Thursday, November 21, 2024
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O mito Adam Smith

AdamSmith1Adam Smith (1723-1790) é um mistério envolto em uma charada dentro de um enigma.  O mistério é a enorme e inaudita disparidade entre a exaltada reputação de Smith e a realidade de sua dúbia contribuição para o pensamento econômico.

A reputação de Smith praticamente eclipsa o sol.  Desde o seu tempo até muito recentemente, pensava-se que ele havia virtualmente recriado a ciência econômica.  Ele era universalmente aclamado com oPai Fundador.  Livros sobre a história do pensamento econômico, após alguns poucos e bem merecidos escárnios direcionados aos mercantilistas e alguns acenos para os fisiocratas, invariavelmente começam dizendo que Smith é o criador da disciplina da economia.  Quaisquer erros que ele tenha cometido são compreensivelmente desculpados como sendo as inevitáveis falhas de todo grande pioneiro.

Inúmeras palavras já foram escritas sobre ele.  No bicentenário de sua obra magna, Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações (1776), houve uma verdadeira avalanche de livros, ensaios e penduricalhos sobre o sereno professor escocês.  Seu perfil esculpido em um medalhão feito por James Tassie é conhecido em todo o mundo.  Até mesmo um filme hagiográfico sobre Smith foi feito por uma fundação pró-livre mercado durante o bicentenário, e empreendedores e defensores do livre mercado há muito aclamam Adam Smith seu santo padroeiro.

‘Gravatas de Adam Smith’ foram utilizadas como insígnia de honra pelo alto escalão do governo Reagan.

Por outro lado, os marxistas, de certa forma com mais justiça, saúdam Smith como a inspiração suprema de seu próprio Pai Fundador, Karl Marx.  Com efeito, se pedíssemos ao cidadão comum para citar dois economistas históricos dos quais ele já ouviu falar, Smith e Marx provavelmente seriam os vencedores disparados da pesquisa.

Como já vimos, Smith dificilmente foi o fundador da ciência econômica, uma ciência que existiu desde os escolásticos medievais e, em sua forma moderna, desde Richard Cantillon.  Mas aquilo que os alemães costumavam classificar como o Das AdamSmithProblem[1] é algo muito mais severo do que isso.  Pois o problema não é apenas que Smith não foi o fundador da ciência econômica.

O problema é que ele não originou nada que fosse verdade, e tudo que ele originou estava errado.  Mesmo em uma época em que havia menos citações e notas de rodapé do que a nossa, Adam Smith foi um desavergonhado plagiador, pouco ou nunca reconhecendo suas fontes e roubando grandes nacos, por exemplo, da obra de Cantillon.  Muito pior foi a completa recusa de Smith em citar ou reconhecer seu querido mentor Francis Hutcheson, de quem ele extraiu a maioria de suas ideias bem como a organização de suas escritas sobre economia e filosofia moral.  Smith chegou até a escrever uma carta privada à Universidade de Glasgow falando sobre o ‘nunca a ser esquecido Dr. Hutcheson’, mas aparentemente a amnésia convenientemente o acometeu quando foi escrever A Riqueza das Nações para o público geral.[2]

Embora fosse um inveterado plagiário, Smith sofria de um complexo de Colombo, e acusava amigos próximos de estarem plagiando-o.  E mesmo sendo um plagiador, ele plagiava mal, acrescentando novas falácias às verdades que coletava.  Ao castigar Adam Smith por seus erros, portanto, não estamos sendo anacrônicos, punindo absurdamente pensadores do passado por não serem tão espertos quanto nós, que viemos depois.  Pois Smith não apenas não contribuiu com nada de valor para o pensamento econômico, como também sua economia foi uma grave deterioração da economia de seus predecessores: de Cantillon, de Turgot, de seu professor Hutcheson, dos escolásticos espanhóis, e até mesmo, bizarramente, de seus próprios trabalhos anteriores, como Escritas sobre Jurisprudência (não publicado, 1762-63, 1766) e a Teoria dos Sentimentos Morais (1759).

O mistério de Adam Smith, portanto, é a imensa disparidade entre uma reputação monstruosamente hiperinflacionada e a deplorável realidade.  Mas o problema é pior do que isso; não é apenas o fato de A Riqueza das Nações ter desfrutado de uma terrivelmente exagerada reputação desde seus dias até hoje.  O problema é que A Riqueza das Nações de alguma forma conseguiu cegar todos os homens, economistas e leigos igualmente, para o fato de que outros economistas, que eram melhores, haviam existido e escrito antes de 1776.  A Riqueza das Nações exerceu no mundo um impacto tão colossal que todo o conhecimento de economistas anteriores foi apagado – daí a reputação de Smith como o Pai Fundador da ciência econômica.  O problema histórico é esse: como pôde ocorrer esse fenômeno com um livro tão derivativo, tão profundamente falho, tão menos notório que seus predecessores?

A resposta certamente não é por causa de alguma lucidez ou clareza de estilo ou de pensamento.  Pois o tão reverenciado A Riqueza das Nações é um livro enorme, prolixo, rudimentar e confuso, repleto de ambiguidades e profundas contradições internas.  É obviamente uma vantagem, na história do pensamento social, para um livro ser enorme, prolixo, rudimentar e confuso.  Há uma vantagem sociológica em ser ambíguo e obscuro.  O estupefato alemão Christian  J. Kraus, ardoroso smithiano, certa feita se referiu a A Riqueza das Nações como a ‘Bíblia’ da economia política.  De certa forma, o professor Kraus foi mais sábio do que imaginava.  Pois, de certa maneira, A Riqueza das Nações é como a Bíblia; é possível extrair variadas e contraditórias interpretações de várias – ou até mesmo das mesmas – partes do livro.

Ademais, a própria ambiguidade e obscuridade de uma obra podem fornecer um paraíso para intelectuais, estudantes e seguidores.  Progredir e ter êxito na compreensão de um tratado obscuro e difícil, organizar segmentos tenuemente percebidos em uma estrutura coerente – essas são as tarefas por si mesmas gratificantes para intelectuais.  E tais livros também fornecem um bem vindo processo de exclusão embutido em sua estrutura, de modo que somente um número relativamente pequeno de adeptos pode regozijar-se de sua especialidade acerca de uma obra ou de um sistema de pensamento.  Dessa maneira eles aumentam sua renda e prestígio relativos, e deixam para trás outros admiradores que prontamente se encarregam de formar o grupo de aplauso para os principais discípulos do Mestre.

Adam Smith não fundou a ciência econômica, mas ele de fato criou o paradigma da escola clássica britânica, e é sempre útil para o criador de um paradigma ser rudimentar e confuso, deixando assim espaço para os discípulos que irão tentar clarificar e sistematizar as contribuições do Mestre.  Até os anos 1950, os economistas, ao menos aqueles da tradição anglo-americana, reverenciavam Smith como o fundador, e viam os posteriores desenvolvimentos da economia como um movimento linearmente ascendente em direção à luz, com Smith sendo sucedido por Ricardo e John Stuart Mill, e depois, após um pouco de divergência criada pelos austríacos nos anos 1870, com Alfred Marshall estabelecendo a economia neoclássica como sendo uma disciplina neo-ricardiana – logo, neo-smithiana.  De certo modo, John Maynard Keynes, aluno de Marshall em Cambridge, pensou estar apenas preenchendo o vácuo da herança ricardiana-marshalliana.

Dentro desse enfatuado miasma de adoração a Smith, a História da Análise Econômica (1954) de Joseph A. Schumpeter surgiu como um autêntico arrasa-quarteirão.  Oriundo das tradições continentais walrasianas e austríacas, ao invés do classicismo britânico, Schumpeter conseguiu, virtualmente pela primeira vez, lançar um olhar frio e realista sobre o celebrado escocês.  Escrevendo com um desdém finamente dissimulado, Schumpeter usualmente denegria a contribuição de Smith, e essencialmente mantinha que Smith havia desviado a economia para um caminho errado, um caminho infelizmente distinto daquele traçado por seus ancestrais continentais.[3]

Desde Schumpeter, os historiadores do pensamento econômico adotaram amplamente uma posição de recuo.  Smith, reconhecem eles, não criou nada, mas foi o grande sintetizador e sistematizador, o primeiro a pegar todos os segmentos dispersos de seus predecessores e costurá-los de modo a formar uma estrutura coerente e sistemática.  Mas o trabalho de Smith foi o oposto do coerente e do sistemático, e Ricardo e Say, seus dois maiores discípulos, cada um deles se incumbiu da tarefa de moldar um sistema coerente fora da bagunça smithiana.

Mais ainda: embora seja verdade que os escritos pré-Smith eram incisivos porém esparsos (Turgot), ou entranhados de filosofia moral (Hutcheson), é também verdade que já havia dois tratados gerais sobre economia anteriores a A Riqueza das Nações.  Um deles é Essai, a grande obra de Cantillon, a qual, após o advento de Smith, caiu em atroz esquecimento, sendo resgatada apenas um século depois por Jevons; e o outro, o primeiro livro a utilizar economia política em seu título, foi Principles of Political Economy (1767), uma obsoleta obra em dois volumes de Sir James Steuart (1712-80).  Steuart, um jacobita [partidários dos Stuarts, após a abdicação de Jaime II do trono da Inglaterra em 1688] que esteve envolvido na rebelião do príncipe Charles Edward Stuart para restaurar a dinastia Stuart, passou grande parte da sua vida como exilado na Alemanha, onde ele se tornou imbuído da metodologia e dos ideais do ‘cameralismo’ alemão.

O cameralismo foi uma forma virulenta de mercantilismo absolutista que prosperou na Alemanha nos séculos XVII e XVIII.  Os cameralistas, mais ainda que os mercantilistas europeus ocidentais, não eram de modo algum economistas – isto é, eles não analisavam os processos do mercado; eram apenas conselheiros técnicos dos soberanos, aconselhando como e de que maneira aumentar o poder estatal sobre a economia.  O livro de Steuart seguia essa tradição.  Quase nada falava sobre economia; encarregava-se apenas de fazer apelos para maciças intervenções governamentais e planejamentos centrais totalitários, desde detalhadas regulações do comércio, passando por um sistema de cartéis compulsórios até chegar a políticas monetárias inflacionistas.  Sua única ‘contribuição’ foi refinar e expandir noções fugazes e rudimentares sobre a teoria do valor-trabalho, e elaborar uma teoria proto-marxista sobre o inerente conflito de classes da sociedade.  Ademais, Steuart havia escrito um calhamaço ultramercantilista justamente na época em que o pensamento liberal clássico e laissez-faire estava em ascensão e se tornando dominante ao menos na Grã-Bretanha e na França.

Ainda que o livro de Steuart estivesse em descompasso com o emergente espírito liberal clássico da época, estava errado quem concluiu que a obra teria pouca ou nenhuma influência.  O livro foi bem recebido, altamente respeitado, e apresentou boas vendagens.  E cinco anos após sua publicação, em 1772, Steuart ganhou a batalha contra Adam Smith para o posto de consultor monetário da Companhia das Índias Orientais.

Uma razão por que a visão de Schumpeter surpreendeu a profissão econômica é que os historiadores do pensamento econômico, similarmente aos historiadores de outras disciplinas, habitualmente tratam o desenvolvimento da ciência como sendo uma marcha linear e ascendente rumo à verdade.  Cada cientista pacientemente formula, testa e descarta hipóteses, de modo que assim cada um que tenha êxito está sobre os ombros daquele que o precedeu.  Essa ‘teoria progressista da história da ciência’ foi hoje amplamente descartada em prol da mais realista teoria kuhniana dos paradigmas.  Para nossos propósitos, o ponto importante da teoria de Kuhn é que muito poucas pessoas testam pacientemente qualquer coisa, particularmente as hipóteses fundamentais, ou o ‘paradigma’ básico de suas teorias: e mudanças nos paradigmas podem ocorrer mesmo quando a nova teoria é pior que a antiga.

Em resumo, o conhecimento pode ser e é perdido da mesma forma que é ganho, e a ciência normalmente procede em zigue-zague ao invés de linearmente.  Podemos acrescentar que isso seria particularmente verdade para as ciências sociais ou humanas.  Como resultado, paradigmas e verdades básicas se perdem, e os economistas (bem como as pessoas de outras disciplinas) podem piorar, e não melhorar, ao longo do tempo.  Os anos podem tanto trazer progresso quanto retrocesso.

Schumpeter arremessou uma granada no templo dos historiadores progressistas do pensamento econômico, especificamente dos partidários da tradição de Smith-Ricardo-Marshall.[4]

Apresentamos assim nossa própria versão do Das AdamSmithProblem: como pôde uma obra tão gravemente falha como A Riqueza das Nações rapidamente se tornar tão dominante a ponto de apagar todas as outras alternativas?  Mas antes de considerarmos essa questão, temos de examinar os vários aspectos do pensamento smithiano em mais detalhes.

A vida de Smith

Adam Smith nasceu em 1723 na pequena cidade de Kirkcaldy, perto de Edimburgo.  Seu pai, também Adam Smith (1679-1723), que morreu pouco antes de ele nascer, foi um eminente promotor de justiça militar da Escócia e depois o superintendente fiscal da alfândega em Kirkcaldy, que havia se casado com uma moça pertencente a uma rica família proprietária de terras.  O jovem Smith foi, portanto, criado pela mãe.  A cidade de Kirkcaldy era militantemente presbiteriana.  Na escola em que estudou, a escola Burgh, ele encontrou vários jovens escoceses presbiterianos, sendo que um deles, John Drysdale, veio a ser por duas vezes o moderador da assembleia geral da Igreja da Escócia.

Smith, de fato, veio de uma família de funcionários da alfândega.  Além de seu pai, seu primo Hercules Scott Smith serviu como coletor da alfândega de Kirkcaldy; seu guardião, outro que também se chamava Adam Smith, veio a ser coletor alfandegário em Kirkcaldy bem como inspetor alfandegário em outros portos escoceses.  Finalmente, um outro primo também chamado Adam Smith mais tarde veio a trabalhar como coletor alfandegário em Alloa.

De 1737 a 1740, Adam Smith estudou na Universidade de Glasgow, onde ele ficou fascinado pelas ideias de Francis Hutcheson e absorveu os encantos do liberalismo clássico, do direito natural e da economia política.  Em 1740, Smith obteve seu mestrado com louvor na Universidade de Glasgow.  Sua mãe o havia batizado na fé episcopal, e ela ansiava por ver o filho se tornar um ministro episcopal.  Smith foi mandado ao Balliol College, em Oxford, em uma bolsa de estudos destinada a promover futuros clérigos episcopais.  Porém ele se sentia infeliz por causa do péssimo nível de instrução ofertada pela Oxford daqueles tempos, e retornou após seis anos, aos 23 anos de idade, sem ter se ordenado.  Não obstante seu batismo e a pressão de sua mãe, Smith permaneceu um ardente presbiteriano e, ao retornar a Edimburgo em 1746, ele ficou desempregado por dois anos.

Finalmente, em 1748, Henry Home, mais conhecido como Lord Kames, juiz e líder do iluminismo escocês, além de ser primo de David Hume, decidiu promover uma série de palestras públicas em Edimburgo para educar os advogados.  Junto com o amigo de infância de Smith, James Oswald de Dunnikier, Kames conseguiu fazer com que a Sociedade Filosófica de Edimburgo patrocinasse Smith durante vários anos de palestras sobre direito natural, literatura, liberdade de comércio e liberdade individual.  Em 1750, Adam Smith obteve a cadeira de teoria da lógica em sua alma mater, a Universidade de Glasgow, e não teve quaisquer dificuldades em fazer a Confissão de Fé de Westminster perante o Presbitério de Glasgow.  Finalmente, em 1752, Smith teve a satisfação de ascender à cadeira de filosofia moral que pertenceu ao seu querido professor Hutcheson, na qual ele ficaria por 12 anos.

As palestras de Smith em Edimburgo e Glasgow foram muito populares, e a principal ênfase foi no ‘sistema de liberdade natural’, no sistema de direito natural e no laissez-faire, o qual ele vinha até então promovendo com muito menos qualificação do que em sua mais cuidadosa A Riqueza das Nações.  Ele também conseguiu converter muitos dos principais mercadores de Glasgow a esse excitante novo credo.  Smith também se atirou com entusiasmo nas associações sociais e educacionais que estavam começando a ser formadas pelo moderado clérigo presbiteriano, pelos professores universitários, pelos literatos e pelos advogados, tanto em Glasgow quanto em Edimburgo.  É provável que David Hume tenha assistido às palestras de Edimburgo em 1752, pois os dois se tornaram amigos leais logo depois.

Smith foi um membro fundador da Sociedade Literária de Glasgow no ano seguinte; a sociedade se engajava em discussões e debates de alto nível, e se reunia diligentemente todas as quintas-feiras de novembro a maio.  Hume e Smith eram membros, e em uma das primeiras sessões Smith leu uma descrição de alguns dos recém impressos Discursos Políticos de Hume.  Estranhamente, os dois amigos, claramente os membros mais brilhantes da Sociedade, eram extremamente acanhados, e nunca disseram uma palavra em qualquer uma das discussões.

Não obstante seu acanhamento, Smith era um ativo e inveterado sócio de clubes, tornando-se o principal membro da Sociedade Filosófica de Edimburgo e da Sociedade Seleta (também de Edimburgo), que prosperaram durante a década de 1750 e que se reuniam semanalmente, juntando a moderada alta elite do clero, membros universitários e advogados.  Smith também era membro ativo do Clube de Economia Política de Glasgow, do Oyster Club (Edimburgo), do Simson’s Club de Glasgow, e do Poker Club (Edimburgo), fundado por seu amigo Adam Ferguson, professor de filosofia moral da Universidade de Edimburgo, especificamente para promover o ‘espírito guerreiro’.

Como se isso não fosse o suficiente, Adam Smith foi um dos principais contribuidores e editores da malogradaEdinburgh Review (1755-56), dedicada amplamente à defesa de seus amigos Hume e Kames contra a linha dura evangélica do clérigo calvinista da Escócia.  A Edinburgh Review foi fundada pelo jovem e brilhante advogado Alexander Wedderburn (1733-1805), que viria a ser juiz, depois membro do parlamento inglês e finalmente Juiz Supremo britânico (1793-1801).  Wedderburn era latitudinário a ponto de defender a licença de bordeis.  Outros luminares da Edinburgh Review eram membros da elite moderada: o político John Jardine (1715-60), cuja filha se casou com o filho de Lord Kames; o poderoso reverendo William Robertson, e o reverendo Hugh Blair (1718-1800), professor de retórica da Universidade de Edimburgo.

A intensidade do presbiterianismo de Adam Smith, ainda que ele não fosse fundamentalista, pode ser vista em sua relação com Hugh Blair.  Blair, um pastor da igreja Greyfriars, em Edimburgo, estava em constante atrito com o clérigo calvinista ortodoxo, que repetidamente o denunciava aos presbitérios de Glasgow e Edimburgo.  Em A Riqueza das Nações, Adam Smith prestou o seguinte encômio ao clérigo presbiteriano: ‘Talvez seja difícil encontrar em qualquer lugar da Europa um grupo de homens mais erudito, decente, independente e respeitável do que a maior parte do clérigo presbiteriano da Holanda, de Genebra, da Suíça e da Escócia.’  Seu velho amigo Blair, embora ele próprio um dos principais clérigos presbiterianos, comentou em uma carta a Smith: ‘Você está, creio eu, sendo excessivamente benévolo para com o Presbitério’.

Após Smith publicar sua filosofia moral em sua obra A Teoria dos Sentimentos Morais (1759), sua crescente fama lhe valeu uma posição altamente lucrativa em 1764 como tutor do jovem Duque de Buccleuch.  Por causa desses três anos de tutoragem, os quais ele passou com o jovem duque na França, Smith foi premiado com um salário anual vitalício de £300, duas vezes seu salário anual em Glasgow.  Durante esses três agradáveis anos na França, ele foi apresentado a Turgot e aos fisiocratas.  Tendo completado sua tarefa tutorial, Smith voltou à sua cidade natal Kirkcaldy, onde, tranqüilo com seu ordenado vitalício, ele trabalhou por dez anos para finalizar A Riqueza das Nações, a qual ele já havia começado durante sua estadia na França.

A fama de A Riqueza das Nações levou seu orgulhoso pupilo, o Duque de Buccleuch, a dar a Smith, em 1778, o altamente bem pago posto de comissário da alfândega escocesa em Edimburgo.  Com um salário de £600 anuais por esse posto governamental, o qual ele manteve até o dia de sua morte em 1790, acrescido de sua bela pensão vitalícia, Adam Smith estava ganhando perto de £1000 por ano – uma ‘receita principesca’, como um de seus biógrafos descreveu.  O próprio Smith escreveu nessa época que ele estava ‘tão rico quanto eu poderia sonhar’.  Ele lamentava apenas ter de comparecer ao seu posto de trabalho na alfândega, o que lhe roubava tempo de suas ‘atividades literárias’.

Contudo, essa lamentação dificilmente era verídica.  Em contraste ao que diz a maioria dos historiadores, que trataram o cargo alfandegário de Smith embaraçosamente como uma sinecura à qual ele não comparecia e que ele havia ganhado meramente como recompensa por suas conquistas intelectuais, pesquisas recentes mostram que Smith trabalhava em tempo integral em seu posto, frequentemente presidindo as reuniões diárias do conselho de comissários da alfândega.  Mais ainda: Smith quis essa nomeação e aparentemente achou o cargo agradável e relaxante.  É verdade que Smith gastou pouco tempo e energia em estudos e escritas após sua nomeação; mas havia a disponibilidade de licenças do trabalho, as quais Smith não demonstrou o menor interesse em utilizar.  Ademais, o que permitiu a Smith buscar essa nomeação não foram bem seus feitos intelectuais; o cargo lhe foi dado mais como recompensa pelos conselhos prestados como consultor para assuntos tributários e orçamentais do governo britânico desde meados da década de 1760.[5]

A divisão do trabalho

É apropriado começar a discutir A Riqueza das Nações focando a divisão do trabalho, uma vez que o próprio Smith começa sua obra nesse ponto e dado que, para Smith, essa divisão tinha importância crucial e decisiva.  Seu professor Hutcheson também havia analisado a importância da divisão do trabalho nas economias em desenvolvimento, assim como haviam feito o mesmo Hume, Turgot, Mandeville, James Harris e outros economistas.  Mas para Smith, a divisão do trabalho assumiu uma importância excessiva e agigantada, relegando às sombras questões cruciais como acumulação de capital e o crescimento do conhecimento tecnológico.  Como Schumpeter demonstrou, nunca para um economista anterior ou posterior a Smith a divisão do trabalho adquiriu tal posição de predominante importância.

Porém há mais problemas com a divisão do trabalho smithiana, além do fato de ele ter exagerado sua importância.  A mais velha e mais verdadeira percepção do real motivo da especialização e das trocas é simplesmente o fato de que cada lado de uma troca (que necessariamente envolve dois lados e duas mercadorias) se beneficia (ou ao menos espera se beneficiar) dessa troca; de outra forma a troca não ocorreria.  Porém Smith desafortunadamente desvia o foco principal desse fenômeno: segundo ele, ao invés do benefício mútuo, há uma supostamente irracional e inata ‘propensão a permutar, trocar e cambiar’, como se os seres humanos fossem toupeiras comandadas por forças exteriores a seus próprios propósitos escolhidos.

Como demonstrou Edwin Cannan, Smith escolheu essa direção porque ele rejeitava a ideia de que há diferenças inatas nos talentos naturais e nas habilidades, o que naturalmente resultaria na busca por ocupações diferentes e especializadas.  Smith, ao contrário, escolheu a posição igualitária e ambientalista – ainda hoje dominante na economia neoclássica – de que todos os trabalhadores são iguais, e que, portanto, a diferença entre eles éresultado, e não a causa, do sistema de divisão do trabalho.

Além disso, Smith foi incapaz de aplicar sua análise da divisão do trabalho ao comércio internacional, o que teria fornecido poderosa munição para suas próprias políticas de livre comércio.  Coube a James Mill fazer tais aplicações em sua excelente teoria das vantagens comparativas.  Ademais, domesticamente, Smith deu excessiva importância à divisão do trabalho dentro de uma fábrica ou indústria, ao mesmo tempo em que negligenciou a bem mais significativa divisão do trabalho entre as indústrias.

Mas se Smith tinha um exagerado apreço pela importância da divisão do trabalho, ele paradoxalmente semeou grandes problemas para o futuro ao introduzir a moderna e crônica reclamação sociológica sobre especialização, a qual foi rapidamente apropriada por Karl Marx e desde então tem sido elevada ao estado de arte por socialistas ranzinzas que reclamam da ‘alienação’.  Não há como negar que Smith se contradisse totalmente entre o Livro I e o Livro V de A Riqueza das Nações.  No primeiro, a divisão do trabalho sozinha explica a riqueza da sociedade civilizada – e, com efeito, a divisão do trabalho é repetidamente equiparada a ‘civilização’ ao longo do livro.  E ainda assim, enquanto que no Livro I a divisão do trabalho é aclamada por expandir a vivacidade e a inteligência da população, no Livro V ela é condenada por levar à sua degeneração moral e intelectual, à perda de suas ‘virtudes intelectuais, sociais e guerreiras’.  Não há como tal contradição ser plausivelmente conciliada.[6]

Adam Smith, embora fosse ele próprio um plagiário de marca maior, como já foi dito, sofria também do complexo de Colombo, frequentemente acusando outras pessoas de estarem injustamente plagiando-o.  Em 1755, ele inclusive chegou a reivindicar a invenção do conceito de laissez-faire, ou o sistema de liberdade natural, afirmando que fora ele quem havia lecionado esses princípios desde as palestras de Edimburgo, em 1749.  Pode ser.  Mas a alegação ignora que tais expressões já haviam sido ditas por seus próprios professores, bem como por Hugo Grócio e Pufendorf, para não mencionar Boisguilbert e os outros pensadores laissez-fairefranceses do final do século XVII.

Em 1769, o contencioso Smith acusou de plágio o diretor William Robertson por ocasião da publicação do livroHistory of the Reign of Charles V, de autoria deste último.  Não se sabe qual seria o tópico do roubo literário, e é difícil imaginar, considerando a distância entre a obra de Smith e o tema do livro de Robertson.

A mais famosa acusação de plágio lançada por Smith foi contra seu amigo Adam Ferguson sobre a questão da divisão do trabalho.  O professor Hamowy mostrou que Smith não terminou a amizade com seu velho amigo, como anteriormente havia se pensado, por causa do uso que Ferguson fez do conceito de divisão do trabalho em seu Ensaio Sobre a História da Sociedade Civil, de 1767.  Pela visão de todos os escritores que haviam empregado o conceito anteriormente, esse comportamento seria ridículo, mesmo para Adam Smith.  O professor Hamowy supõe que o fim da amizade veio no início dos anos 1780, por causa de uma discussão proposta por Ferguson, em seu clube, sobre aquilo que viria a ser publicado mais tarde como parte de seuPrinciples of Moral and Political Science, de 1792.  Nesse seu livro, Ferguson sumariza o exemplo da fábrica de alfinetes que constitui a passagem mais famosa de A Riqueza das Nações.  Smith descreve uma pequena fábrica de alfinetes na qual dez trabalhadores, cada qual especializado em um diferente aspecto do trabalho, poderiam produzir mais de 48.000 alfinetes por dia, ao passo que se cada um desses dez fizesse todo o alfinete sozinho, eles poderiam não fazer sequer um alfinete por dia, e certamente não mais do que 20.  Dessa forma, a divisão do trabalho multiplicou enormemente a produtividade de cada trabalhador.  Em seu livro Principles, Ferguson escreveu: ‘Um agrupamento consistente de pessoas, no qual cada uma delas executa apenas uma parte da fabricação de um alfinete, pode produzir muito mais em um determinado intervalo de tempo do que talvez o dobro do número de trabalhadores seria capaz caso cada um fosse produzir um alfinete inteiro ou executar todas as etapas da construção desse diminuto artigo’.

Quando Smith censurou Ferguson por este não reconhecer sua precedência no exemplo da fábrica de alfinetes, Ferguson retorquiu dizendo que ele nada havia pegado emprestado de Smith, e que na verdade ambos haviam retirado esse exemplo de uma fonte francesa ‘a qual Smith havia pegado antes dele’.  Há fortes evidências de que a ‘fonte francesa’ para ambos os escritores tenha sido o artigo sobre epingles (alfinetes) na Encyclopédie(1755), já que o artigo menciona 18 operações distintas necessárias para se fabricar um alfinete, o mesmo número repetido por Smith em A Riqueza das Nações – embora nas fábricas inglesas da época, 25 fosse o número mais comum de operações necessárias.

Assim, Adam Smith terminou uma antiga e duradoura amizade ao injustamente acusar Adam Ferguson de ter plagiado dele um exemplo que, na verdade, ambos haviam retirado sem reconhecimento da Encyclopédiefrancesa.  O comentário feito pelo reverendo Carlyle de que Smith possuía ‘um pouco de ciúmes em seu temperamento’ parece ser uma enorme atenuação, e somos informados em seu registro obituário na Monthly Review de 1790 que ‘Smith vivia constantemente em tamanha apreensão de ter suas ideias roubadas que, se ele visse algum de seus alunos anotando suas apresentações, ele iria instantaneamente interrompê-lo e dizer “Odeio escrevinhadores”‘.[7]

O exemplo dado por Smith de uma pequena fábrica francesa de alfinetes, ao invés de utilizar uma grande fábrica britânica, realça um fato curioso sobre seu celebrado A Riqueza das Nações: o renomado economista parecia não ter tido o menor conhecimento acerca da Revolução Industrial que acontecia ao seu redor.  Embora ele fosse amigo do Dr. John Roebuck, o proprietário da siderurgia Carron, cuja inauguração em 1760 marcou o início da Revolução Industrial na Escócia, Smith não demonstrou qualquer indicação de que sabia de sua existência.

Não obstante ele fosse pelo menos um conhecido do grande inventor James Watt, Smith não demonstrou ter qualquer conhecimento de algumas das principais invenções de Watt.  Ele não fez qualquer menção em seu famoso livro ao boom na construção de canais que havia começado no início da década de 1760, à existência da próspera indústria têxtil de algodão, à indústria de cerâmica ou aos novos métodos de fabricação de cerveja.  Também não há referência à enorme queda nos custos das viagens trazida pelas novas estradas pedagiadas.

Portanto, em contraste com aqueles historiadores que o louvam por sua apreensão empírica das questões econômicas e industriais contemporâneas, Adam Smith estava totalmente desatento em relação aos importantes eventos econômicos que o rodeavam.  Grande parte de sua análise estava errada, e muitos dos fatos que ele incluiu em seu A Riqueza das Nações eram obsoletos e foram coletados de livros velhos mais de 30 anos.

Trabalho produtivo vs. improdutivo

Uma das mais dúbias contribuições dos fisiocratas para o pensamento econômico foi sua visão de que apenas a agricultura era produtiva, que apenas a agricultura contribuía para que houvesse excedentes – produit net – na economia.  Smith, fortemente influenciado pelos fisiocratas, manteve o infeliz conceito de trabalho ‘produtivo’, mas o expandiu da agricultura para bens materiais em geral.  Para Smith, portanto, o trabalho voltado para objetos materiais era ‘produtivo’; mas o trabalho voltado para, digamos, serviços, ou produção intangível, era ‘improdutivo’.

A parcialidade de Smith em favor de objetos materiais equivalia a uma propensão em favor de investimentos em bens de capital, uma vez que um estoque de bens de capital por definição tem de estar incorporado em objetos materiais.  Bens de consumo, por outro lado, podem tanto ser serviços intangíveis ou bens quaisquer – sendo que, nesse caso, eles acabam sendo exauridos no processo de consumo.  A apologia de Smith à produção material, portanto, era uma maneira indireta de defender investimentos na acumulação de bens de capital em contraposição ao próprio objetivo de se produzir bens de capital: aumentar o consumo.

Quando foi discutir exportações e importações, Smith percebeu bem que não fazia sentido apenas acumular objetos intermediários; o acúmulo só faria sentido se eles viessem a ser posteriormente consumidos, isto é, se eles fabricassem algo.  Afinal, o único objetivo da produção é o consumo.  Mas como o professor Roger Garrison demonstrou, a consciência presbiteriana de Adam Smith o levou a valorizar o trabalho per se, o trabalho como sua própria finalidade, e a rejeitar as preferências temporais que existem no livre mercado entre poupança e consumo.

Claramente Smith queria muito mais investimento voltado para a produção futura e menos consumo presente do que o mercado estaria disposto a escolher.  Uma das contradições de sua posição é que acumular mais bens de capital em detrimento do consumo presente irá, no final, resultar em um maior padrão de vida apenas se se permitir que esses meios de produção possam ser consumidos fabricando bens.  Afinal de que adianta ter meios de produção se esses não podem ser consumidos?  Mas aparentemente Smith queria que houvesse um acúmulo cada vez maior de meios de produção que nunca poderiam ser consumidos.

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Notas

[1] Das AdamSmithProblem referia-se a apenas um dos numerosos enigmas e contradições presentes na saga de Adam Smith: a enorme disparidade entre os direitos naturais – as visões laissez-faire contidas em sua obra A Teoria dos Sentimentos Morais – e as visões muito mais limitadas contidas em sua posterior e decisivamente influente A Riqueza das Nações.

[2]  Em um iluminador artigo sobre ‘Os Reconhecimentos de Adam Smith’, o professor Salim Rashad escreveu que ‘Foi dito por Schumpeter que essa [não reconhecer as fontes] era a prática daquela época.  Isso é incorreto.  Se buscarmos alguns dos trabalhos citados em A Riqueza das Nações, como os Tratados sobre o Comércio de Cereais de Charles Smith ou Memorandos sobre o Algodão de John Smith, veremos ali um escrupuloso reconhecimento desses autores em relação a suas dívidas intelectuais.  Dentre os contemporâneos de Smith, Gibbon é bem conhecido pelo cuidado que tinha em fornecer suas referências, o mesmo sendo válido para o mais famoso escritor agrícola da época de Smith, Arthur Young.’ Salim Rashed in ‘Adam Smith’s Acknowledgements: Neo-Plagiarism and the Wealth of Nations,’ Journal of Libertarian Studies, 9 (Autumn 1990), p.11.

[3] A primeira e mais consistente peça do moderno revisionismo sobre Smith veio um ano antes em dois excelentes e iluminadores artigos de Emil Kauder: : ‘Genesis of the Marginal Utility Theory: From Aristotle to the End of the Eighteenth Century,’ in J. Spengler e W. Allen (eds), Essays in Economic Thought (Chicago: Rand McNally and Co., 1960), pp. 277-87; e ‘The Retarded Acceptance of the Marginal Utility Theory,’ Quarterly Journal of Economics (Nov. 1953), pp. 564-75.  Porém a revisão de Schumpeter foi muito mais influente.

[4] Infelizmente, desde a celebração do bicentenário de Smith ocorrida em meados da década de 1970, começou uma tendência contrarrevisionsta para tentar restaurar a atitude hagiográfica que dominava antes dos anos 1950.

[5]  Para uma nova visão sobre o mandato de Smith na alfândega baseada em uma investigação original das minutas – escritas à mão – do conselho de comissários da alfândega, 1778-90, bem como das várias cartas escritas por Smith aos coletores de impostos alfandegários lotados em outros portos da Escócia, ver o importante artigo de Gary M. Anderson, William F. Shughart II e Robert D. Tollison, ‘Adam Smith in the Customhouse,’ Journal of Political Economy, 93 (August 1985), pp. 740-59.

[6] O interesse sobre a alienação começou com o influente Essay on the History of Civil Society (1767), escrito por Adam Ferguson, amigo de Smith.  Um tema similar, entretanto, apareceu nas palestras não publicadas de Smith feitas em Glasgow, 1763.  Sobre a influência de Ferguson, ver M.H. Abrams, Natural Supernaturalism (New York: W.W. Norton, 1971), pp. 220-21, 508.

[7] Citado em Ronald Hamowy, ‘Adam Smith, Adam Ferguson, and the Division of Labour’, Economica (August 1968), p. 253.

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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