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Pode o ouro provocar ciclos econômicos?

money-graphics-2006_973755aAqui na Academia Mises já estamos finalizando aaula inaugural — de um curso de nove semanas — sobre a teoria austríaca dos ciclos econômicos (TACE).  Durante a aula, uma questão surgiu variadas vezes: a teoria de Mises/Hayek a respeito dos ciclos econômicos poderia ocorrer em um mercado completamente livre, utilizando o ouro como moeda e um sistema bancário operando com 100% de reservas — isto, é sem reservas fracionárias?

Como qualquer bom (e aborrecido) professor faria, evitei dar uma resposta definitiva de um jeito ou de outro.  Ao invés disso, tentei fornecer o melhor cenário possível para cada resposta, para incitar os alunos a pensar por si próprios.  Nesse artigo, vou sintetizar como até mesmo um rothbardiano poderia plausivelmente responder a essa pergunta tanto na afirmativa quanto na negativa.

Revisão: a TACE sob um papel-moeda de curso forçado e um sistema bancário de reservas fracionárias

Antes de adentrarmos o exemplo mais complicado, vamos fazer o mais fácil primeiro.  De acordo com Mises, Hayek e Rothbard, o atual sistema bancário desencadeia o já familiar ciclo de expansão e recessão econômica quando ele inunda o mercado de crédito com dinheiro “em excesso”.

Suponha que temos uma economia que está originalmente em equilíbrio, em que a taxa de juros reflete a quantia genuína de poupança que os indivíduos se abstêm de consumir de suas rendas.  Repentinamente, os bancos decidem conceder $100 milhões em novos empréstimos, mesmo que esse novo crédito não advenha da poupança extra de ninguém.  (Descrevo esse processo aqui).

Por causa dessa maior oferta de crédito, as taxas de juros de mercado caem.  Esse “sinal falso” leva os empreendedores a pegarem mais empréstimos e a iniciarem projetos mais longos do que empreenderiam caso os juros não tivessem caído.  Consequentemente, uma expansão econômica insustentável se inicia, dando à maioria das pessoas uma sensação ilusória de prosperidade.

Com o passar do tempo, à medida que os bancos forem ficando preocupados com a inflação de preços — o que reduz seus lucros reais —, eles irão reduzir ou até mesmo interromper sua criação de dinheiro sem lastro.  As taxas de juros de mercado irão subir de volta para seu valor correto e, com isso, muitas empresas serão pegas desprevenidas.  Eles terão de reduzir sua produção ou mesmo fechar as portas completamente.  Trabalhadores e outros recursos serão liberados daqueles setores que foram os mais estimulados durante a expansão econômica.  Começa a recessão geral.

E se o ouro for a moeda e os bancos mantiverem reservas de 100%?

Agora a parte difícil: suponha que estivéssemos em um mundo em que o ouro fosse o dinheiro — as etiquetas exibem preços denominados em gramas do metal amarelo, as pessoas andam por aí com moedas de ouro genuíno tinindo em seus bolsos etc.  Além disso, os bancos mantêm 100% de reservas para os depósitos à vista (depósitos em conta-corrente).

Nesse cenário, seria teoricamente possível que o ciclo misesiano de expansão-recessão ainda viesse a ocorrer?  Mais especificamente, suponha que o proprietário de uma mina de ouro tivesse a inacreditável sorte de achar por acaso o filão principal de sua mina.  Em um curto período de tempo ele estará em posse de várias toneladas de ouro novo, o qual ninguém sabia existir até o mês anterior.

Ao invés de ir para um cassino ou para uma concessionária de iates, o mineiro resolve ir até seu banco.  Lá, ele vai dizer: “Estou emprestando esse novo dinheiro para vocês.  Sei que vocês praticam uma estrita política de 100% de reservas para os depósitos à vista, mas estou colocando esse dinheiro na minha poupança, e não na minha conta-corrente.  Estou ciente de que estou abrindo mão do meu dinheiro agora em troca de sua promessa de que irão me pagar esse empréstimo futuramente, e com juros.”

Agora esse banco poderá jogar no mercado de crédito uma enorme quantia de fundos para empréstimos.  Essa nova oferta de poupança irá claramente derrubar as taxas de juros de mercado, permitindo que muitas empresas iniciem e ampliem aqueles projetos de longo prazo que não eram lucrativos antes da descoberta do ouro.

Finalmente podemos ver o enigma: temos aí um exemplo de expansão insustentável?  Afinal, ninguém mais na comunidade restringiu seu consumo de modo a liberar recursos físicos para a economia.  Portanto, fica a pergunta: em que esse cenário se diferencia daquele em que os bancos de reservas fracionárias simplesmente criam novos empréstimos do nada?

Como expliquei na introdução, não estou aqui para dizer qual é a resposta definitiva para essa questão.  Quero mostrar que é possível dar uma resposta sinceramente “rothbardiana” que sirva para ambos os casos.  Creio que os atuais austríacos que endossam a posição de Rothbard a respeito das reservas de 100% podem ir para qualquer um dos dois lados dessa questão.

Cenário #1: O influxo de ouro causaria uma expansão insustentável

Tanto Mises quanto Rothbard viam os juros como um fenômeno “real”.  Ambos argumentavam que, em uma economia de mercado livre e desimpedido, a taxa “natural” de juros reflete as preferências subjetivas das pessoas: o quanto elas preferem consumir agora ao invés de mais tarde.

Mises e Rothbard também enfatizaram a questão de não haver uma quantidade “ótima” de dinheiro.  Qualquer quantidade de dinheiro seria capaz de realizar suas funções com meio de troca universalmente aceito, tão logo os preços se ajustassem.  A comunidade iria obviamente ficar mais rica (em termos per capita) se os agricultores colhessem mais trigo ou se os músicos executassem mais concertos.  Mas se o governo imprimisse mais dinheiro de papel, isso não tornaria a comunidade mais rica na média, pois a mesma quantidade de bens e serviços reaisestaria sendo produzida.  O novo dinheiro iria simplesmente elevar os preços.

Com efeito, mesmo no caso de uma moeda-commodity como o ouro, novas quantidades sendo injetadas no mercado não tornariam a comunidade mais rica, exceto na medida em que o novo ouro fosse utilizado para aplicações industriais ou comerciais.  Por exemplo, se parte desse ouro recém-escavado fosse direcionado para o tratamento de artrite ou para a produção de mais colares, então esse aumento seria socialmente benéfico.  Porém, o ponto crucial é que, em sua capacidade monetária, cinco milhões de toneladas de ouro são tão úteis quanto um milhão ou dez milhões.

Após enfatizar a constatação padrão de Mises e Rothbard acerca da natureza dos juros e da moeda, poder-se-ia muito plausivelmente argumentar que o cenário da mina de ouro acima descrito iria desencadear uma expansão econômica insustentável.  Porém, suponha que, ao invés de jogar todas essas toneladas de ouro no mercado de crédito, o mineiro gastasse tudo na compra de bens de consumo.  Isso claramente iria apenas redistribuir riqueza, retirando-a do resto da comunidade e direcionando-o para as mãos do mineiro.

Vejamos: a produção total de carros, alimentos e imóveis não aumentaria apenas porque alguém calhou de achar um monte de metais amarelos.  Consequentemente, esse aumento do consumo do mineiro só poderá ocorrer em detrimento do consumo dos outros cidadãos, que só receberão esse novo ouro bem mais tarde, depois que ele já tiver sido colocado em circulação e os preços tiveram aumentado.

Observe que não há nada de imoral ou dúbio em um mineiro utilizar sua propriedade legitimamente adquirida para estimular seu consumo.  Estamos apenas argumentando que essa “produção” extra de ouro não é socialmente útil, ao contrário do que ocorreria caso houvesse um aumento na produção feita por agricultores ou dentistas.

Se é possível entender que o gasto desse novo ouro em bens de consumo iria meramente rearranjar a mesma quantidade total de bens e serviços reais, então resta claro que a renda real dessa comunidade não aumentou em decorrência da descoberta desse filão de ouro.

Finalmente, se a análise até agora estiver correta, então a conclusão óbvia é a de que, se esse mineiro pegar esse ouro recém-descoberto e emprestá-lo a juros, ele irá distorcer as estrutura de produção, tirando-a de sua configuração adequada.  A essa taxa de juros menor, as empresas irão tomar mais dinheiro emprestado (consistindo em gramas de ouro) para gastar com investimentos.  Entretanto, os outros cidadãos da comunidade não irão reduzir seu consumo apenas porque um cara encontrou acidentalmente algumas toneladas de ouro.  No mínimo, as pessoas irão consumir mais assim que os juros caírem.

Com isso vemos que análise padrão rothbardiana poderia bem plausivelmente concluir que um ciclo de expansão e recessão é teoricamente possível em um livre mercado.

Cenário #2: uma expansão insustentável do crédito não pode ocorrer em um livre mercado

Embora a análise acima tenha sido propositalmente construída de acordo com os termos rothbardianos, ela nos apresenta um problema: Murray Rothbard imaginava que os ciclos de expansão e recessão não poderiamacontecer em mercado genuinamente livre.  É por isso que, em seu tratado Man, Economy, and State, ele colocou a análise da teoria austríaca dos ciclos econômicos em uma seção que lida com intervenções governamentais.

Pelo que sei, Rothbard nunca abordou especificamente o cenário teórico que estamos imaginando nesse artigo.  Porém, se um rothbardiano quiser negar que um livre mercado também pode gerar um ciclo de expansão e recessão, mesmo sob essas condições hipotéticas que assumimos, como ele poderia argumentar?

Primeiro, sejamos um pouco mais concretos em nossa descrição das operações normais — e mensais — de um minerador de ouro.  Quaisquer outras empresas auferem receitas de clientes em ouro físico e pagam suas despesas de mesma maneira.  No final de cada mês, a renda líquida de empresa será o excesso de receita em relação às despesas, mensurada em gramas de ouro.

Porém, para um sujeito dono de uma mina de ouro, as coisas são diferentes.  Sim, ele tem de pagar seus empregados com gramas de ouro, assim como tem de pagar por sua eletricidade, gasolina e outros insumos com gramas de ouro também — como qualquer outro empreendedor.

Porém, a diferença é que as receitas desse mineiro advêm não dos pagamentos feitos por clientes, mas do ouro que ele escava e traz à superfície.  Nessa economia hipotética, o sujeito está literalmente encontrando dinheiro enterrado no chão.  Após uma polida adequada no material (e talvez utilizar os serviços de alguém que irá transformar o metal em moedas reconhecíveis), esses grandes pedaços de metal amarelo serão perfeitamente trocáveis por outras unidades monetárias que estão nos bolsos das pessoas.

Agora temos de perguntar: há algo de estranho ou ilegítimo nesse fluxo constante de renda para o dono da mina, mês após mês?  Afinal, ele pode utilizar sua produção de ouro todos os meses para pagar suas despesas empreendedoriais e também para desfrutar um ótimo estilo de vida para si próprio.

Quando tudo fica assim explícito, é difícil ver como um rothbardiano poderia, de uma forma ou de outra, ter qualquer objeção à renda real desse mineiro (supondo que ele adquiriu a propriedade da mina de forma legal e adequada).  Em primeiro lugar, esse ouro novo diminui o poder de compra da grama do ouro, o que fará com que as pessoas se beneficiem mais prontamente dos serviços não monetários do ouro, como tratamentos dentais, joalherias, etc., os quais ficarão mais baratos.

Se tentarmos argumentar que a fatia desse ouro que vai para o bolso das pessoas (e não para colares ou obturações) será de alguma forma socialmente inútil, teremos de lidar com o fato de que essas transações ocorreram voluntariamente, e as pessoas que venderam bens e serviços em troca desse ouro iriam definitivamente dizer que ganharam com essa troca.

Em termos gerais, rothbardianos não creem que a ciência econômica possa negar a utilidade social de uma troca, desde que ela seja genuinamente voluntária e que os direitos de propriedade de terceiros não sejam violados.  Se um produtor quiser queimar metade da sua plantação de café com o intuito de elevar seus preços e com isso extrair mais receitas de seus clientes, Rothbard não vê problema algum nas consequências — de novo, desde que o governo não participe da política restritiva.

Por esse prisma, portanto, é difícil ver como um rothbardiano poderia alegar que a renda desse minerador de ouro é de alguma forma menos merecida ou “real” do que a renda de qualquer outra pessoa.  Afinal, um rothbardiano diria que a renda mensal de uma cartomante se deve à sua “produtividade marginal”, a qual é mensurada pela propensão a pagar de seus clientes.  Não é nosso papel, como economistas, dizer se as preferências dos consumidores são “legítimas” ou “socialmente úteis” de algum ponto de vista objetivo.

Já que chegamos até aqui, basta um pequeno passo para dizermos que uma maciça descoberta de ouro não altera a essência do argumento.  Se é perfeitamente legítimo e “eficiente” que o mineiro traga, digamos, 28 kg de ouro para o mercado a cada mês, não há motivo para mudarmos de opinião caso ele repentinamente traga 10 toneladas de ouro para o mercado.  Essa ainda será sua renda, e a comunidade estará esse tanto mais rica, em termos nominais.

É verdade que se pode afirmar que, em termos reais — ajustando-se pela inflação de preços —, a comunidade não está mais rica.  Correto.  Podemos olhar para o aumento nos preços em ouro do leite, dos ovos, da gasolina e afins, e considerar o fato de que um novo influxo de 10 toneladas de ouro irá causar inflação de preços (cotados em ouro).  Mas isso ainda não muda o fato de que a renda nominal do mineiro foi de 10 toneladas de ouro, e ela é tão legítima quanto seria caso ele tivesse escavado e levado para o mercado 28 kg de ouro, como de costume.

Finalmente chegamos ao nosso objetivo: se aceitarmos que a renda nominal desse mineiro — mensurada em ouro — é tão “legítima” quanto a de todos os outros indivíduos, então se ele decidir poupar 9,5 toneladas desse novo ouro, emprestando-as no mercado, é perfeitamente correto dizer que a quantidade de poupança na comunidade aumentou.

Novamente: se quisermos, podemos suscitar a distinção entre poupança nominal e real (ajustada pela inflação de preços).  Porém, como bons misesianos que somos, não devemos perder o foco em relação à “força do dinheiro”.  Não podemos cair na armadilha da teoria convencional, que pensa a economia como um arranjo em que se pratica escambos e, só então, joga o dinheiro nesse arranjo, como se fosse algo secundário.  Sim, o novo influxo de ouro irá elevar os preços em ouro dos bens e serviços da comunidade, e esse aumento dos preços irá fazer com que os emprestadores cobrem uma taxa de juros nominal mais alta por seus empréstimos.  A inclusão desse “ágio” nas taxas de juros de mercado irá atuar na direção oposta do efeito gerado pelo aumento na poupança, impedindo que os juros caiam tanto quanto poderiam cair na ausência desse ágio.

Em todo caso, é difícil ver como um rothbardiano poderia alegar que as ações do mineiro — trazer mais ouro para o mercado, o qual todos estão ávidos para adquirir, e em seguida decidir poupar uma grande fatia dessa renda inesperada, ao invés de gastá-la em um cruzeiro pelo Caribe — são de alguma forma danosas para o resto da comunidade.

Rothbard argumentou contra a própria existência conceito da externalidade negativa, desde que os direitos de propriedade de todos fossem respeitados.  A taxa “correta” de juros de mercado em nosso cenário hipotético seria exatamente como descrevemos — é a taxa de juros que iria emergir espontaneamente das trocas voluntárias de todos dessa comunidade, incluindo o mineiro.

Conclusão

Nesse artigo, ignorei deliberadamente certas tensões entre ambos os lados, para evitar que tomasse algum partido da questão.  Sabemos que é impossível que ambas as linhas de raciocínio acima estejam corretas, pois levam a conclusões opostas.  E, ainda assim, o leitor há de concordar que cada uma delas mostra uma aplicação plausível do pensamento rothbardiano.

No mundo real, é óbvio, o perigo real da expansão do crédito e dos ciclos de expansão e recessão econômica advém do papel-moeda fiduciário de curso forçado e do sistema bancário de reservas fracionárias.  Entretanto, ainda assim é importante para economistas na tradição austríaca analisar detidamente cenários hipotéticos a fim de refinar nosso pensamento e eliminar qualquer inconsistência em nossos princípios.

Robert P. Murphy
Robert P. Murphy
Robert P. Murphy é Ph.D em economia pela New York University, economista do Institute for Energy Research, um scholar adjunto do Mises Institute, membro docente da Mises University e autor do livro The Politically Incorrect Guide to Capitalism, além dos guias de estudo para as obras Ação Humana e Man, Economy, and State with Power and Market É também dono do blog Free Advice.
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