O grande debate entre capitalismo e socialismo sofre de uma enorme falta de clareza a respeito de suas respectivas definições. É imperativo entender que há uma diferença intransponível entre “capitalismo genuíno” e “capitalismo corporativo”, ou, como dizem, capitalismo de compadres.
O que exatamente você entende por ‘capitalismo’?
Diariamente, por exemplo, lemos sobre como a bagunça econômica na Europa representa uma “crise do capitalismo”. Oi? Já faz mais de cem anos que os governos europeus não mais deixam suas economias crescerem por conta própria, sem coagi-las com regulamentações, sem tributar espoliativamente o público, sem inundar o sistema financeiro com dinheiro falso criado do nada, sem cartelizar o sistema produtivo, beneficiando os amigos do regime, sem criar inúmeros benefícios assistencialistas, sem financiar colossais programas de obras públicas e por aí vai.
Alguns defensores da liberdade de mercado acreditam que o termo “capitalismo” deveria ser descartado permanentemente porque gera confusão. As pessoas podem pensar que você preconiza o uso do estado para defender o capital contra o trabalho, o uso de políticas públicas para defender importantes empresários contra os consumidores ou a imposição de prioridades políticas que favoreçam os negócios à custa do trabalho.
Se um termo explica uma ideia com grande acurácia, ótimo. Mas se ele causa confusão, então tem de ser alterado. A linguagem é algo que está em constante evolução. Nenhum arranjo específico de letras pode embutir em si um significado imutável. E o que está em jogo neste debate sobre a liberdade de mercado (ou o capitalismo ou o laissez-faire ou o livre mercado) é um conteúdo de profunda importância.
É com o conteúdo, e não com as palavras, que devemos nos importar. Não é exagero algum dizer que o futuro da civilização, o qual está cada vez mais periclitante, depende disso.
A seguir, cinco elementos essenciais a esta ideia de liberdade de mercado, ou seja lá como você queira chamar este arranjo. Trata-se de meu breve resumo sobre a visão liberal clássica a respeito da sociedade livre e de seu funcionamento, visão esta que não se resume apenas à economia, mas sim a tudo de que depende nossa vida.
Vontade
Mercados se resumem ao exercício da escolha humana em todos os níveis da sociedade. Tais escolhas se estendem a todos os setores e a todos os indivíduos. Você pode escolher o seu trabalho. Ninguém pode obrigar você a ter um emprego que você não queira, mas você também não pode obrigar nenhum empregador a lhe contratar. Da mesma forma, ninguém pode obrigar você a comprar nada, mas você também não pode obrigar ninguém a vender algo para você.
Este direito à liberdade de escolha reconhece a infinita diversidade que existe dentro de todo o conjunto de indivíduos que forma uma sociedade (ao passo que políticas governamentais têm necessariamente de supor que as pessoas nada mais são do que meras unidades perfeitamente permutáveis). Algumas pessoas sentem uma vocação para viver uma vida de oração e contemplação em uma comunidade de religiosos fervorosos. Outras possuem um talento para gerenciar ativos em fundos de alto risco. Já outras preferem as artes, ou a contabilidade, ou qualquer outra profissão ou vocação que você puder imaginar. Qualquer que seja sua vocação, você pode segui-la livremente, desde que o faça de maneira pacífica, sem iniciar violência ou coerção contra terceiros.
Você tem liberdade de escolha; porém, em suas relações com terceiros, “acordo” ou “concordância” é a palavra-chave. Isto implica a máxima liberdade para todos os indivíduos na sociedade. Também implica um papel máximo para aquilo que chamam de “liberdades civis”. Implica ter liberdade de expressão, liberdade de consumo, liberdade de comprar e vender, liberdade publicitária e assim por diante. Nenhum arranjo de escolhas possui privilégios legais sobre outros.
Propriedade
Caso houvesse uma infinita abundância de recursos no mundo, não haveria necessidade de propriedade sobre os recursos. Porém, considerando a realidade do mundo em que vivemos, sempre haverá potenciais conflitos sobre recursos escassos. Estes conflitos podem ser resolvidos por meio de uma simples e brutal guerra por estes recursos, ou pelo reconhecimento de direitos de propriedade. Se quisermos paz em vez de guerra, vontades e escolhas em vez de violência, produtividade em vez de pobreza, todos os recursos escassos — sem exceção — terão de ser propriedade privada.
Todos os indivíduos podem utilizar sua propriedade de qualquer maneira que seja pacífica. Não há limites para a acumulação nem a necessidade de permissão para acumulações. A sociedade não pode declarar que alguém já está excessivamente rico (e que, logo, parte de sua riqueza deve ser confiscada) e nem proibir o asceticismo ao declarar que alguém é excessivamente pobre (e que, logo, terceiros devem ser roubados para que se possa enriquecer o pobre). Em situação alguma pode alguém pegar o que é seu sem sua permissão. Você tem plena liberdade de estipular como será a distribuição de sua propriedade para seus herdeiros após você morrer, sem que ninguém confisque uma fatia desta sua propriedade.
O socialismo realmente não é uma opção para o mundo material. Não é possível haver propriedade coletiva de qualquer coisa que seja materialmente escassa. Alguma facção sempre acabará exercendo o controle dos recursos em nome da sociedade. Inevitavelmente, esta facção será a mais poderosa da sociedade — ou seja, o estado. É por isso que todas as tentativas de se criar socialismo sobre bens ou serviços escassos sempre degenera em sistemas totalitários.
Cooperação
Vontade e propriedade garantem a qualquer indivíduo o direito de viver em um estado de total isolamento, em um estado de pura autarquia. Por outro lado, tal arranjo não levará ninguém muito longe. O indivíduo que assim deseja viver será pobre e sua vida, muito curta. Indivíduos necessitam de outros indivíduos para poder viver uma vida melhor. Nós incorremos em atividades comerciais para melhorarmos mutuamente nossa situação. Cooperamos por meio do trabalho. Criamos e desenvolvemos todas as formas de associação mútua: comercial, familiar e religiosa. A vida de cada um de nós é aprimorada pela nossa capacidade de cooperar, de alguma forma, com outras pessoas.
Em uma sociedade baseada em vontades e desejos, em propriedade e cooperação, redes de associações humanas se desenvolvem ao longo do tempo e do espaço para criar as complexidades da ordem social e econômica. Ninguém é o senhor da vida de ninguém. Se quisermos ser bem sucedidos em nossas vidas, temos de aprender a bem servir outros indivíduos — nossos clientes — da melhor maneira possível. Empresas e empreendedores servem a seus consumidores. Gerentes servem a seus empregados assim como os empregados servem à sua empresa.
Uma sociedade livre é uma sociedade de relações humanas extensivas. É uma sociedade de amizade ampliada para todos os setores. É uma sociedade de prestação de serviço, de benevolência e de cuidado para com a qualidade dos serviços ofertados para todos os indivíduos.
Aprendizado
Ninguém nasce sabendo muito a respeito de qualquer coisa. Aprendemos com nossos pais e professores, mas, ainda mais importante, aprendemos com os infinitos pedaços de informações que chegam a nós a cada instante do dia ao longo de todas as nossas vidas. Observamos o sucesso e o fracasso de terceiros, e aprendemos com eles. Acima de tudo, somos livres para aceitar ou rejeitar estas lições. Isso vai de cada um. Em uma sociedade livre, temos a liberdade de emular os outros, acumular sabedoria e colocá-la em prática, ler e absorver ideias, extrair informações de toda e qualquer fonte, e adaptá-las ao uso que mais nos aprouver.
Todas as informações com as quais nos deparamos ao longo de nossas vidas são bens gratuitos e não-escassos, desde que obtidas não-coercivamente. Elas não estão sujeitas às limitações da escassez porque são infinitamente copiáveis. Você, eu e todas as outras pessoas da sociedade podemos ter uma mesma informação e ainda assim ela não será escassa. A informação é algo que pode ser propriedade coletiva, sem limitações.
E é justamente neste ponto que encontramos o lado “socialista” do sistema capitalista. As receitas para o sucesso e para o fracasso estão disponíveis em todos os cantos, e plenamente livres para serem estudadas e utilizadas — ou descartadas. É por isso que a própria noção de “propriedade intelectual” é hostil à liberdade: ele sempre implica a coerção de pessoas e, consequentemente, a violação dos princípios da vontade, da autêntica propriedade e da cooperação.
Concorrência
Quando as pessoas pensam em capitalismo, provavelmente ‘concorrência’ é a primeira ideia que vem à mente. Porém, tal ideia é amplamente mal compreendida e interpretada. Concorrência não significa a necessidade da existência de vários ofertantes de todos os tipos específicos de bens e serviços, ou a necessidade da existência de um determinado número de produtores de qualquer coisa. Concorrência significa apenas a não existência de limites legais (coercivos) à entrada no mercado, o que significa que, falando mais diretamente, não deve haver restrições à maneira como podemos servir uns aos outros. E, realmente, há infinitas maneiras nas quais isto pode ocorrer.
Nos esportes, a competição possui um único objetivo: vencer. Na economia de mercado, a competição também possui um objetivo: atender ao consumidor com um grau de excelência continuamente crescente. Esta excelência pode vir na forma de uma oferta de produtos ou serviços mais baratos e de melhor qualidade, ou na forma de novas inovações que atendam às necessidades das pessoas de forma mais eficiente e barata do que os produtos e serviços já existentes. Competição não significa “aniquilar” os concorrentes; significa se esforçar para fazer um serviço melhor do que todos os seus concorrentes.
Qualquer ato competitivo é um risco, um salto rumo a um futuro desconhecido. Se o julgamento foi certo ou errado, isto é algo que será ratificado pelo sistema de lucros e prejuízos. Lucros e prejuízos são sinais enviados pelo mercado que servem como mensurações objetivas: eles mostram se os recursos estão sendo utilizados corretamente ou não. Estes sinais são derivados dos preços cobrados pelos empreendedores e pelos custos nos quais eles incorrem para produzir, e são estabelecidos livremente no mercado — o que significa dizer que os preços atuais são um mero reflexo de todos os acordos prévios que foram feitos entre indivíduos com liberdade de escolha.
Ao contrário dos esportes, não há um ponto de chegada para a competição do mercado. Trata-se de um processo que nunca acaba. Não há um vencedor final; há um contínuo e ininterrupto rodízio de excelência entre os competidores. E qualquer um pode entrar no jogo, desde que participem dele pacificamente.
Resumo
Aí está, portanto: vontade, propriedade, cooperação, aprendizado e concorrência. Eis aí, a meu ver, a essência do capitalismo, exatamente como ele foi descrito pela tradição liberal-clássica, a qual foi aprimorada pelos teóricos sociais austríacos do século XX. Não se trata exatamente de um sistema, mas sim de um arranjo social — para todas as épocas e lugares — que favorece o desenvolvimento humano.
Não é difícil, portanto, especificar a visão política de genuínos liberais: se algo se encaixa nestes requisitos, somos a favor; se não, somos contra. Donde vem a pergunta: a atual crise mundial é realmente uma crise do capitalismo? Ao contrário, um autêntico capitalismo é a solução para os maiores problemas do mundo atual.
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