Ciclos de crédito (especialmente num regime de reserva fracionária) praticamente determinam o ciclo econômico. Sem exageros retóricos, o ciclo econômico é o ciclo de crédito. Não há, praticamente, contestação de tal idéia entre os economistas austríacos. Se tanto, por que os empreendedores não se antecipariam ao auge da expansão do ciclo econômico, a um ambiente mais difícil à frente? Por que os empreendedores, sabendo dos efeitos deletérios de uma expansão desenfreada de crédito, não se preparariam, se antecipando aos possíveis efeitos negativos de uma recessão que inexoravelmente sucederia uma forte expansão (boom and bust)?
Com algum grau de informação sobre a evolução do processo de criação de crédito de uma economia, um empreendedor poderia se perguntar: será que isso não é insustentável? Mesmo com uma demanda forte por seus produtos, esse “estado das coisas” pode não se perpetuar e, pior, mudar abruptamente. Conforme a agressividade dos planos de investimento, não é difícil vislumbrar o fim da história numa mudança repentina das condições. De novo, por que com essas informações e “conhecimento” os empreendedores não reagem?
Porque há um problema com o utilização desse “conhecimento”, que não é dado a ninguém em sua totalidade. Conforme nos mostrou Hayek no magistral livro Individualism and Economic Order:
O problema econômico da sociedade, portanto, não é meramente um problema de como alocar “dados” recursos — se por “dados” entendermos algo que esteja disponível a uma única mente que possa deliberadamente resolver o problema com base nessas informações. Ao invés disso, o problema é de como garantir que qualquer membro da sociedade fará o melhor uso dos recursos conhecidos, para fins cuja importância relativa apenas estes indivíduos conhecem. Ou, para dizê-lo sucintamente, o problema é o da utilização de um conhecimento que não está disponível a ninguém em sua totalidade.
Nossa observação sobre essa passagem é muito atual, pois estamos observando um conjunto de sinais de revigorado entusiasmo empresarial em vários cantos do mundo. Há um contingente de analistas com um grande entusiasmo com o desempenho das companhias americanas, com essas mesmas companhias começando e investir novamente de maneira mais forte. Isso acaba por irradiar “otimismo” para o resto do mundo (o que é de fato irradiado é a liquidez criada pelo Federal Reserve…).
Não é um fenômeno americano apenas. Novos investimentos no setor de mineração pipocam pelo mundo. No setor de petróleo, áreas antes pouco atrativas para novos investimentos (África) estão no radar das principais companhias. No Brasil, o tema pré-sal tem suas virtudes (a maior descoberta de petróleo desde 1965), mas é difícil deixar de refletir sobre o aspecto circunstancial de todo esse processo diante de cenário de preços do barril a mais de US$100 em boa parte do tempo nos últimos anos. Ao mesmo tempo, para complicar a análise, estamos falando literalmente de um “mar” de petróleo com mais de 80 bilhões de barris numa região que, apesar de grande, tem uma delimitação definida. Anedoticamente, mas ainda relevantemente, a Escócia inaugurou sua primeira nova destilaria de uísque depois de 30 anos! O Brasil não escapa desse processo todo. O empreendedor genuíno continua a ver uma demanda muito forte, com boas perspectivas que se estenderão para o futuro, etc. Os temas de investimento com grande apelo (Copa do Mundo 2014, Olimpíadas 2016, exploração do pré-sal acima referida, infraestrutura, etc.) somente adicionam entusiasmo ao processo acima mencionado.
Como a própria passagem citada salienta, não há como o empreendedor saber distinguir o que é demanda genuína e o que é uma demanda “nominal”, artificial e, em última instância, insustentável. O empreendedor que se arriscasse a diferenciar o que é uma coisa e outra estaria entrando na categoria de “empreendedor-economista”. Esse último seria, na mais pura definição de empreendedorismo, o indivíduo que estaria apto a fazer o cálculo econômico diante de uma avaliação de um investimento. A avaliação de lucros e perdas de um empreendimento, sob uma ótica decorrente do perfil pessoal deste empreendedor tendo em vista os riscos que pode correr, seu conhecimento do mercado, dos desdobramentos possíveis, etc. é nada mais do que a definição, par excellence, de empreendedorismo.
Nesse particular aspecto, o que estaria envolvido seriam as chances de um ambiente ser um ciclo de crédito insustentável ou um boom setorial (levado por condições tecnológicas, por exemplo). Talvez seja um pouco desapontador para muitos, mas os economistas estão bastante despreparados para exercer a função de “empreendedor-economista”. Talvez essa função não possa sequer existir ou fazer sentido. O empreendedor empreende. O economista analisa. Ao analisar, o empreendedor deixaria de empreender. O economista não está apto a empreender, pois não teria capitais seus envolvidos e, portanto, estaria incapacitado de fazer o cálculo econômico[*].
De outro lado, o empreendedor não é, não foi talhado a ser, nem deve ter a presunção de assumir o papel de “empreendedor-economista”. Se isso não é possível, o que acontece é a inviabilidade da distinção do ciclo artificial de crédito de uma genuína e durável elevação da demanda. Mesmo um economista versado no conhecimento dos efeitos sobre o ciclo econômico dos ciclos de crédito, estaria numa situação em que nem sempre é fácil avaliar o que está acontecendo. Talvez, de maneira mais importante, o timing, o exato tempo em que a intrínseca insustentabilidade se manifestará, é o nome do jogo. No mercado financeiro isso é de extrema verdade: mesmo a “certeza” de evolução de uma determinada situação entre dois pontos, nada garante o conhecimento sobre a trajetória entre eles. Apostas muito bem fundamentadas são abandonadas (por força de um controle de risco, “stop loss“, ou outro mecanismo qualquer).
O empreendedor vê a demanda. Ele sente a demanda. E calcula o que deve fazer para que incrementos de demanda se tornem algo lucrativo. Por mais que possamos esperar que o empreendedor escute o empreendedor-economista, isso jamais vai fazer com que se torne um. Nem o empreendedor deveria se arriscar a depender de um economista, pois de alguma forma estaria abdicando de executar o seu mais importante papel que é o de avaliar os potenciais de perdas e lucros (com o seu capital em risco). Essa avaliação, enquanto categoria praxeológica, não é passível de ser transferida. O conjunto de elementos que compõem o quadro de decisão do empreendedor está com ele e apenas com ele, tais como o capital envolvido, a reputação inclusive para levantar novos capitais, a análise da distribuição de riscos, etc.
Esse problema, a incapacidade do empreendedor em fazer distinções, gerou um debate entre os economistas austríacos, o qual sem dúvida levou, por consequência, a uma melhor compreensão dos próprios ciclos econômicos no sentido de salientar seus aspectos indesejados. Há limites, como vimos, mas cremos que o conhecimento desse processo pode ajudar a prevenir alguns excessos. Num ambiente com algum conjunto de evidências apontando para os excessos financeiros que mencionamos, um empreendedor, sabendo que é o seu dinheiro que está em jogo, sua reputação e às vezes até a continuidade de todos seus negócios, no mínimo deve agir com conservadorismo. Quanto mais prolongados os ciclos, quanto mais extremas algumas de suas manifestações (principalmente nos preços dos ativos), e, ainda que maneira redundante, quanto mais forte seja o crescimento do crédito, mais cautela se faz necessária.
Usamos quase que indistintamente as expressões “ciclo de crédito” e “ciclo econômico”. Os leitores, acostumados às análises de Mises e Hayek, verão que, de fato, essas expressões são equivalentes. De novo, o ciclo econômico é o ciclo de crédito. Há necessidade de uma boa compreensão teórica para entender como essas duas expressões se equivalem. Mas não há tanta necessidade de conhecimento teórico para compreender as manifestações dos ciclos. Quase sempre, nas fases mais exacerbadas dos ciclos, e quase sempre antecedendo o que denominamos crises financeiras, encontramos economias com um (1) forte crescimento dos investimentos em capital fixo, (2) forte apreciação dos preços de ativos (ações e imóveis) e (3) forte crescimento do crédito.
Isso nos relembra como é difícil a decisão do empreendedor: vendo todas essas manifestações, como ficar “pessimista” e cauteloso? Como ver o preço das ações de sua companhia (no caso de uma companhia listada) numa escalada sem se entusiasmar? Como diferenciar um processo em que a explosão dos preços das ações esteja acontecendo por razões essencialmente ligadas à companhia (investimentos, mudanças e conquistas tecnológica ou outra vantagem competitiva, etc.) de um processo geral comum a todos — uma “bolha” setorial ou não? Dado os efeitos que a rápida expansão dos investimentos em capital fixo pode produzir (incluindo o aumento de produtividade medida por produção por trabalhador), o empreendedor teria ainda mais dificuldades de distinguir dois processos diferentes. O que fazer, então?
Não há boa resposta prática diante desses dilemas. Porém, ter o conhecimento das possibilidades é de enorme ajuda. Principalmente diante do que estamos vendo nos EUA nesse início de 2011. Todo esforço para superar a crise de 2008-2009 (a Grande Recessão) foi baseado em enorme expansão monetária e um grande afrouxamento fiscal. Políticas monetárias e fiscais expansionistas são nomes que podem confundir: conceitualmente os EUA “curaram” o problema de excesso de endividamento (a razão última pela crise) com mais dívida. Conceitualmente não nos parece que isso possa levar a soluções genuínas para a crise.
Voltando ao empreendedor, somente ele pode avaliar quanto o mercado pode se retrair e ele, o empreendedor, ainda ficar em boas condições e solvente. No fundo, um bom empreendedor não poderia nunca deixar de pensar que a demanda final por seus produtos pode se reduzir em dezenas de ponto percentual. Sob quais condições, com a materialização do cenário adverso, ainda valeria a pena investir (lembrando sempre o papel da avaliação subjetiva)?
A lição principal do que foi exposto aqui talvez seja a ênfase nos efeitos deletérios de ciclos exacerbados de crédito, a amplificação da amplitude desses mesmos ciclos e o papel insubstituível do empreendedor. Entre outros muitos obstáculos que o empreendedor tem de transpor, ainda há esse de evitar uma demanda ilusória (que talvez possa não ser!). Sobretudo, deve ficar a lição que, mesmo gerando “erros”, o processo de alocação de recursos no livre mercado sob o comando da figura do empreendedor é o mais eficiente dos sistemas. Não é perfeito, mas é o melhor.
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[*] Como nos foi salientado por Denis Blum, o empreendedor na figura de proprietário ou administrador de um grande banco ou grande empresa “grandes demais para falir” não teria uma correta estrutura de incentivos e um conjunto de vetores adequado, dado pela posse do capital, para agir de acordo com as circunstâncias. Claramente, os diversos socorros financeiros, com dinheiro do contribuinte americano distorceram a ação empreendedorial.
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