Gugu Liberato e Luciano Huck são respectivamente os apresentadores dos quadrosSonhar Mais Um Sonho e Lar Doce Lar, ambos praticamente iguais. Eles consistem em selecionar a casa de uma família, geralmente muito pobre e que tenha uma história de muito sofrimento, demolir, e construir uma nova, moderna, com tudo que existe do bom e do melhor. Tudo isso em uma ou duas semanas, período esse em que a produção do programa leva a família para uma viagem de férias. A produção também presenteia as famílias com cursos, maquinário de trabalho e às vezes até novos empregos.
Estes quadros são versões brasileiras do programa da TV americana Extreme Makeover: Home Edition, que foi ao ar de 2003 a 2012. Nele, o apresentador Ty Pennington comandava as reconstruções das casas de famílias americanas, também pobres e sofridas. A diferença é que, devido ao fato de os EUA serem um país que vivenciou um longo período de grande liberdade econômica, a acumulação de capital lá, ou seja, a riqueza, é muito maior, ao passo que os pobres daqui são muito mais miseráveis do que os de lá. Mas a fórmula do programa é sempre a mesma, e já se espalhou com sucesso por diversos países.
Eu já me considerava fã do programa americano que era exibido no Brasil na TV a cabo, e passei a acompanhar suas versões brasileiras sempre que posso. Não só pelas emocionantes histórias, mas também até pelas ótimas dicas de reforma e decoração — foi lá que fiquei sabendo da existência de coisas como a torneira que abre e fecha com um toque. Porém, analisando o show a partir da ótica praxeológica, podemos ver as maravilhas que ocorrem ali: uma família, vivendo uma vida dura e morando em condições pra lá de precárias, sem nenhuma perspectiva de melhora, faz uma viagem de férias (muitas delas pela primeira vez na vida) e, quando retorna para o mesmo endereço poucos dias depois, tem não só uma casa incrível e confortável, como também novas e melhores oportunidades de trabalho. Tudo isso sem a família gastar nem um tostão. Isto é ou não é o que podemos chamar de milagre?
E como todo milagre, ninguém sabe bem como acontece. Como é possível que algo assim ocorra? De onde surgem essas casas? Para alguém ganhar uma casa sem esforço, outro alguém deve ter perdido uma casa, ou o valor correspondente, não é mesmo?
A primeira impressão é a de que as redes de televisão abriram mão das casas. Ou, como muitos contemplados parecem acreditar, que o apresentador arcou com todos os custos — em uma entrega de casa ao vivo, uma senhora até deixou o Gugu sem graça, pois chegou a se ajoelhar diante dele em agradecimento. Mas, obviamente, nem a rede de TV e nem o apresentador perdem nada; ao contrário, eles ganham muito dinheiro com o programa.
Todo o material usado na construção e na decoração é doado pelas empresas que os fabricam e os comercializam. Em troca, eles têm suas marcas anunciadas durante os programas. E nos intervalos outras empresas pagam muito dinheiro para aparecerem. Então são os anunciantes que estão sendo subtraídas dos valores referentes às casas, certo? Muito menos! As empresas que anunciam em televisão fazem fortunas em decorrência destes anúncios. Seus produtos passam a ser — ou se mantêm sendo — vendidos em larga escala, proporcionando altíssimos lucros.
Então agora tudo ficou claro. Só podem ser os consumidores destas empresas que juntos perdem uma casa para a família ganhar uma casa. Cada um deles deve arcar com uma fração do custo das casas, ao pagarem mais caro pelos produtos dos anunciantes do programa. Errado novamente. Estes consumidores não perdem nada, apenas ganham. Ao comprar os produtos dos anunciantes, estes consumidores trocam aquilo que valorizam menos — seu dinheiro — por algo que valorizam mais — o produto. Muitas vezes, se não fosse pelos anúncios, os consumidores não tomariam conhecimento dos produtos, e acabariam trocando seu dinheiro por um produto menos valorizado por eles do que o anunciado.
Não resta mais ninguém nessa cadeia de envolvidos no processo. Espere! Já sei a resposta. São os trabalhadores dessas empresas, que são explorados pelos patrões, recebendo um salário menor do que merecem, e a diferença vai para cobrir os custos das casas. Não. Os empregados não perdem nada, só ganham. Eles trocam seu trabalho por salário no presente, em vez de terem o valor total do produto produzido num futuro incerto. E alguns destes trabalhadores ainda devem o emprego à expansão de vendas gerada pela participação da empresa no programa que presenteia as famílias com as casas.
Não consigo pensar em mais ninguém. O que aconteceu afinal? Ninguém teve de perder nada para as famílias ganharem as casas? Não foi nem sequer um ato de caridade, no qual o doador teria ao menos de abrir mão do valor de uma casa para doar uma casa? Uma família morando em condições deploráveis, ganha uma casa nova e ainda todos os envolvidos no processo também ganham algo? Está querendo me dizer que isso é realmente algum tipo de milagre? Sim, estou. E este milagre chama-se livre-mercado. Livre mercado nada mais é do que o que foi descrito acima: trocas voluntárias de títulos de propriedade. E para uma troca voluntária ocorrer, necessariamente ambas as partes envolvidas devem ganhar. É somente quando a coerção entra na equação que uma parte perde para outra ganhar. Ou então as duas partes perdem e o agente coercitivo não envolvido na troca, ganha.
. . . o livre mercado “maximiza” a utilidade social, já que todos ganham em utilidade. A intervenção coercitiva, por outro lado, significa per se que um ou mais indivíduos coagidos não teriam feito o que fazem no momento, não fosse pela intervenção. O indivíduo que é coagido a dizer ou não alguma coisa, a fazer ou não uma troca com o interventor ou outra pessoa, tem suas ações modificadas por uma ameaça de violência. O resultado da intervenção é que o indivíduo coagido perde em utilidade, pois sua ação foi alterada pelo impacto coercitivo. Qualquer intervenção, seja autística, binária ou triangular, leva os sujeitos a perderem em utilidade. Na intervenção autística ou binária, cada indivíduo perde em utilidade; na intervenção triangular, ambos ou pelo menos um dos possíveis permutadores perde em utilidade.[1]
Na sociedade atual, o principal agente coercitivo é o estado. Vamos agora analisar como o estado atua a partir do seguinte episódio do quadro Sonhar Mais Um Sonho:
Em primeiro lugar o governo proíbe que uma casa seja construída em uma ou duas semanas. Nesse período, não é nem sequer possível dar entrada com os papéis que ele exige para autorizar uma simples reforma. E o tempo mínimo que se leva para se obter um alvará de uma obra é de 30 dias. Sem o tal do alvará, homens armados do estado proíbem que uma obra se inicie. É a primeira de inúmeras intervenções coercitivas do estado sobre o livre mercado, quebrando a cadeia em que todos ganham, fazendo com que partes passem a perder para outras ganharem. E como ganham! Em São Paulo, o responsável pela “liberação” de obras particulares ganhou em sete anos mais de 120 apartamentos, no valor de R$50 milhões. O conceito de se “liberar” é absurdo. Uma obra é uma troca voluntária de livre mercado entre duas partes. O estado intervém coercitivamente e proíbe a troca, exigindo pagamentos e cumprimento de requerimentos para “liberar” a troca. Neste caso de pagamento de propinas em São Paulo, o interventor coercitivo ainda foi ‘menos pior’ do que um que não aceitasse o suborno, deixando o mercado agir com uma obstrução menor. Estes programas de televisão são contemplados com uma exceção a esta regra nefanda, que prejudica todo o resto da população.
Agora voltemos ao episódio. Já no primeiro minuto, descobrimos que se trata da família da Lucinéia, a “Tia dos Doces”. O governo entra nesse ponto com a facínora agência Anvisa, que transforma a atividade que sustenta essa humilde família em crime. Fabricar cocada em casa e vender para consumidores voluntários, sem atender às especificações de fabricação, transporte e conservação dos agentes coercitivos da Anvisa é proibido. Isso sem contar que Lucinéia não “emite nota fiscal”, não paga nenhum imposto — ou seja, consegue fugir do assalto dos agentes coercitivos da Receita Federal, Estadual e Municipal. Se estes bandidos da Anvisa ou da Receita a pegarem, ela teria seus doces confiscados e poderia sofrer agressões ainda maiores. Olhando as condições de vida dessa família é impossível não enxergar a maldade em que consiste a função destes funcionários públicos.
No minuto 8:00, ficamos sabendo que a família está tentando construir com muito esforço a “casa” em que moram há mais de 5 anos — e não conseguiram fazer quase nada! Nesse momento, lembramos que os impostos diretos sobre os materiais de construção são de 32,80%. Se não fossem por estes impostos diretos, esta família poderia ter construído mais 1/3 do que conseguiram até então. A intervenção coercitiva dos impostos sozinha fez com que eles perdessem 1/3 do pouco que tinham! E o que não foi construído é o que Bastiat chamou de o que não se vê. O mal que os impostos causam é hediondo.
E quando chegamos ao minuto 9:15, eu considero que já podemos encerrar os exemplos das incontáveis intervenções coercitivas malévolas, pois esta chega a um nível de maldade que dispensa continuarmos. Neste ponto, Lucinéia revela que a casa não possui chuveiro. Ela precisa esquentar água num fogão à lenha para a família conseguir tomar banho. E logo depois, no minuto 12:00, ela nos mostra o banheiro sem o chuveiro. Você, leitor, tem alguma noção do que é não ter um chuveiro? Obviamente, não é por opção voluntária que eles não têm chuveiro. Eles não possuem chuveiro porque não têm dinheiro para comprar chuveiro. Um chuveiro é caro demais para eles! Um chuveiro elétrico do modelo mais barato custa por volta de R$50[2] e, até o dia da visita do Gugu, eles não conseguiram fazer sobrar este valor para comprar um chuveiro. E é aí que podemos ver mais uma imensa maldade gerada pela intervenção coercitiva do estado, que, com os impostos, encarece o preço do chuveiro e impossibilita o acesso a esse produto para os mais pobres, como a família da Lucinéia.
A formação de um preço no livre mercado se dá no encontro do vendedor marginal com o comprador marginal. Você que está lendo este texto provavelmente não deve ser um comprador marginal de chuveiro elétrico. Se morasse em uma casa sem chuveiro, pagaria R$75, R$100, R$150 e até R$300 por um chuveiro elétrico quando o inverno chegasse, caso estes fossem os preços dos chuveiros. Muitos certamente trocariam mais de R$1.000 por um chuveiro. Mas o comprador marginal atual é aquele que paga R$50; e se o preço fosse R$51, ele não teria o chuveiro.
O potencial comprador que pagaria R$49, não tem o chuveiro. Lucinéia estava abaixo da margem. Ela não tinha o chuveiro. Um imposto de 30% que faz com que o preço do chuveiro vá de R$38 para R$50, faz com que os compradores marginais aos preços de R$39, R$40, R$41 até R$49 fiquem sem chuveiro. E funcionários públicos cobradores de impostos fizeram isso com a família da Tia do Doce, e estão fazendo isso com os mais pobres. Esta intervenção coercitiva pode receber um nome diferente de maldade pura? Podemos somar aí todos os impostos indiretos, todas as barreiras alfandegárias que impedem a entrada de chuveiros importados ainda mais baratos, as regulamentações que encarecem a produção e inibem o surgimento de produtores concorrentes etc. De fato, o estado inclusive já interveio coercitivamente no mercado de chuveiro com a declarada intenção de apenas aumentar seu preço e impedir que mais pessoas o comprassem.[3]
É isso. Enquanto Gugu, Huck e os outros apresentadores orquestram uma sinfonia verdadeiramente milagrosa, na qual pessoas agindo voluntariamente no livre mercado ganham com suas ações, que resultam em uma família miserável recebendo uma linda casa de presente, as intervenções coercitivas dos agentes estatais enredam um filme sádico de terror. São as ações cotidianas de fiscais da Receita, de policiais federais nas alfândegas, de funcionários das aduaneiras portuárias e de toda e qualquer pessoa que obstrui ou impede violentamente o livre mercado que personificam a pura maldade que vemos no banheiro da Lucinéia.
[1] Governo & Mercado, Murray N. Rothbard. Livro que será publicado em breve pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil
[2] Uma leitora informa que comprou recentemente um chuveiro elétrico por apenas R$25. E, de fato, podemos encontrar chuveiros por até menos que isso, como este por R$23,90. Isto torna o artigo duas vezes mais estarrecedor.
[3] Os impostos sobre a conta de luz e outras intervenções coercitivas no mercado de geração e distribuição de energia, como regulamentações e proibição de concorrência (monopólio), contribuem ainda mais para que as famílias mais pobres não possam ter chuveiros elétricos, encarecendo muito o seu uso.