N. do T.: Um dos principais defeitos do sistema de saúde americano está no conluio que houve entre os seguros-saúde e o estado. Funciona assim:
O patrão é obrigado a pagar parte do seguro-saúde de seu empregado; o empregado tem de pagar a outra parte. Há pouca (ou nenhuma) liberdade de escolha em relação à seguradora a ser escolhida. Uma seguradora de um estado não pode fornecer seus serviços em outros estados. Logo, a concorrência interestadual é proibida. Tudo isso em um ambiente em que o setor médico é fortemente cartelizado pelas entidades de classe.
Ou seja, há um mercado de seguros-saúde extremamente regulado, uma oferta limitada de serviços de saúde e uma demanda crescente por esses serviços. O que isso acarretou? Discrepâncias inimagináveis. Para um simples exame de sangue, por exemplo, chegava-se a cobrar 600 dólares! Como eram as seguradoras que pagavam, os usuários não estavam nem aí. Da mesma forma, era comum as pessoas utilizarem seu seguro-saúde para pagar coisas triviais, como engessamento de braço e até mesmo injeções contra a gripe (que podiam ser vendidas no Wal-Mart por meros 20 dólares). Coisas que podiam perfeitamente ser bancadas à parte, passaram a ser pagas pelas seguradoras.
Não havia mais a disciplina imposta pelo mercado. Ninguém se preocupava com preços, afinal as seguradoras estavam pagando tudo. A consequência inevitável dessa esbórnia foi o aumento explosivo dos custos dos planos de saúde, exatamente a maior queixa dos americanos.
(Se a seguradora do seu carro passasse a pagar sua gasolina e todas as suas manutenções de rotina, o que você acha que iria acontecer com preço do seu seguro?)
Portanto, o butim ficou dividido da seguinte maneira:
1) As seguradoras auferiram lucros exorbitantes. Afinal, a concorrência era proibida e as regulamentações estatais dificultavam o surgimento de seguradoras de pequeno porte. As grandes dominaram e tiveram a liberdade de jogar seus preços na estratosfera.
2) Como podiam cobrar os preços que bem entendiam – afinal, as seguradoras pagavam tudo -, os médicos e as associações de profissionais da saúde também faturaram. Como não havia livre concorrência e não havia qualquer disciplina sobre os preços (este vídeo de seis minutos mostra que era impossível um americano pagar à parte por qualquer tipo de consulta), esse cartel medicinal enriqueceu facilmente.
3) Se as seguradoras e os médicos ganharam em um mercado regulado, então é óbvio que o consumidor médio foi quem saiu perdendo, pois tinha de arcar com preços cada vez maiores por seus seguros.
O artigo a seguir é o relato de um americano que está morando em El Salvador desde 2005. Pouca gente sabe, mas o sistema de saúde daquele país é, para qualquer padrão de comparação, bastante livre. Como ainda não houve uma cartelização dos serviços – isto é, as associações médicas, as seguradoras e o estado ainda não entraram em conluio -, há ampla liberdade de negociação entre médicos e pacientes, e uma variada oferta de serviços. Não se utiliza planos de saúde para consultas de rotina, tão baixos são os preços. Aliás, talvez seja justamente pela ausência das seguradoras nesse quesito – o que torna o mercado mais concorrencial -, que os preços sejam baixos e os planos de saúde, acessíveis.
Em El Salvador, você pode ir a uma farmácia e comprar a maioria dos remédios sem receita médica (aqui no Brasil, você não pode mais nem comprar aspirina sem ser molestado pela burocracai estatal). Como você não precisa da permissão de um médico para comprar remédio (ele pode, no máximo, apenar dar conselhos), ele perde seu poder monopolista. Uma ida ao consultório acaba sendo muito mais barata. E como os preços são determinados pelo mercado, e não pelo governo, e há uma vigorosa concorrência entre laboratórios e farmácias, os remédios são sempre acessíveis.
Apenas mais um exemplo prático de que, sempre que você quiser serviços de alta qualidade a preços baixos, em qualquer setor, é fundamental haver um livre mercado. Principalmente na essencial área da saúde.
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
Nos Estados Unidos, o atual debate sobre a reforma do sistema de saúde é uma enorme empulhação. Não há debate algum. Ambos os lados da discussão aceitam o princípio fundamental da intervenção governamental. Hoje, poucos se lembram da época em que a saúde não era um direito. E poucos percebem que, se você assume que saúde “gratuita” é um direito, você está endossando a noção de que alguns indivíduos têm poder sobre a vida e sobre a propriedade de terceiros, algo que contradiz totalmente os princípios da liberdade.
Os americanos que querem se livrar dessa extorsão fariam bem se dessem uma olhada mais ao sul, mais especificamente em El Salvador. Faz mais de meio século que o sistema de saúde nos EUA deixou de ser tratado como aquilo que deveria ser: um empreendimento como qualquer outro. Porém, em El Salvador é exatamente assim que o sistema ainda é tratado: um empreendimento. Lá, o consumidor (o paciente) encontra uma ampla gama de fornecedores para aqueles serviços que procura (médicos, laboratórios, hospitais, farmácias). Quem coordena tudo isso? Aquele sistema voluntário e mutuamente benéfico conhecido como sistema de preços de mercado.[1]
Os consultórios médicos típicos por que passei são conjuntos de dois aposentos em prédios que estão fisicamente conectados a pequenos hospitais privados. Eis o arranjo espacial que encontro no recinto do meu pediatra, do meu endocrinologista e do otorrinolaringologista: uma área de recepção/espera e outra área que serve como consultório e como sala de exames. Trata-se de um arranjo em que os custos indiretos são mantidos em níveis mínimos. Apenas duas pessoas estão envolvidas no seu atendimento: o médico e sua recepcionista. Nada de enfermeiras, nada de equipes numerosas, nada de atendimentos grupais, e nada de consultórios abarrotados de secretárias e burocratas preocupados com o preenchimento de formulários de planos de saúde. Há somente a recepcionista, que fica fora do consultório e está lá para agendar suas visitas, receber seu pagamento e lhe passar o recibo.
Uma visita de rotina custa por volta de US$ 35 [a economia de El Salvador é dolarizada], em dinheiro ou cheque. Não há qualquer menção a planos de saúde nesses serviços rotineiros. Qualquer negociação em relação a esse assunto fica estritamente entre você e seu plano de saúde. A função do médico é fornecer o serviço, receber seu pagamento e lhe dar os recibos adequados. Mais ainda: todos os médicos com quem tive de lidar em San Salvador têm seus números de celular e telefone fixo (de casa e do consultório) impressos em seus cartões pessoais.
Recentemente levei meu filho para um tratamento médico de rotina, algo que fazemos a cada três ou quatro meses. A visita ao pediatra funciona mais ou menos assim: eu ligo para o consultório e a recepcionista, que conhece a minha voz, agenda a consulta para as 6:00 PM do dia seguinte. Meu filho e eu chegamos e, por causa da hora, normalmente há apenas uma pequena espera. A recepcionista nos cumprimenta pelo nome e nos leva até o médico, que fala inglês fluente. Como em nossa última visita ele havia pedido um exame de sangue, ele passa então a analisar e comentar os resultados em grandes detalhes, gastando sem pressa todo o tempo para falar sobre como está sendo o progresso e o crescimento do meu filho.
Em seguida, ele faz um check-up completo em meu filho e anota todas as observações. Em uma visita qualquer, é comum ele ter de atender seus telefones – fixo e celular – umas três ou quatro vezes para receber atualizações sobre alguns pacientes ou para discutir vários tratamentos que ele está supervisionando. Essas chamadas raramente duram mais de um minuto ou dois. Por algum motivo, isso nunca me pareceu perturbatório. Aliás, fico impressionado com a maneira eficiente como o médico utiliza seu tempo. Quando terminada a consulta, ele escreve a receita e se despede de nós com um firme aperto de mão. De volta à recepção, pago em dinheiro, US$ 33,00, a recepcionista me entrega o recibo e vou embora.
Na farmácia ao lado – que opera em ambiente fortemente concorrencial, como falarei mais abaixo -, sou recebido com entusiasmo sincero. O farmacêutico também me cumprimenta com um aperto de mão. Todas as pessoas da farmácia estão lá para servir você, e fazem questão de deixar isso bem claro. O remédio me é entregue sem qualquer delonga e volto pra minha casa.
O mesmo pediatra que atende meu filho se transforma em médico da família, atendendo minha esposa e a mim em consultas de rotina. Em uma dessas consultas, minha esposa, que ainda estava sofrendo de uma sinusite prolongada, foi conosco. Após a consulta de meu filho, nós três fomos convidados à sala de exames. Além de meu filho, o médico também examinou minha esposa. No final, ele não cobrou pela consulta de minha esposa, e ainda lhe deu amostras-grátis suficientes para as primeiras 24 horas de uma rodada adicional de tratamento que ela estava começando.
Nesse dia, o médico, tendo lido atualizações recentes sobre a medicação de meu filho, sugeriu um eletrocardiograma e protocolou o pedido. Ato contínuo, ele fez uma ligação e disse que o cardiologista estaria pronto para nos receber em 15 minutos. Eu, obviamente, entrei naquele modo de condicionamento clássico de Pavlov: fiquei em pânico pensando em todas as complicações, burocracia, tempo e custos que esse eletrocardiograma certamente iria gerar. Porém, para minha surpresa, o consultório do cardiologista era logo no andar de cima. Minha esposa e filho foram na frente, e eu fui acertar a conta com a recepcionista do pediatra. Quando cheguei ao consultório do cardiologista dez minutos depois, eles já tinham feito tudo! Mais dez minutos e eu já tinha em minhas mãos duas cópias do eletrocardiograma. Paguei US$ 25,00 em dinheiro e fomos pra casa, não tendo gastado ao todo nem uma hora depois do horário marcado com o pediatra.
Esse mesmo padrão de eficiência, custos indiretos mínimos e relações diretas e voluntárias é seguido pelos especialistas que utilizam alta tecnologia. A sinusite de minha mulher revelou-se um problema mais sério do que o esperado, necessitando de uma cirurgia. Um otorrinolaringologista muito bem recomendado nos foi indicado, e agendamos uma consulta para já no final da semana, sem qualquer problema, sem qualquer burocracia. Chegamos a um outro hospital privado e descobrimos uma bela e muito bem equipada sala de espera, com uma única recepcionista. O consultório do médico era equipado com a última palavra em tecnologia endoscópica e de vídeo.
Após um exame completo, ele pediu uma tomografia computadorizada. Como já eram mais de 6:30 PM, ele ligou para o radiologista e pediu que o mesmo ficasse até mais tarde para terminar o procedimento. Dirigimos uma curta distância e chegamos a outra instalação incrível: uma recepcionista, um técnico em tomografia computadorizada e uma radiologista. O consultório dela tinha apenas uma máquina de tomografia, obviamente com tecnologia de ponta – e tudo isso em uma loja térrea, com vitrine, dentro de um Shopping Center a duas quadras do hospital. O processo todo custou US$ 265,00 e durou menos de uma hora. Voltamos pra casa com o diagnóstico e os filmes da tomografia em mãos. Conveniência e eficiência difíceis de imaginar na saúde americana.
Os laboratórios e as farmácias também demonstram uma diligente atenção ao serviço de atendimento ao cliente. O laboratório do qual somos clientes não está em um complexo médico, mas em um pequeno prédio comercial. Fica aberto aos sábados, algo muito prestimoso quando meu filho tem de fazer algum exame após um longo período de jejum. A recepcionista no guichê lê as prescrições fornecidas pelo médico do laboratório, olha os preços, registra o total e apresenta a conta. Nesse local, eu pago com meu cartão de débito. Na sala ao lado, um técnico coleta sangue com uma animação e jovialidade totalmente ausentes no cenário médico americano. Em uma dessas visitas, quem coletou o sangue de meu filho foi o próprio dono do laboratório, um proeminente e bem respeitado patologista de San Salvador.
Em El Salvador há inúmeras farmácias – tanto redes nacionais quanto lojas independentes – que concorrem entre si num mercado vigoroso. Por causa disso, elas têm de fornecer um atendimento de alta qualidade aos seus clientes. As farmácias rotineiramente dão destaque para os preços de seus remédios populares, sendo que a maioria deles pode ser adquirida sem receitas médicas. É normal ver duas ou três farmácias de redes concorrentes no mesmo quarteirão, algumas vezes até no mesmo prédio. Se uma delas não tiver em seus estoques o remédio que estou procurando, o atendente irá telefonar para a rede distribuidora mais próxima, o motoboy da farmácia irá até lá com minha receita, pegar meu remédio e entregá-lo na porta da minha casa. Como sempre, no mercado, a qualidade do atendimento ao cliente vem em primeiro lugar.
Excelência nos serviços, minimização dos custos indiretos, garantia de qualidade e pagamento assim que os serviços são efetuados – essas são as características distintas de um sistema de mercado. Se ao menos os pretensos aspirantes a reformistas nos EUA utilizassem a medicina de mercado de El Salvador como exemplo…
Mais sobre o assunto: Quatro medidas para melhorar o sistema de saúde
_____________________________________________
Nota
[1] El Salvador também possui um sistema de saúde estatal. Mas como não tive nenhum contato pessoal com esse lado da medicina salvadorenha, não posso oferecer nenhuma informação sobre essa área.