda mais do ideal socialista (devo este argumento ao meu bom amigo Luis Reig Albiol).
[14] O argumento dado no texto demonstra quão absurdo é pensar, como fazem muitos «intelectuais» não versados no funcionamento da sociedade, que é «evidente» que quanto mais complexa se torne a sociedade, mais necessária é a intervenção exógena e coerciva de tipo institucional. Esta ideia tem origem em Benito Mussolini, segundo o qual: «Fomos os primeiros a afirmar que, quanto mais complexa se torna a civilização, mais se deve restringir a liberdade do indivíduo» (citado por F.A. Hayek em O Caminho da Servidão, Instituto Ludwig von Mises Brasil, São Paulo, 2010, p. 65). No entanto, como demonstramos acima, a realidade lógico-teórica é precisamente a oposta: quanto mais a riqueza da sociedade e o desenvolvimento da civilização crescem, muito mais difícil se torna o socialismo. Quanto menos avançada ou mais atrasada for a sociedade e quanto mais meios de tratamento o órgão diretor tenha ao seu alcance, menos complicado parece o problema do socialismo (embora do ponto de vista lógico e teórico seja sempre impossível que o mesmo se exerça sobre seres humanos dotados na sua ação de uma capacidade criativa inata).
[15] Devemos mencionar neste ponto todo um grupo de «cientistas dos computadores» que apresentaram as contribuições da Escola Austríaca da Economia à comunidade de teóricos da informática, desenvolvendo até todo um novo programa de investigação científica denominado «Agoric Systems» (que, etimologicamente, vem do termo grego utilizado para descrever «o mercado») e que tem por base a suposição de que a teoria dos processos de mercado é fundamental para se obter novos avanços no campo da informática. Em particular, devemo mencionar Mark S. Miller e a K. Eric Drexler, da Universidade de Stanford (ver a sua obra «Markets and Computation: Agoric Open Systems», publicada em The Ecology of Computation, ed. B.A. Huberman, North Holland, Amsterdã, 1988); e também o artigo resumo deste programa «High-tech Hayekians: Some Possible Research Topics in the Economics of Computation» de Don Lavoie, Howard Baetjer e William Tulloh, Market Process, volume 8, primavera de 1990, pp. 120- 146 e toda a bibliografia aí citada.
[16] Este é precisamente o título da última obra de F.A. Hayek, The Fatal Conceit. The Errors of Socialism,The Collected Works of F.A. Hayek, edição de W.W. Bartley III, The University of Chicago Press, Chicago, 1989. O próprio Hayek, numa entrevista concedida em Madri a Carlos Rodríguez Braun, disse que a essência do seu livro era demonstrar que «é uma presunção, uma arrogância pensar que se sabe o suficiente para ordenar a vida em sociedade, vida que é, na verdade, o resultado de um processo que utiliza o conhecimento disperso de milhões de pessoas diferentes. Pensar que podemos planejar este processo é completamente absurdo.» Ver Revista de Occidente, n.º 58, março de 1986, pp. 124 a 135.
[17] F.A. Hayek, Rules and Order, volume I de Law, Legislation and Liberty, obra citada, Capítulo II, pp. 35-54 e José Ortega y Gasset, Mirabeau o el Político, Obras Completas, Revista de Occidente, Madri, 1947, vol. 3, p. 603.
[18] Diccionario de la Real Academia Española, segunda aceção.
[19] Até o muito perspicaz Michael Polanyi caiu no generalizado erro de pensar que, por ser incapaz de produzir efeitos práticos, este tipo de experimentação planificadora seria relativamente inócua e pouco perigosa, ignorando que tentar avançar com os utópicos programas de engenharia social prejudica gravemente a coordenação social. Ver The Logic of Liberty, obra citada, p. 111. Os responsáveis dos órgãos de coerção não são capazes de explicar a razão pela qual, apesar do seu denodo e esforço, a engenharia social não funciona ou funciona cada vez pior e, muitas vezes, acabam por cair na hipocrisia ou no desespero, atribuindo o mau decorrer dos acontecimentos ao castigo divino — como fez o Conde Duque de Olivares, como veremos na nota 49 — ou à «falta de colaboração e má vontade da própria sociedade civil» (Felipe González Márquez na sua intervenção na Universidade Carlos III de Madri a propósito do dia da Constituição, 6 de dezembro de 1991).
[20] Talvez Eugen von Böhm-Bawerk tenha sido quem primeiro demonstrou este efeito autodestrutivo da coerção institucional no seu artigo «Macht oder ökonomisches Gesetz?» publicado no Zeitschrift für Volkswirtschaft, Sozialpolitik und Verwaltung, Viena, volume XXIII, dezembro 1914, pp. 205 a 271. Este artigo foi traduzido para o inglês em 1931 por J.R. Mez e encontra-se publicado com o título de «Control or Economic Law?» em Shorter Classics of Eugen von Böhm-Bawerk, volume I, Libertarian Press, South Holland, Illinois, 1962, pp. 139-199. Em concreto, na p. 192 da versão inglesa deste artigo podemos ler que «(…) any situation brought about by means of “power” may again bring into play motives of self interest, tending to oppose its continuance». Posteriormente, Ludwig von Mises continuou esta mesma linha de investigação no seu Kritik des Interventionismus: Untersuchungen zur Wirtschaftspolitik und Wirtschaftsideologie der Gegenwart, publicado por Gustav Fischer, Jena 1929, e traduzido para o inglês com o título de Uma Crítica ao Intervencionismo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, São Paulo, 2010. Mises conclui que «all varieties of interference with the market phenomena not only fail to achieve the ends aimed at by their authors and supporters, but bring about a state of affairs which —from the point of view of their authors’ and advocates’ valuations— is less desirable than the previous state of affairs which they were designed to alter.» Posteriormente destaca-se o trabalho de M.N. Rothbard Governo e Mercado: a economia da intervenção estatal, Instituto Ludwig von Mises Brasil, São Paulo, 2013. Mas o tratamento deste tema que consideramos mais brilhante é o desenvolvido por Israel M. Kirzner no seu magnífico artigo «The Perils of Regulation: A Market Process Approach», incluído na sua obra Discovery and the Capitalist Process, já citada, pp. 119 e 149.
[21] Esta característica do socialismo, que consiste no fato de a tomada de decisões a todos os níveis não se encontrar convenientemente restringida por questões de custos, foi batizada por János Kornais com a expressão «soft budget constraint», que, apesar de ter alcançado algum êxito, está, na nossa opinião, excessivamente influenciada pelas manifestações mais óbvias do problema fundamental nas organizações industriais (impossibilidade de gerar a informação exigida pelo cálculo de custos quando não há uma função empresarial livre), o que leva a que muitos teóricos acabem indevidamente por não lhe dar a importância que merece e por não tratar o problema adequadamente. Ver János Kornai, Economics of Shortage, North Holland, Amsterdã, 1980. Mais recentemente, contudo, Kornai, conseguiu articular a sua teoria em termos da função empresarial, demonstrando que entendeu finalmente a essência do argumento austríaco sobre o planejamento. Ver o seu artigo «The Hungarian Reform Process: Visions, Hopes and Reality», Journal of Economic Literature, volume XXIV, dezembro de 1986, reeditado em Visions and Reality: Market and State, Harvester, Londres, 1990, pp. 156-157. Sobre este mesmo tema são também interessantes os trabalhos de Jan Winiecki, em especial The Distorted World of Soviet-Type Economies, Routledge, Londres 1988 e 1991, eEconomic Prospects East and West: A View from the East, CRCE, Londres, 1987.
[22] Consideramos que uma ação é «responsável» quando o agente que a inicia tem em consideração o custo em que tanto ele como as outras pessoas com ele relacionadas incorrem como resultado dessa ação. Custo é o valor subjetivo que o agente dá àquilo a que renuncia quando atua e só pode ser estimado adequadamente se se dispuser de informação subjetiva necessária, tácita e prática, relativamente às circunstâncias pessoais e às circunstâncias dos outros indivíduos com que interage. Se esta informação prática não puder ser gerada ou transmitida, por não se permitir o livre exercício da função empresarial (coerção sistemática) ou por não se definirem ou defenderem adequadamente os respectivos direitos de propriedade (coerção assistemática),os custos não podem ser estimados pelo agente e, portanto, a sua ação tenderá a se tornar irresponsável. Sobre o conceito de responsabilidade, consultar o artigo de Garret Hardin, «An Operational Analysis of Responsibility», em Managing the Commons, editado por Garret Hardin e John Baden, W.H. Freeman, San Francisco, 1977, p. 67. Esta irresponsabilidade típica do socialismo faz com que o fenômeno de destruição dos bens comunais (que Garret Harding qualificou de «tragédia») se estenda num regime socialista a todas as áreas sociais nas quais incide (M. Rothschild, Bionomics, Henry Holt, Nova Iorque, 1990, Capítulo II).
[23] O misticismo reverencial em relação às estatísticas tem origem no próprio Lenin, que disse: «bring statistics to the masses, make it popular, so that the active population learn by themselves to understand and realise how much and what kind of work must be done». Traduzido da p. 33 de Die nächsten Aufgaben der Sowjetmacht, Berlim 1918, por F.A. Hayek, Collectivist Economic Planning, Augustus M. Kelley, Clifton 1975, p. 128. Sobre o excesso de produção de estatísticas provocado pelo intervencionismo, assim como o grave prejuízo social, custo e ineficácia que as geram, consultar o artigo de Stephen Gillespie «Are economic statistics overproduced?», Public Choice, volume 67, n.º 3, dezembro 1990, pp. 227-242. Sobre o socialismo e o meio-ambiente, ver Anderson T.L. e Leal D.R., Ecologia de mercado, Unión Editorial, Madri, 1993.
[24] Talvez Hans-Hermann Hoppe tenha sido quem melhor descreveu o efeito corruptor do socialismo, ao afirmar que «a redistribuição de oportunidades para a obtenção de ganho deve resultar em mais pessoas utilizando a agressão para obter uma satisfação pessoal e/ou mais pessoas tornando-se mais agressivas, ou seja, alterando suas condutas de maneira crescente de não-agressivas para agressivas, e, como resultado, modificando lentamente as suas personalidades. Essa mudança na estrutura do caráter, na composição moral da sociedade, conduz, por sua vez, a outra redução no nível de investimento no capital humano». Ver Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, São Paulo, 2013, pp. 29-30. Ver igualmente a minha análise apresentada em «El Fracaso del Estado Social», ABC, 8 de abril de 1991, pp. 102-103. Outra manifestação do efeito corruptor do socialismo é o aumento generalizado da «procura social» de mandatos e regulamentos coercivos provenientes do estado, que surge como um efeito combinado dos seguintes fatores: 1) o desejo de cada grupo de interesse em obter privilégios à custa do resto da cidadania; 2) a impossível e ingênua ilusão de que maiores doses de regulação poderão diminuir a generalizada insegurança jurídica que predomina em todas as áreas devido ao crescente e contraditório emaranhado legislativo; e 3) a prostituição dos hábitos de responsabilidade individual que subjetiva e inconscientemente reforça a aceitação do paternalismo estatal e os sentimentos de dependência em relação à autoridade.
[25] Ver Israel M. Kirzner, «The Perils of Regulation: A Market Process Approach», em Discovery and the Capitalist Process, obra citada, pp. 144 e 145. A necessidade de exercer influência sobre o órgão de coerção mantendo pelo menos uma aparência de cumprimento dos seus mandatos, juntamente com o elevado grau de arbitrariedade e discricionariedade, faz com as relações de compadrio sejam consideradas vitais num regime socialista. De fato, podemos considerar que um sistema é tanto mais intervencionista quanto mais necessárias, importantes e extensas forem as relações de amizade e compadrio nas áreas sociais (precisamente as mais intervencionadas) em detrimento das interações que tipicamente ocorrem num mundo livre e que, dado o seu caráter mais abstrato e impessoal, deixam as considerações de amizade em segundo plano, sempre subordinando o objetivo essencial de conseguir obter os próprios fins servindo da melhor forma possível os interesses dos demais, tal como são expressos através do mercado. O compadrio em relação a quem detenha poder e o servilismo que lhe é característico geram ainda, em muitas ocasiões, uma curiosa «Síndrome de Estocolmo», no qual o ser humano alvo de coerção mantém surpreendentes relações de «compreensão e camaradagem» em relação àquele que o coage institucionalmente e o impede de desenvolver livremente o seu ser essencial criativo.
[26] Ver «Competition and Political Entrepreneurship: Austrian Insights into Public Choice Theory», de Thomas J. DiLorenzo, em The Review of Austrian Economics, editado por Murray N. Rothbard e Walter Block, volume 2, Lexington Books, Lexington, 1988, pp. 59 a 71. Embora consideremos muito importantes as contribuições da Escola da Escolha Pública relativas à análise do funcionamento das burocracias e dos órgãos políticos encarregados de exercer a coerção institucional, concordamos com DiLorenzo, quando este afirma que a análise da referida escola se viu minimizada pelo fato de se encontrar ainda demasiadamente ancorada na metodologia da economia neoclássica, ou seja, por ser excessivamente estática, utilizar os instrumentos formais próprios da análise econômica do equilíbrio e não integrar suficientemente a análise dinâmica baseada na teoria da função empresarial. A introdução da concepção empresarial leva a concluir que a atividade institucional coerciva é ainda mais perversa do que tradicionalmente demonstrou a Escola da Escolha Pública, que geralmente não observou a capacidade do órgão diretor para criar empresarialmente novas e mais eficazes ações e estratégias perversas e corruptoras. As contribuições mais importantes da Escola da Escolha Pública nesta área encontram-se resumidas em William Mitchel, The Anatomy of Government Failures, International Institute of Economic Research, Los Angeles 1979; J.L. Migué e G. Bélanger, «Toward a General Theory of Managerial Discretion», publicado em Public Choice, n.º 17, 1974, pp. 27-43; William Niskanen, Bureaucracy and Representative Government, Adine-Atherton Press, Chicago, 1971; Gordon Tullock, The Politics of Bureaucracy, Public Affairs Press, Washington D.C., 1965; e também a obra pioneira de Ludwig von Mises, Bureaucracy, Arlington House, New Rochelle, Nova Iorque, 1969. Resumi em espanhol os principais argumentos de toda esta literatura no meu artigo «Derechos de propiedad y gestión privada de los recursos de la naturaleza», Cuadernos del Pensamiento Liberal, n.º 2, Unión Editorial, Madri, março de 1986, pp. 13 a 30, incluído nos meus Estudios de Economía Política, Unión Editorial, Madri, 1994, pp. 229 a 249.
[27] Os que tendem a tomar o poder são os mais corruptos, imorais e menos escrupulosos, ou seja, os mais habituados a violar a lei e a moral, a exercer a violência e a enganar com mais êxito os cidadãos, precisamente porque o socialismo gera corrupção e imoralidade. Este princípio foi confirmado várias vezes ao longo da história nos contextos mais variados e já foi explicado analiticamente com todo os detalhes por F.A. Hayek no capítulo X («Por que os piores chegam ao poder») da sua obra O Caminho da Servidão, Instituto Ludwig von Mises Brasil, São Paulo, 2010, pp. 139-152. Existe uma tradução para o castelhano de José Vergara, publicada com o título de Camino de Servidumbre, pela Alianza Editorial, n.º 676 dos seus livros de bolso, Madri, 1978 (edição presente no volume das Obras Completas de F.A. Hayek, Unión Editorial, Madri, 2008). Consideramos mais adequado o título El Camino hacia la Servidumbre, proposto como tradução castelhana por Valentín Andrés Álvarez na recensão do livro de Hayek publicado em 1945 («El Camino hacia la Servidumbre del Profesor Hayek», Moneda y Crédito, n.º 13, junho de 1945, incluido como Capítulo 2 emLibertad Económica y Responsabilidad Social, edição comemorativa do centenário do nascimento de D. Valentín Andrés Álvarez, Centro de Publicaciones del Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, Madri, 1991, pp. 69-86) e que quase lhe custou a cátedra em Madri devido à intolerância política da Espanha na época.
[28] François Revel, El estado megalómano, Planeta, Madri, 1981. Para Camilo José Cela, Prêmio Nobel da Literatura de 1989, «o Estado se divorcia da natureza e salta por cima dos países, do sangue e das línguas. O dragão do Leviatã abriu as suas mandíbulas para devorar o homem… Entre as mil engrenagens do estado pululam os vermes dos seus servidores, ferve o larvário que, em má hora, aprendeu a saber que deve conservar o corpo parasitado». El Dragón de Leviatán, lição magistral pronunciada na UNESCO em julho de 1990, em «Los Intelectuales y el Poder», ABC de 10 de julho de 1990, pp. IV e V, Madri.
[29] Pode ser encontrado um excelente resumo do estado teórico da questão relativa à economia irregular, bem como da literatura mais relevante, nos trabalhos de Joaquín Trigo Portela e Carmen Vázquez Arango La Economía Irregular (Generalitat de Catalunya, Barcelona, 1983) e Barreras a la Creación de Empresas y Economía Irregular (Instituto de Estudios Económicos, Madri, 1988). Pela capacidade de ilustrar o argumento teórico desenvolvido no texto aplicado ao caso específico do Peru, consultar o livro El Otro Sendero. La Revolución Informal, de Hernando de Soto y Enrique Ghersi, Editorial Diana, México, 1987.
[30] V.A. Naishul assinalou ainda que o sistema socialista não tolera as mudanças e inovações, dado os profundos desajustes em cadeia que provocam na rígida organização econômica. Ver The Supreme and Last Stage of Socialism, CRCE, Londres 1991, Capítulo V, «The Birthmarks of Developed Socialism», pp. 26-29, e, em especial, a p. 28, «Hostility to Change».
[31] Jacques Garello é autor de uma interessante análise sobre os efeitos prejudiciais do socialismo sobre a cultura, com especial referência ao caso francês, incluída no seu artigo «Cultural Protectionism», Mont Pèlerin Society Regional Meeting, Paris, 1984.
[32] Um dos exemplos que mais claramente ilustram o argumento que demos no texto é o dos efeitos negativos que a agressão sistematicamente cometida pelo poder sobre a produção, distribuição e consumo de drogas tem sobre a aprendizagem social em matéria de comportamento perante as drogas. De fato, existem muitas drogas em relação às quais historicamente a agressão não foi tão importante, o que permitiu que a sociedade, ao longo do processo de ajuste movido pela função empresarial, tivesse gerado um volume significativo de informação e de experiências que permitiu que os seres humanos aprendessem a se comportar adequadamente no que se refere às referidas substâncias. Isto foi o que aconteceu em muitas sociedades em relação a drogas como o vinho e o tabaco. Não obstante, não é possível que se verifique um processo semelhante no que se refere às substâncias descobertas mais recentemente e que, desde o começo, foram submetidas a um rigoroso sistema de coerção institucional que, além de fracassar completamente, impediu os indivíduos de experimentar e aprender quais deveriam ser os seus padrões de comportamento em relação a elas. Ver Guy Sorman, Esperando a los bárbaros, Seix Barral, Barcelona, 1993, pp. 327-337.
[33] «Não cometerás injustiças nos julgamentos. Não favorecerás o pobre, nem serás complacente para com o poderoso. Julgarás o teu próximo com imparcialidade», Levítico, Capítulo 19, versículo 15; «vos tornei desprezíveis (…), porque não guardastes os Meus mandamentos e fizestes acepção de pessoas na aplicação da Minha Lei», Malaquias 1, 2, 9, Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica, 6.ª ed., Lisboa, 1973, pp. 157 e 1256.
[34] O termo «social» esvazia e modifica completamente o sentido de qualquer palavra a que se aplique (justiça, estado de direito, democracia, etc.). Outros termos que também são utilizados para mascarar a realidade com conotações apelativas são, por exemplo, os qualificativos «popular» e «orgânica» frequentemente usados juntamente com a palavra «democracia». Os americanos designam de «palavras doninha» todos estes qualificativos utilizados para enganar semanticamente os cidadãos e que permitem a utilização de palavras enormemente apelativas (como justiça e democracia) com um sentido que é precisamente o contrário daquele que realmente têm. A expressão «palavra doninha» é derivada do conhecido verso de Shakespeare que faz referência à capacidade que este animal tem de esvaziar um ovo sem partir a casca («I can suck melancholy out of a song, as a weasel sucks eggs», As you like it, Acto II, Sena V, 11, em The Riverside Shakespeare, Houghton Mifflin, Boston, 1974, p. 379). Sobre este tema, deve-se consultar com atenção todo o Capítulo 7 do livro de Hayek já citado The Fatal Conceit. Outro termo cujo sentido foi corrompido foi o de solidariedade, que hoje se utiliza como álibi para justificar a violência estatal que se considera legitimada quando se destina supostamente para «ajudar» os oprimidos. No entanto, o sentido tradicional do termo solidariedade é muito distinto e diz respeito às interações humanas que surgem no processo social espontâneo movido pela empresarialidade. De fato, solidariedade vem do latim solidare(soldar ou unir) e significa, de acordo com o Diccionario de la Real Academia Española «a adesão circunstancial à empresa de outros». O mercado, tal como o definimos, é, então, o mecanismo ou sistema por excelência de solidariedade entre os seres humanos. Neste sentido, não há nada mais antissolidário do que tentar impor desde cima e pela força princípios de solidariedade tão míopes como parciais. Além disso, o problema de ignorância inerradicável do órgão de controle afeta também inexoravelmente aqueles que concebem a «solidariedade» apenas nos termos estritos de ajuda aos necessitados, uma vez que se tornará ineficiente e redundante se for exercida pelo estado e não por particulares interessados em ajudar voluntariamente o próximo. É gratificante observar que, na sua recente encíclica Centesimus Annus, João Paulo II não só se refere ao mercado como uma «cadeia de solidariedade que se amplia progressivamente» (obra citada, Capítulo IV, n.º 43, terceiro parágrafo), como afirma que «parece conhecer melhor a necessidade e ser mais capaz de satisfazê-la quem a ela está mais vizinho e vai ao encontro do necessitado», sendo que critica o estado assistencial ou «solidário» que «ao intervir diretamente, irresponsabilizando a sociedade, o estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do setor estatal, dominado mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os usuários com um acréscimo enorme das despesas.» (obra citada, Capítulo V, n.º 48, 5.º).
[35] O melhor tratado crítico do conceito espúrio de justiça social foi escrito por F.A. Hayek. Ver The Mirage of Social Justice, volume II de Law, Legislation and Liberty, obra citada.
[36] Citação traduzida por nós das pp. 25 e 26 do volume I da obra de F.A. Hayek Law, Legislation and Liberty, que por sua vez, foi extraída do livro de John Maynard Keynes, Two Memoirs, publicado em Londres em 1949, pp. 97-98: «We entirely repudiated a personal liability on us to obey general rules. We claimed the right to judge every individual case on its merits, and the wisdom, experience, and selfcontrol to do so succesfully. This was a very important part of our faith, violently and aggressively held, and for the outer world it was our most obvious and dangerous characteristic. We repudiated entirely customary morals, conventions and traditional wisdom. We were, that is to say, in the strict sense of the term, immoralists. We recognized no moral obligations, no inner sanction, to conform or obey. Before heaven we claimed to be our own judge in our own case … So far as I am concerned, it is too late to change. I remain, and always will remain, an immoralist.» Ver também a obra de Robert Skidelsky John Maynard Keynes: Hopes Betrayed, 1883-1920, Macmillan, Londres, 1983, pp. 142-143.
[37] Ver F.A. Hayek, The Fatal Conceit, obra citada, Capítulo I.
[38] Miguel de Cervantes (El Quijote, obra citada, Capítulo 67) utiliza a versão «Ojos que no ven, corazón que no quiebra» [Olhos que não vêem, coração que não se parte], sendo também admissível a forma «Ojos que no ven, corazón que no llora» [Olhos que não vêem, coração que não chora] (ver as pp. 327-328 do Diccionario de Refranes, de Juana G. Campos y Ana Barella, Anexo XXX ao Boletín de la Real Academia Española, Madri, 1975).
[39] Deste ponto de vista, a situação é ainda mais grave, se possível, na social-democracia do que no «socialismo real», uma vez que os exemplos e as situações alternativas que poderiam abrir os olhos à cidadania são quase inexistentes, e as possibilidades de ocultar os efeitos negativos do socialismo democrático pela via da demagogia bem como as racionalizações ad hoc são quase avassaladoras. Por isso, com o fim do «paraíso» do socialismo real, o verdadeiro «ópio do povo» encontra-se, hoje em dia, na social-democracia. Ver neste sentido as pp. 26-27 do meu Prólogo à edição espanhola do volume I das Obras Completas de F.A. Hayek.
[40] Na palavras do próprio F.A. Hayek: «On the moral side, socialism cannot but destroy the basis of all morals, personal freedom and responsibility. On the political side, it leads sooner or later to totalitarian government. On the material side it will greatly impede the production of wealth, if it does not actually cause impoverishment.» Ver o seu «Socialism and Science», em New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, Routledge, Londres, 1978, p. 304.
[41] Sobre o surgimento e desenvolvimento da social-democracia na Alemanha Ocidental, ver as pertinentes considerações formuladas por Hans-Hermann Hoppe em Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo, obra citada, Capítulo 4 e, em especial, as pp. 52-60.
[42] F.A. Hayek, The Political Order of a Free People, volume III de Law, Legislation and Liberty, obra citada, pp. 38 a 40. Hayek afirma explicitamente na p. 39: «though I firmly believe that government ought to be conducted according to principles approved by a majority of the people, and must be so run if we are to preserve peace and freedom, I must frankly admit that if democracy is taken to mean government by the unrestricted will of the majority I am not a democrat, and even regard such government as pernicious and in the long run unworkable» (itálico acrescentado). Em seguida, Hayek justifica o seu repúdio em relação ao termo «democracia» pelo fato de a raiz grega kratos proceder do verbo kratein e conter uma ideia de «força bruta» ou «mão dura» que é incompatível com o exercício do governo democrático submetido à lei, definida em sentido material, e aplicável a todos por igual («isonomia»).
[43] Nos referimo concretamente às principais contribuições da Escola da Escolha Pública e à Teoria do Intervencionismo desenvolvida pela Escola Austríaca. A este respeito, ver os comentários e a bibliografia citada na nota 26 do presente capítulo. Um resumo detalhado dos motivos pelos quais a gestão pública e burocrática está condenada ao fracasso apesar da sua base «democrática» pode ser encontrado no meu artigo «Derechos de Propiedad y Gestión Privada de los Recursos de la Naturaleza», em Cuadernos del Pensamiento Liberal, n.º 2, março de 1986, Unión Editorial, Madri, pp. 13-30, incluído em Lecturas de Economía Política, volume III, Unión Editorial, Madri, 1987, pp. 25 a 43.
[44] Hans-Hermann Hoppe é o teórico que mais brilhantemente explicou o socialismo conservador ou de direita. Ver Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo, obra citada, Capítulo V.
[45] Ludwig von Mises, Socialism. An Economic and Sociological Analysis, Liberty Press, Indianapolis, 1981, p. 220 (tradução inglesa de J. Kahane da obra Die Gemeinwirtschaft. Untersuchungen über den Sozialismus, publicada por Gustav Fischer em Jena, em 1922). No entanto, Mises demonstra que o socialismo militar não pode competir no seu próprio terreno bélico contras as sociedades nas quais se possa exercer a atividade empresarial criativa e, de fato, comenta que o grande império comunista militar dos Incas foi muito facilmente destruído por um punhado de espanhóis (pp. 222-223).
[46] Sobre o socialismo corporativo e o agrário, ver Mises, Socialism, ob. cit., pp. 229 a 232 e 236 a 237.
[47] F. A. Hayek, “Por que Não Sou um Conservador”, in Os Fundamentos da Liberdade, São Paulo: Visão, 1983, p.466-482.
[48] A Real Academia Espanhola não reconhece a existência do termo «cientismo», que é utilizado no texto. O termo mais aproximado que podemos encontrar neste dicionário é o de «cientificismo», definido na 5.ª edição como a «a tendência para atribuir um valor excessivo às noções científicas ou pretensamente científicas». Apesar de ter usado também o termo «cientismo» em algumas ocasiões, Gregorio Marañón parece inclinar-se para o termo «cientificismo», que considera uma «caricatura da ciência» e define como o « alarde excessivo de uma ciência que não existe», concluindo que «a chave está no fato de o cientificista, acriticamente, dar demasiada importância dogmática a todo o seu vasto conhecimento, abusando da sua posição e do seu crédito para convencer discípulos e ouvintes» (itálico acrescentado). Ver «La plaga del Cientificismo», Capítulo XXXII de Cajal: Su tiempo y el Nuestro, volume VII das suas Obras Completas, Espasa Calpe, Madri, 1971, p. 360-361. Consideramos, porém, que o termo «cientismo» é mais exato do que «cientificismo», uma vez que, de fato, se refere mais a um abuso da ciência per se do que a uma forma abusiva de fazer ciência («científico» vem do latim: scientia, ciência e facere, fazer). Além disso, o termoscientism é utilizado em inglês para designar a aplicação indevida dos métodos próprios das ciências naturais, da física e da técnica e engenharia ao campo das ciências sociais («A thesis that the methods of the natural sciences should be used in all areas of investigation including philosophy, the humanities, and the social sciences», ver o Webster’s Third New International Dictionary of the English Language Unabridged, volume III, p. 2033, G.&G. Merrimam, Chicago, 1981). Por último, Manuel Seco, no seu Diccionario de Dudas y Dificultades de la Lengua Española (Espasa Calpe, 9.ª ed., Madri, 1990, p. 96) considera que não há nada a objetar quanto à possibilidade de utilização dos termos ciencismo e ciencista, que consideramos, porém, inferiores a cientismo e cientista, uma vez que estes são construídos a partir do termo latino scientia (e não com base na palavra castelhana ciência), que serve igualmente de raiz às expressões francesa e inglesa correspondentes.
[49] Esta arrogância comum do intelectual socialista é perfeitamente ilustrada pela lenda segundo a qual Alfonso X El Sabio «era tão insolente e arrogante pelo grande conhecimento que tinha das ciências humanas e dos segredos da natureza, que chegou a dizer, em menosprezo da Providência e da suma sabedoria do universal Criador, que se fosse seguido o seu conselho, teriam se formado algumas coisas melhor do que foi feito e outras não seriam feitas ou seriam emendadas ou corrigidas.». De acordo com a lenda, esta blasfêmia do Rei foi castigada com uma terrível tempestade de raios, trovões e vento que incendiou Alcazar de Segóvia, onde vivia o Rei e a sua corte. Este incêndio provocou vários mortos e feridos e o próprio Rei salvou miraculosamente a vida, arrependendo-se a seguir do seu desenfreado orgulho. Esta grande tormenta de verão que incendiou Alcazar de Segóvia e quase custou a vida ao Rei aconteceu em 26 de Agosto de 1258, sendo, pois, um fato histórico rigorosamente constatado. Ver a propósito a magnífica obra biográfica sobre Alfonso X El Sabio, de Antonio Ballesteros Beretta, Ediciones «El Albir», Barcelona, 1984, pp. 209-211, onde são avaliadas criticamente todas as versões desta lenda e a sua ligação com os fatos relacionados com a mesma que foi possível contrastar historicamente. Embora possa se tratar de uma lenda apócrifa, não há dúvida de que o caráter cientista do rei «Sabio» se manifestou pelo menos nas rigorosas disposições de controle e fixação de preços que infrutiferamente estabeleceu para impedir o natural e inevitável crescimento que ele próprio tinha estimulado com a desvalorização sistemática da moeda, bem como na sua tentativa, também fracassada, de substituir o tradicional direito sucessório de Castela pelo direito das Patidas, considerado mais «científico». Contra esta medidas, insurgiu-se o seu filho e futuro rei, Sancho, o que levou a uma guerra civil que amargurou os últimos anos da sua existência. Outra figura histórica que ilustra o fracasso do construtivismo cientista em matéria social é o Conde-Duque de Olivares, protegido do rei Felipe IV e, durante grande parte do seu reinado, máximo responsável pelos destinos do Império espanhol. A boa-fé, a capacidade de trabalho e os esforços desenvolvidos pelo Conde-Duque foram tão desmedidos quanto fracassados. De fato, o principal defeito do Conde-Duque foi o de que «por temperamento, queria organizar tudo», e não era capaz de resistir à ambição de dominar todas as esferas da vida social. Na etapa final do seu governo, chegou mesmo a expressar o seu «profundo desalento por ver que todos os remédios que se tentava utilizar tinha precisamente o efeito oposto ao que se pretendia», não tendo chegado a compreender que tal resultado não era senão a consequência natural e inexorável de tentar controlar e organizar pela força toda a Sociedade, pois que nunca atribuiu a calamitosa situação em que deixou a Espanha à sua gestão, mas antes à cólera de Deus ante a depravação moral da época. Ver o estudo de J.H. Elliott, El Conde-Duque de Olivares, Edit. Crítica, Barcelona, 1990, e especialmente as pp. 296 e 388.
[50] F.A. Hayek, «Kinds of Rationalism», em Studies in Philosophy, Politics and Economics, Simon and Schuster, Nova Iorque, 1967, pp. 82 a 95.
[51] F.A. Hayek The Fatal Conceit. The Errors of Socialism, obra citada, pp. 61 e 62. O utilitarismo baseia-se exatamente no mesmo erro intelectual do socialismo, uma vez que assume que o cientista utilitário disporá da informação necessária no que se refere aos benefícios e aos custos para poder tomar decisões «objetivas». Contudo, uma vez que essa informação não está disponível de forma centralizada, o utilitarismo é impossível como filosofia político-social, sendo que não há alternativa senão agir dentro do âmbito da lei e das normas de comportamento (moral). Além disso, e embora pareça paradoxal, dada a ignorância inerradicável do ser humano, não há nada mais útil e prático do que agir com base em princípios, renunciando a todo o utilitarismo ingênuo e míope.
[52] Devo a Israel M. Kirzner estas quatro considerações críticas às recomendações pseudocientíficas a favor do exercício da coerção por parte do engenheiro social: «The Perils of Regulation: A Market Process Approach», em Discovery and the Capitalist Process, obra citada, pp. 136 a 145.
[53] Norman P. Barry, The Invisible Hand in Economics and Politics. A Study in the Two Conflicting Explanations of Society: End-States and Processes, Institute of Economic Affairs, Londres, 1988. Nos próximos capítulos, teremos a oportunidade de verificar a forma como os teóricos cientistas ancorados no equilíbrio foram incapazes de entender o argumento misesiano sobre a impossibilidade do cálculo econômico nas economias socialistas. Analisaremos também as inconsistências metodológicas da análise econômica baseada no equilíbrio, como um dos resultados mais importantes da referida discussão.
[54] Sobre o socialismo cristão é especialmente importante o livro Religion, Economics and Social Thoughts, editado por Walter Block e Irwing Hexham, publicado pelo Fraser Institute, Vancouver, Canadá, 1989. Ver também as pp. 223 a 226 do livro Socialism, de Mises, já citado.
[55] Sobre o socialismo sindicalista, em geral, e a tentativa de aplicação do mesmo no caso iugoslavo, em particular, consultar Svetozar Pejovich, «The Case of Self-Management in Yugoslavia», em Socialism: Institutional, Philosophical and Economic Issues, Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 1987, pp. 239-249 e a bibliografia aí citada. Ver também E. Furubotn e S. Pejovich, «Property Rights, Economic Decentralization, and the Evolution of the Yugoslavian Firm», Journal of Law and Economics, n.º 16, 1973, pp. 275-302. Theodore A. Burczak pretendia elaborar uma versão «hayekiana» do socialismo de autogestão em Socialism after Hayek, University of Michigan Press, Ann Arbor, 2006. Ver o Symposium crítico sobre a tese de Burczak e a literatura aí citada em The Review of Austrian Economics, vol. 22, n.º 3, setembro de 2009, pp. 281-300.
[56] Efetivamente, o Diccionario de la Real Academia Española define literalmente o socialismo como o «sistema de organização social e econômica baseado na propriedade e administração coletiva e estatal dos meios de produção».
[57] Segundo Mises, «the essence of socialism is this: all means of production are in the exclusive control of the organized community. This and this alone is socialism. All other definitions are misleading». Ludwig von Mises, Socialism, obra citada, p. 211. Pelas razões que apontamos no texto, acreditamos que Mises se equivocou ao fazer esta afirmação tão categórica.
[58] Hans-Hermann Hoppe, Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo, obra citada, pp. 15-16. Hoppe afirma que «o socialismo não é uma invenção do marxismo no século XIX, mas um fenômeno muito mais antigo que deve ser conceituado como uma intervenção institucionalizada ou uma agressão contra a propriedade privada e contra os direitos de propriedade privada.»
[59] Este é o sentido apresentado pela segunda acepção para o termo «intervencionismo» no Diccionario de la Real Academia Española: «Sistema intermediário entre o individualismo e o coletivismo que confia à ação do estado comandar e suprir, na vida do país, a iniciativa privada». No entanto, o dicionário se contradiz com esta acepção baseada no caráter «intermediário» do intervencionismo e adota uma posição muito próxima à que apresentamos no texto quando vemos que se refere ao «socialismo» como a «regulação por parte do Estado das atividades econômicas e sociais e da distribuição dos bens», definição que, no fundo, está muito próxima da definição dada para «intervencionismo» pelo mesmo dicionário e que nos dá a impressão de que, nesta perspetiva, consideram ambos os termos — socialismo e intervencionismo — quase sinônimos.
[60] Assim, no que se refere ao intervencionismo, Don Lavoie, por exemplo, concluiu que «it can be shown to be self-defeating and irrational on much the same grounds on which Mises pronounced complete central planning impossible…. piecemeal government interference into the price system must be seen as similarly obstructive of this same necessary discovery procedure, and therefore as distortive of the knowledge which it generates. Thus the calculation argument may be used to explain many of the less-than-total failures resulting from government tinkering with the price system, in fundamentally the same way that it explains the utter economic ruin inevitably resulting from the attempted abolition of the price system». Ver «Introduction», The Journal of Libertarian Studies, volume V, n.º I, inverno 1981, p. 5. Por sua vez, Israel Kirzner se referiu por diversas vezes ao paralelismo existente entre o «socialismo» e o «intervencionismo». Ver «Interventionism and Socialism: A Parallel», em «The Perils of Regulation: A Market-Process Approach», Capítulo 6 de Discovery and the Capitalist Process, obra citada, pp. 121 ss. É preciso criticar a ideia, que chegou também a ser defendida por Mises, de que o cálculo econômico é possível no sistema intervencionista, uma vez que esse tipo de cálculo é impossível precisamente nas áreas que sofreram intervenção, e se, em geral, podem ser realizados cálculos é porque o sistema não estende a sua intervenção a toda a sociedade (e com o grau que caracteriza o socialismo real).
[61] Assim, a nossa definição de socialismo não é tão ampla como a proposta por Alchian, de acordo com a qual «Government is socialism, by definition», concluindo o autor que, desta forma, é indispensável pelo menos um mínimo de socialismo para a manutenção de uma economia de mercado. Em primeiro lugar, porque como já demonstramos (ver a nota 2 acima), não pode ser considerado como estando dentro do conceito de socialismo o mínimo imprescindível de coerção institucional que seja necessário para prevenir e corrigir as ocorrências isoladas de coerção assistemática. E em segundo lugar, porque não está claro que esse mínimo tenha que ser obrigatoriamente realizado por uma organização monopolista de caráter estatal. Armen Alchian e William R. Allen, University Economics. Elements of Inquiry, Wadsworth Publishing, Belmont, Califórnia, 3.ª edição, 1971, pp. 627-628.
[62] Ver uma referência a estas definições «fantasiosas» no artigo «Socialism», de Alec Nove, contido no volume 4 de The New Palgrave. A Dictionary of Economics, Macmillan Press, Londres, 1987, p. 398. Nove conclui com uma definição tradicional de socialismo segundo a qual «a society may be seen to be a socialist one if the major part of the means of production of goods and services are not in private hands, but are in some sense socially owned and operated, by state, socialized or cooperative enterprises». Incidentalmente, Nove revela na p. 407 deste mesmo artigo que não entende nem conhece a teoria dinâmica da função empresarial, quando coloca no mesmo saco Mises e a «Utopia de Chicago» e critica o capitalismo por estar muito longe dos modelos de «concorrência perfeita» dos manuais.
[63] Esta é a definição proposta por Oskar Lange en 1942, altura em que atravessava o seu período mais «liberal» e ainda não se tinha voltado para o mais duro stalinismo dos seus últimos anos. De fato, na conferência que pronunciou no Clube Socialista da Universidade de Chicago em 8 de Maio de 1942, Lange afirmou que: «By a socialist society, I mean a society in which economic activities, particularly production, is carried on in such a way as to maximise the welfare of the population.» Acrescentando ainda que na sua definição «the accent is rather on the purpose than on the means». Ver as Conferências de Oskar Lange sobre «The Economic Operation of a Socialist Society: I and II», editadas por Tadeusz Kowalik em «Oskar Lange’s Lectures on the Economic Operation of a Socialist Society», incluídas em Contributions to Political Economy, n.º 6, 1987, pp. 3 e 4.
[64] Ocorreria, assim, um caso em que um termo se reabilitaria ganhando um sentido cientificamente coerente e que seria precisamente o oposto do processo de corrupção semântica que hoje em dia induz o qualificativo «social» em qualquer conceito onde seja agregado, tal como explicamos na nota 34 acima.