“A maconha é a porta de entrada para as drogas mais pesadas.” Quem nunca ouviu essa frase? Esse famoso adágio não está totalmente equivocado. Mas também está longe de estar correto. Como todo ditado popular, se trata de uma mistura de intuições verdadeiras com preconceitos arraigados. No caso, um preconceito alimentado por mais de 80 anos de uma política fracassada: a proibição do comércio de drogas.
Muitas são as alegações dos governos para justificar o combate ao comércio de drogas. Drogas induziriam seus usuários a comportamentos antissociais, como atividades criminosas ou promíscuas; usuários de drogas perderiam sua capacidade produtiva, se tornando um peso para a sociedade; ou viciados representariam um alto custo para a saúde pública. De qualquer forma, a ideia é que o estado tem o dever de proteger a sociedade de substâncias que coloquem em risco seus cidadãos. E é com base nessa pretensão que se tem justificado a custosa guerra às drogas. Guerra que, longe de proteger a população dos perigos dessas substâncias, é a principal responsável por torná-las ainda mais perigosas.
Como é impossível proibir desejos de consumo, toda política proibicionista se concentra em suprimir a oferta. Ou seja, enquanto produtores, distribuidores e varejistas são diretamente atingidos, a demanda é influenciada apenas de maneira indireta, permanecendo, em grande medida, inalterada. A justificativa para a guerra às drogas é a seguinte: ainda que não se possa suprimir completamente o uso de drogas, a proibição aumentaria os custos dos traficantes a ponto de tornar o preço das drogas, se não inacessível para a maior parte da população, no mínimo menos atraente do que os substitutos legais, como o álcool, por exemplo. Essa redução da demanda, com os altos custos mantidos constantes, tornariam o tráfico de drogas, com o tempo, uma atividade pouco atraente.
Basta olharmos os resultados da proibição das drogas para suspeitarmos de que há alguma coisa errada com essa linha de raciocínio. Para que o simples aumento dos custos de produção, imposto pela proibição, levasse a uma queda no consumo, seria necessário supor que a qualidade do produto e sua avaliação subjetiva não se alterassem no processo. Acontece que mudanças de preço não influenciam apenas o equilíbrio entre oferta e demanda. Elas influenciam também a natureza dos produtos e, consequentemente, a utilidade subjetiva para os consumidores.
Isso se deve ao simples fato de que bens não são entidades homogêneas, mas agregados de atributos, cada um dos quais subjetivamente valorizado de maneira distinta. Um carro, por exemplo, terá aspectos específicos valorizados de maneira diferente por diferentes compradores: cor, modelo, idade, beleza, rendimento, ronco do motor, tamanho, construção interna e por aí vai. O mesmo acontece com as drogas: características como frescor, odor, coloração, sabor ou potência também serão valorizadas ou desvalorizadas diferentemente pelos usuários.
A atividade empresarial não consiste apenas em descobrir informações sobre novas demandas ainda não exploradas. Ela também busca modificar a natureza dos produtos já comercializados. O preço indica aos empresários não só a viabilidade de um novo empreendimento, mas também qual a melhor combinação de atributos capaz de maximizar a lucratividade de um produto. Assim, cada um dos diferentes atributos de um produto responderá de maneira distinta às alterações no ambiente de mercado.
A proibição gera uma alteração dos produtos análoga ao fenômeno da tributação. A diferença é apenas de grau e não de natureza. Empresários do mercado negro reagem às oportunidades de lucro exatamente como qualquer outro empresário. Portanto, traficantes responderão aos obstáculos legais mudando suas formas de produção e distribuição, assim como a qualidade e características de seus produtos.
Consideremos dois bens diretamente alternativos. Duas barras de chocolate, por exemplo. Uma, mais cara e de qualidade superior, custa, digamos, 50 reais. A outra, mais barata e de qualidade inferior, custa a metade. Digamos, agora, que o governo estabeleça um imposto de 25 reais para produtos de chocolate. A barra mais cara passa, então, a custar 75 reais e a mais barata, 50 reais. A diferença entre as barras sai de um fator de 2 para 1,5.
Quando ocorre uma tributação por unidade constante, a utilidade comparativa do bem de menor valor diminui. Isso é o mesmo que dizer que a barra de qualidade superior se tornou mais barata em relação à alternativa. Quando isso ocorre, parte da demanda se deslocará para o bem de maior valor e junto, é claro, os produtores, que passarão a se concentrar na oferta do bem mais valioso. A tributação por unidade constante aumenta a demanda por bens cujo atributo principal é considerado de maior qualidade e, consequentemente, diminui a oferta de alternativas mais baratas no mercado.
Mas tributação por unidade constante não é a única maneira de taxar. Também temos a modalidade de tributação sobre o valor negociado, a chamada tributação “ad valorem”. Essa modalidade gera um efeito diametralmente oposto àquele da unidade constante: a diminuição da qualidade dos bens oferecidos no mercado. Produtores passam a privilegiar aqueles atributos capazes de baratear a composição final do bem, para que possam continuar negociando o mesmo valor sem prejuízo.
Produtores de suco em caixinha podem passar a adicionar uma quantidade maior de água ou corantes de menor qualidade para manter o preço final competitivo. Ou, dependendo do ponto de tributação na cadeia produtiva, ainda que o suco natural seja mais apreciado pelos consumidores, produtores podem começar a dar preferência por extratos altamente concentrados. Assim, o mesmo volume negociado poderá produzir, com a adição posterior de água, uma quantidade final maior de unidades para a venda, diminuindo o impacto tributário. Em suma, tributação ‘ad valorem’ tenderá a produzir bens com atributos de qualidade inferior na sua composição final.[1]
Ao substituir o livre-mercado pelo mercado negro, a proibição transforma os custos de contornar a aplicação da lei numa função de tributação. Transporte, disfarces, conflitos com grupos rivais, propinas e risco da prisão funcionam como tributos impostos à atividade de traficar drogas. E uma vez que a proibição se trata de uma interdição completa do comércio, veremos a influência tanto da tributação por unidade constante quanto ‘ad valorem’ agindo simultaneamente na transformação da natureza das drogas.
Imaginemos duas unidades de entorpecentes diretamente alternativas, mas com potências diferentes. Duas doses de metanfetamina, por exemplo. Uma vez que os obstáculos para levar a droga até os usuários são os mesmos para ambas versões, assim como no exemplo das barras de chocolate, temos uma tributação por unidade constante. E, pela lei da tributação por unidade constante, a demanda será deslocada para aquela alternativa que oferecer a maior qualidade em relação ao atributo mais valorizado. Como a potência é o atributo mais valorizado pelos consumidores de drogas, o mercado tenderá a disponibilizar maior quantidade de versões mais potentes de uma mesma droga. Segue-se também que quanto mais rigorosa for a aplicação da lei, mais potentes serão as drogas comercializadas. Isso porque o aumento da tributação por unidade constante é inversamente proporcional ao fator de diferenciação dos custos entre bens diretamente alternativos.
Seguindo nosso exemplo, digamos que a dose de metanfetamina de maior potência custa 10 reais e a de menor potência, 5 reais. Se os custos impostos pela proibição implicarem um aumento de 5 reais por unidade, novamente, como no exemplo das barras de chocolate, a diferença entre as duas versões saiu de um fator de 2 para 1,5. Digamos, agora, que se tornou mais perigoso e, por isso mesmo, mais caro traficar essa droga. Os custos de suborno, transporte, risco de prisão e tudo mais que cumpre a função de tributação nos mercados ilegais passaram para 25 reais por unidade. O fator de diferenciação entre as potências terá, agora, diminuído para 1,16. Ou seja, a utilidade comparativa da dose mais fraca da mesma droga em relação à versão mais potente diminuiu.
Esse efeito é intensificado pela própria forma como o sucesso da aplicação da lei é medido. Já que a qualidade das drogas varia muito durante a cadeia de distribuição, a quantidade interceptada pelos agentes da lei, medida em peso, se torna o principal indicativo de uma ação bem-sucedida contra o tráfico. O valor será calculado utilizando a média do preço com que o grama da droga é negociado nas ruas. Esse é um procedimento tão estapafúrdio quanto tentar descobrir o valor de uma colheita de milho a partir do preço médio da pipoca nos cinemas. Mas, de qualquer forma, essa é uma das principais métricas utilizadas pelos governos para apresentar à população os resultados da guerra contra as drogas. E já que a severidade da lei está diretamente atrelada ao valor estipulado da quantidade apreendida, traficantes são incentivados a agir de forma análoga aos empresários diante de uma tributação ‘ad valorem’.
Assim como produtores de suco podem recorrer a extratos ultraconcentrados para diluir o impacto tributário por volume negociado, traficantes são incentivados a aumentar a potência da droga por unidade produzida. Isso não só permite o transporte de uma quantidade maior de entorpecentes por metro cúbico, como diminui o impacto da aplicação da lei numa eventual captura. E, pela lei da tributação ‘ad valorem’, a qualidade final da droga, a despeito do aumento da potência, tenderá a diminuir. Isso porque, assim como os corantes e a água no exemplo dos sucos de caixinha, os demais atributos que não estejam diretamente relacionados à potência serão substituídos por alternativas de menor qualidade.
No fim, a proibição força o mercado na direção de drogas mais potentes e, ao mesmo tempo, com componentes mais perigosos para saúde do usuário. Exatamente o resultado oposto daquele que o estado promete como uma de suas principais justificativas para a proibição: a proteção contra substâncias perigosas e viciantes.
Em 1920, o Estados Unidos colocou em prática a primeira experiência de proibição de um entorpecente em larga escala, a famosa Lei Seca. Num primeiro momento, houve realmente uma redução no consumo de álcool. Os dois primeiros anos registraram uma queda de cerca de 30% no consumo de álcool. Mas, como nos mostra Jeffrey Zwiebel em seu artigo “Alcohol consumption during prohibition“, a partir do terceiro ano, até o fim da Lei Seca, o volume de álcool consumido aumentou mais de 70%. Isso se explica pelo fato do mercado levar um tempo até se adaptar ao novo ambiente de negócios criado pela intervenção estatal. Uma vez que os produtores e consumidores tenham se ajustado, os efeitos que descrevemos acima começam a se tornar visíveis.
Esse aumento do volume de álcool consumido não ocorreu devido a um aumento na demanda, mas, sim, ao aumento do teor alcoólico das bebidas. Mark Thornton, em seu livro “Criminalização: análise econômica da proibição das drogas”, nos mostra que o preço da cerveja aumentou cerca de 700% durante a proibição, enquanto que o do uísque, cerca de 300%. Ou seja, conforme a lei da tributação por unidade constante, bebidas mais alcoólicas se tornaram comparativamente mais baratas durante a proibição. Fato confirmado pelo desaparecimento quase total de vinhos e cervejas em território americano durante esse período. Em outras palavras, o consumo de bebidas foi deslocado para destilados de alto teor alcoólico.
O teor alcoólico médio subiu para uma faixa de 50% até 100% acima dos uísques mais fortes do período anterior. E, conforme a lei da tributação ‘ad valorem’, a qualidade das bebidas diminuiu. Elas passaram até a conter componentes venenosos em suas formulações, como metanol, por exemplo.
Um outro efeito não intencionado da proibição é deslocar parte da demanda para drogas alternativas mais baratas. Quando, em 1933, a Lei Seca finalmente foi abolida, as grandes cidades americanas se encontravam mergulhadas numa epidemia de ópio. Aqueles usuários que não conseguiam acompanhar o custo crescente das bebidas encontraram no ópio um substituto barato. O clamor popular por uma solução para o crescente uso de ópio, incentivado pela proibição do álcool, está na origem, em 1935, da criminalização das drogas em território americano. Política essa que, em pouco tempo, seria exportada para o restante do mundo.
O mesmo processo que ocorreu com o álcool, ocorreu com o ópio. À medida que se intensificou a perseguição, ele foi rapidamente substituído no mercado por uma variação ainda mais potente, a morfina, e, posteriormente, a heroína. E quando, no final da década de 60, a máfia estatal americana comemorava a diminuição do comércio de heroína, um substituto ainda mais perigoso entrou em cena, o PCP, também conhecido como “angel dust”, ou “pó-de-anjo”.
Antes da proibição, a cocaína era amplamente difundida tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, consumida, inclusive, por várias figuras ilustres. Sigmund Freud, por exemplo, era um grande entusiasta da droga e incentivava o uso a seus pacientes. Doses pequenas de cocaína faziam parte da fórmula de inúmeras medicações caseiras e até de bebidas populares, como a Coca-Cola.
Apesar de constar na lista de substâncias proibidas desde o início da política de proibição, o governo americano só começou a combater mesmo o comércio ilegal de cocaína a partir do fim da década de 1950. E, durante o auge da guerra contra a cocaína, entre as décadas de 70 e 80, uma nova versão ainda mais potente da droga foi introduzida no mercado, o crack. E, no fim dos anos 90, novamente, o uso de crack foi substituído em grande parte pela metanfetamina. Uma droga ainda mais perigosa, que se tornou hoje um grave problema de saúde pública em várias cidades americanas.
Com a maconha não foi diferente. Assim como a cocaína, a maconha, formalmente proibida desde 1937, só se tornou um alvo prioritário da perseguição estatal a partir da década de 60, quando seu uso começou a se disseminar entre os jovens universitários. A potência da maconha havia sofrido pouca variação desde a antiguidade até o século XX. Porém, a partir da década de 80, no auge da campanha contra a droga, a maconha viu seu teor de THC aumentar mais de 300%.
Não poderíamos deixar de fora o cigarro. Apesar de não se tratar de uma droga proibida, a política de diminuição do consumo por meio de altas cargas tributárias gera os mesmos efeitos. Conforme Jaffrey Harris demonstra em seu artigo, “Taxes tar and nicotine”, o aumento de impostos sobre cigarros leva ao aumento da venda de cigarros com maior teor de nicotina, além de mover o consumo para marcas que utilizam aditivos de menor qualidade[2]. E agora vemos o surgimento de vaporizadores, instrumentos capazes de administrar doses muito maiores de nicotina, gradativamente substituindo os cigarros em vários países.
A posição libertária quanto às drogas é muito simples: vícios não são crimes. Usar ou não usar uma substância, por qualquer que seja a razão, é uma decisão estritamente individual. A proibição do comércio de drogas, além de ineficiente, é antiética, pois é uma violação do nosso direito natural à autopropriedade. Drogas devem ser comercializadas livremente como qualquer outro bem.
Aliás, um dos maiores riscos para usuários de drogas não são as drogas propriamente ditas, mas a forma como são comercializadas no mercado negro. Drogas ilegais possuem uma grande variação de potência e aditivos. Traficantes não se responsabilizam pelos danos causados pela má qualidade de seus produtos ou variações na sua potência. Muito menos os usuários são capazes de distinguir claramente a origem e a qualidade de suas drogas. Um mercado que funciona às margens do direito de propriedade, como é o caso do mercado negro, não pode promover o surgimento de mecanismos de controle de qualidade, como responsabilização e reputação.
Em um livre-mercado, produtos muito fora dos padrões são facilmente identificados e rejeitados se forem prejudiciais. Logo, aqueles empresários que encontram formas mais eficientes de oferecer seus produtos são rapidamente copiados. E como causar danos aos seus consumidores é uma péssima estratégia de negócios, seja devido às indenizações, seja devido à preservação da boa reputação, é de se esperar a padronização da formulação e das dosagens, assim como um esforço informativo do uso e riscos envolvidos. Algo parecido com o mercado de bebidas, onde há uma faixa, mais ou menos delimitada, de formulações e volume por garrafa, além de informações disponíveis sobre a potência, as dosagens e os riscos envolvidos no consumo da droga.
No fim, tudo que todas essas décadas de proibição do comércio de drogas nos trouxeram foi o surgimento de poderosas organizações criminosas, drogas cada vez mais potentes e perigosas, corrupção dos agentes da lei, prisões desnecessárias e uma quantidade imensa e crescente de dinheiro roubado do cidadão para manutenção dessa política. É claro que sempre haverá pessoas que farão mau uso de entorpecentes. Mas, ao contrário do estado e sua política de proibição, o livre-mercado é a única maneira de coordenar ações e informações que pode minimizar os possíveis impactos negativos.
Portanto, não, não é a maconha, meu caro leitor, mas sim o próprio estado, a porta de entrada para as piores e mais perigosas drogas.
Revisado por Marco Batalha
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Notas
[1] Thornton, Mark. Criminalização: análise econômica da proibição das drogas. São Paulo: LVM editora. 2018.
[2] Harris, Jeffrey E. Taxes tar and Nicotine. The American Economic Review, Vol. 70, No. 3 (Jun., 1980), pp. 300-311
Excelente artigo, parabéns ao autor e ao site ! A única droga que devia ser proibida é o próprio estado.
Obrigado, Joaquim. Fico feliz que tenha gostado.
Artigo interessantíssimo. Apesar do autor ter afirmado sobre o nível constante de THC ao longo do tempo até a proibição, fiquei curioso em saber qual seria o nível ótimo de THC determinado em um mercado livre. Talvez em outra vida eu saiba.