Já se tornou claro para milhões de eleitores ao redor do mundo que seus respectivos governos ainda não ofereceram soluções estatisticamente viáveis para os déficits orçamentários que vão se avolumando. Esses déficits ameaçam consumir mais do que a totalidade das receitas futuras que os governos poderão utilizar para bancar suas promessas de longo prazo e os programas assistencialistas para os idosos.
Os bancos centrais, por sua vez, podem interromper esse processo quando quiserem: basta que eles parem de comprar ativos. Isso iria estabilizar a base monetária, o que faria com que vários bancos fossem à bancarrota, o que consequentemente reduziria o M1 (papel-moeda em poder do público + depósitos em conta-corrente). Isso iria inevitavelmente produzir uma depressão. Os políticos dizem ter soluções para o problema do déficit orçamentário. Se realmente tivessem, o preço político dessa medida seria o fim de suas carreiras, e a consequente eleição de demagogos que prometessem dar um fim à depressão.
Todo mundo quer ir para o céu: moeda estável, desemprego baixo e crescimento econômico. Mas ninguém quer andar no vale das trevas: a segunda Grande Depressão.
Assim, os parlamentos da cada país seguem se recusando a encarar com sinceridade os custos projetados de suas promessas, principalmente a previdência social. Os economistas dizem que ainda há tempo para financiar esses programas, se todos começarem agora. Mas eles dizem isso, com algumas variações, desde a década de 1970. Tudo o que cada país precisa fazer é arrumar um jeito de seu Congresso financiar essas despesas. Mas quase sempre os congressos nada fazem. Ao contrário, continuam aumentando as despesas para as quais não há fundo [no Brasil, o exemplo clássico é a previdência, tanto a do setor público quanto o INSS].
Ao invés de lidar com déficits que são estatisticamente inevitáveis em orçamentos federais já assustadoramente inchados, os políticos continuam procurando maneiras de incrementar a taxa de gastança governamental.
Peguemos os EUA, por exemplo. A dívida oficial do país já está em 12 trilhões de dólares. Washington parece não se importar com as fontes do financiamento. Os burocratas partem do princípio que o Tesouro americano será capaz de encontrar otários que irão eternamente comprar papeis que rendem 0% de juros. Atualmente, quem está desempenhando esse papel? Bancos centrais asiáticos. Nações exportadoras de petróleo, sendo que todas elas estão incorrendo em enormes déficits orçamentários. Investidores estrangeiros privados. E, principalmente, o Federal Reserve (o banco central americano).
Há uma ideia não é publicamente tolerada: a falência do governo americano. Pode ocorrer por meio de uma hiperinflação acima de 50% por ano, que culminará no colapso do dólar. Também pode ocorrer por meio de calotes seletivos. Seja uma ou outra, o certo é que vai ocorrer.
Se o Tesouro americano não repudiar sua dívida, o governo terá de aprovar leis cortando benefícios adquiridos e esperados. Talvez uma combinação de ambas as medidas venha a ser a abordagem mais politicamente palatável.
Não há como a dívida do Tesouro americano ser quitada. Todo o mundo sabe disso, inclusive o banco central da China e os políticos chineses. Quando até o humorístico Saturday Night Live faz um quadro parodiando a recente visita de Obama à China – no qual Obama fica repetindo para o presidente Hu Jintao que a China terá seu dinheiro de volta, e o presidente Jintao pergunta como, exatamente (já que o dinheiro foi todo gasto), e Obama não consegue responder -, é sinal de que o mundo sabe que a dívida americana não será paga. Até a audiência do Saturday Night Live sabe disso. A China não receberá seu dinheiro de volta. Embora o humor utilizado no quadro tenha sido áspero, os dados econômicos estavam efetivamente corretos. E quando os detalhes do desastre da balança comercial americana são zombados acuradamente num programa humorístico, é porque tudo já deixou de ser segredo há muito tempo.
Mas até aí nada muda. Nada vai mudar até que a China e outras nações asiáticas desliguem os aparelhos que mantêm o moribundo.
Mercantilismo para tolos
Desde 1945, os políticos asiáticos se comprometeram a praticar uma forma de mercantilismo. Eles exportam bens para o Ocidente, principalmente os EUA, e, com o dinheiro das exportações, eles acumulam reservas estrangeiras, comprando papeis da dívida emitidos pelos governos dos países importadores.
A China tem mais de 2 trilhões de dólares em reservas totais – mas nem tudo em dólares. A Índia tem quase US$300 bilhões. [O Brasil tem mais de US$236 bilhões (veja aqui)]. Ainda em 1990, esses países eram meros terceiro-mundistas em péssima situação financeira.
Ao invés de acumularem reservas de ouro, como os países mercantilistas faziam nos tempos de Adam Smith, elas decidiram acumular títulos de dívida emitidos principalmente por governos ocidentais. Os bancos centrais asiáticos inflaram suas bases monetárias para comprar moedas estrangeiras com as quais poderiam adquirir esses títulos estrangeiros.
No dia em que eles pararem de comprar a dívida americana, os EUA terão de arrumar outros compradores – compradores que acham que 0% ao ano é uma boa taxa de retorno para um ativo, o dólar, cujo poder de compra está em declínio.
Ou seja: os países asiáticos continuam cedendo os bens que produzem em troca de notas promissórias que serão pagas em moeda estrangeira cujo valor irá diminuir. Eles são assim tão estúpidos? Não. Eles são apenas mal informados economicamente. Eles não acreditam na Riqueza das Nações, de Smith. Eles permanecem mercantilistas em seu raciocínio. Eles creem que, para o longo prazo, é bom negócio comprar promessas de pagamento que pagam zero de juros.
Por quê? Porque desde o início eles definiram que subsidiar seus setores exportadores era o atalho para a riqueza. Eles começaram a inflacionar suas moedas com o intuito de manter baixo o preço delas nos mercados internacionais. Isso fez com que fosse barato para os importadores ocidentais adquiri-las e, com elas, comprar os produtos que eles exportam.
Agora que seus investidores domésticos já investiram maciçamente seu capital em indústrias e fábricas a fim de produzir bens para os consumidores ocidentais, qualquer redução desses subsídios significaria um enorme desemprego.
Essa inflação monetária doméstica criou bolhas no mercado financeiro desses países. Os governos temem um colapso dos mercados imobiliários e de ações. Eles também temem, e com muito mais intensidade, o desemprego. Assim, eles instruíram seus bancos centrais a continuar inflacionando. A China aumentou seu M2 (M1 + depósitos de poupança e depósitos a prazo inferior a US$ 100.000) em 30% no período de um ano. Antes, o banco central estava inflacionando a 16%, aproximadamente.
Mais ainda: a China não está mais comprando títulos da dívida do Tesouro americano. Ela parou em maio de 2009, quando estava em posse de US$801.5 bilhões, valor recorde. Esse valor caiu hoje para US$799 bilhões.
Então quem está comprando essa dívida americana? O Federal Reserve. Ele reverteu sua política em junho, quando vinha apresentando um moderado enxugamento da base monetária. Desde então, o Fed acelerou a taxa de expansão. Desde agosto, a base monetária cresceu mais de 100%, em termos anualizados.
O gráfico acima mostra três variáveis. A base monetária (azul), o M1 (verde) e as “reservas em excesso” (vermelho).
Embora a base monetária tenha explodido desde setembro de 2008 – indo de pouco mais de $800 bilhões para $2,1 trilhões -, o M1 teve crescimento bem mais discreto. Isso ocorreu porque a quase totalidade do aumento da base monetária transformou-se em “reservas em excesso”.
“Reservas em excesso” são as reservas que os bancos mantêm voluntariamente depositadas junto ao Fed, além do volume determinado pelo compulsório. Como a base monetária é igual ao papel-moeda criado pelo Fed mais as reservas bancárias depositadas junto ao Fed (o compulsório), conclui-se que praticamente todo o aumento da base monetária foi convertido em reservas em excesso.
Os bancos optaram por manter a quase totalidade de suas reservas (as quais eles podiam utilizar para fazer empréstimos e, com isso, aumentar o M1) voluntariamente depositadas junto ao Fed, que está pagando juros sobre elas.
Ao fazer isso, o Fed impediu que as reservas bancárias se transformassem em depósitos em conta-corrente, o que elevaria o M1 – esse é um dos motivos de a inflação de preços ainda estar contida nos EUA.
O Tesouro americano tem de rolar sua dívida a cada 50 meses. No ano 2000, esse prazo era de 70 meses. Como a dívida está em US$12 trilhões, a rolagem custa US$3 trilhões por ano.
A isso devemos adicionar mais US$1 trilhão, equivalente à dívida fora do orçamento, comum em todos os governos. E isso vai se repetir a cada ano fiscal.
Já dá pra perceber aonde isso vai parar. A participação do governo americano na economia vai aumentar – por meio do aumento na base monetária – caso os bancos comerciais se recusem a emprestar. E quando eles começarem a emprestar, isso se traduzirá em um aumento do M1. A oferta monetária irá aumentar a menos que o Fed aumente o compulsório.
Nesse ponto o Fed terá de decidir entre inflação ou depressão. Ele tanto pode parar de comprar títulos da dívida do Tesouro como também pode continuar comprando e ver o dólar afundar 20%, 30% ou mais por ano.
Os deflacionistas preveem a primeira situação. Eu prevejo a última. Em ambos os casos, o mercantilismo asiático finalmente irá dar de cara no muro. Suas indústrias exportadoras irão ou afundar na segunda Grande Depressão – menos encomendas e menos exportações – ou sofrer com a inflação em massa: encomendas pagas com dinheiro que não vale nada.
O mercantilismo asiático vai quebrar em algum momento dos próximos cinco anos. A julgar pela recente recusa da China em comprar mais dólares, o banco central chinês pode ter iniciado essa transição. A recente adoção do governo chinês de um maciço pacote de estímulos keynesianos indica que seus economistas perceberam que o mercantilismo é para tolos.
O keynesianismo também.
A China está apenas adiando seu tombo. Ela jamais inflacionou sua moeda tão rápido quanto agora. Ela está seguindo a mesma tendência do Ocidente. Ela não pode sair dessa sem sofrer uma depressão. Ela quer retardar essa decisão até que o aumento dos preços das commodities faça o serviço.