Em 1912, Ludwig von Mises escreveu,
“O princípio da moeda forte possui dois aspectos. Ele é afirmativo ao aprovar a escolha feita pelo mercado de um meio de troca utilizado frequentemente e comumente. Ele é negativo ao obstruir ao obstruir a propensão do governo em interferir no sistema monetário.”[1]
E acrescentou:
“É impossível entendermos o significado da ideia de se ter um sistema monetário sólido sem antes compreendermos que tal sistema foi concebido como um instrumento para se proteger as liberdades civis contra as usurpações despóticas perpetradas pelos governos. Em termos ideológicos, uma moeda sólida pertence à mesma classe das constituições políticas e das declarações de direitos.”[2]
Os regimes monetários de hoje não possuem qualquer semelhança com o princípio misesiano da moeda forte. A quantidade e a qualidade da moeda há muito deixaram de ser um fenômeno determinado pelo livre mercado; hoje, ambas são determinadas pelos bancos centrais controlados pelos governos.
Para evitar que os governos fizessem mau uso de seu poder coercivo nas questões monetárias, dois “arranjos institucionais” foram criados.
Primeiro, os bancos centrais se tornaram politicamente independentes para impedir que os políticos caíssem na tentação de fazer aquela inevitável permuta eleitoral: colher os benefícios resultantes de um crescimento econômico artificial de curto prazo induzido pela inflação monetária e, em troca, gerar os inevitáveis efeitos prejudiciais de médio e longo prazo resultantes dessa depreciação da moeda.
Segundo, aos bancos centrais foi atribuído – explícita ou implicitamente – o objetivo de manter a “estabilidade do nível de preços”. Isso porque a inflação de preços é amplamente vista como um malefício social; consequentemente, um “nível estável de preços” é considerado propício à melhoria do crescimento econômico e ao aumento do número de empregos.
Do ponto de vista da escola austríaca, os regimes monetários da atualidade – mesmo quando se considera todas as proteções contra a má gestão monetária dos governos – seriam incompatíveis com o princípio misesiano da moeda forte. Em verdade, os austríacos consideram a ordem monetária atual uma séria ameaça à sociedade livre.
A ORIGEM DO DINHEIRO
O ponto de partida para a crítica dos austríacos está na origem econômica do dinheiro. A experiência histórica mostra que o dinheiro, o meio de troca, originou-se livremente das forças de livre mercado. As pessoas perceberam que, ao invés de praticarem trocas diretas (escambo), as trocas indiretas – isto é, trocar bens comercializáveis por um outro bem que não necessariamente seja demandado para consumo ou para produção, mas que apresente características propícias para ser utilizado como meio de troca – permitiam um maior padrão de vida.
Guiados pelo interesse próprio e pela percepção de que os bens que eram trocados diretamente possuíam diferentes graus de vendabilidade (possibilidade de ser comercializado), alguns agentes de mercado começaram a demandar bens específicos – não para si mesmos (para consumo ou produção), mas para utilizá-los como meio de troca.[3] Tal medida acarretou diversas vantagens.
Por exemplo, se o dinheiro é utilizado como meio de troca, então passa a não mais ser necessário haver uma “dupla coincidência de desejos” para que a troca seja possível. Em uma economia de escambo, para que uma troca pudesse ser efetivada, o senhor A, que quer adquirir o bem ofertado pelo senhor B, teria de ter exatamente aquele bem que o senhor B aceitaria em troca. Ou seja: A teria de demandar exatamente o bem oferecido por B, e B teria de demandar exatamente o bem que A está oferecendo em troca.
Ao aceitarem não somente aqueles bens que são diretamente utilizados para consumo e produção, mas também aqueles bens que possuem uma maior vendabilidade em relação aos bens que foram dados em troca, os indivíduos podem se beneficiar mais completamente das vantagens econômicas trazidas pela divisão do trabalho e pelo livre comércio.
Com cada vez mais pessoas utilizando um meio de troca em suas transações, surgiu um meio de troca universalmente utilizado: o dinheiro. A experiência mostra que foi principalmente o ouro (e, em um grau menor, a prata) que se tornou o meio de troca internacionalmente aceito. Nesse sentido, o dinheiro deve naturalmente surgir de uma commodity.
O DINHEIRO COMO UMA COMMODITY
Ao longo do tempo, os agentes de mercado preferiram utilizar a commodity mais comercializável em detrimento das menos comercializáveis: “haveria uma inevitável tendência de que os bens menos comercializáveis utilizados como meio de troca fossem, um por um, rejeitados até que, finalmente, apenas uma única commodity restasse, que seria então universalmente empregada como meio de troca; em uma palavra, dinheiro.”[4]
É raciocinando sobre esse histórico, que Mises apresenta seu “teorema da regressão”, o qual afirma que “nenhum bem pode ser empregado para a função de meio de troca sem que antes, logo no início de seu uso para esse propósito, já não tenha adquirido um valor de troca por conta de outros usos.”[5]
Hoje, entretanto, o meio de troca universalmente aceito é o dinheiro de papel, com curso forçado, controlado pelo governo. Ele não é lastreado por, ou relacionado a, uma commodity escassa e livremente escolhida pelo mercado. Sendo assim, fica a pergunta: como um pedaço de papel emitido pelo governo e que não vale intrinsecamente nada adquiriu o status de dinheiro?
A IDEOLOGICAMENTE ENRAIZADA AVERSÃO À TAXA DE JUROS
A explicação pode ser encontrada na profunda e ideologicamente enraizada aversão das pessoas às taxas de juros. Quanto menor a taxa de juros, segundo tal raciocínio, melhor será para a economia e para o emprego. Uma oferta monetária monopolizada pelo governo – em contraste ao dinheiro gerado pelo livre mercado – oferece a possibilidade de ser a “opinião pública” quem irá ditar o nível desejado para as taxas de juros.
Tendo obtido o monopólio sobre a oferta monetária, o banco central controlado pelo governo poderá, de acordo com sua vontade e sempre que quiser, expandir o crédito e a oferta monetária em relação à demanda por ambos, desta forma diminuindo a taxa de juros – algo que não seria possível (em determinado grau) sob um regime monetário de livre mercado.
Dito isto, o desejo do público por taxas de juros baixas explica o fato de os governos terem tido êxito em romper a “âncora” imposta pelos “substitutos monetários” – definidos como títulos de papel lastreados por uma commodity (ouro), que era o dinheiro de fato -, desta forma tornando possível o estabelecimento de um papel-moeda sem qualquer lastro e controlado pelo governo.
Sob o padrão-ouro, o dinheiro “circulava” na forma de ouro (isto é, barras ou moedas de ouro padronizadas) e na de títulos que representavam uma determinada quantidade de ouro depositada nos bancos e que podia ser resgatada sob demanda. Esses títulos – papel-moeda lastreado por ouro – surgiram simplesmente de uma livre escolha dos usuários de dinheiro, que queriam economizar nos custos de se armazenar e transacionar dinheiro.
Portar dinheiro na forma de ouro (moedas) e na de papel redimível em ouro aumentava a conveniência para os usuários de dinheiro. Só pra constar, tal arranjo não alterava a oferta total de dinheiro; tampouco afetava a distribuição de renda e de riqueza entre os indivíduos de uma economia, ao contrário do que ocorre com o sistema monetário atual. O papel, naquele arranjo, apenas representava um título incondicionalmente redimível em dinheiro (ouro), e redimível em qualquer momento.
Em muitos países, saídas ocasionais da paridade fixa entre o dinheiro de papel e o ouro já haviam ocorrido, porém esse elo foi definitivamente rompido a 15 de agosto de 1971, quando o presidente dos EUA Richard M. Nixon “fechou a janela do ouro”, abolindo a obrigação que os EUA haviam assumido sob o Sistema de Bretton Woods de converter os dólares americanos em posse de autoridades monetárias estrangeiras em ouro a uma taxa fixa de US$35 a onça. “Antes de 1971, todas as grandes moedas do mundo sempre estiveram ligadas, direta ou indiretamente, a uma commodity.”[6]
Tendo seu elo a uma commodity rompido, um papel-moeda já estabelecido não necessariamente irá perder sua função monetária (imediatamente). Mises escreveu,
“Antes de um bem econômico começar a funcionar como dinheiro, ele já deve possuir um valor de troca baseado em alguma outra causa que não a sua função monetária propriamente dita. Porém, o dinheiro que já funciona como meio de troca pode permanecer valioso mesmo quando a fonte original de seu valor de troca já deixou de existir.”[7]
Entretanto, a constatação importante é a de que o papel-moeda governamental pode ser estabelecido apenas por meio de um ato fraudulento da parte do governo.
A IMPOSSIBILIDADE DE UM PODER DE COMPRA ESTÁVEL
Os austríacos afirmam que a ação humana em uma sociedade livre é caracterizada por mudanças contínuas. Em uma economia de mercado, as pessoas estão continuamente escolhendo entre várias alternativas. Isso faz com que a valoração dos bens e serviços se altere constantemente. Como consequência, tentar fazer com que haja uma absoluta estabilidade nos preços de itens comercializáveis é um empreendimento fútil. E isso se aplica aos valores de troca de todos os tipos de bens e serviços, inclusive o dinheiro.
O dinheiro está sujeito às ações e valorações das pessoas assim como todos os outros bens e serviços também estão. Como resultado, o valor de troca subjetivo e objetivo do dinheiro flutua continuamente; e “estabilidade do valor de troca do dinheiro em relação a outros bens e serviços” é algo impossível de existir.
Por exemplo, para satisfazer um aumento na demanda por dinheiro – isto é, no desejo de se portar mais dinheiro -, as pessoas teriam de abrir mão de mais bens e serviços. Uma maior oferta de bens em relação a uma dada oferta de dinheiro, por sua vez, iria diminuir o valor dos bens em relação ao dinheiro. Como resultado, o valor de troca do dinheiro aumentaria.
Para entender melhor, considere um mercado no qual o dinheiro é ofertado e demandado em relação a um bem comercializável. A oferta total de moeda determina a demanda pelo bem (quanto mais dinheiro, maior a demanda por bens), e a oferta total de bens determina a demanda por moeda (quanto mais bens, menor o preço de cada unidade, menos moeda é necessário para adquirir a mesma quantidade de bens).
Supondo uma dada oferta de bens (isto é, uma demanda constante por moeda), um aumento na demanda por bens (isto é, um aumento na oferta monetária) eleva o preço desses bens. Como resultado, um aumento na oferta de dinheiro em relação à oferta de bens leva a uma perda de valor do meio de troca.
AUMENTAR A OFERTA MONETÁRIA É INFLAÇÃO
Do ponto de vista austríaco, qualquer alteração na oferta monetária irá influenciar o valor de troca do dinheiro, independente de ser uma moeda-commodity ou um papel-moeda sem lastro. Peguemos, por exemplo, o regime do padrão-ouro, no qual a oferta monetária aumenta lentamente (por exemplo, por meio da mineração). Esse dinheiro adicional é trocado por bens em certos setores da economia. Com efeito, os primeiros usuários desse dinheiro recém-criado irão gastá-lo adquirindo bens e serviços a preços ainda inalterados.
Entretanto, à medida que esse dinheiro adicional vai chegando às outras pessoas, a utilidade marginal do dinheiro como um todo na economia vai declinando, ao passo que a utilidade marginal de bens e serviços não monetários aumenta. Em uma tentativa de voltar ao equilíbrio, as pessoas oferecem mais dinheiro em troca de bens e serviços. Os preços monetários aumentam, uma vez que cada unidade monetária agora irá comprar menos bens e serviços quando comparada à situação anterior ao aumento do estoque de moeda.
Com esse pano de fundo, torna-se óbvio por que Mises definiu a inflação como sendo um aumento na oferta monetária – e deflação, um declínio. Dado que a inflação é, do ponto de vista austríaco, inerente a qualquer regime monetário, eles optam pela moeda de livre mercado, pois tal regime monetário é considerado muito menos propenso à inflação quando comparado à moeda controla monopolisticamente pelo governo.
A DEFINIÇÃO ATUAL DE INFLAÇÃO
Desnecessário dizer que a definição de Mises contrasta rematadamente à interpretação atual do termo:
“O que muitas pessoas hoje chamam de inflação ou deflação não mais é o grande aumento ou decréscimo na oferta monetária, mas sim suas inexoráveis consequências: a tendência generalizada de um aumento ou queda nos preços das mercadorias e nos salários.”[8]
A economia convencional define inflação como o aumento persistente no nível de preços da economia. Tal definição se baseia em um regime de índices criado por Irving Fisher (1867-1947). Hoje, a estabilidade do nível de preços é tipicamente entendida como um nível de preços subindo por volta de 2%, anualmente. Se a inflação permanece por volta desse nível, diz-se que as pessoas estão usufruindo uma “estabilidade de preços”.
Entretanto, qualquer definição de inflação relacionada ao conceito do índice de Fisher é econômica e politicamente enganosa e errônea. A verdade econômica é que mesmo um índice de preços (ao consumidor) inalterado pode muito bem vir acompanhado de uma perda no valor de troca da moeda.
CRISE GERADA PELO GOVERNO
Para mostrar isso, suponha, por exemplo, que a demanda por dinheiro aumente (as pessoas querem ter mais dinheiro em seus encaixes). Tal fenômeno provocará uma queda nos preços dos bens, fazendo com que menos dinheiro seja necessário para se adquirir uma mesma quantidade de bens. O valor de troca da unidade monetária aumentou.
Em uma tentativa de manter constante o valor de troca de uma unidade monetária em relação aos bens em questão, o banco central teria de aumentar o estoque de dinheiro. Ao fazer isso, ele estaria aumentando a demanda por bens, cujo resultado seria fazer com que o valor de troca do dinheiro em relação aos bens em questão caísse, voltando ao patamar anterior.
Do ponto de vista da política monetária, cujo objetivo era manter a estabilidade do nível de preços, os usuários dessa moeda foram verdadeiramente privados de usufruir qualquer aumento no valor de troca do dinheiro, aumento esse que estaria relacionado à maior produtividade da economia (mais bens disponíveis). Já os devedores, por outro lado, saíram ganhando: a ação do banco central impede que a renda nominal deles diminua – como ocorreria em uma situação de mercado livre e desimpedido.
Ademais, mudanças induzidas pelo governo no estoque de dinheiro afetam diferentes setores da economia, em diferentes graus e em momentos distintos. Consequentemente, tal fenômeno pode acarretar distorções no mecanismo de preços relativos, o que estimula investimentos errôneos, oscilações cíclicas da economia, colapsos no mercado financeiro e perdas na renda e no emprego. Não é necessário uma análise profunda para perceber que tais crises incitam o público a recorrer ao governo, implorando-o para solucionar os problemas que ele próprio cria.
Tipicamente, ações adicionais do governo, ao invés das forças de livre mercado, são vistas como uma solução para as adversidades econômicas, as quais foram causadas pela intervenção governamental no âmbito monetário. O público clama por mais intervenções – quais sejam, menores taxas de juros, mais crédito e ainda mais criação de dinheiro -, afastando a economia cada vez mais do arranjo ideal que caracteriza uma sociedade livre, levando, no extremo, a uma completa destruição do valor da moeda (“hiperinflação”).
A NECESSIDADE DE UMA MOEDA DE LIVRE MERCADO
A principal preocupação dos austríacos é que um regime monetário gerido pelo governo irá, no final, terminar em desastre econômico e político: a destruição da moeda e, com ela, da ordem social livre e voluntária. É particularmente por causa desse cenário que eles defendem o fim do monopólio estatal da oferta monetária e um retorno à moeda de livre mercado.
Sob um regime monetário baseado em uma commodity livremente escolhida, como, por exemplo, o ouro, a oferta monetária tenderia a aumentar de maneira relativamente previsível e em quantidades relativamente pequenas ao longo do tempo – ao contrário dos aumentos arbitrários, aleatórios e frequentemente dramáticos que o governo promove na oferta de dinheiro de papel.
Isso pode soar paradoxal para a maioria dos economistas adeptos da linha convencional, mas, para os austríacos, é exatamente esse objetivo da estabilidade de preços que contribui enormemente para os ciclos econômicos. O “regime de índices de inflação” provoca repetidas e fracassadas intervenções governamentais, as quais, cedo ou tarde, resultam em sérias crises econômicas e sociais.
Nos EUA, tanto a depressão da década de 1930 quanto a atual foram semeadas em período de grande estabilidade nos índices de preços, sendo o aumento da oferta monetária e do crédito camuflado pelo aumento na produtividade e pelo fato de todo esse dinheiro recém-criado ter sido desviado para a formação e alimentação de bolhas.
CONCLUSÃO
Tendo abandonado o princípio da moeda forte, os bancos centrais passaram a se concentrar na diminuição forçada das taxas de juros ao longo do tempo, por meio da forte expansão do crédito e da oferta monetária. Isso, por sua vez, leva a uma constante inflação nos preços dos ativos, gerando bolhas e uma má alocação de recursos escassos, criando oscilações cíclicas na economia (períodos de expansão e recessão).
Para piorar as coisas, os bancos centrais permitem que o crescimento da oferta de crédito sistematicamente seja maior que o crescimento da renda, o que faz com que a razão dívida/PIB das economias esteja em constante crescimento. Tal ocorrência é economicamente insustentável, ainda que possa continuar por algum tempo – pelo menos, enquanto os bancos centrais continuarem diminuindo e mantendo as taxas de juros em níveis baixos.
Entretanto, quando o fardo da dívida começar a incomodar, a “opinião pública” irá clamar pela desvalorização da moeda via inflação, um artifício infalível para livrar os devedores de suas obrigações. Mises sabia por que abandonar o princípio da moeda forte seria tão problemático:
“Na opinião do público, mais inflação e mais expansão do crédito são os únicos remédios contra os malefícios trazidos justamente pela inflação e pela expansão do crédito.”[9]
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Notas
[1] Mises, L. von (1912), The Theory of Money and Credit, Liberty Fund, Indianapolis, p. 454.
[3] See Hoppe, H-H. (1994), “How is Fiat Money Possible – or, The Devolution of Money and Credit,” Review of Austrian Economics, 7, No. 2.
[4] Mises, L. von (1912), The Theory of Money and Credit, Liberty Fund, Indianapolis, pp. 32.
[5] Mises, L. von (1996), Ação Humana, 4th Edition, Fox & Wilkes, San Francisco, p. 410.
[6] Friedman, M. (1994), Money Mischief: Episodes in Monetary History, San Diego, New York, London, p. 15.
[7] Mises, L. von (1912), The Theory of Money and Credit, Liberty Fund, Indianapolis, p. 111.
[8] Mises, L. von (1996), Ação Humana, 4th Edition, Fox & Wilkes, San Francisco, p. 423.