InícioUncategorizedO Caminho da Servidão

O Caminho da Servidão

CAPÍTULO 11 – O FIM DA VERDADE

É significativo que em todos os países a estatização do pensamento tenha sempre caminhado pari passu com a estatização da indústria. – E. H. Carr

O modo mais eficaz de fazer com que todos sirvam ao sistema único de objetivos visado pelo plano social é fazer com que todos acreditem nesses objetivos. Para que um sistema totalitário funcione com eficiência, não basta que todos sejam obrigados a trabalhar para os mesmos fins: é essencial que o povo passe a considerá-los seus fins pessoais. Embora seja necessário escolher as ideias e impô-las ao povo, elas devem converter-se nas ideias do povo, num credo aceito por todos que leve os indivíduos, tanto quanto possível, a agir espontaneamente do modo desejado pelo planejador. Se o sentimento de opressão nos países totalitários é, em geral, bem menos agudo do que muitos imaginam nos países liberais, é porque os governos totalitários conseguem em grande parte fazer o povo pensar como eles querem.

Isso, evidentemente, é realizado pelas várias formas de propaganda. Sua técnica já se tornou tão conhecida que não é necessário estender-nos muito a respeito. O único ponto a salientar é que nem a propaganda em si nem as técnicas empregadas são peculiares ao totalitarismo. O que altera de forma tão abrangente sua natureza e efeitos num estado totalitário é o fato de que a propaganda visa a um único alvo: todos os instrumentos de propaganda são coordenados de modo a conduzir os indivíduos na mesma direção e a produzir a característica Gleichschaltung (N. do R. Literalmente, “padronização”) de todas as mentes. Como resultado, o efeito da propaganda nos países totalitários difere, não só na magnitude mas também na espécie, do efeito alcançado pela propaganda de agências independentes e competitivas que visam a finalidades diversas. Quando todas as fontes de informação corrente se acham sob um controle efetivo único, já não se tem apenas uma situação em que se tenta persuadir o povo disto ou daquilo. O hábil disseminador de propaganda terá então o poder de manipular as mentes da forma que lhe aprouver, e mesmo as pessoas mais sagazes e independentes não poderão evitar de todo essa influência, se permanecerem por muito tempo isoladas das demais fontes de informação.

Embora, num estado totalitário, a posição ocupada pela propaganda confira a este instrumento um poder incomparável sobre as mentes, os efeitos morais peculiares que ela produz não decorrem da técnica mas do objetivo e da amplitude da propaganda totalitária. Se esta se limitasse a doutrinar o povo no sistema completo de valores para o qual é dirigido o esforço social, representaria apenas uma manifestação específica das características da moral coletivista que já analisamos. Caso seu objetivo fosse unicamente ensinar ao povo um código moral definido e abrangente, o problema se restringiria a determinar se esse código é bom ou mau. Já vimos quão pouco nos atrai o código moral de uma sociedade totalitária, e que a tentativa de estabelecer a igualdade por meio de uma economia dirigida só pode produzir uma desigualdade oficialmente imposta – a determinação autoritária do status de cada indivíduo na nova ordem hierárquica. Vimos também que a maioria dos elementos humanitários da nossa moral – o respeito pela vida humana, pelos fracos e pelo indivíduo em geral – tenderão a desaparecer. Por mais repulsivo que isso pareça à maioria das pessoas, e embora implique uma mudança de padrões morais, não é, necessariamente, de todo antimoral. Certos aspectos de tal sistema podem mesmo atrair os mais rígidos moralistas de índole conservadora por lhes parecerem preferíveis aos padrões mais brandos da sociedade liberal.

As consequências morais da propaganda totalitária que passaremos a considerar são, no entanto, de uma natureza ainda mais profunda. Elas destroem todas as regras morais, porque minam um dos fundamentos de toda a ética: o senso da verdade e o respeito a ela. Pela própria natureza da sua função, a propaganda totalitária não se pode limitar a valores, a questões de opinião e de convicção moral em que o indivíduo sempre se conforma mais ou menos às ideias que imperam em sua comunidade; ela tem de estender-se a questões de fato, em que a inteligência humana está envolvida de modo diferente. Isso acontece, em primeiro lugar, porque, para levar as pessoas a aceitar os valores oficiais, a autoridade tem de justificá-los, ou de mostrar que eles se relacionam com os valores já aceitos pelo povo, os quais habitualmente encerram asserções sobre elos causais entre meios e fins; em segundo lugar, porque a distinção entre fins e meios, entre a meta visada e as medidas adotadas para alcançá-la, na realidade nunca é tão clara e precisa como o faz supor uma discussão superficial de tais problemas. Assim sendo, é necessário fazer com que as pessoas concordem não apenas com as finalidades últimas mas também com as ideias sobre os fatos e as possibilidades em que se baseiam as medidas específicas.

Já vimos que o consenso em torno desse código moral completo, desse sistema exaustivo de valores que se acha implícito num plano econômico, não existe numa sociedade livre: seria preciso criá-lo. Mas não devemos supor que, ao abordar a sua tarefa, o planejador teria consciência dessa necessidade ou que, mesmo dela consciente, lhe fosse possível criar de antemão um código tão vasto. Ele só descobrirá os conflitos entre as diferentes necessidades à medida que for avançando, e terá de tomar suas decisões à proporção que a isso o obrigarem as circunstâncias. Não existe um código de valores in abstracto a orientar suas decisões antes que estas tenham de ser tomadas. Esse código terá de ser criado com base nas decisões concretas. Já vimos também como essa impossibilidade de separar das decisões concretas a questão geral dos valores impede que um órgão democrático, não estando em condições de decidir os detalhes técnicos de um plano, consiga determinar os valores que o orientam.

E, embora caiba à autoridade planejadora decidir constantemente sobre questões de mérito em que não existem regras morais definidas, ela se verá obrigada a justificar tais decisões perante o povo – ou, pelo menos, a levar de algum modo o povo a acreditar serem essas as decisões justas. Mesmo que os responsáveis por uma decisão se tenham guiado por simples preconceito, terão de apresentá-la ao público como sendo baseada em algum princípio orientador, para que a comunidade não se limite a submeter-se de modo passivo mas apoie ativamente a medida. A necessidade de encontrar um pretexto para justificar as preferências e antipatias que, à falta de outra coisa, muitas vezes orientam as decisões do planejador, e a necessidade de ampla aprovação possível – tudo isso o obrigará a inventar teorias, isto é, explicações que estabeleçam relação entre os fatos, os quais então passam a integrar a doutrina dominante.

Esse processo de criação de “mitos” para justificar os atos do líder totalitário nem sempre é consciente. Pode acontecer que o líder sinta apenas um desagrado instintivo para com a situação que encontrou e o desejo de criar uma nova ordem hierárquica, mais apropriada à sua concepção de mérito. Talvez ele saiba apenas que tem aversão aos judeus, os quais pareciam tão bem-sucedidos numa ordem social onde não havia lugar satisfatório para ele, e que tem simpatia e admiração pelo homem alto e louro, pela figura “aristocrática” dos romances de sua juventude. Desse modo, estará pronto a adotar teorias que parecem fornecer uma justificação racional aos preconceitos que compartilha com muitos de seus companheiros. E assim uma teoria pseudocientífica é incorporada à ideologia oficial que, em maior ou menor grau, dirige as ações de todos. Ou então, o generalizado descontentamento com a civilização industrial e o anseio romântico da vida campestre. aliados à ideia (provavelmente errônea) do valor peculiar dos camponeses como soldados, fornecem a base de outro mito:Blut und Boden (“Sangue e solo”), o qual não só expressa valores supremos mas uma multiplicidade de crenças a respeito de relações de causa e efeito, crenças que, convertidas nos ideais que orientam a atividade de toda a comunidade, não devem mais ser contestadas.

A necessidade de semelhantes doutrinas oficiais, como instrumento para dirigir e congregar os esforços do povo, foi claramente prevista pelos diferentes teóricos do sistema totalitário. As “nobres mentiras” de Platão e os “mitos” de Sorel atendem ao mesmo objetivo da doutrina racial dos nazistas ou da teoria do estado corporativo de Mussolini. Todos eles baseiam-se necessariamente em pontos de vista pessoais sobre fatos, elaborados e transformados depois em teorias científicas, de modo a justificar uma opinião preconcebida.

O meio mais eficaz de fazer com que as pessoas aceitem os valores aos quais terão de servir é persuadi-las de que tais valores são na realidade os mesmos que elas, ou pelo menos as mais esclarecidas entre elas, sempre defenderam, mas que antes não eram devidamente compreendidos ou apreciados. Leva-se o povo a abandonar os velhos deuses pelos novos, sob pretexto de que estes são de fato como por instinto supunham que fossem, embora até o momento só o percebessem de maneira vaga. E a técnica mais eficiente para a consecução desse fim é continuar a usar as velhas palavras, alterando-lhes, porém, o sentido. Poucos aspectos dos regimes totalitários despertam tanta confusão no observador superficial e são, ao mesmo tempo, tão característicos do clima intelectual desses sistemas, como a completa perversão da linguagem, a mudança de sentido das palavras que expressam os ideais dos novos regimes.

Nesse contexto, a palavra mais deturpada é, evidentemente, “liberdade”, um termo tão usado nos estados totalitários como em qualquer outro lugar. Pode-se mesmo dizer que, sempre que a liberdade que conhecemos foi aniquilada, isso se fez em nome de uma nova liberdade prometida ao povo. Tal constatação deve ajudar-nos a nos precaver contra as promessas deNovas liberdades em troca das antigas.1

Mesmo entre nós existem “planejadores da liberdade” que prometem uma “liberdade coletiva” cuja natureza é possível inferir do fato de os seus defensores acharem necessário assegurar-nos de que, “naturalmente, o advento da liberdade planejada não significa que todas [sic] as formas mais antigas de liberdade devam ser abolidas”. Pelo menos, o dr. Karl Mannheim, de cuja obra2 extraímos estas citações, nos previne de que “uma concepção de liberdade moldada segundo a época precedente é um obstáculo à verdadeira compreensão do problema”. O sentido que ele empresta à palavra “liberdade” é, porém, tão enganoso como o que lhe dão os políticos totalitários. Como a liberdade a que estes se referem, a “liberdade coletiva” que o dr. Mannheim nos oferece não é a dos membros da comunidade; é a liberdade ilimitada do planejador de manipular a sociedade da forma que lhe apraz.3 Significa, de fato, a confusão entre liberdade e poder, levada ao extremo. Nesse caso particular, a deturpação do sentido da palavra foi, naturalmente, favorecida por uma longa série de filósofos alemães e, o que não é menos importante, por muitos teóricos do socialismo. Entretanto, “liberdade” não é em absoluto a única palavra cujo sentido se inverteu a fim de torná-la instrumento da propaganda totalitária. Já vimos que o mesmo sucede com “justiça” e “lei”, “direito” e “igualdade”. A lista poderia ser ampliada até incluir quase todos os termos morais e políticos em uso.

Para os que não vivenciaram esse processo, é difícil imaginar a extensão de tal mudança do sentido das palavras, a confusão que ela causa e as barreiras que cria a qualquer debate racional. Se, por exemplo, de dois irmãos, um abraça a nova fé, depois de algum tempo ele parecerá falar uma língua diferente, que torna impossível qualquer comunicação entre ambos. E a confusão agrava-se ainda mais porque essa alteração do sentido das palavras que definem ideais políticos não é um fato isolado mas um processo contínuo, uma técnica empregada consciente ou inconscientemente com o fim de dirigir o povo. Pouco a pouco, à medida que o processo se desenrola, toda a linguagem é por assim dizer esvaziada, e as palavras são despojadas de qualquer significado preciso, podendo designar tanto uma coisa como o seu oposto e sendo usadas apenas por causa das conotações emocionais que ainda lhes estão vinculadas.

Não é difícil impedir a maioria de pensar de forma independente. Mas é preciso silenciar também a minoria que se mantém inclinada à crítica. Já vimos por que motivo a coação não se pode limitar à imposição do código moral em que se baseia o plano diretor de toda atividade social. Uma vez que muitas partes desse código nunca serão enunciadas explicitamente e muitos pontos da escala de valores constarão do plano apenas de forma implícita, o plano em si em todos os detalhes, e mesmo todos os atos do governo, devem tornar-se sacrossantos e acima de crítica. Para que o povo apoie sem hesitações o esforço comum, deve ser persuadido de que não só o fim visado mas também os meios escolhidos são os mais justos. A ideologia oficial, cuja aceitação deve ser forçosamente obtida, incluirá, pois, todas as opiniões sobre fatos em que se baseia o plano. A crítica e mesmo as expressões de dúvida têm de ser suprimidas porque tendem a enfraquecer o apoio geral. Como dizem os Webb acerca da situação de todo empreendimento na Rússia: “Enquanto a obra está sendo executada, qualquer expressão pública de dúvida ou mesmo de receio quanto ao êxito do plano é um ato de deslealdade e até de traição por seus possíveis efeitos sobre a vontade e os esforços dos demais membros do quadro de funcionários”.4 Quando a dúvida ou o receio não dizem respeito ao êxito de determinada realização, mas ao plano social em seu todo, com mais razão ainda deverão ser tratados como sabotagem.

Assim, os fatos e as teorias tornam-se objeto de uma doutrina oficial, na mesma medida em que as opiniões sobre valores. Todo o arsenal educativo – as escolas e a imprensa, o rádio e o cinema – será empregado exclusivamente para disseminar as ideias, verdadeiras ou falsas, que fortaleçam a crença na justeza das decisões tomadas pela autoridade; e toda informação que possa causar dúvidas ou hesitações será suprimida. O provável efeito sobre a lealdade do povo ao sistema torna-se o único critério para resolver se determinada informação deve ser publicada ou não. A situação num estado totalitário é, permanentemente, e em todos os campos, a mesma de qualquer outro país, com relação a determinados assuntos, em tempo de guerra.

Tudo que possa despertar dúvidas sobre a competência do governo, ou criar descontentamento, será ocultado ao público. Os fatos que possam servir de base para comparações desfavoráveis com as condições de vida em outros países, o conhecimento de possíveis alternativas para a política já adotada, informações que possam sugerir que o governo não esteja cumprindo as suas promessas ou aproveitando as oportunidades para melhorar as condições gerais – tudo isso será omitido. Não há, pois, campo algum em que não se pratique o controle sistemático das informações e em que a uniformidade de pontos de vista não seja imposta.

Isso se aplica inclusive às esferas aparentemente alheias a qualquer interesse político, e em particular a todas as ciências, mesmo as mais abstratas. É fácil perceber que, nas disciplinas que tratam diretamente dos assuntos humanos e, portanto, afetam de maneira imediata as ideias políticas, tais como a história, o direito e a economia, a busca imparcial da verdade não pode ser permitida num sistema totalitário, e a justificação das ideias oficiais constitui o objetivo único, fato aliás amplamente confirmado pela experiência. Com efeito, tais disciplinas têm-se tornado em todos os países totalitários as mais fecundas fábricas dos mitos oficiais que os governantes empregam para dirigir o pensamento e a vontade dos seus súditos. Não é de surpreender que, nessas esferas, a própria simulação da busca da verdade seja abandonada e que as autoridades decidam quais as doutrinas a serem ensinadas e publicadas.

O controle totalitário da opinião também se estende, entretanto, a assuntos que a princípio não parecem ter importância política. Às vezes é difícil explicar por que certas doutrinas são oficialmente proscritas e outras encorajadas, e é curioso que essas aversões ê preferências se assemelhem nos diferentes sistemas totalitários. Em particular, todos eles parecem nutrir em comum uma intensa antipatia pelas formas mais abstratas de pensamento – atitude também manifestada por muitos de nossos cientistas adeptos do coletivismo. Não existe muita diferença entre a teoria da relatividade ser descrita como “um ataque semítico aos fundamentos da física cristã e nórdica” ou combatida porque “se opõe ao materialismo dialético e ao dogma marxista”. Tampouco há diferença entre atacar certos teoremas da estatística matemática porque “fazem parte da luta de classes na fronteira ideológica e são um produto do papel histórico da matemática como serva da burguesia”, e condenar o assunto porque “não apresenta garantias de servir aos interesses do povo”. Ao que tudo indica, a própria matemática pura não está isenta de ataques, e o fato de se possuir determinados pontos de vista sobre a natureza da continuidade pode ser atribuído a “preconceitos burgueses”. Segundo os Webb, a Revista de Ciências Naturais Marxistas-Leninistas tem os seguintes slogans: “Nós defendemos a matemática do partido. Nós defendemos a pureza da teoria marxista-leninista na cirurgia”. A situação parece muito semelhante na Alemanha. A Revista da Sociedade Nacional-Socialista de Matemáticos está repleta de expressões como “matemática do partido” e um dos mais conhecidos físicos alemães, Lennard, detentor do prêmio Nobel, deu à obra a que dedicou toda a sua existência o título de Física Alemã em Quatro Volumes.

É bastante característico do espírito do totalitarismo condenar toda atividade humana exercida por prazer, sem propósitos ulteriores. A ciência pela ciência, a arte pela arte, são igualmente abomináveis aos nazistas, aos nossos intelectuais socialistas e aos comunistas. Toda atividade deve ser justificada por um objetivo social consciente. Não deve haver atividade espontânea, não-dirigida, porque poderia levar a resultados imprevistos, não contemplados pelo plano – poderia propiciar o surgimento de algo novo que a filosofia do planejador nem sequer antecipou. Esse princípio estende-se inclusive a jogos e diversões. Deixo a cargo do leitor adivinhar se teria sido na Alemanha ou na Rússia que os jogadores de xadrez foram oficialmente exortados com as seguintes palavras: “Devemos acabar de uma vez por todas com a neutralidade do xadrez. Devemos condenar inapelavelmente a fórmula “o xadrez pelo xadrez”, assim como condenamos a fórmula “a arte pela arte”.

Por incríveis que possam parecer tais aberrações, não devemos considerá-las simples subprodutos acidentais que nada têm a ver com o caráter essencial de um sistema dirigido ou totalitário. Seria um erro. Elas são o resultado direto do desejo de fazer com que tudo seja dirigido por “uma concepção unitária do conjunto”, da necessidade de defender a todo custo as ideias em nome das quais se exigem das pessoas sacrifícios constantes, da ideia geral de que os conhecimentos e as crenças do povo são instrumentos a serem usados para uma finalidade única. Quando a ciência tem de servir, não à verdade mas aos interesses de uma classe, de uma comunidade ou de um estado, o fim único da argumentação e do debate é justificar e difundir ainda mais as ideias por meio dos quais é dirigida toda a vida da comunidade. Como explicou o ministro da Justiça nazista, a pergunta que toda nova teoria científica deve fazer a si mesma é: “estarei servindo ao nacional-socialismo para maior benefício de todos?”.

A própria palavra “verdade” perde o seu antigo significado. Já não designa algo que deve ser descoberto, sendo a consciência individual o único juiz a decidir se, em cada caso, a prova (ou a autoridade daqueles que a proclamam) justifica a convicção. Torna-se algo a ser estabelecido pela autoridade, algo em que é preciso crer a bem da unidade do esforço organizado, e que talvez se faça necessário alterar de acordo com as exigências desse mesmo esforço.

O clima intelectual gerado por essa situação, o espírito de completo ceticismo com respeito à verdade, a perda da própria noção do significado da palavra “verdade”, o desaparecimento do espírito de pesquisa independente e da crença no poder da convicção racional, a maneira pela qual as diferenças de opinião em cada ramo de conhecimento se convertem em questões políticas a serem resolvidas pela autoridade, tudo isso só pode ser avaliado por quem o experimentou pessoalmente. Uma descrição sucinta não consegue transmitir o que seria viver nessa atmosfera. O fato mais alarmante, talvez, é que o desprezo pela liberdade intelectual não surge apenas depois que o sistema totalitário já se estabeleceu mas pode ser observado em toda parte, entre intelectuais que abraçaram uma doutrina coletivista e que são aclamados como líderes do pensamento, mesmo em países que ainda se encontram sob um regime liberal.

Desculpam-se as piores opressões, desde que praticadas em nome do socialismo, e a criação de um sistema totalitário é abertamente defendida por homens que se dizem porta-vozes dos cientistas dos países liberais; a própria intolerância é francamente enaltecida. Não vimos há pouco um cientista inglês defender a própria Inquisição, por achar que “é benéfica à ciência quando protege uma classe em ascensão”?5 É um ponto de vista que coincide com as convicções que levaram os nazistas a perseguir os homens de ciência, a queimar os livros científicos e a suprimir sistematicamente a classe intelectual dos países por eles dominados.

O desejo de impor ao povo uma ideologia considerada salutar para ele não é um fato novo ou peculiar à nossa época. Nova é a argumentação com a qual muitos de nossos intelectuais procuram justificar tais tentativas. Alega-se que na nossa sociedade não existe a verdadeira liberdade de pensamento, porque as opiniões e os gostos das massas são moldados pela propaganda, pela publicidade, pelo exemplo das classes superiores e por outros fatores ambientais que obrigam o pensamento a se conformar a padrões estabelecidos. Daí se conclui que, se os ideais e gostos da grande maioria são sempre plasmados por circunstâncias passíveis de controle, devemos usar intencionalmente esse poder para levar o povo a pensar da forma que nos parece conveniente.

É verdade que a grande maioria das pessoas raras vezes é capaz de pensar com independência, aceitando em geral as ideias correntes e contentando-se com a ideologia em que nasceu ou para a qual foi levada. Em qualquer sociedade, a liberdade de pensamento só terá, talvez, significação imediata para uma pequena minoria. Mas isso não quer dizer que alguém possua qualificações ou deva ter o poder para escolher quem deverá gozar dessa liberdade. Por certo não justifica que um grupo qualquer se arrogue o direito de determinar o que se deve pensar ou crer.

Constitui absoluta confusão de ideias sugerir que, como em qualquer sistema, a maioria do povo é liderada por alguém. Não faz diferença que todos sejam obrigados a seguir a mesma liderança. Menosprezar a liberdade intelectual porque ela nunca significará para todos a mesma possibilidade de pensamento independente implica não atentar para os motivos que conferem a essa liberdade o seu valor. O essencial, para que ela exerça a sua função de impulsionadora do progresso intelectual, não é que todos sejam capazes de pensar ou escrever, mas que toda causa ou ideia possa ser contestada. Enquanto o direito de dissensão não for suprimido, haverá sempre quem ponha em dúvida as ideias que norteiam seus contemporâneos e submeta novas ideias à prova da discussão e da propaganda.

Essa interação entre indivíduos dotados de conhecimentos e opiniões diferentes é o que constitui a vida do pensamento. O desenvolvimento da razão é um processo social baseado na existência de tais diferenças. É da própria essência desse processo não podermos prever seus resultados, não conhecermos as ideias que contribuirão para esse desenvolvimento e as que deixarão de fazê-lo. Em suma, não podemos dirigir tal desenvolvimento sem com isso possa limitá-lo. “Planejar” ou “organizar” a evolução da mente, ou mesmo o progresso em geral, é uma contradição. Supor que a mente humana deva controlar “conscientemente” o seu próprio desenvolvimento confunde a razão individual (a única que pode “controlar conscientemente” alguma coisa) com o processo interpessoal a que se deve tal evolução. Ao tentar controlar esse processo, estaremos apenas impondo-lhe fronteiras e, mais cedo ou mais tarde, provocaremos a estagnação do pensamento e o declínio da razão.

O aspecto trágico do pensamento coletivista é que, ao tentar tornar a razão a instância suprema, acaba destruindo-a por interpretar de forma errônea o processo do qual depende o desenvolvimento dessa mesma razão. Pode-se dizer, com efeito, que o paradoxo das doutrinas coletivistas, e de sua exigência de controle e planejamento “consciente”, reside no fato de que elas levam inevitavelmente à necessidade de que a mente de um indivíduo venha a exercer o domínio supremo – enquanto a atitude individualista em face dos fenômenos sociais é a única que nos permite reconhecer as forças supraindividuais que regem a evolução da razão. O individualismo é, assim, uma atitude de humildade diante desse processo social e de tolerância para com as opiniões alheias, sendo a negação perfeita da arrogância intelectual implícita na ideia de que o processo social deva ser submetido a um amplo dirigismo.

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NOTAS AO CAPÍTULO 11

1 – Título de uma obra recente do historiador norte-americano C. L. Becker.

2 Man and Society in an Age of Reconstruction, p. 377.

3 – Peter Drucker (The End of Economic Man, p. 74) observa com razão que “quanto menos liberdade há, mais ouvimos falar em ‘nova liberdade’. Todavia, essa nova liberdade é uma simples palavra com que se encobre a negação completa de tudo quanto a Europa já entendeu por liberdade. …A nova liberdade que se prega na Europa resume-se, entretanto, no direito da maioria contra o indivíduo”.

4- Webb, Sidney & Beatrice, Soviet Communism, p. 1.038.

5 – Crowthcr, J. G., The Social Relations of Science, 1941, p. 333.

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Friedrich A. Hayek
Friedrich A. Hayek
Friedrich A. Hayek foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal 'pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais'. Seus livros estão disponíveis na loja virtual do Mises Institute.
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