Perante o agora evidente fracasso da política econômica kirchnerista, um modelo populista que vigora na Argentina desde 2003, começam a surgir nos jornais argentinos várias colunas escritas por “especialistas” e por ex-integrantes do atual governo que tentam limpar sua imagem e apontar os responsáveis diretos pelos acontecimentos atuais, que envolvem saques a comércios e residências, disparada do dólar, queda acentuada das reservas internacionais, restrições à compra de dólares, inflação de preços em disparada e apagões.
O ex-presidente Eduardo Duhalde, por exemplo, que ficou no cargo de janeiro de 2002 a maio de 2003, vem fazendo elogios ao seu então ministro da economia, Roberto Lavagna, tentando resgatar sua imagem e chegando ao ponto de candidatá-lo como a pessoa com a experiência necessária para resolver a situação atual. Já o ex-presidente do Banco Central Martin Redrado (setembro de 2004 a janeiro de 2010), e o ex-ministro da economia Martín Lousteau (dezembro de 2007 a abril de 2008), vêm escrevendo dezenas de artigos nos jornais tentando se desvencilhar de suas ligações com o atual governo, sendo que participaram dele até há poucos anos.
É correto dizer que, desde 2007, Cristina Fernandez de Kirchner pessoalmente se ocupou de aprofundar o atual populismo que nasceu após o fim do regime de conversibilidade em 2002. No entanto, cada um destes três economistas citados acima tem sua parcela de culpa pela atual situação que nós argentinos estamos vivenciando.
Em primeiro lugar, a saída do regime de conversibilidade foi feita da pior maneira que se poderia conceber. Eduardo Duhalde acusa o atual governo de improvisação, mas foi ele próprio quem, logo após ter prometido devolver os dólares que os argentinos haviam depositado nos bancos durante a década de 1990, tratou de pesificar todas as contas bancárias, convertendo dólares em peso a uma taxa de câmbio extremamente desvalorizada, sendo assim o responsável pelo maior confisco da renda do povo argentino nas últimas décadas. (Leia os detalhes completos neste artigo).
Em segundo lugar, é preciso deixar claro que o abandono do regime de conversibilidade e a subsequente desvalorização cambial feita por Duhalde em 2002, algo que hoje ele diz ter sido a medida que gerou a “década do crescimento” da economia argentina, foi na realidade o começo de outra “década perdida”. É verdade que, entre 1998 e 2001, ainda sob o regime de conversibilidade, a economia argentina estava em recessão e com alto desemprego; mas a súbita e acentuada desvalorização cambial ocorrida em 2002 transformou essa pequena recessão em uma profunda depressão, a qual fez o PIB despencar mais de 10% em 2002, além de destruir completamente o estado de direito do país. (Ver relato completo e em detalhes neste artigo.)
A partir de 2003 a economia começou a se recuperar, mas foi só em 2008 que o PIB real da Argentina voltou ao mesmo nível que já havia alcançado em 1998. Enquanto Chile e Brasil aproveitaram a década de 2000 — que foi a década mais afortunada para a América Latina em mais de um século, no que se refere ao contexto internacional — para vivenciar um processo de acelerado crescimento, a Argentina teve primeiro de retroceder para só então se aproveitar desta bonança e recuperar o que havia perdido. Em outras palavras, entre 1998 e 2008, a Argentina não cresceu; apenas recuperou o que havia perdido após a desastrosa desvalorização de sua moeda.
Vale ressaltar que, em 1999, havia outra opção, que era dolarização, a qual foi completamente ignorada. Caso houvesse implantando essa medida, a Argentina poderia ser hoje a primeira economia latino-americana a apresentar um PIB per capita de nível europeu.
Voltando aos três personagens atuais, Roberto Lavagna assumiu o cargo de ministro da economia durante a presidência interina de Eduardo Duhalde em abril de 2002, foi ratificado no posto pelo presidente eleito Néstor Kirchner em 2003, e acabou sendo destituído do cargo em 2005 por causa de divergências internas. Ele se destaca por ter liderado o processo de recuperação da economia argentina, mas vale ressaltar que foi durante sua gestão que também se iniciou o modelo econômico atual, caracterizado por um aumento acelerado dos gastos públicos e dos impostos. Com Lavagna no ministério da economia, a carga tributária subiu de 24% do PIB para 30%.
Ter sido substituído por Felisa Miceli, uma intervencionista radical, em novembro de 2005 claramente não melhorou em nada a situação. É válido dizer que, desde essa data até sua morte em outubro de 2010, Néstor Kirchner foi o verdadeiro ministro da economia, inclusive após a chegada de Cristina Kirchner ao poder, em dezembro de 2007.
A nomeação do jovem Martín Lousteau para o ministério da economia, também em dezembro de 2007, estava em linha com o desejo de Néstor. A margem de decisão de Lousteau era muito restrita, e ainda assim ele cometeu o incompreensível erro de tentar aumentar ainda mais a carga tributária, que nesta época já era de 36% do PIB. Os argentinos bem se lembram de sua proposta de aumentar as retenções das exportações de soja para um valor acima dos já excessivos 35%, algo que só não ocorreu por causa de um veto do vice-presidente. Após várias desavenças internas, Lousteau saiu do governo em abril de 2008 e, desde então, se tornou um crítico do modelo.
Já o caso de Martín Redrado é um pouco mais complexo já que ele foi presidente do Banco Central entre setembro de 2004 e janeiro de 2010. Durante sua gestão, ele jamais reconheceu a inflação de preços real, uma vez que esta era frequentemente o dobro — e, às vezes, o triplo — da inflação de preços oficial declarada pela instituição que ele presidia. De 2007 até sua renúncia, a inflação real só ficou abaixo de 20% ao ano em 2009, ano da recessão global, da qual a Argentina também não escapou. Redrado jamais exigiu a independência do Banco Central e jamais se negou a imprimir dinheiro para financiar os descontrolados gastos do Executivo. Até que o oficialismo decidiu afastá-lo do governo.
Nesta seleção arbitrária de personagens responsáveis pela débâcle que nós argentinos estamos vivenciando, chegou a hora de analisarmos o atual e pitoresco ministro da economia, Axel Kicillof.
Doutor em economia pela Universidad Nacional de Buenos Aires, Kicillof (que foi meu professor) e sua equipe econômica tomaram posse em novembro de 2013 em um espetáculo constrangedor. Profundo estudioso de Karl Marx, Kicillof se doutorou em economia tendo como tese um estudo dos fundamentos da Teoria Geral de John Maynard Keynes.
O pensamento de Kicillof, portanto, se encontra entre Marx e Keynes, um conflito interno que não deve ser fácil de ser resolvido. Seu pensamento é apresentado utilizando termos marxistas — algo que se nota claramente quando ele fala —, mas ele também sabe moderar seu discurso recorrendo a Keynes, cuja obra parece conhecer de cor. Para Kicillof, o socialismo seria o arranjo desejável, embora entenda que uma transição para esse sistema é inviável no mundo moderno. O advento do socialismo será, quem sabe, uma etapa mais avançada do capitalismo, mas não é algo que caberá a ele acelerar em seu novo cargo. Suas propostas políticas são mais keynesianas do que marxistas.
Kicillof rejeita a ideia generalizada de que a Argentina se beneficiou, ao longo dos últimos dez anos, de um contexto internacional favorável. Para Kicillof, não houve e nem haverá ventos favoráveis, e sim apenas ventos contrários, os quais teriam destruído a economia argentina não fossem as “exitosas” políticas protecionistas que o país implementou ao longo destes últimos dez anos. Ele parece ignorar que foram justamente as políticas de expansão do crédito orquestradas pelo Federal Reserve e pelo Banco Central Europeu que injetaram liquidez no mercado e, consequentemente, elevaram substancialmente os preços das commodities — como trigo, soja e petróleo —, algo que claramente beneficiou tanto a América do Sul quanto a Argentina.
Kicillof compartilha da ideia de Robert Skidelsky — o principal biógrafo de John Maynard Keynes — de que este é o momento ideal para o “retorno do maestro”. Kicillof recorre a Keynes para justificar uma série de medidas que devem ser implementadas para corrigir o capitalismo e regulá-lo, uma vez que, sem estas medidas, o mercado irá inevitavelmente nos levar a sucessivas crises.
Em sua tese de doutoramento, ele explica em detalhes como uma política anticíclica keynesiana deve ser usada para enfrentar uma situação de recessão: a demanda agregada deve ser impulsionada com políticas monetárias e fiscais expansionistas. Ou seja, deve haver mais gasto público — sem se importar que ele seja deficitário — e mais expansão do crédito por meio de taxas de juros baixas e até mesmo negativas (em termos reais), o que impulsionaria ao mesmo tempo o consumo e o investimento. Até o momento, no entanto, esta receita de Kicillof logrou apenas desvalorizar ainda mais a moeda e piorar o já acentuado desequilíbrio fiscal, justamente a fonte de todos os problemas da Argentina nas últimas décadas, e fonte do atual e real problema da inflação de preços que atormenta o país.
É de se imaginar que, além das já implantadas medidas que aumentaram o controle estatal sobre a economia (como as restrições à compra de dólares e o confisco da Repsol), novas expropriações e estatizações também estejam em seus planos, principalmente quando levamos em conta seu expresso desejo de “reverter os anos 1990”.
Algo que Marx e Keynes tinham em comum, além da desconfiança em relação ao mercado, era seu desapreço pela função empresarial. Tanto em suas aulas quanto em seus discursos atuais, Kicillof deixa transparecer de forma cristalina seu ódio aos donos do capital. Ele enxerga os lucros das empresas como sendo uma indevida apropriação da mais-valia por parte do capitalista, sendo a “mais-valia” o valor monetário que o trabalhador assalariado cria acima do salário que recebe. Essa injustiça social justifica — em sua visão — qualquer ação do governo que vise a expropriar ou tomar medidas para limitar aquilo que para ele é basicamente um roubo.
Kicillof entende o comércio como sendo um jogo de soma zero, no qual uns ganham (os empresários) e outros perdem (assalariados e consumidores). Tal raciocínio faz com que ele tenha uma enorme satisfação em tomar medidas que reduzam os lucros empresariais, que imponham estratégias de investimento ou que proíbam a remessa de lucros para o exterior. Seu discurso na ocasião da expropriação da Repsol-YPF foi justamente neste sentido. Ele parecia ignorar o fato de que o maior problema vivenciado pela Repsol-YPF foram as pesadas regulamentações sobre a empresa, as quais reduziram sua margem de lucro e, consequentemente, impediram novos investimentos na Argentina e estimularam mais investimentos no exterior.
Kicillof, assim como a maioria dos burocratas governamentais, sofre da arrogância fatal de acreditar que sabe melhor do que todos os empresários argentinos como e onde devem ser feitos os investimentos, e quais são os reais interesses coletivos do país. Em suma, para Kicillof, os interesses de um coletivo imaginário estão acima dos interesses individuais, de modo que, se for necessário sacrificar várias empresas para dar sustentação ao seu modelo econômico, ele não hesitará em fazê-lo.
O mesmo, aliás, pode ser dito sobre seu programa de controle cambial. Se for necessário encarecer ainda mais o turismo de argentinos no exterior, ele não terá nenhum problema em fazer isso. No que mais, confiscar dólares e proibir seu uso no exterior é uma função social que está muito acima das liberdades individuais.
Ironicamente, este atual modelo populista e inflacionário é chamado por Kicillof de “inclusão social”.
As quatro etapas do populismo
O roteiro deste tango argentino é convencional: na primeira etapa de um programa populista, sempre se observa um suposto êxito do modelo, principalmente quando a economia parte de uma situação deteriorada em termos de PIB e emprego. Por isso, entre 2003 e 2007, o modelo populista mostrou uma recuperação da atividade econômica, do emprego e dos salários reais. Consequentemente, a continuidade do kirchnerismo era óbvia.
No entanto, já naquela época, não eram poucos os economistas liberais alertando que tal etapa aparentemente exitosa era insustentável, que o gasto público estava saindo de controle, e que as tendências mostravam que nem os preços crescentes da soja e nem suas crescentes retenções poderiam sustentar a bonança.
Com o tempo, os dados começaram a mostrar que não apenas a carga tributária não parava de crescer, como também já estava se tornando corriqueira a monetização dos déficits orçamentários do governo. O surgimento de desequilíbrios fiscais, monetários e cambiais, bem como de uma resiliente inflação de preços, caracteriza exatamente a segunda etapa do populismo. Preocupados com este arranjo, estes economistas intensificaram seus alertas, mas foram sumariamente ignorados.
A terceira etapa do populismo é justamente a atual, em que estes desequilíbrios básicos se ampliam e se tornam evidentes para toda a população na forma de uma acentuada inflação de preços, o que leva o governo a maquiar estatísticas e a impor o congelamento de vários preços, o que por sua vez gera desabastecimento e escassez de vários produtos. Quanto mais a economia se desarruma, mais intensas e desesperadas se tornam as medidas do governo para tentar ocultar esta realidade.
A quarta e última etapa, que ainda está por vir, é a etapa do “ajuste”, uma etapa da qual ninguém quer falar, mas que dificilmente poderá ser evitada. O ajuste normalmente é composto por liberação de preços e sua subsequente disparada, ajuste monetário e fiscal, recessão, desemprego, queda do salário real e aumento da pobreza. Aqueles que negam a necessidade deste ajuste devem explicar como é possível sustentar este atual arranjo por um longo período de tempo.
Conclusão
Uma medida relativamente simples e que ajudaria a corrigir estes três desequilíbrios (fiscal, monetário e cambial), além de minimizar os efeitos do ajuste, seria a dolarização da economia, cujo plano está explicado em detalhes aqui. Porém, lamentavelmente, nem a oposição e nem mesmo aqueles economistas que identificaram corretamente os problemas parecem saber o que defender.
Artigo originalmente publicado em janeiro de 2014