Thursday, November 21, 2024
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O gerenciamento do dinheiro pelo livre mercado

Este artigo foi extraído do livro “O que o governo fez com o nosso dinheiro“, futuro lançamento do IMB.

 

 

O dólar original era alemão

A unidade monetária

Na seção anterior, vimos como o dinheiro surge naturalmente no mercado.  Agora, veremos como ele pode ser produzido e gerenciado privadamente.  A primeira pergunta a ser feita é: como este dinheiro-mercadoria (no caso, ouro e prata) é utilizado?  Mais especificamente, qual é o estoque — ou a oferta — de dinheiro na sociedade e como ele é transacionado?

Em primeiro lugar, bens físicos tangíveis são comercializados em termos de sua massa ou de seu peso.  A massa é a unidade característica de uma mercadoria tangível.  Sendo assim, o comércio ocorre em termos de unidades como toneladas, libras, onças, grãos, gramas etc.[1]  O ouro não é exceção.  Como outras mercadorias, o ouro pode ser transacionado em unidades de massa.[2]

É óbvio que o tamanho da unidade comum escolhida para o comércio não faz diferença para o economista.  Um país que esteja no sistema métrico pode preferir calcular em gramas; já a Inglaterra ou os Estados Unidos podem preferir trabalhar com grãos ou onças. Todas as unidades de massa são conversíveis entre si: uma libra equivale a dezesseis onças; uma onça equivale a 437,5 grãos ou 28,35 gramas etc.

Supondo que o ouro seja escolhido como dinheiro, o tamanho da unidade de ouro utilizada no cálculo não importa.  João pode vender um casaco por uma onça de ouro nos Estados Unidos ou por 28,35 gramas na França.  Ambos os preços são idênticos.

Embora tudo isso pareça óbvio demais para ser enfatizado, a realidade é que uma enorme quantidade de miséria ao redor do mundo teria sido evitada caso as pessoas houvessem entendido completamente essas simples verdades.  Por exemplo, quase todas as pessoas pensam no dinheiro como se ele fosse uma unidade abstrata de algo que pode ser trocado por outra coisa, com cada moeda estando ligada exclusivamente a um determinado país.  Mesmo quando os países estavam no “padrão-ouro”, as pessoas continuavam pensando desta forma.  A moeda norte-americana era o “dólar”, a francesa era o “franco”, a alemã, o “marco” etc.  Todas estas moedas estavam explicitamente vinculadas ao ouro, mas todas elas eram consideradas soberanas e independentes por seus cidadãos.  Exatamente por isso foi fácil para os países “saírem do padrão-ouro”.  Mas isso não altera uma verdade: todos estes nomes de moedas eram meras denominações para unidades de massa de ouro ou prata.

A “libra esterlina” inglesa era a denominação originalmente dada a uma libra de prata.  E o dólar?  O dólar surgiu como sendo o nome dado a uma onça de prata cunhada por um conde da Boêmia chamado Schlick, no século XVI.  O conde Schlick vivia no Vale do Joachim, ou Joachimsthal em alemão.  As moedas do conde ganharam grande reputação por sua uniformidade e pureza, e passaram a ser chamadas por todos de Joachimsthalers.  Com o tempo, elas passaram a ser chamadas simplesmente de “thalers” [que significa proveniente “do vale”].  O nome “dólar” surgiu de “thaler”.

No livre mercado, portanto, os vários nomes que as unidades podem ter são simplesmente definições de unidades de massa.  Até antes de 1933, quando estávamos “no padrão-ouro”, as pessoas costumavam dizer que o “preço do ouro” estava “fixado em 20 dólares por onça de ouro”.  Mas isso era uma forma perigosamente errada de ver a moeda.  Na realidade, “o dólar” havia sido definido como sendo o nome dado a 1/20 (aproximadamente) de uma onça de ouro.  Era, portanto, errado falar em “taxas de câmbio” entre a moeda corrente de um país em relação às outras moedas de outros países.  A “libra esterlina”, na prática, não “cambiava” por cinco “dólares”.[3]  O dólar havia sido definido como 1/20 de uma onça de ouro, e a libra esterlina, na época, era simplesmente o nome dado a 1/4 de uma onça de ouro.  Logo, por simples matemática, uma libra esterlina também valia 5/20 de uma onça de ouro.  Daí o senso comum de que uma libra esterlina valia 5 dólares.

Claramente, todos estes valores e todo este emaranhado de nomenclaturas eram complicados e enganosos.  Como eles surgiram é algo que será mostrado mais adiante no capítulo sobre a interferência do governo na questão monetária.  A questão é que, em um mercado genuinamente livre, o ouro simplesmente seria transacionado diretamente em gramas, grãos ou onças, e tais denominações confusas, como dólares, francos, marcos etc., seriam supérfluas.  Por conseguinte, nesta seção, trataremos o dinheiro como sendo diretamente transacionável em termos de onças ou gramas.

É certo que o livre mercado irá escolher como sendo a unidade comum aquela grandeza do dinheiro-mercadoria que for a mais conveniente.  Se o dinheiro fosse a platina, ela provavelmente seria transacionada em termos de frações de uma onça; se o ferro fosse utilizado como dinheiro, ele seria calculado em libras ou toneladas.  Obviamente, o tamanho da unidade não faz diferença para o economista.

O formato da moeda

Se o tamanho da unidade monetária ou o seu nome fazem pouca diferença econômica, o formato do metal monetário também é igualmente irrelevante.   Dado que o metal é o dinheiro utilizado, conclui-se que a todo o estoque do metal, contanto que esteja disponível ao homem, constitui o estoque mundial de dinheiro.  Não faz muita diferença qual seja o formato em que o metal se encontra em determinado período.  Caso o ferro seja o dinheiro, então todo o ferro existente é dinheiro, esteja ele em formato de barras, de minério ou incorporado em um maquinário especializado.[4]  O ouro já foi comercializado como dinheiro na forma de pepitas, de pó em sacas, e até mesmo como jóias.  Não é de se surpreender que o ouro, ou outras metais, possa ser comercializado em vários formatos, uma vez que a característica que importa é sua massa.

É verdade, no entanto, que alguns formatos são mais convenientes do que outros.  Nos últimos séculos, ouro e prata foram fracionados em moedas metálicas para as transações de menor valor, aquelas do dia-a-dia, e em barras para as transações de maior valor.  Alguma quantidade foi transformada em jóias e outros ornamentos.  Mas isso é importante: qualquer tipo de transformação de um formato para outro custa tempo, esforço e consome vários recursos.  Realizar tal trabalho será um empreendimento como qualquer outro, e os preços por esse serviço serão estabelecidos da maneira habitual.  A maioria das pessoas concorda que é legítimo que joalheiros façam ornamentos a partir do ouro bruto, mas elas estranhamente rejeitam que o mesmo princípio seja aplicado à manufatura de moedas.  Não obstante, no livre mercado, a cunhagem é, em essência, um empreendimento como outro qualquer.

Muitas pessoas acreditavam, na época do padrão-ouro, que as moedas eram, por algum motivo, um dinheiro mais “real” do que o ouro maciço não cunhado e em estado natural (em barras, lingotes ou qualquer outro formato).  É verdade que as moedas usufruíam um ágio sobre o ouro em barra, mas isso não se devia a nenhuma misteriosa virtude embutida nas moedas.  Isso adivinha do simples fato de que era mais caro cunhar moedas a partir da barra do que fundir moedas de volta ao formato de barra.  Por causa dessa diferença, as moedas eram mais valiosas no mercado.

A cunhagem privada

A ideia de cunhagem feita por empresas privadas parece tão estranha nos dias de hoje, que vale a pena uma análise mais minuciosa.  Estamos acostumados a pensar na cunhagem de moedas como sendo uma “necessidade de soberania”.  No entanto, o mundo não mais está vinculado a uma “prerrogativa real”, e o conceito de soberania jaz não no governo, mas no povo.  Ou é o que dizem.

Como funcionaria a cunhagem privada?  Da mesma maneira que qualquer outro empreendimento, como dissemos acima.  Cada cunhador ou empresa cunhadora, ao receber clientes com lingotes de ouro, iria fundir estes lingote e produzir moedas nos tamanhos ou formatos que mais agradassem a seus consumidores.  O preço deste serviço seria estabelecido pela livre concorrência no mercado.

A objeção típica a este arranjo é que seria muito trabalhoso mensurar o peso ou avaliar a pureza do ouro em cada transação realizada.  Mas absolutamente nada impede os cunhadores privados de estamparem tais informações nas moedas, e garantirem seu peso e sua pureza.  Cunhadores privados podem garantir a qualidade de uma moeda com, no mínimo, a mesma eficácia que a Casa da Moeda estatal.  Aqueles cunhadores reconhecidos como os mais honestos ganhariam proeminência no mercado.  As pessoas utilizariam as moedas daqueles cunhadores que usufruíssem a melhor reputação pela boa qualidade de seu produto.  Meros pedaços de metal polido não seriam aceitos como moeda.  Como vimos, foi exatamente assim que o “dólar” se tornou notório e conhecido — como uma moeda de prata competitiva e de qualidade.

Os opositores da cunhagem privada dizem que as ocorrências de fraude seriam generalizadas.  No entanto, estes mesmos opositores estão dispostos a conceder ao governo o monopólio da cunhagem.  Mas, dado que eles estão dispostos a confiar no governo, então, certamente, com a cunhagem privada, elas deveriam ao menos confiar no governo para evitar ou punir as fraudes.  Normalmente se pressupõe que a prevenção ou a punição da fraude, do roubo e de outros crimes é a verdadeira justificativa para a existência de um governo.  Mas se o governo não é capaz nem de deter um criminoso quando a sua função é a de meramente fiscalizar a cunhagem privada, então qual a esperança de haver uma cunhagem confiável quando a integridade dos agentes do mercado privado é descartada em prol de um monopólio governamental de cunhagem?

Se o governo não é confiável nem para desmascarar aquele malfeitor que ocasionalmente surgiria no livre mercado de moedas, por que então deveríamos confiar no governo quando este é colocado em uma posição de total controle sobre o dinheiro, podendo depreciá-lo, adulterá-lo, falsificá-lo ou deturpá-lo com plena sanção legal para agir como o único vilão no mercado?  Da mesma forma que é uma insanidade dizer que o governo deve socializar toda a propriedade a fim de evitar que alguém roube propriedades, é também ilógico dizer que o governo deve abolir a cunhagem privada e monopolizar esta tarefa com o intuito de evitar fraudes.  O raciocínio por trás da abolição e da proibição da cunhagem privada é o mesmo daquela da socialização da propriedade privada.

Ademais, todos os empreendimentos modernos baseiam-se na garantia de padrões.  A farmácia vende um frasco de 250 mililitros de remédio; o açougueiro vende um quilo de carne.  O consumidor espera que tais medidas sejam acuradas, e elas são.  E pense nos vários milhares de produtos especializados e vitais fabricados pelas indústrias, os quais devem seguir padrões e especificações extremamente rigorosos.  O comprador de um parafuso de 12,7 milímetros (1/2 polegada) deve obter um parafuso de exatamente 12,7 centímetros, e não um de 9,5 milímetros.

E, ainda assim, não obstante todo este rigor de medidas, tais empreendimentos não faliram.  Eles não desapareceram.  São poucas as pessoas racionais que defendem que o governo tem de estatizar a indústria de maquinários como parte da sua tarefa de evitar fraude nas medidas indicadas.  A economia de mercado moderna é formada por um número infinito de transações intricadas, a maioria delas dependente de padrões de quantidade e qualidade muito precisos.  E as fraudes ocorrem em níveis mínimos, e esse mínimo, ao menos em teoria, está sujeito a ação judicial.  O mesmo ocorreria caso houvesse a cunhagem privada.  Podemos ter a certeza de que os clientes de um cunhador, bem como os concorrentes desse cunhador, estariam intensamente alertas para qualquer possibilidade de fraude no peso ou no grau de pureza de suas moedas.

Os defensores do monopólio estatal da cunhagem alegam que o dinheiro é diferente de todas as outras mercadorias porque a “Lei de Gresham” comprova que “o dinheiro ruim expulsa o dinheiro bom” de circulação.  Sendo assim, o livre mercado não é confiável para ofertar ao público um dinheiro de qualidade.  Mas essa formulação tem por base a interpretação equivocada da famosa lei de Gresham.  A lei de Gresham é válida apenas quando há um controle de preços imposto pelo governo sobre o dinheiro.  O que a lei de Gresham realmente diz é que “o dinheiro que está artificialmente sobrevalorizado pelo governo tirará de circulação o dinheiro que está artificialmente subvalorizado”.

Suponha, por exemplo, que haja várias moedas de uma onça de ouro em circulação.  Após alguns anos de intenso uso, começam a surgir desgastes em algumas dessas moedas, de modo que elas passam a pesar somente 0,9 onça.  É óbvio que, no livre mercado, essas moedas desgastadas circulariam valendo 90% do valor das moedas íntegras, de modo que o valor de face das moedas desgastadas teria de ser repudiado.[5]  No mínimo, são justamente essas moedas “ruins” que deixariam de ser utilizadas e sairiam de circulação.

Mas suponha que o governo decrete que todos os cidadãos devem tratar as moedas desgastadas da mesma maneira como tratam as íntegras, e que todos devem aceitá-las igualmente, ao seu valor de face, em suas transações diárias.  O que o governo fez neste caso?  Impôs um controle de preços coercivo sobre a “taxa de câmbio” entre os dois tipos de moeda.  Ao insistir na paridade em vez de permitir que as moedas desgastadas fossem transacionadas a um valor nominal 10% menor, o governo sobrevalorizou artificialmente as moedas desgastadas e subvalorizou as moedas novas.  Consequentemente, todos os cidadãos tenderão a utilizar apenas as moedas desgastadas, e entesourarão (ou exportarão) as novas.  Portanto, não é no livre mercado que “o dinheiro ruim expulsa o dinheiro bom”, mas sim como resultado direto da intervenção governamental no mercado.

Não obstante o infindável assédio dos governos sobre esta atividade, algo que tornou as condições altamente precárias, as moedas privadas ainda assim conseguiram prosperar em vários momentos da história.  Em conformidade com a lei que diz que todas as inovações surgem de indivíduos livres e não do estado, as primeiras moedas foram cunhadas por cidadãos privados e ourives.   Com efeito, quando o governo começou a monopolizar a cunhagem, as moedas da realeza traziam as garantias de banqueiros privados, os quais, aparentemente, usufruíam muito mais confiança aos olhos do público do que o governo.  Moedas de ouro cunhadas privadamente circularam na Califórnia até 1848.[6]

 

Veja também:

Como seria a produção de dinheiro no livre mercado 

 


[1] Mesmo aqueles bens que são nominalmente comercializados em termos de volume (fardo, alqueire, etc.) assumem de maneira tácita um padrão de peso por unidade volumétrica.

[2] Uma das virtudes cardeais do ouro como dinheiro é a sua homogeneidade — ao contrário de muitas outras mercadorias, o ouro não possui diferenças em sua qualidade. Uma onça de ouro puro é igual a qualquer outra onça de ouro puro ao redor do mundo.

[3] Na verdade, a libra esterlina era por definição igual a US$4.87, mas estamos utilizando US$5 por uma questão de conveniência nos cálculos.

[4] Enxadas de ferro foram extensamente utilizadas como dinheiro tanto na Ásia quanto na África.

[5] Para lidar com o problema do desgaste, os cunhadores privados poderiam ou estabelecer um tempo limite de garantia do peso estampado em sua face ou concordar em cunhar novamente, seja no peso original ou em um mais baixo. Podemos notar que, em uma economia livre, não haverá aquela padronização compulsória das moedas que predomina quando um monopólio estatal controla o processo de cunhagem.

[6] Para exemplos históricos de cunhagem privada, ver B.W. Barnard. “The Use of Private Tokens for Money in the United States”, Quarterly Journal of Economics (1916-17), p. 617-26; Charles A, Conant, The Principles of Money and Banking, Nova York: Harper Bros, 1905, vol. I, p. 127-32; Lysander Spooner, A Letter to Grover Cleveland, Boston: B. R. Tucker, 1886, p.79; e J. Laurence Laughlin, A New Exposition of Money, Credit and Prices, Chicago: University of Chicago Press, 1931, vol. I, p. 47-51. Sobre cunhagem, ver também Ludwig von Mises, Theory of Money and Credit, p. 65-67; e Edwin Cannan, Money, 8th Edition, Londres: Staples Press, 1935, p. 33ss.

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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