InícioArtigosO exator impostor (ou: o publicano insano)

O exator impostor (ou: o publicano insano)

tributacaoNaquele tempo — e faz muito, muito tempo! —, os publicanos — os cobradores de tributos — já eram mal vistos e pareciam insaciáveis aos olhos do povo, em sua sanha de avançar sobre os bolsos e as bolsas dos cidadãos. Mas — como diria o presidente do Brasil — “nunca na história deste mundo” seu furor arrecadador chegou sequer perto daquilo que se vem observando nos últimos tempos, em praticamente todo o planeta. A diferença é que, no passado, os publicanos ou exatores eram mal vistos pelos cidadãos, enquanto, nos tempos atuais, poucos são os que se dão conta de que quando o Estado cobra um real de tributo isso significa que haverá menos um real em posse de quem, mediante esforço, trabalho e suor, gerou a produção equivalente a esse real.  Em outras palavras, os pagadores atuais — eufemisticamente designados de “contribuintes” — são muito mais conformados do que seus antepassados, aceitando passivamente a exploração tributária de que são vítimas. Muitos acreditam piamente que, ao pagarem seus impostos, taxas e contribuições, estão de alguma forma contribuindo para o bem comum, quando, na verdade, os recursos que lhes são subtraídos pelos exatores de plantão se destinam a manter estruturas de Estado paquidérmicas, ineficientes e, muitas vezes, corruptas. Podemos afirmar que o Estado moderno é um exator impostor, porque pratica uma impostura, um embuste — sem dúvida um ato profundamente imoral —, o de arrecadar segundo promessas eleitoreiras e utilizar os recursos arrecadados segundo critérios meramente políticos, sem compromisso maior para com o bem comum. E, ao mesmo tempo, é um publicano insano, ou seja, custoso, que é o sentido figurado que os dicionários dão a esse adjetivo, porque cobra muito, a um custo muito elevado, e oferece bem pouco em termos de proporcionar boas instituições e bons serviços públicos.

Para justificar o logro tributário, vale-se invariavelmente dos surrados argumentos de que ao Estado caberia a “indução” do desenvolvimento da economia e da sociedade, a “distribuição” da renda e da riqueza e a geração de empregos a três por dois, sob o manto visto como moralmente inatacável do keynesianismo e, em alguns países onde é mais fácil espargir tolices, do socialismo… A verdade é que tanto um quanto o outro — keynesianismo e socialismo — são doutrinas imorais, o primeiro porque enaltece a gastança e condena a poupança e o segundo porque promete distribuir resultados sem exigir esforços. E ambos impõem ônus às gerações futuras, em termos de financiamento dos gastos públicos.

Vou limitar-me apenas à embustice tributária no Brasil e na América Latina. Os gráficos seguintes, elaborados a partir de dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), são, a meu ver, bastante eloquentes no que diz respeito ao desvario arrecadador do Estado.

No primeiro, podemos observar o crescimento da carga tributária como proporção do PIB no Brasil e em outros dezenove países da América Latina, nas duas últimas décadas (a rigor, entre 1990 e 2008). Como se vê, nós e nossos hermanos estejamos sendo obrigados a trabalhar cada vez mais dias por ano para sustentar os elefantes estatais. Os retângulos azuis representam o ano de 1990, os vermelhos o ano de 2000 e os verdes referem-se ao de 2008. Podemos notar a tendência clara de um crescimento da carga tributária em praticamente todos os países examinados, sendo que no Brasil o Estado exator vem sendo, de longe, o mais voraz.

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No gráfico abaixo, comparamos, no mesmo período, a carga tributária como percentual do PIB do Brasil com a média dos demais países da América Latina. Os dados dispensam comentários. E são desalentadores para todos os  brasileiros que acreditam no valor do trabalho, que possuem noções de Economia e que são dotados de bons princípios morais.

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Em seguida, outra constatação: a de que, governo após governo, os publicanos tupiniquins vêm avançando sobre nossos bolsos com sanha cada vez maior. A única queda na relação arrecadação/PIB deu-se depois que a economia conseguiu sobreviver ao primeiro dos planos do governo Collor, aquele que, sob o comando do então “caçador de marajás” e daquela senhora que ocupava a pasta da Economia, sequestrou cerca de 80% de toda a poupança financeira. Mas, logo em seguida, ainda antes do impeachment, ela voltou a aumentar sem cessar.

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A carga tributária média em cada um dos governos do Brasil, de 1986 até 2008, vem aumentando sistematicamente, como atestam os dados abaixo:

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Onde vamos parar? É uma pergunta de difícil resposta. O elefante tem engordado bastante ao longo do atual governo e, para sustentá-lo, será preciso alimentá-lo com cada vez mais comida.

Já os dois gráficos seguintes ilustram o mesmo fenômeno, que é o fato de que somos uma república federativa apenas no nome, porque a concentração das receitas nas mãos da União, em detrimento dos estados e, principalmente, dos municípios, é descomunal. Isso atesta que o Brasil possui um modelo centralizador, que confere poder excessivo aos burocratas de Brasília e a seus aliados de ocasião.

Com efeito, estados e municípios parecem condenados a viver de pires na mão, implorando por migalhas na capital federal. Além de ineficiente, essa concentração é um convite permanente à cooptação e, o que é pior, à corrupção. As vantagens do princípio da subsidiariedade em termos de eficiência e respeito a princípios morais, com o modelo concentrador que prevalece em nosso país, são, infelizmente, deixadas de lado.

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A carga tributária federal como percentual do PIB saltou de 16,7% em 1986 para 24,4% em 2009 e a carga tributária total pulou, no mesmo período, de 22,4% do PIB para 35%.

Mas, apesar da predominância absoluta das receitas federais sobre as demais, os exatores estaduais e municipais têm se esforçado — justiça lhes seja feita! — para arrancar cada vez mais recursos dos exauridos “contribuintes”. Basta notarmos, na tabela abaixo, que as participações dos estados e municípios no total da receita tributária, que eram, respectivamente, de 5,1% e 0,6% do PIB em 1986, passaram, em 2009, para 9,1% do PIB e 1,6% do PIB. É uma autêntica batalha entre as três esferas de governo, para ver quem consegue o prêmio de “publicano mais cruel”…

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As conclusões de tudo isso são óbvias, embora a imensa maioria de brasileiros, latino-americanos, europeus e asiáticos nem desconfiem do que está se passando. Comportam-se como a famosa “mulher do malandro” que, segundo a crença popular, “gosta de apanhar”…

A primeira conclusão é que todos esses números nos remetem ao conhecido “Paradoxo de Bell”, o de que “o Estado moderno tornou-se grande demais para resolver os pequenos problemas e pequeno demais para resolver os grandes problemas”. Basta atentarmos para as condições de putrefação dos sistemas de saúde, de educação, de segurança, de infraestrutura, de justiça e de previdência (setores em que normalmente a presença do Estado costuma ser aceita) no Brasil para termos certeza dessa afirmativa feita pelo sociólogo americano Daniel Bell, diretor da Fundação Suntory e pesquisador residente da American Academy of Arts and Sciences, um pensador muito influente durante as décadas de 1960 e 1970, principalmente por sua tese do fim das ideologias.

A segunda é que o fenômeno não é estritamente brasileiro nem, tampouco, latino-americano: é mundial, haja vista o que está ocorrendo na Europa atualmente, com os governos de diversos países reconhecendo a falência do “Estado do Bem-Estar” de inspiração social-democrata e promovendo fortes apertos nas finanças públicas. Na Ásia e nos Estados Unidos (apesar do presidente Obama ainda estar longe de tê-lo diagnosticado) o fenômeno também está presente.

A terceira reflete como os comandantes do exército de exatores e publicanos enxergam de maneira errônea a questão das contas públicas: o presidente do Brasil, recentemente, declarou, com aquele ar de superioridade intelectual que lhe é peculiar e que tanto encanta o homem-massa de Ortega y Gasset, que “o Estado que cobra pouco não pode ser forte”… Sua assertiva não é de causar espanto, o que assusta são algumas reações comuns a esse tipo de visão, que podem ser frequentemente detectadas na mídia e também, paradoxalmente, entre muitos dos que se consideram defensores do livre mercado. Uma delas é a atitude de cordeirinhos mansos — ou será de luta para manutenção de privilégios por parte de sindicalistas, de “movimentos sociais” e de outros beneficiários do sistema atual? — que pode ser facilmente identificada em muitos leitores nas seções de cartas dos jornais, apoiando a parvoíce presidencial. Alguns, inclusive, chegam a afirmar que a carga tributária brasileira é baixa… Paciência, cada um pode pensar e dizer o que bem entende… Mas, também, ninguém tem qualquer obrigação de calar-se diante de asneiras.

A quarta conclusão é mais sutil e grave. São aqueles argumentos do tipo “pagaríamos de bom grado os altos tributos se os serviços públicos fossem eficientes”, ou “temos uma carga de impostos do primeiro mundo e serviços de terceiro mundo”. Ora, quem assim pensa está aceitando, implicitamente, que devemos continuar a trabalhar até o final de maio para sustentar o elefante estatal, que o Estado — se assim o desejar e por alguma mágica — pode ser eficiente e eficaz e que ele é mais capaz de saber o que é melhor para os cidadãos do que os próprios cidadãos. É preciso cuidado com essa linha de argumentação, porque é perigosa. Aceita a servidão do indivíduo ao Estado. Choca-se com uma sociedade de pessoas livres, com o princípio da subsidiariedade (no caso brasileiro) e com a própria dignidade da pessoa humana.  Argumentos desse tipo precisam ser desarmados.

Qualquer forma de servidão é inaceitável! Precisamos enjaular dentro de limites estritos o Estado exator impostor, o publicano insano que nos obriga a trabalhar como se vivêssemos em um regime de trabalhos forçados. Do jeito que estão caminhando as coisas, o Estado vem funcionando apenas para se servir de nós — os pagadores de tributos — e não para nos servir bem naquilo que dele se espera.

Definitivamente, o Estado não é nosso senhor; ele é nosso servo e precisamos fazê-lo compreender essa sua verdadeira natureza. Em sociedades como a nossa, em que os cidadãos aprenderam a esperar do Estado muito mais do que ele deve e do que pode oferecer, essa tarefa é difícil. Mas precisa ser pacientemente executada, para o bem das futuras gerações.

Na conhecida parábola evangélica do fariseu e do publicano, relatada em Lucas, 18.10-14, “dois homens sobem ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador! Ao que Jesus observou: “Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele”.

Porém, no que se refere à exploração tributária que o publicano nos tem imposto, sou mais pela justificação do “fariseu”, ou seja, do contribuinte que é obrigado a jejuar porque o Estado lhe rouba os recursos que usaria para comprar alimentos e que, muitas vezes, é obrigado a orar para que possa cumprir com suas obrigações tributárias sem ser carimbado como “sonegador”. Porque o publicano de nossos dias, além de não reconhecer que é imoral extrair tributos compulsoriamente de quem não pode pagá-los; utilizar as receitas arrecadadas sem ter em vista o objetivo de servir à população; prejudicar enormemente a economia, sufocando a livre iniciativa; impor custos sobre as futuras gerações em termos de dívida interna; e apoderar-se do que não lhe pertence, ainda se apresenta com a arrogância do fariseu da parábola.

A esperança é que a falência do “Estado do Bem Estar”, vale dizer, da social-democracia, desencadeie um processo salutar de enxugamento do Estado, que deverá começar pela Europa e se espalhe pela Ásia e pelos Estados Unidos, porque nenhuma sociedade, por mais forte que seja a sua economia, pode resistir permanentemente à má alocação de recursos produtivos. E, em algum dia no futuro, chegue à América Latina e, em particular, ao Brasil.

Quem sabe, com isso, a ética do trabalho volte a prevalecer e se decrete — afinal, sonhar é bom e é de graça — o fim do exator impostor? Impostor e predador!

Ubiratan Jorge Iorio
Ubiratan Jorge Iorio
Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.
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