Friday, November 22, 2024
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Sobre o mito de que é seguro emprestar para o governo

quiebra“Comprar títulos do governo é uma forma segura de investimento porque o governo sempre pode pagar.”

Eis aí uma afirmação que não possui nenhuma sustentação em fatos.  Qualquer análise racional pode rapidamente demonstrar a falácia por trás de tal pensamento.  A teoria econômica, a história da economia e uma boa dose de bom senso podem demonstrar sem nenhum esforço que essa afirmação é uma ilusão.  No entanto, hoje tal raciocínio é uma ilusão profundamente estimada e de ampla aceitação no mundo das finanças (e, por conseguinte, no mundo da política).  Com efeito, essa ilusão já se tornou um dos mais definidores mitos da moderna era do dinheiro fiduciário.  Por décadas, ela forneceu aos corretores, administradores de portfólio e banqueiros um amparo imaginário contra o turbulento mundo da “destruição criativa” gerada pelo capitalismo, um ‘porto seguro’ onde seus nervos e seu capital poderiam descansar seguramente.

O ‘almoço grátis’ podia não ser nenhum banquete — afinal, procurava-se apenas um ‘taxa de retorno livre de riscos’ —, mas ainda assim era melhor do que nada.  Principalmente, representava uma pausa bastante apreciada contra as intempéries do capitalismo e do empreendedorismo.  Ademais, vale registrar, se você alavancasse bastante seu portfólio de títulos públicos com a ajuda de dinheiro fornecido pelo banco central a custo baixíssimo, os retornos poderiam ainda assim ser bastante atraentes.  [Por exemplo, quando um banco pede dinheiro emprestado a um banco central (pela janela do redesconto) que esteja praticando juros baixos e utiliza esse dinheiro para comprar títulos públicos de prazo mais longo, que tendem a pagar juros mais altos].

O problema é que todos os mitos, cedo ou tarde, sempre são desmascarados pela realidade.  E então eles finalmente são expostos como aquilo que são, mitos, o que requer uma dolorosa renúncia às certezas queridas, um reajuste de paradigmas e uma abrupta mudança de comportamento.  E é exatamente isso que estamos testemunhando hoje no mercado de títulos públicos da Europa (o mercado da dívida soberana), e é isso que iremos testemunhar fora da Europa também, daqui a algum tempo.  Quem acreditou que esse processo pararia na Grécia ou até mesmo na Itália, como parecia ser o consenso ainda em meados de 2011, foi um ingênuo.  Que ele será contido na França ou mesmo que ele ficará restrito à União Monetária Europeia parece ser a atual esperança dos compradores de títulos dos governos e dos próprios governos (leia-se políticos).  Tal crença, igualmente ingênua, já foi abalada na semana passada, quando ocorreu o pior resultado da história do euro para um leilão de títulos públicos do governo alemão.

Quando essa irracional crença de que os grandes governos (o americano, o alemão, o britânico, o francês, o japonês) podem e sempre irão pagar suas dívidas, independentemente do tamanho de seu passivo total — e que seus títulos portanto são ‘livres de risco’ —, finalmente começa a ser questionada, é sinal de que podemos futuramente testemunhar uma significativa alteração no comportamento do mercado financeiro.  Que esse fenômeno ocorrerá em algum momento futuro é algo indubitável.  Minha crença apenas é que esse momento pode ocorrer mais cedo do que muitos imaginam.

Antes de analisarmos os eventos da atualidade e arriscarmos alguns palpites quanto ao futuro, vamos antes rever alguns fatos fundamentais sobre o investimento em títulos públicos.

Alguns fatos básicos sobre emprestar dinheiro ao estado

Títulos governamentais não são lastreados por capital produtivo.  Eles não serão quitados por meio da produção capitalista — pelo menos não diretamente.  Aqueles que emprestam dinheiro ao estado o fazem com a expectativa de que o estado, após consumir o que lhe foi emprestado, irá pagar de volta seus credores tanto por meio da tributação do setor produtivo da sociedade (isto é, a tributação daqueles que não colocaram seu dinheiro nos títulos ‘seguros’ do governo, mas sim que o arriscaram em um empreendimento e conseguiram gerar retornos porque souberam fornecer algo de valor para o seu público consumidor) quanto por meio da mera impressão de dinheiro, o que equivale a um novo tributo sobre os usuários de dinheiro dessa sociedade (ou seja, toda a população), que terão uma redução no poder de compra da unidade monetária.  A inflação é também um imposto.

Os títulos do governo canalizam a poupança dos cidadãos para o mero consumismo, desviando assim recursos escassos, os quais são retirados de investimentos conduzidos pelo livre mercado (ou seja, em última instância, pelos consumidores) e direcionados para aqueles setores que políticos consideram importantes.  O aumento ocorrido na dívida pública de todos os países nessa nossa moderna era do papel-moeda fiduciário indica um substancial e crescente desperdício de recursos, uma alocação totalmente errônea e insustentável do capital.  Isso é um precursor de grandes distúrbios sociais e econômicos.

Que os bancos e os administradores de portfólios concedam empréstimos tão generosos aos governos não é nada surpreendente, uma vez que o custo do erro (emprestar excessivamente ou pegar emprestado em excesso) pode ser facilmente socializado por todo o público, tanto por meio de uma maior tributação quanto por meio de mais volumosas impressões monetárias.  “O estado sempre pode pagar”.

Só que agora os bons tempos acabaram.  A dívida acumulada se tornou grande demais, o que significa que o pagamento de seus juros já não mais pode ser feitos de maneira estável, por meio da tributação ou da discreta criação de dinheiro.  Se, ainda assim, tais mecanismos continuarem sendo utilizados, o resultado inevitável será o caos.

Eis a realidade: ao redor do mundo, os gastos governamentais, os déficits orçamentários e a dívida acumulada se tornaram insustentáveis em relação à realidade econômica que os sustenta.  A genuína poupança disponível para ser utilizada no financiamento dessa farra está cada vez menor.  No entanto, os modernos estados assistencialistas não irão encolher.  Ninguém dentro da máquina política tem a mais mínima ideia de como fazer isso.  A economia baseada no papel-moeda fiduciário não foi concebida para aguentar desalavancagens, assim como a democracia assistencialista não admite um redimensionamento.

Quem ainda precisava de evidências mais claras sobre isso foi satisfeito com os eventos da semana passada.  Nos EUA, o ‘Super Comitê‘ criado pelo Congresso para decidir como seria feito o equilíbrio do orçamento do governo americano não chegou a um acordo sobre cortes de gastos, e no Reino Unido o primeiro-ministro admitiu que o governo havia fracassado em seus esforços para reduzir o fardo da dívida.  Ato contínuo, foram anunciados vários subsídios para o mercado imobiliário, “estímulos” (financiados por impostos) para empresas que contratassem adolescentes desempregados, e projetos de infraestrutura (bem ao estilo do New Deal) para ‘aquecer’ a economia.

O confuso e inútil movimento “Occupy Wall Street” parece ter trazido novamente a público a velha e já refutadanoção de que tudo isso pode ser resolvido simplesmente aumentando-se os impostos sobre os mais ricos.  Que isso seja sequer debatido já mostra bem como o público nada entende sobre a estonteante extravagância do moderno estado assistencialista: em 2011, por exemplo, o governo americano irá gastar pelo menos US$ 3,7 trilhões, e terá de receitas algo em torno de US$ 2,2 trilhões, produzindo assim um fabuloso déficit de US$ 1,5 trilhão.  O governo americano arrecada com imposto de renda algo em torno de US$ 1 trilhão.  Logo, mesmo que ele instantaneamente dobrasse sua receita oriunda da tributação da renda, ainda assim ele não chegaria nem perto de zerar o déficit.  A situação está completamente fora de controle, e aqueles que acreditam que isso não é problema, pois o governo americano sempre poderá recorrer à impressão de dinheiro, apenas digo isso: cuidado com aquilo que desejas.

Sem conserto

Mas voltando à Europa, que é quem segue recebendo mais atenção no momento: como dito, mitos consolidados e estimados não são abandonados facilmente.  Os investidores há meses vêm demandando, cada vez mais urgentemente, uma espécie de “tiro de bazuca” que iria restaurar a velha ordem.  É claro que, por “restaurar a velha ordem”, entenda-se a restauração dos velhos mecanismos que possibilitam aos credores do estado reaver seu dinheiro: tributar terceiros ou imprimir dinheiro.  Se os impostos necessários para que a Grécia e a Itália paguem os juros de suas dívidas não puderem ser extraídos dos gregos e dos italianos, então que se tribute os alemães, como exige o novo pacote de ‘integração fiscal’ (também chamada de ’emissão conjunta de títulos’).  Se não isso, então que os investidores sejam pagos com dinheiro impresso pelo Banco Central Europeu.  Uma “ilimitada compra de títulos” via impressora de dinheiro seria o segundo tiro da bazuca.

Tais propostas não são nada originais e ilustram perfeitamente como a gravidade da situação não está sendo analisada como deveria.  Alemanha e França simplesmente não possuem os recursos necessários para socorrer todos os outros países.  Aliás, não têm recursos nem mesmo para salvar seus próprios bancos.  Quanto à impressora do BCE, uma ‘ilimitada’ compra de títulos não pode ser limitada à Itália, algo que por si só já seria um enorme desafio.  Rapidamente, o tamanho total da operação seria tão grande, que as preocupações quanto à inflação de preços futura inevitavelmente se avolumariam, o que geraria um aumento das taxas reais de juros.  E tão logo isso acontecesse, os déficits iriam crescer ainda mais rapidamente, forçando o BCE a comprar ainda mais títulos.  Uma espiral de juros cada vez maiores, mais títulos sendo comprados pelo banco central, maiores expectativas de inflação e juros reais cada vez maiores é o desfecho clássico de todo sistema baseado no papel-moeda fiduciário.

(Nesse ponto, sempre surge a mesma pergunta: mas e o Japão?  Eles vêm imprimindo dinheiro por vários anos e não está havendo inflação de preços por lá! Isso, obviamente, é uma mentira.  O Banco Central do Japão mantém hoje praticamente a mesma base monetária que mantinha há dez anos.  Em contraste, desde 2008, o Fed, o Banco da Inglaterra e o BCE praticamente triplicaram a compra de ativos.  Por vários outros motivos, o Japão é umgigantesco acidente prestes a ocorrer; porém, em termos de sanidade monetária, os japoneses são atualmente os menos lunáticos.)

A classe política, a burocracia dependente do papel-moeda fiduciário e seus ansiosos credores na comunidade financeira coletivamente se colocaram em xeque-mate.  Delírios quanto à eficácia de um “tiro de bazuca” e a impotente tagarelice quanto à “falta de liderança política” não podem mascarar a inevitável sensação de que vários dos ‘ativos livres de risco’ que foram sendo acumulados ao longo das últimas décadas agora estão se revelando um lixo tóxico que pode gerar um buraco magnânimo nos portfólios dos investidores.  Aumentar impostos ou imprimir dinheiro não representa uma solução sensata, o que não significa que ambos não serão tentados — muito certamente serão, e com resultados previsivelmente desastrosos.  Mas eis a parte realmente engraçada: se estas são as potenciais consequências da crise da dívida europeia — calotes, integração fiscal e ilimitada criação de dinheiro —, por que alguém iria comprar títulos alemães?  Será que alguém realmente pensou que o BCE poderia imprimir dinheiro suficiente para comprar todos os títulos públicos que circulam no mercado europeu e ainda assim manter uma taxa de juros de apenas 2% para toda a região?  Ou que, em uma união fiscal, todos os países convergirão para os juros de 2% da Alemanha?  No entanto, durante os vários últimos meses (até a semana passada), a comunidade financeira alegremente se abasteceu de vários títulos públicos alemães, sob a alegação de que representavam um ‘porto seguro’.  Por quê?

Psicose em massa

Para explicar isso, temos de recorrer à psicologia.  É claro que a psicologia amadora não tem lugar na teoria econômica, mas ela frequentemente é útil quando tentamos entender alguns fenômenos de curto prazo no mercado financeiro.  Corretores, bancos e investidores simplesmente não querem abrir mão do mito do ‘ativo seguro’.  Embora os problemas sejam essencialmente os mesmos em todos os lugares, a comunidade financeira nunca quis acreditar que títulos governamentais representassem investimentos manhosos — apenas alguns títulos governamentais, geralmente de economias mais atrasadas, traziam riscos.  Bizarramente, a percepção de que havia uma deterioração fiscal em algum governo levava a um maciço redirecionamento de investimentos para os títulos de outros países cujas finanças estavam apenas ligeiramente melhores, o que já bastava para que fossem celebrados prematuramente como ‘portos seguros’.  Isso obviamente durava até que as debilidades fiscais destes também fossem reveladas.

Sendo assim, por que então não tomarmos um atalho e passarmos à frente deste desastre anunciado?  A minha sugestão é ficar vendido em títulos alemães, americanos e britânicos.  A matemática me parece bastante direta.  Se o BCE, o Fed e o Bank of England não incorrerem em impressão de dinheiro em larga escala (não deveriam, mas o Fed e o BoE já estão ávidos por novas rodadas), então as inevitáveis forças desinflacionarias, bem como a mortal armadilha fiscal que esses países armaram para si próprios, fará com que seus títulos sejam uma ótima pedida para uma posição à descoberto: afinal, o resultado final será um calote.  Pelo menos essa seria uma consequência honrosa e não totalmente antiética.  Porém, o mais provável é mesmo que eles recorram à ‘solução’ mais covarde, que é a monetização da dívida.  Uma boa indicação da desesperadora situação em que os bancos europeus e americanos se encontram pode ser medida pelo fato de seus vários economistas estarem implorando por essa solução.

Só que o problema é grande demais para uma elegante ‘solução inflacionária’ da dívida.  Como as rodadas de inflação monetária ocorridas nos EUA e no Reino Unido demonstraram, fornecer um sustentáculo fiscal ao governo por meio da simples criação de dinheiro não gera uma redução da dívida; ao contrário, estimula a acumulação de mais dívida.  Uma vez iniciados, programas de compra de títulos governamentais em larga escala não têm fim.  Eles simplesmente são continuados ad infinitum.  Para manter o governo solvente, o banco central terá de imprimir um volume cada vez maior de dinheiro, e terá de fazê-lo em época de crescente expectativa inflacionária.  Eis a receita para o desastre.  O resultado final é a destruição da moeda e o calote.

Embora a matemática pareça cristalina, o fato é que o desejo de acreditar na infalibilidade e na onipotência do estado — o qual, nessa nossa época secular tornou-se a nova divindade — é muito forte, e poderá manter por algum tempo a crença na segurança dos títulos governamentais.  Porém, quando a coisa desandar, esta certamente será uma das maiores oportunidades de investimento em meio a essa indescritível bagunça financeira.  Talvez seja a ‘posição vendida’ do século.  Dentro desse contexto, os eventos da semana passada foram significativos.  A realidade finalmente chegou aos títulos alemães.  O frustrante resultado do leilão da venda de títulos é uma indicação de que o governo alemão está perdendo seu status de porto seguro.  As preocupações quanto à sustentabilidade fiscal da região já estão chegando ‘ao núcleo’ europeu.  Novamente, os investidores seguem desesperadoramente aferrados à crença de que um ‘porto seguro’ existe em algum lugar, o que os faz se apegar com grande (e ignara) devoção aos títulos britânicos e americanos.  Brevemente estes também se tornarão uma excelente posição vendida.

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A essencial arma de legítima defesa

Nesse ponto, vale uma ressalva.  O propósito deste site não é dar dicas de investimento, mas apenas fornecer uma distinta e — gostaria de crer — superior explicação à crise atual.  Estou apenas expressando opiniões, e é do leitor a responsabilidade de concluir se ele concorda com meu raciocínio e ver qual medida ele deve tomar.  Estamos no estágio final do nosso atual experimento com um arranjo de ilimitado dinheiro de papel criado pelo estado.  Essa crise irá continuar se desenrolando e muitas pessoas perderão dinheiro.  Se entendermos essa crise corretamente, poderemos proteger melhor nossa riqueza.  Por isso, creio eu, possuir quantias substanciais de ouro físico (e provavelmente de alguns outros ativos) é crucial.  Mas pode haver sim outras oportunidades para ganhar dinheiro.  Essa crise já expôs a falácia de que o atual sistema monetário fiduciário, em conjunto com uma hiper-regulação e com todo o sistema de seguro governamental de depósitos, tornou o sistema bancário seguro.  A próxima falácia a ser exposta é a crença de que títulos governamentais são investimentos seguros.  As consequências para os mercados financeiros são enormes — e isso sempre oferece oportunidades.  Mas seja cuidadoso.  Mercados são extremamente volúveis.  Por isso, não se deve, por exemplo, descartar futuras intervenções governamentais, como uma proibição total das vendas a descoberto.  Porém, até que isso aconteça, podemos estar de frente à ‘posição vendida’ do século.

Enquanto isso, a depreciação do papel-moeda vai continuar.

Detlev Schlichter
Detlev Schlichter
Detlev Schlichter é formado em administração e economia. Trabalhou 19 anos no mercado financeiro, como corretor de derivativos e, mais tarde, como gerente de portfolio. Nesse meio tempo, conheceu a Escola Austríaca de Economia e, desde então, dedicou seus últimos 20 anos ao estudo autônomo da mesma. Foi apenas após conhecer a Escola Austríaca que ele percebeu o quão mais profundas e satisfatórias eram as teorias austríacas para explicar os fenômenos econômicos que ele observava diariamente em seu trabalho. Visite seu website.
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