Enquanto muitos se preocupam em debater apenas as consequências das decisões do governo e das regulamentações estatais, quase todos se esquecem — inclusive os que lutam por mais liberdades civis e econômicas — que tais medidas são, antes de tudo, essencialmente imorais e antiéticas.
Não importa o quanto um senhor de engenho trate bem um escravo; ser um escravo, por si só, é algo errado. Ruim não são os resultados do poder; ruim é ter poder.
Como o grande jornalista Paulo Eduardo Martins salientou em sua breve crítica ao Projeto de Lei nº 2.126 de 2011 — que acaba de ser eleito e aprovado por ampla maioria pela Câmara dos Deputados —, é possível que alguns daqueles que o defendem possuam boas intenções. Mas será que isso garante que os resultados serão benéficos para o cidadão brasileiro? Mais ainda: garante que fazer um controle “do bem” é justo? Muito improvável.
O acesso à justiça é um direito fundamental, “garantido” pela constituição e defendido pela totalidade dos juristas do país, embora na prática seja diferente. Boa parte dos cidadãos brasileiros não sabe quais são seus direitos, não sabe como reivindicá-los e não possui dinheiro para contratar advogados. A solução apresentada pelo estado é a assessoria jurídica pública, que fica praticamente impossibilitada de atender a gigante demanda.
Os cidadãos que não possuem voz perante a força estatal da justiça brasileira ganham poder na internet. Exemplo disso é que os consumidores que usam o Twitter para reclamar obtêm uma resposta até 8,4 mil vezes mais rápida do que se procurassem ajuda pelo Procon.
Ou seja: o estado admite a insuficiência do consumidor, “declara seus direitos”, afirma que estes dependem de força estatal para serem garantidos, e acaba fracassando miseravelmente na simples tarefa de impingir tudo isso. E quem realmente socorre o consumidor? A inovação e a ordem espontânea da internet. Trata-se de uma anarquia que, longe de ser o caos, é na verdade um exemplo de eficiência voluntária.
Para sair do óbvio, não irei afirmar que a implantação do Marco Civil com o objetivo de defender os consumidores ou aqueles que são mais “frágeis” irá fazer justamente o oposto. Tampouco irei dizer que os países que adotaram qualquer tipo de controle da internet são aqueles mais ditatoriais e menos livres. Irei afirmar, isso sim, que o Marco Civil não pode ser aceitável, que ele não defende os consumidores e que não traz nenhum bem.
A internet é o exemplo perfeito de que nem tudo que é público é necessariamente estatal ou “gratuito” — afinal, qualquer um pode acessá-la, com custos relativamente baixos. E os custos só não são ainda mais baixos devido ao oligopólio das grandes empresas de telecomunicação garantido pela limitação de novas empresas no mercado graças à ANATEL. A ANATEL, como toda agência reguladora, fechou o setor à concorrência estrangeira e criou uma genuína reserva de mercado, de modo que as empresas não estão submetidas a nenhum tipo de livre concorrência. Sem concorrência, o consumidor fica com poucas opções, os oligopolistas cobram caro e oferecem um serviço de má qualidade. Isso é economia pura.
Poder estatal, patrocínio privado, prejuízo público.
A influência dos usuários da rede em relação aos demais pouco depende de algum poder financeiro, mas sim da qualidade do conteúdo. Não é à toa que sites financiados com dinheiro público não obtêm a mesma popularidade que blogs sem fins lucrativos ou meros vlogs no YouTube.
O cidadão brasileiro possui na internet liberdade intelectual e financeira, pode se expressar como bem quiser e não depende de dinheiro para obter poder de influência ou atingir seus objetivos. Diferentemente do que acontece no direito, onde o cidadão comum deve se adaptar às idéias estagnadas e quase nunca consegue garantir seus direitos se não tiver dinheiro, o cidadão juridicamente impotente busca na internet — a qual possui infinitas possibilidades, todas privadas — uma maneira de se informar e se tornar menos vulnerável.
Você realmente quer que alguém decida o que você pode ou não ver no Google? Várias empresas controlando sozinhas a internet já seria um cenário terrível; agora, imagine um só governo controlando tudo?
O governo já detém o poder de concessão de todas as emissoras de TV aberta e de rádio. Ele impõe garantias de conteúdo que priorizem o “interesse social” da população. Tudo isso está expresso na Constituição Federal de 1988. A Carta Magna Brasileira determina:
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I — preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II — promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III — regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV — respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Não são necessários nem 5 minutos assistindo à TV ou ouvindo o rádio para perceber que o poder estatal e suas regulamentações não são capazes de respeitar nem o conjunto de normas mais importantes do país, nem quando são criadas com a justificativa de que será em prol da população.
E se a Constituição Federal perde força diante dos interesses das empresas lobistas e dos demais agentes político-administrativos do estado, uma lei ordinária como o Marco Civil será somente uma via expressa para facilitar o controle do melhor, mais livre e mais imparcial meio de comunicação existente.
Regulação, um mal per se
O artigo 9º do projeto de lei trata da polêmica “neutralidade da rede”. Porém, se você ler com atenção os detalhes desse texto normativo, poderá concluir o seguinte: ao determinar o dever de tratamento isonômico das empresas de transmissão, comutação e roteamento (com base em pacotes de dados, conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação), o regulador está necessariamente afirmando ser possível um órgão estatal obter todo o conhecimento disponível acerca desses termos — os quais envolvem um grande grau de conhecimento técnico — para julgar, utilizando um grande número de burocratas e dinheiro público, o que seria de fato esse tratamento isonômico (sem levar em consideração as distinções entre isonomia material e formal).
Além de afirmar que é capaz de julgar o que é e o que não é isonômico, o regulador garante o monopólio desse julgamento! Somente a sua regulação e o seu discernimento são capazes de afirmar qual serviço é isonômico!
Pior e ainda mais preocupante: o regulador declara expressamente que apenas a isonomia é justa! Isso simplesmente impede que um consumidor contrate um serviço que ele saiba não ser isonômico, mas que ache justo.
A situação é semelhante àquela em que a ANVISA proíbe a venda de suplementos. Em um caso, o estado diz ter a capacidade técnica para julgar o que é e o que não é saudável, e não permite que o cidadão consuma aquilo que quer e considere justo, mesmo quando este sabe que não está consumindo algo saudável. No outro caso, o estado declara ter a capacidade técnica total para julgar o que é e o que não é isonômico, e não permite que o cidadão consuma o que quer e considere justo, mesmo este sabendo não obter um serviço isonômico.
O § 1º do art. 9º concede poder de regulamentação da internet para os Decretos, e o § 3º do mesmo artigo afirma que “é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados”. Parece até piada, uma vez que essa regra se aplicaria apenas aos prestadores de serviços, dado que o governo brasileiro não perderá a oportunidade de bloquear, monitorar, filtrar e analisar todo o conteúdo disponível para determinar o que seria mais “isonômico”.
O § 2º utiliza uma série de termos subjetivos como “indispensável”, “agir com proporcionalidade”, “abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais” para aumentar o alcance do seu poder, flexibilizar as normas quando necessário para o “interesse público” e abrir possibilidades para a promulgação de mais algumas centenas de leis, decretos, regulamentos e contendas judiciais.
Esses tipos de medidas para defender a “neutralidade” ferem totalmente o princípio da liberdade contratual, o qual determina o direito do cidadão, desde que de forma consensual e com um objeto lícito, de escolher seu co-contratante e estabelecer livremente o conteúdo do contrato.
Nesse sentido, seria proibido contratar serviços de internet com limitações ou adaptações que foram criadas justamente a pedido do cliente. Por exemplo: um escritório de advocacia não poderia contratar um serviço que limitasse o acesso a redes sociais e privilegiasse o acesso a pesquisas e ao download de arquivos; uma casa de jogos não seria capaz de contratar uma operadora que disponibilizasse apenas pacotes de dados para jogos on-line, com grande eficiência; um cliente que pouco se interessa em navegar em sites não poderia contratar uma empresa para prestar o serviço com dados exclusivos para Netflix, com muito mais rapidez e qualidade.
Apenas o isonômico seria permitido, e isonomia não é justiça.
Um caso concreto de não-isonomia, e que foi ajustado de acordo com as preferências dos clientes, sem intervenção estatal, foi o acordo judicial feito por Netflix e Comcast.
Esse vídeo é um pequeno e didático resumo que reflete o analisado no texto:
O economista Daniel Marchi em seu texto publicado aqui no site do IMB afirma:
Em qualquer arranjo, o aparato estatal, na condição atual de supremo mediador dos conflitos, na prática assumiria o controle dos negócios, inclusive da circulação do conteúdo. Pior: impedida a livre celebração de contratos, o sistema de preços e os incentivos não trariam as informações necessárias para o bom funcionamento daquele que provavelmente é o mais complexo arranjo já produzido pela ação humana: a Internet.
O mais assustador é ver grandes empreendedores, que conquistaram clientes e enriqueceram com a internet livre, defendendo a necessidade de um poder central para controlar esse meio de comunicação. Pelo visto, quem já conquistou seu espaço não faz questão que os demais, menos privilegiados, ganhem influência ou dinheiro na rede.
Por fim, recomendo que todos tomem conhecimento das críticas técnicas e utilitaristas em relação ao Marco Civil e dos malefícios que este pode causar, pois, do ponto de vista moral e jurídico, o Projeto de Lei é imoral e inconstitucional, está em conflito com os princípios do direito contratual, com as normas de direito privado e com o direito da população.
Com a aprovação do projeto, o cidadão pobre sem instrução ou conhecimentos sobre seus direitos, ficará possivelmente sem liberdade na internet e, consequentemente, mais impotente juridicamente.
Resta-nos apenas a pressão popular — que já tem pouca força perante a burocracia e os interesses daqueles que possuem poder direto no sistema legislativo — para impedir que o Senado leve em diante esse projeto tão ineficaz e injusto.
_____________________________________
Artigo originalmente publicado no site Liberzone
Leia também: