O artigo a seguir foi extraído do capítulo 9 do livro A Tragédia do Euro.
“Se bens pararem de cruzar as fronteiras, os exércitos o farão” é um provérbio frequentemente atribuído a Frédéric Bastiat e um dos principais pilares do liberalismo clássico. Quando bens são impedidos de cruzar as fronteiras ou de serem voluntariamente comercializados, os conflitos naturalmente surgem. Por outro lado, o livre comércio fomenta a paz.
No livre comércio, os cidadãos de diferentes nações cooperam entre si harmoniosamente, guiados pela divisão do trabalho. Uma troca voluntária só ocorre porque ambos os lados esperam se beneficiar dela. Imagine que os alemães sejam loucos por queijo feta e que os gregos sejam malucos por carros alemães. Quando a Alemanha compra queijo feta da Grécia e os gregos utilizam as receitas oriundas da venda de seus fetas para comprar carros alemães, as trocas são mutuamente benéficas ex ante. Na era da divisão do trabalho, o livre comércio é um pré-requisito para qualquer arranjo amigável entre as nações.
Um possível conflito surgirá quando bens forem inibidos ou completamente proibidos de cruzar fronteiras. Se os alemães puderem comprar queijos feta somente a preços muito altos em decorrência de tarifas ou se a entrada de carros alemães na Grécia for proibida por lei, as sementes do descontentamento e dos conflitos estarão plantadas. Se um país estiver temeroso de que será incapaz de importar alimentos essenciais ou outras mercadorias devido a impostos ou sanções, ele terá de se preparar para virar uma autarquia.
Protecionismo e nacionalismo econômico foram as principais causas da Segunda Guerra Mundial.[1] Com a derrocada do liberalismo clássico no início do século XX, o livre comércio passou a ser atacado por todos os lados, e o protecionismo entrou em ascensão. O nacionalismo econômico colocou a Alemanha em uma posição muito perigosa estrategicamente, dado que o país tinha de importar comida e commodities como petróleo. Esta sua posição vulnerável foi exposta quando um bloqueio naval britânico provocou a inanição de 100.000 alemães durante a Primeira Guerra Mundial. Após a guerra, Adolf Hitler saiu à procura de Lebensraum [espaço vital para expansão territorial e política] e de commodities ao leste da Alemanha com o intuito de tornar o país autossuficiente nesta nova era de nacionalismo econômico.
Outra implicação da proibição do livre comércio e da liberdade de troca de bens é a involuntária transferência de bens de um país para o outro. Um fluxo unilateral, involuntário e coercivo de bens poderá, cedo ou tarde, levar a conflitos entre nações. Em nosso exemplo acima, tal situação seria equivalente à transferência de carros alemães para a Grécia sem as correspondentes importações de queijo da Grécia. Enquanto os carros alemães fluem para a Grécia, nada de real é enviado para a Alemanha em troca; nada de queijo feta, nada de petróleo, nada de participação em empresas gregas, nada de casas de veraneio gregas e nada de férias nas praias gregas.
Um exemplo histórico de fluxo unilateral e involuntário de bens pode ser vista nas reparações impostas à Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, quando ouro e bens foram transferidos para os Aliados sob a ameaça de armas. Os alemães à época se sentiram ultrajados e vilipendiados por esta transferência unilateral de bens. Hitler foi eleito com a promessa de que acabaria com o odiado Tratado de Versalhes e, em especial, com as reparações de guerra. Estas reparações, vistas como uma violação adicional das trocas voluntárias de bens, foram fatores que levaram à Segunda Guerra Mundial.[2]
Os fundadores da integração europeia após a Segunda Guerra Mundial — Konrad Adenauer, Robert Schuman, Paul Henri Spaak, e Alcide de Gaspari — sabiam da importância do livre comércio para uma paz duradoura[3]. Todos haviam testemunhado os horrores da guerra de maneira muito próxima. Eles queriam criar um ambiente na Europa que, além de colocar um fim às guerras recorrentes, pudesse também gerar uma paz permanente.
Seus esforços podem ser considerados um sucesso; nunca mais houve outra guerra na Europa entre as nações-membro da União Europeia. Com o intuito de criar esse ambiente pacífico, os fundadores criaram uma zona de livre comércio para estimular as trocas voluntárias. A cooperação mutuamente benéfica cria laços, compreensão, confiança, dependência e amizade. No entanto, a construção não foi perfeita. Embora o Tratado de Roma estabelecesse a liberdade de movimento de capital, mão-de-obra e mercadorias, infelizmente foi deixada uma brecha para que ocorresse também a transferência involuntária de bens.
Ha dois principais mecanismos por meio dos quais a riqueza — isto é, bens — é redistribuída entre nações-membro em um uma só direção, criando desta forma fissuras na harmoniosa cooperação entre os europeus.
O primeiro mecanismo para a transferência unilateral de bens pode ser encontrado no sistema oficial de redistribuição. O Tratado de Roma já continha o objetivo do “desenvolvimento regional” — ou seja, a redistribuição. Ainda assim, até a década de 1970 houve poucas ações efetivas nesta área. Hoje, no entanto, tal programa já responde pelo segundo maior gasto da UE. Um terço de seu orçamento é dedicado à “harmonização” da riqueza. O Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional foi criado em 1975. Seu objetivo é gastar dinheiro em “fundos estruturais” para financiar projetos de desenvolvimento regionais.
O outro pilar da política de redistribuição direta da UE é a ideia de “fundos de coesão”, instituídos em 1993 para harmonizar as estruturas de países mais pobres e tornar viável a entrada deles na União Monetária Europeia. Fundos de coesão estão abertos somente para os países cujos PIBs sejam menores que 90% da média do PIB da UE. Tais fundos são utilizados para financiar projetos ambientais ou redes de transporte. Seus principais beneficiários foram a Irlanda e os países do sul da Europa.[4]
Este arranjo fez com que os holandeses se tornassem os maiores pagadores líquidos de toda a União Europeia, seguidos pelos dinamarqueses e alemães. [5] De 1995 a 2003, a Alemanha pagou €76 bilhões líquidos para os cofres da União Europeia. [6] Em 2009, o governo alemão transferiu €15 bilhões para a União Europeia. [7] A redistribuição de riqueza entre as nações-membro representa uma potencial fonte de conflito: bens são efetivamente transferidos sem que nada seja enviado em troca. Carros são enviados à Grécia sem que haja em troca uma remessa de queijo grego.
O segundo mecanismo para o involuntário fluxo unilateral de bens é mercado monetário. Como discutido anteriormente, há um produtor monopolista de dinheiro padrão (base monetária), que é o Banco Central Europeu. O BCE redistribui riqueza ao criar dinheiro novo e distribuí-lo de forma desigual para os governos nacionais com base em seus respectivos déficits.
O esquema funciona da seguinte maneira: um determinado governo nacional europeu gasta mais do que arrecada em impostos. Para quitar esta diferença — isto é, o déficit —, o governo em questão emite títulos públicos. Os títulos são vendidos ao sistema bancário, o qual, por sua vez, utiliza estes títulos junto ao BCE como colateral para obter empréstimos. Tais empréstimos concedidos pelo BCE são feitos com dinheiro criado do nada pelo BCE. Desta maneira, os governos nacionais podem, na prática, imprimir dinheiro. Enquanto o BCE aceitar esses títulos como colateral, eles irão funcionar como se fossem dinheiro. Como consequência, a oferta de euros irá aumentar. Os primeiros a receberem estes euros recém-criados — no caso, os países dos governos nacionais deficitários — poderão desfrutar um maior poder de compra, pois agora têm mais dinheiro e os preços ainda não se alteraram. À medida que este dinheiro recém-criado vai se espalhando para outros países, os preços vão se elevando em toda a União Monetária Europeia. Aqueles que receberem este dinheiro por último terão seu poder de compra diminuído, pois os preços subiram antes de suas rendas terem aumentado.
Para utilizar um exemplo real: a economia grega não é competitiva à taxa de câmbio em que entrou na zona do euro. Os salários teriam de cair para torná-la mais competitiva. Mas os salários são rígidos por causa de sindicatos poderosos e privilegiados. A Grécia conseguiu sustentar temporariamente esta situação incorrendo em déficits públicos e emitindo títulos, o que fez aumentar a oferta monetária do país. Com isso, foi possível pagar altos salários a pessoas improdutivas: funcionários públicos e desempregados. Aqueles que recebiam benefícios estatais podiam utilizar esse dinheiro recém-criado para comprar carros alemães, os quais iam se tornando cada vez mais caros em decorrência justamente deste aumento na quantidade de dinheiro. O resto da Europa, por sua vez, se tornava mais pobre em decorrência deste aumento nos preços dos carros. Houve, neste cenário, uma transferência unilateral de carros da Alemanha para a Grécia. Os meios utilizados para pagar por estes carros foram produzidos de maneira coerciva e não voluntária: por meio do monopólio sobre a produção de dinheiro.
Ao comentar sobre o Tratado de Maastricht e a introdução do euro, os paralelos com a transferência unilateral de bens induzida pelas reparações de guerra foram sagazmente observados pelo jornal Frances Le Figaro, no dia 18 de setembro de 1992:
‘A Alemanha irá pagar’, disse o povo na década de 1920. Hoje ela está pagando: Maastricht é um Tratado de Versalhes sem guerra.[8]
Não foi apenas o Tratado de Versalhes que criou conflitos. O arranjo monetário estabelecido pelo Tratado de Maastricht também estimula contendas, como já foi visto. A moeda única institucionaliza os conflitos à medida que a batalha pelo controle da oferta monetária se intensifica. Como os problemas estruturais da Grécia permanecem não resolvidos e a dívida de seu governo atingiu níveis extraordinários, o país vem lutando para conseguir lançar no mercado novos títulos da dívida, pois não há compradores interessados — mesmo considerando o fato de que o BCE ainda aceita títulos gregos como colateral (mesmo eles sendo classificados como lixo). O mercado começou a duvidar da boa vontade e da capacidade do resto da União Monetária Europeia de estabilizar o governo grego.
O resultado foi o pacote de socorro e a transferência de fundos da UME para a Grécia na forma de empréstimos subsidiados. O processo de socorro na forma de transferências involuntárias e unilaterais de bens provocou desprezo e ódio em níveis governamentais e civis, especialmente entre a Alemanha e a Grécia.
Os jornais alemães chamaram os gregos de “mentirosos” quando foi descoberto que seu governo havia falsificado as estatísticas orçamentárias. [9] Um tablóide alemão perguntou por que os alemães têm de se aposentar aos 67 anos se o seu governo pode se dar ao luxo de transferir fundos para a Grécia para que os gregos possam se aposentar mais cedo. [10] Por sua vez, os jornais gregos continuam a acusar a Alemanha de atrocidades durante a Segunda Guerra Mundial e alegar que o país ainda lhes deve o pagamento de reparações.
[1] Ver Ludwig von Mises, Omnipotent Government: The Rise of the Total State and Total War (New Haven: Yale University Press, 1944), Cap. 3.
[2] Sobre os bloqueios que geraram inanição, ver Ralph Raico, “The Blockade and Attempted Starvation of Germany,” Mises.org daily article (May 7, 2010), [C. Paul Vincent, The Politics of Hunger: Allied Blockade of Germany, 1959-1919, (Athens, OH: Ohio University Press, 1985).
[3] Ver Ginsberg, Demystifying the European Union, p. 387.
[4] Ibid., pp. 257-260.
[5] Ver Dutchnews.nl, “Dutch are Biggest EU Net Payers: PVV,”(January 14, 2010), http://www.dutchnews.nl
[6] Hannich, Die kommende Euro-Katastophe, p. 30.
[7] Bandulet, Die letzten Jahre des Euro, p. 107.
[8] Citado in Roland Baader, Die Euro-Katastrophe, p. 163.
[9] Ver Alkman Granitsas and Paris Costas, “Greek and German Media Tangle over Crisis,” The Wallstreet Journal (February 24, 2010), http://online.wsj.com.
[10] Ver Hoeren and Santen, “Griechenland-Pleite.”