O “acordo do Chipre” — que é como o arranjo tem sido amplamente rotulado pela mídia — pode representar o penúltimo ato do colapso que está ocorrendo em câmera lenta do sistema bancário de reservas fracionárias. Este colapso começou, na prática, com a implosão das instituições de poupança e empréstimo dos EUA no final dos anos 1980.
[N. do T.: as Savings and loan association são instituições financeiras americanas que captam fundos — e pagam juros aos seus investidores — para investi-los principalmente em hipotecas, e que podem também oferecer depósitos em conta-corrente e outros serviços bancários. A crise desse setor começou em 1986 e só acabou em 1995].
Esta tendência continuou com as crises monetárias do México em 1994, do Sudeste Asiático em 1997, da Rússia em 1998 e da Argentina em 2001, crises estas nas quais o sistema bancário de reservas fracionárias teve um papel decisivo. O deslindamento do sistema bancário de reservas fracionárias se tornou visível até mesmo para correntistas comuns dos países desenvolvidos durante o colapso financeiro de 2008, o qual desencadeou algumas corridas bancárias a algumas das maiores e mais veneradas instituições financeiras do mundo (Northern Rock, Countrywide Financial, Bear Stearns, Lehman Brothers, Merrill Lynch, Fannie Mae, Freddie Mac, Washington Mutual, Wachovia, Citigroup e AIG). O colapso total só foi evitado porque o Federal Reserve concedeu um pacote de socorro multitrilionário (US$16 trilhões) aos bancos americanos e também aos estrangeiros.
No entanto, de uma forma ainda mais intensa do que a inédita crise financeira de 2008, os recentes eventos no Chipre podem ter desferido o golpe moral no sistema bancário de reservas fracionárias. Um sistema bancário de reservas fracionárias só pode continuar operando normalmente enquanto seus correntistas tiverem a plena confiança de que, independentemente das agruras financeiras que venham a acometer o banco no qual seu dinheiro está “depositado”, eles sempre poderão retirar todo o seu dinheiro deste banco, a qualquer momento e sem nenhuma perda. Em um sistema de reservas fracionárias, sistema este em que bancos operam tecnicamente insolventes (pois nunca têm dinheiro para honrar todos os seus compromissos), a confiança é tudo. Se a confiança se esvair, o sistema entra em colapso.
Desde a Segunda Guerra Mundial, os seguros governamentais sobre depósitos bancários, lastreados pelos poderes de criação de dinheiro do banco central, passaram a ser vistos como a inabalável garantia que sanciona esta confiança. Com efeito, por causa desta ‘garantia’, o sistema bancário de reservas fracionárias passou a ser visto pelos correntistas como sendo, na prática, um sistema bancário com 100% de reservas — afinal, desde a criação dos seguros para os depósitos, os correntistas passaram a agir com a tranquilidade de quem acredita que seu dinheiro de fato está “lá no banco”. “Na pior das hipóteses”, pensam eles, “os bancos centrais irão simplesmente criar o dinheiro do nada”.
Perversamente, as várias crises envolvendo o sistema bancário de reservas fracionárias que citei acima apenas reforçaram esta crença entre os correntistas, pois os bancos que apresentavam problemas sempre foram prontamente socorridos — especialmente os grandes e menos estáveis. Daí surgiu a doutrina do “grande demais para quebrar”.
Por causa desta doutrina, correntistas cujos depósitos estavam acima do valor garantido pelo governo — bem como pessoas que compraram títulos emitidos por bancos que querem se recapitalizar — quase sempre foram integralmente restituídos quando algum grande banco falia, pois era senso comum que a confiança em todo o sistema bancário era algo frágil e evanescente, que se quebraria e se dissiparia completamente mesmo que somente uma grande instituição falisse.
Voltando ao acordo do Chipre. De um ponto de vista pró-livre mercado, ele está longe do ideal. A solução livre-mercadista não envolveria restrições a saques (€300 por dia), não imporia controles de capital fascistas sobre residentes domésticos (pessoas estão sendo revistadas nos aeroportos, pois não se pode sair do país com mais de €3.000) e investidores estrangeiros, não limitaria o uso do dinheiro (transações totais com qualquer tipo de cartão será limitadas a €5.000 por mês) e não obrigaria os pagadores de impostos do restante da zona do euro a contribuir com o pacote de socorro de €10 bilhões para os bancos do Chipre.
Não obstante, o acordo de fato transmite uma salutar mensagem para os correntistas e credores de bancos de todo o mundo. Tal mensagem está em obrigar tanto os correntistas cujos depósitos estão acima do valor segurado (acima de €100.000) quanto os compradores de títulos bancários a arcarem com parte do custo do pacote de socorro.
Estes credores que compraram títulos dos dois maiores bancos do Chipre perderão tudo, e já foi anunciado que os grandes correntistas do banco estatal Laiki (que foi liquidado) poderão também perder absolutamente tudo. Já os grandes correntistas do Banco do Chipre perderão algo entre 30 e 60% de seus depósitos. Os pequenos correntistas de ambos os bancos, cujas contas estão totalmente seguradas — pois são menores que €100.000 — não perderão nada.
O bom resultado de tudo isso é que os correntistas, tanto os segurados quanto os não-segurados, na Europa e ao redor do mundo, irão se tornar muito mais cautelosos ou até mesmo mais desconfiados ao lidar com bancos de reservas fracionadas. Eles estarão bem mais propensos a correr aos bancos e sacar seu dinheiro ao mais mínimo sinal ou rumor de instabilidade. Isso irá induzir os bancos a alterar radicalmente as fontes de financiamento que eles utilizam para conceder empréstimos. A esperança é que eles diminuam a criação de dinheiro (que, em última instância, utiliza o dinheiro depositado em depósitos à vista por correntistas) e passem a utilizar mais a emissão de títulos e até mesmo seu capital próprio.
Como foi relatado na terça-feira, tal mudança de postura já vem sendo esperada por muitos analistas:
Uma possível consequência do acordo de ontem é a reação em cadeia que pode ser gerara sobre a maneira como os bancos se financiam, disseram analistas. Bancos tipicamente se financiam por meio de alguma combinação entre depósitos de correntistas, lançamento de ações, e emissão de diversos tipos de títulos, os quais são lastreados por um conjunto de ativos de alta qualidade que vão para o balancete do financiador do banco.
A consequência do socorro ao Chipre pode ser a de que os bancos passarão a ser mais propensos a utilizar títulos condicionalmente conversíveis — contingent convertible bonds, os CoCos — para levantar dinheiro, dado que sua capacidade de sobrecarregar ativos emitindo títulos poderá ultrapassar os limites estipulados pelas regulamentações, disse Chris Bowie, da Ignis Asset Management Ltd de Londres.
“É de se esperar algumas fugas de depósitos e uma mudança no padrão de financiamento, o qual passará a ser formado por uma combinação entre títulos, capital próprio e ações”, disse Bowie, que é chefe do departamento de administração de carteira de crédito da Ignis, a qual gerencia aproximadamente US$ 110 bilhões.
Se isso de fato ocorrer, será uma mudança significativa e um passo rumo a um sistema financeiro mais de acordo com os princípios do livre mercado; um sistema financeiro no qual o radical descasamento entre o prazo de maturação de ativos e de passivos — como ocorre quando os bancos utilizam depósitos a vista para financiar empréstimos de longo prazo — é eliminado de uma vez por todas.
Algumas crises bancárias a mais na zona do euro — especialmente uma em que os correntistas segurados sejam obrigados arcar com o socorro — irão provavelmente fazer com que a fé nos seguros governamentais dos depósitos se evapore por completo, levando junto a confiança no sistema bancário de reservas fracionárias. E então pode ser que surja naturalmente no mercado um sistema em que títulos, ações e genuínos depósitos a prazo que não podem ser sacados antes do prazo de maturação se tornem as fontes exclusivas de financiamento para empréstimos bancários. Depósitos à vista, movimentáveis ou não por meio de cheques ou cartão de débito (conta-corrente e poupança), seriam segregados e mantidos em depósitos bancários que realmente mantenham 100% de reservas e realizem toda uma gama de serviços de pagamento, de caixas eletrônicos a cartões de débito.
Embora esta conjectura possa soar excessivamente otimista, é fato que hoje estamos muito mais próximos de tal arranjo do que antes do “acordo do Chipre” ter sido efetivado. É claro que estaríamos ainda mais perto se não houvesse nenhum pacote de socorro e se todo o ônus de uma quebra bancária recaísse exclusivamente sobre os credores e correntistas dos bancos falidos (em vez de ser socializado com os pagadores de impostos). Caso isso ocorresse — isto é, caso todo o ônus ficasse para credores e correntistas —, a real natureza do sistema bancário de reservas fracionárias seria explicitada de modo que qualquer leigo entenderia.
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Veja também: Propostas para uma reforma bancária completa e estabilizadora