Este artigo é a última parte da série sobre os pós-escolásticos. Leia a primeira e a segunda parte.
6. Os últimos pós-escolásticos e o declínio do escolasticismo
Além de Mariana, os historiadores costumam destacar mais dois escolásticos tardios contemporâneos a ele: Leonardo Léssio (1554-1623) e Juan de Lugo (1583-1660).
Léssio, jesuíta nascido na Bélgica, sustentava que o preço justo de qualquer bem era aquele determinado pela estimativa comum de mercado. Embora admitisse que um preço determinado pelo governo também pudesse ser justo, apontou diversos casos em que o preço de mercado teria de ser escolhido em detrimento do preço legal. Primeiro, quando o preço de mercado é menor e, segundo, quando, “na alteração de circunstâncias de aumento ou diminuição da oferta e fatores semelhantes, as autoridades forem negligentes em alterar o preço legal”.
Ainda mais fortemente, até mesmo um indivíduo poderia pedir um preço acima do teto legal caso as autoridades estivessem “mal informadas sobre as circunstâncias comerciais”, o que, segundo ele, seria provável de acontecer praticamente sempre. Para ele, a demanda do mercado era o fator determinante dos preços e isso não dependia das despesas dos comerciantes: caso essas despesas fossem maiores (ou menores) do que o preço de venda, os comerciantes deveriam assumir os prejuízos (ou auferir os lucros).
Como ressalta Jesús Huerta de Soto no livro editado por Holcombe, Léssio enxergou com bastante clareza como os mercados econômicos estão inter-relacionados, inclusive o mercado cambial. Aplicou a boa teoria econômica também no campo monetário e no dos salários, que para ele deveriam ser determinados pelas leis da demanda e oferta, tal como qualquer outro preço, o que configuraria a existência de justiça. A respeito do que seria um “salário mínimo ideal”, ele percebeu que a simples existência de outra(s) pessoa(s) disposta(s) a executar o mesmo trabalho recebendo aquele salário era um indicador de que esse salário não poderia ser “injusto”. Sustentava também o que chamava de “salário psíquico”: “Se a obra traz consigo status social e emolumentos, o pagamento pode ser baixo porque o status e vantagens associados são, por assim dizer, uma parte do salário”.
Escreveu também que os trabalhadores são contratados pelo empregador por causa dos benefícios que aqueles lhes proporcionam, benefícios esses que devem refletir a produtividade. Assim, Léssio estabeleceu um esboço muito bem elaborado da teoria da produtividade marginal da demanda por mão de obra e, consequentemente, uma teoria para explicar a determinação dos salários, bem semelhante ao que foi estabelecido pelos austríacos e outros economistas neoclássicos, no final do século XIX.
Enfatizou ainda a importância do empreendedorismo na determinação do lucro: a qualidade do empreendedor, a “indústria” de combinar eficientemente fatores de produção, é escassa e, portanto, o empreendedor pode ganhar uma renda muito maior do que os que não são aquinhoados com esse dom. Léssio também fornece uma análise sofisticada da moeda, em que demonstra que seu valor depende de sua oferta e de sua demanda. Quando há excesso de oferta de uma dada moeda, ela valerá menos, tanto para a compra de bens como para a compra de moeda estrangeira e, mutatis mutandis, uma escassez de moeda aumenta o seu valor.
Contribuiu também para o banimento da “lei da usura”, com o argumento carentia pecuniae, segundo o qual o credor sofre pela falta de sua liquidez durante o prazo do empréstimo e que, portanto, ele tem o direito de cobrar juros por esta perda. O tempo de renúncia à liquidez, dessa forma, é moralmente justificável. Argumenta que letras de câmbio, ou quaisquer direitos a dinheiro futuro, devem sempre ter um desconto, que é, naturalmente, a taxa de juros. Assim, para Lessius, o preço a ser recebido pela renúncia ao dinheiro em que o emprestador incorre durante o período do empréstimo deve ser estabelecido nos mercados organizados de empréstimos, os“loanable funds markets”.
Para diversos estudiosos do escolasticismo, com a cláusula carentia pecuniae Leonard Léssio contribuiu para acabar de uma vez por todas com a proibição da usura, embora, formalmente, ainda tivesse mantido a proibição. Mas foi, sem dúvida, o teólogo cujas visões sobre a usura mais decididamente marcaram a chegada de uma nova era. Foi um precursor do mundo financeiro moderno.
O derradeiro grande nome dos escolásticos tardios de Salamanca foi o cardeal jesuíta Juan de Lugo, no século XVII, em que o poder da Espanha na Europa já estava em declínio. Estudou Direito e Teologia em Salamanca e em seguida foi para Roma lecionar no colégio jesuíta da capital italiana. Depois de ensinar Teologia em Roma por 22 anos, Lugo foi feito cardeal e tornou-se membro de várias comissões influentes da Igreja em Roma. Um teórico bastante respeitado, Lugo é considerado por muitos como o maior teólogo moral desde São Tomás. Escreveu um livro sobre Psicologia e outro sobre Física e sua obra mais importante sobre Direito e Economia foi a De Justitia et Jure, publicado em 1642, livro que passou por várias edições.
Sua Teoria do Valor é uma joia preciosa da Escola de Salamanca, que provê uma explicação subjetiva e bastante avançada para a época a respeito da determinação do valor. Os preços dos bens, observou, flutuam “por conta de sua utilidade em relação à necessidade humana, e apenas por conta da estimativa, pois as joias são muito menos úteis do que o milho, e ainda assim seu preço é muito maior”. É fácil perceber que essa afirmativa soa como uma premonição da teoria subjetiva do valor de acordo com a utilidade marginal e para destrinchar o “paradoxo do valor”: o milho é mais abundante do que as joias e, portanto, tem maior valor de uso, mas é mais barato no preço. A resposta para o paradoxo é que as estimativas subjetivas ou avaliações diferem do valor objetivo de uso, e este por sua vez é afetado pela escassez relativa.
Para tornar essa explicação perfeita, faltou apenas a Lugo incluir o conceito de utilidade marginal. A subjetividade de Lugo significa que as estimativas ou valorações são feitas tanto por pessoas prudentes como também por pessoas imprudentes ou, em linguagem moderna, de maneira racional ou não racional. Portanto, o preço justo é o preço de mercado determinado pela demanda e valorização do consumidor e, se os consumidores são tolos ou avaliarem tolamente, paciência, pois o preço de mercado será um preço justo de qualquer forma.
Ao abordar o comércio, Lugo acrescenta ao conceito de custo de oportunidade os gastos mercantis. Um comerciante só vai continuar a fornecer um produto se o preço cobrir suas despesas e a taxa de lucro que ele poderia ganhar caso exercesse outras atividades.
Em sua teoria monetária, Lugo é um autêntico escolástico tardio: o valor ou poder de compra da moeda é determinado pela qualidade de seu conteúdo metálico, sua oferta e sua demanda. E a moeda sempre se move da área onde seu valor é inferior para onde seu valor é maior.
No que diz respeito à usura ele não concorda com as implicações claras de Léssio e outros de que a proibição da usura deve terminar. Por essa razão, ele se recusa a aceitar o argumento de Léssio de que o credor tem o direito de cobrar pela falta de seu dinheiro durante o período do empréstimo. Mas, por outro lado, admite poderosas armas favoráveis à cobrança de juros, a saber, o risco e o lucrum cessans. Chega a ampliar o conceito de risco explicitamente e também amplia a cláusula do lucrum cessans, pois permite que o credor inclua não apenas o lucro provável de seu empréstimo, mas também a expectativa do lucro que poderia obter em uma aplicação alternativa.
Outro autor importante desse mesmo período foi o filósofo e jurisconsulto genovês Sigismundo Scaccia, cujoTractatus de Commerciis et Cambiis foi publicado em 1618 e reeditado com frequência na Itália, França e Alemanha, até cerca de meados do século XVIII. O ensino de Scaccia é baseado principalmente no da Escola de Salamanca e em Léssio, embora também muitas vezes ele se refira aos escolásticos medievais. Sobre o valor dos bens, ele cita Covarrubias e Azpilcueta no sentido de que as coisas valem menos quando são abundantes e mais quando são escassas e argumenta que um artigo ser “abundante” significa que muitas pessoas o ofertam para a venda para venda, e “escasso” quando mais compradores de vendedores surgirem nos mercados. Em seu capítulo sobre as bolsas estrangeiras, Scaccia menciona e endossa a explicação dada por Soto para o prêmio cobrado sobre letras de câmbio negociadas na Antuérpia e em Espanha e sustenta que a doutrina de Soto se aplica de uma forma muito lúcida para as trocas entre França e Itália.
É evidente que a teoria monetária da Escola de Salamanca espalhou-se por vários países durante as décadas iniciais do século XVII e que continuou a ser desenvolvida e aplicada nos principais tratados sobre Teologia e Jurisprudência. Embora a maioria dos membros originais da Escola tenham sido dominicanos, entre os escritores do século XVII que continuaram seu ensino havia muitos jesuítas. Como moralistas práticos, os jesuítas eram muito influentes naquele momento, uma vez que grande parte de seu trabalho estava no confessionário. Assim, produziram um grande número de manuais para uso dos confessores, em que muitas vezes discutiam problemas complicados de ética comercial com linhas escolásticas.
Pode-se supor que suas doutrinas tenham sido filtradas através dos leigos. Como salienta Marjorie Grice-Hutchinson, “não estou sugerindo que estes trabalhos tediosos constituíam a leitura favorita do “honnête homm” e médio, mas só temos a quem recorrer em Pascal, em suas Cartas Provinciais, para perceber como foi grande a influência dos teólogos jesuítas sobre a vida comum e o pensamento na França naquele período”.
Pascal empregou toda a sua verve irônica atacando muitos dos escritores cuja obra analisamos (ele dedica a Carta Oitava para impugnar a sua doutrina da usura), e é evidente que, escrevendo em 1656, ele olhou para os nossos escritores espanhóis e todas as suas obras como uma força viva e perigosa para seus padrões. [pp. 160-163]
Por sua vez, pensadores do calibre de Condillac, Turgot, Galiani e outros afirmaram que sua própria ênfase na utilidade e raridade era uma novidade. Todos os três escritores foram famosos por seu ensino, especialmente na Teologia e na Jurisprudência e é difícil acreditar que não tinham lido nenhum dos pós-escolásticos. Como filósofos do século XVIII, talvez tenham relutado em reconhecer sua dívida para com os casuístas. Mas nenhuma relutância pode ser estendida a Grotius, Pufendorf, ou Hutcheson. Pode-se supor, como Hutchinson, que Galiani se deparou com os elementos essenciais da sua teoria do valor no trabalho em alguns autores anteriores e que a inteligência e graça com que ele expressa estas verdades antigas fez com que parecessem inovações para seus contemporâneos. No entanto, a existência de uma teoria subjetiva do valor na obra dos escolásticos tardios e seus sucessores pode ter pavimentado o caminho para a recepção favorável concedida à grande obra de Galiani.
7. A decadência do escolasticismo
Às portas da Renascença, a Escolástica já se encontrava moribunda. Com o declínio dos impérios português e espanhol, a filosofia medieval cristã praticamente desapareceu, enquanto o cartesianismo, o positivismo e o agnosticismo kantiano alcançavam o seu ápice.
O chamado iluminismo, um movimento intelectual da elite europeia do século XVIII, que procurou mobilizar o poder da razão para reformar a sociedade e o conhecimento herdados da tradição medieval, muitas vezes é apontado como sendo responsável pelo fim do escolasticismo. O Iluminismo floresceu até cerca de 1790-1800, após o qual a ênfase na razão deu lugar à ênfase na emoção e surgiu um movimento contra-iluminista. No entanto, quando o movimento iluminista eclodiu, praticamente já não existiam autores escolásticos. Apenas no final do século XIX é que houve uma tentativa de resgatar o escolasticismo sob um prisma mais moderno, principalmente com Jacques Maritain (1882-1973), um filósofo francês de orientação católica e tomista, cujas obras influenciaram a democracia cristã.
O ataque fatal à Escolástica veio de dois campos contrastantes, um externo e o outro interno, mas curiosamente aliados: o aumento dos grupos de protestantes calvinistas e a Igreja, que a denunciou por sua suposta decadência e defeitos de formação moral.
O brilho dos argumentos pós-escolásticos para justificar a usura não impressionou seus inimigos, nem mesmo com toda a escolástica jesuítica de “casuísmo”, isto é, de aplicar princípios morais, naturais e divinos para os problemas concretos da vida quotidiana. Pode-se pensar que a tarefa da casuística deve ser considerada importante e nobre, pois, se existem princípios morais gerais, por que não deveriam ser aplicados à vida diária? Mas ambos os conjuntos de adversários conseguiram rapidamente fazer da própria palavra “casuísmo” um termo vulgarizado (o que acontece até hoje), a obediência estrita a rigorosos preceitos morais e a imposição de dogmas ultrapassados e “reacionários”.
Essa dupla aliança externa e interna contra a Escolástica teve efeitos muito mais profundos do que a discussão sobre a usura. Na raiz do catolicismo como religião, Deus pode ser compreendido pelas faculdades do homem, ou seja, não apenas por meio da fé, mas também pela razão e os sentidos. O protestantismo e, especialmente, o calvinismo, coloca Deus severamente fora das faculdades do homem e considera, por exemplo, modalidades sensoriais de amor do homem por Deus, como pinturas ou esculturas, como constituindo atos de idolatria e blasfêmia, que precisam ser eliminados para limpar o caminho para a única comunicação adequada com Deus, que seria a pura fé na revelação. A ênfase tomista na razão como meio de apreender a lei natural de Deus e até mesmo aspectos da lei divina choca-se com a ênfase protestante na fé na vontade arbitrária de Deus.
A tendência protestante básica, com raras exceções, era opor-se a qualquer lei natural para derivar Ética ou Filosofia Política a partir do uso da razão do homem, pois o homem era muito pecaminoso e corrupto em sua razão e seus sentidos, uma personificação da corrupção e, portanto, só a fé pura em comandos arbitrários, e revelada por Deus, era aceita como base para a ética humana. Essa descrença por parte dos protestantes na lei natural os impedia de criticar as ações do Estado. Com efeito, o calvinismo e até o luteranismo foram incapazes de contestar o Estado absolutista que floresceu em toda a Europa durante o século XVI e triunfou no século XVII.
Como explica Rothbard:
Se o protestantismo abriu o caminho para o Estado absoluto, os secularistas dos séculos XVI e XVII, o abraçaram. Despojado de leis naturais críticas do Estado, os novos secularistas, como o francês Jean Bodin, adotaram o Direito Positivo do Estado como o único critério possível para a política. Assim como os protestantes antiescolásticos exaltaram a vontade arbitrária de Deus como fundamento da ética, os novos secularistas levantaram a vontade arbitrária do Estado ao status de “soberano” incontestável e absoluto. No nível mais profundo da questão de como sabemos o que sabemos, ou “epistemologia”, tomismo e escolástica sofreram os assaltos contrastantes, mas aliados, dos defensores da “razão” e do “empirismo”. No pensamento tomista, a razão e o empirismo não estão separados, mas aliados e entrelaçados. A verdade é construída pela razão em uma base sólida na realidade empiricamente conhecida. O racional e o empírico foram integrados em um todo coerente.
Rothbard prossegue sua excelente narrativa escrevendo que na primeira parte do século XVII, dois filósofos contrastantes conseguiram fortalecer o racionalismo e o empirismo, que continuam a assolar o método científico até os dias atuais. Foram eles o inglês Francis Bacon (1561-1626) e o francês René Descartes (1596-1650). Descartes foi o campeão de uma “razão” dissecada matematicamente e divorciada da realidade empírica, enquanto que Bacon foi o defensor de peneirar incessantemente os dados empíricos. Rothbard afirma enfaticamente:
Tanto o ilustre advogado inglês, que passou a se tornar Lord Chancellor (Lord Verulam), Visconde do reino e juiz corrupto e o aristocrata francês tímido e errante, concordaram em um ponto crucial e destrutivo: o rompimento da razão e do pensamento a partir de dados empíricos. Assim, a partir de Bacon surgiu a tradição inglês “empirista”, mergulhada sem pensar em dados incoerentes, e de Descartes a tradição puramente dedutiva e, por vezes, a tradição matemática do “racionalismo” continental.
O resultado foi que a lei natural, que antes integrava o racional com o empírico, foi vítima de um verdadeiro assalto, resultando em uma mudança drástica e sistemática no pensamento europeu no período “pré-moderno” (séculos XVI e XVII, especialmente), Ocorreu em razão disso uma mudança radical nas universidades.
Os teólogos e filósofos que escreveram e pensaram sobre Economia, Direito e outras disciplinas da ação humana durante os períodos medieval e renascentista eram professores universitários. Paris, Bolonha, Oxford, Salamanca, Roma e muitas outras universidades foram as arenas para a produção intelectual e de combate durante séculos. E mesmo as universidades protestantes do início do período moderno eram centros de ensino do Direito Natural.
Mas dos grandes teóricos e escritores dos séculos XVII e XVIII quase nenhum foi um professor. Eram panfletários, empresários, errantes aristocratas, como Descartes, funcionários públicos menores, como John Locke, e clérigos como o bispo George Berkeley. Essa mudança de foco foi muito facilitada pela invenção da imprensa por Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg (1398-1468), que tornou muito menos dispendiosa a publicação de livros e escritos e criou um mercado muito mais amplo para a produção intelectual. A impressão foi inventada em meados do século XV e no início do século XVI tornou-se possível, pela primeira vez, ganhar a vida como escritor independente, com a venda de livros.
Uma das consequências dessas mudanças foi o esfacelamento da Escolástica e do tomismo do pensamento ocidental, facilitado pela substituição do latim – que na Idade Média era o idioma em que todos escreviam – para o vernáculo de cada país. Esse fato contribuiu para desfazer uma comunidade intelectual que até então tinha uma linguagem comum. Os protestantes tiveram papel decisivo nessa alteração, pois julgavam que a Bíblia deveria ser lida e estudada por todos na linguagem que dominavam.
Por fim, houve um verdadeiro ataque contra a Cia. de Jesus, que despontou em França com o manual Escobar. O assalto foi liderado por um grupo de cripto-calvinistas influentes dentro da Igreja Católica francesa, que desfecharam forte ataque sobre o que diziam ser a “suposta frouxidão moral da Ordem dos Jesuítas”. Essa guerra aos jesuítas e sobre sua devoção à razão e à liberdade da vontade tinha começado na Bélgica e foi acelerada no final do século XVI por Michael Bay, chanceler da grande Universidade de Louvain. O bayanismo atacou Leonardo Léssio e os jesuítas na faculdade. No início do século XVII, dois discípulos de Bay, ex-alunos dos jesuítas, tomaram a defesa de sua causa, sendo o mais importante Cornelius Jansen, fundador do movimento neocalvinista jansenista, que se tornou extremamente poderoso na França. Jansen, como muitos teólogos protestantes, instou abertamente a volta à pureza moral de Santo Agostinho e das doutrinas cristãs dos séculos IV e V.
O filósofo e matemático francês Blaise Pascal assumiu a causa jansenista com um ataque aos jesuítas, particularmente Escobar, por seu suposto fracasso moral em ser condescendente com a usura. Pascal ainda inventou um novo termo popular, “escobarderie”, com o qual denunciou a disciplina importante da casuística como sendo evasiva e repleta de tergiversações. Outra vítima da caneta venenosa de Pascal foi o austero jesuíta francês Etienne Bauny que, em Somme des Pechez (1639), estendeu o enfraquecimento da proibição da usura, indo longe demais — segundo Pascal — para justificar taxas de juros superiores à taxa máxima permitida por decreto real, com o argumento de que “os devedores as aceitaram voluntariamente”. Embora os jansenistas tenham sido condenados pelo Papa, a agitação indecente de Pascal contra os jesuítas produziu um efeito considerável para ajudar a acabar com a primazia do pensamento escolástico, pelo menos na França.
Em suma, a visão de mundo humanista sofreu diversos ataques, vindos de vários fronts e um dos muitos efeitos perversos dessas críticas foi o que denomino de “desumanização” da Economia e das demais ciências da ação humana, fenômeno que foi aguçado na primeira metade do século XIX com o advento do positivismo de Auguste Comte. Um estrago quase que irreparável e que a Escola Austríaca até hoje tenta neutralizar.
8. Conclusões
Podemos extrair conclusões gerais a partir de nosso estudo da teoria econômica da Escola de Salamanca. A principal é que algumas das principais ideias da teoria econômica moderna têm uma história mais longa do que muitas vezes se supõe. Creio que o leitor que tenha despendido tempo para estudar aqueles antigos tratados não pode deixar de ficar impressionado com a grande medida de acordo sobre os problemas fundamentais da teoria econômica, que uniram os homens de todos os países e períodos, vivendo em vários sistemas religiosos, culturais, sociais e econômicos. Hutchinson, a esse respeito, cita Marshall. “As novas doutrinas têm complementado o velho, o estenderam, desenvolveram, e às vezes o corrigiram, e muitas vezes lhes deram um tom diferente ou uma nova distribuição de ênfase, mas muito raramente o subverteram”. [pp 165-166]
Muitas vezes somos advertidos contra o pecado de desejarmos ler nossas próprias ideias em trabalhos de escritores mais velhos. Muitas vezes, de fato, a literatura econômica antiga agora parece remota sob o ângulo de nossas próprias formas de pensamento e por isso não nos desperta muito interesse. Com isso a história das doutrinas econômicas passa a ser considerada como um luxo, como algo supérfluo, já que os refinamentos – especialmente os modelos matemáticos com sua elegância – da teoria moderna deixam menos tempo para isso. Os economistas nos últimos 120 anos vêm apresentando uma lamentável tendência de desprezar os autores do passado e isso vem se acelerando a partir da segunda metade do século XX, quando as técnicas econométricas se desenvolveram rapidamente e os computadores foram popularizados.
Com isso, infelizmente, a Economia, uma ciência que lida claramente com a ação humana no processo de mercado em condições de incerteza genuína passou a receber tratamento semelhante ao de uma ciência exata. Um desastre. Desumanizaram algo que é humano, sob o pretexto de estarem produzindo “ciência”.
Mas há certos eventos na história do pensamento econômico que são familiares para a maioria dos estudantes. Sabemos, por exemplo, que a Saxônia foi o cenário de uma controvérsia monetária famosa no século XVI, que a Itália foi o país com a melhor teoria monetária e a pior política monetária no século XVII, que os fisiocratas inventaram um esquema elaborado chamado de Tableau Économique. E os britânicos sentem orgulho de Adam Smith, David Ricardo e Alfred Marshall.
No entanto, a literatura econômica pós-escolástica, particularmente a do século XVII e XVIII, em Espanha, Portugal e na Itália, é tão extensa e interessante que exige que lhe façamos justiça. É uma tarefa, sem dúvida, que temos que cumprir se quisermos de fato re-humanizar a Ciência Econômica.
Creio que, depois de tudo o que foi abordado no artigo sobre as ideias econômicas dos escolásticos tardios, desejo apenas, primeiro, enfatizar que suas doutrinas econômicas eram compatíveis com a da Escola Austríaca e, segundo, reforçar — já que demonstrá-lo demandaria substancial pesquisa adicional — que suas ideias influenciaram importantíssimos pensadores não escolásticos, como Turgot, Galeani, Condilac, Say, Bastiat, Molinari, Rocher e, por fim, Carl Menger.
Espero que este despretensioso artigo tenha servido para deixar claro que foi no ambiente da “Escolástica Tardia” que se produziram muitas importantes concepções do jus-naturalismo e da ideia de Direito Internacional, além dos tratados de Economia que viriam a influenciar a escola marginalista e o liberalismo da Escola Austríaca nos séc. XIX e XX.
Por isso, posso encerrar com as palavras de meu amigo Alejandro Chafuen que, na conclusão de seu famoso livroEconomia y Etica: Raices Cristianas de La Economia de Mercado, escreve:
Es imposible probar que todos lós escritos de la escolástica tardia favorecían el libre mercado. Tampoco podemos concluir diciendo que para ser um buen Cristiano hay que creer em la economia libre. El hecho de que gente santa defienda uma cierta teoria no es garantia de certeza. El análisis de lós escritos de estos autores sugiere que lós economistas modernos defensores de la libertad econômica tienen para com ellos uma deuda mayor de la que se imaginan. Lo mismo podemos decir de la sociedad libre. [p. 201]
E as últimas palavras de sua conclusão são:
“La propriedad privada está fundamentada em la libertad humana, que a su vez se desprende de la naturaleza humana que, como toda naturaleza, es creada por Dios. La propriedad privada es um prerrequisito esencial para El respeto de las libertades econômicas. La misma seguirá siendo amenazada desde vários frentes y su defensa dependerá de uma nueva generación de escolásticos, hombres de buena formación em El campo de la filosofía moral y de lãs ciências sociales“. [p. 202, negrito meu]
O que posso acrescentar a essas palavras de Chafuen, a não ser um “é verdade” repleto de esperança nos jovens que cada vez se interessam mais pela Escola Austríaca, a mais condizente com os valores da ética e da liberdade individual dentre todas as Escolas de Pensamento Econômico?
É verdade, Alex! Como escreveu São Paulo aos coríntios (II Cor 3,17): “Ubi autem Spiritus Domini, ibi libertas”. Esta frase do apóstolo dos gentios, que escolhi como lema para minha página na Internet, significa que onde estiver o Espírito do Senhor, aí estará também a liberdade.
Referências bibliográficas:
CALZADA, Gabriel.Las Orígines de la Escuela Austriaca, palestra proferida em 24/1/ 2008 na Universidade Francisco Marroquin, encontrada em: http://www.newmedia.ufm.edu
CATHARINO, Alex. Antiguidade e Idade Média, A Filosofia Moral e a Teoria Política de Santo Tomás de Aquino, Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista – Cieep, Rio de Janeiro, sem data.
CHAFUEN, Alejandro A. Economia y Etica: Raices Cristianas de la Economia de Libre Mercado,Rialp, Madrid, 1991
GRICE-HUTCHINSON, Marjorie. The School of Salamanca, Oxford at Clarendon Press, London, 1952, disponível na forma de iBook em: www.mises.org.br
HOLCOMBE, Randall G. “The Great Austrian Economists.” Ludwig von Mises Institute, 1999, iBook.
IORIO, Ubiratan J. Economia e Liberdade: A Escola Austríaca e a Economia Brasileira, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1997 (2ª ed.)
LAURES, John, S.J. The Political Economy of Juan de Mariana, New Yoork, Fordham University Press, 1928, disponível em: www.mises.org em pdf.
ROTHBARD, Murray. Economic Thought Before Adam Smith: An Austrian Perspectiveon the History of Economic Tought, vol. I, Elgar, 1995
SANTOS, Renan. Escolástica: A filosofia durante a Idade Média, em:http://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/escolastica-a-filosofia-durante-a-idade-media.htm
SOTO, Jesus H. A Escola Austríaca, S. Paulo, Instituto Mises Brasil, 2ª ed, 2010, cap. 3