[Este artigo é a palestra Ludwig von Mises Memorial Lecture, patrocinada por Yousif Almoayyed, proferida na Conferência Austríaca de Pesquisa Econômica no Mises Institute em 22 de março de 2019.]
Uma frase peculiar recentemente introduzida no léxico político pelos cognoscentes da mídia descreve uma nova filosofia corporativa: o “capitalismo woke”. Cunhado por Ross Douthat, do New York Times (2018), o capitalismo woke, ou capitalismo lacrador, se refere a uma onda crescente de empresas que aparentemente se tornaram defensoras da justiça social. Algumas grandes corporações agora intervêm em questões e controvérsias sociais e políticas, participando de um novo ativismo corporativo. As corporações recém-“woke” apoiam grupos ativistas e movimentos sociais, enquanto somam suas vozes aos debates políticos. O capitalismo woke endossou o Vidas Negras Importam, o Movimento #MeToo, o feminismo contemporâneo, os direitos LGBTQ e o ativismo a favor da imigração, entre outras causas de esquerda.
Como podemos entender o capitalismo woke, se ele é eficaz e, em caso afirmativo, por quê? Enquanto isso, o que agora se entende por “justiça social” e é uma coisa boa? Como se vê, analisar o capitalismo woke nos diz muito sobre o capitalismo corporativo contemporâneo, a esquerda política contemporânea e a relação entre os dois. Também lembra um esquerdismo corporativo anterior, como discutirei mais adiante.
Quanto à justiça social, alguns se lembrarão dos movimentos de justiça social do século XX. O movimento dos Direitos Civis vem à mente. Mas, devido à influência das ideias teóricas pós-modernas e das técnicas disciplinares soviéticas e sino-comunistas, a justiça social assumiu novas e distintas características. Enquanto o movimento de liberdade de expressão no campus era uma marca da justiça social na década de 1960, confrontos violentos travados contra a liberdade de expressão e a liberdade acadêmica agora estão associadas ao termo. Eventos que se desenrolaram em campi universitários, incluindo Yale, Universidade de Nova York, UC Berkeley, Middlebury College, Evergreen State College e muitos outros, ostentam as insígnias de justiça social.
Entre outras noções teóricas pós-modernas, o credo de justiça social contemporâneo baseia-se no “construtivismo social e linguístico”, uma premissa epistemológica derivada da teoria pós-moderna que sustenta que a linguagem constitui a realidade social (e muitas vezes toda), em vez de meramente tentar representá-la. Sob o construtivismo social e linguístico, a linguagem é considerada um agente material – seus usos, como equivalentes a atos físicos. Essa crença explica o termo “violência discursiva”. Para o crente em justiça social, a linguagem pode decretar a violência por si só, sem ações concomitantes.
O credo de justiça social de hoje é marcado por preocupações com novas identidades e suas políticas. Envolve uma ampla paleta de crenças e práticas, representadas por novas preocupações e xiboletes, incluindo “privilégio”, “privilégio branco”, “verificação de privilégios”, “autocrítica”, “apropriação cultural”, “interseccionalidade”, “violência discursiva”, “cultura do estupro”, “microagressões”, “mansplaining”, “manspreading” e muitos outros. Os termos proliferam quase tão rapidamente quanto as identidades de gênero.
Criticar a si mesmo e a verificação de privilégios são os vestígios da “autocrítica” e das “sessões de luta“, métodos de purificação da Revolução Cultural Chinesa (1966-76). No final da década de 1960, à medida que a notícia do renascimento comunista se espalhou para o Ocidente através dos movimentos estudantis e feministas da Europa, especialmente da França, berço da teoria pós-moderna, eles se tornaram parte do vocabulário e do kit de ferramentas da esquerda ocidental. Nas sessões de luta, o culpado – acusado de egoísmo, ignorância e adoção da ideologia burguesa – foi alvo de agressões verbais e muitas vezes físicas por parte de seus companheiros, até que ele quebrasse e confessasse suas falhas caracterológicas e ideológicas. Hoje, as confissões envolvem privilégio, ou a vantagem não merecida desfrutada por membros de um grupo dominante com base na aparência. Geralmente sob demanda, verificar o privilégio significa reconhecer a vantagem não conquistada e expiá-la publicamente. Enquanto isso, na Revolução Cultural Chinesa, a autocrítica começou com o culpado, que se submeteu a uma brutal autoinspeção verbal e difamação diante do júri de seus companheiros. Sessões de autocrítica e luta poderiam levar à prisão ou à morte, já que o camarada era muitas vezes considerado insuficientemente puro. Nas rotinas de críticas impostas e “exposição”, formas suaves de autocrítica e sessões de luta tornaram-se predominantes na Internet em algum momento após 2009. Depois, infiltraram-se nas universidades e em outros espaços sociais.
“Interseccionalidade” é a estrutura axiomática de hierarquização da opressão que estabelece uma nova hierarquia de justiça social baseada nas multiplicidades da opressão, na medida em que elas podem se cruzar e afetar sujeitos em múltiplas categorias sociais supostamente subordinadas. Não é nada além do que uma balança para pesar a opressão. Em seguida, inverte a hierarquia supostamente existente com base nesse ranking de opressão interseccional, movendo os de baixo para o topo e vice-versa. Essa não é uma característica temporária da justiça social, mas representa uma inversão hierárquica que deve ser mantida para gerar o animus e o ressentimento necessários para continuar alimentando o movimento.
Este sistema de classificação começou com o trabalho do crítico literário húngaro e soviético e filósofo marxista György Lukács. Em seu livro História e Consciência de Classe ([1923] 1971), Lukács introduziu uma forma de epistemologia que teve um impacto descomunal desde então, servindo como fonte para a teoria pós-moderna e a justiça social. A noção de justiça social de que cada pessoa tem sua própria verdade com base em seu tipo particular de subordinação pode ser rastreada a Lukács. Ele argumentou que a posição única da classe trabalhadora dentro da ordem social e das relações de produção fornecem ao proletariado um ponto de vista privilegiado para discernir a verdade objetiva e chamou a teoria de “epistemologia do ponto de vista proletário”. Lukács argumentava que a realidade sob o capitalismo é uma única realidade objetiva. Mas o proletário tem uma relação peculiar com a realidade objetiva. O mundo objetivo atinge o proletário de forma diferente do capitalista. Como o capitalista, o proletário é um sujeito autoconsciente. No entanto, ao contrário do capitalista, o proletário também é uma mercadoria, um objeto à venda no mercado. A consciência do proletário da mercantilização de sua individualidade contradiz sua experiência como sujeito vivo, uma pessoa com uma existência subjetiva. A “autoconsciência da mercadoria” do proletariado (isto é, ele mesmo) explica o antagonismo da classe trabalhadora em relação ao capitalismo tal como Lukács o via. Enquanto o proletariado compreende plenamente a contradição de sua mercantilização autoconsciente, a classe só pode chegar a um acordo com a contradição subvertendo e abolindo as condições existentes.
Teóricas pós-modernas e feministas mais tarde se apropriaram da epistemologia do ponto de vista e a sifonaram através de vários filtros de identidade. Essa é a raiz da crença contemporânea de justiça social na conexão entre identidade e conhecimento. A justiça social sustenta que a pertença a um grupo identitário subordinado concede aos membros acesso exclusivo a um conhecimento particular, ao seu próprio conhecimento. Membros de grupos identitários dominantes não podem acessar ou compreender o conhecimento de outros subordinados. Por exemplo, um homem branco “cishetero” (um homem branco hétero que aceita o gênero que lhe foi “atribuído no nascimento”) não pode ter a experiência de uma lésbica negra e, portanto, não pode acessar ou entender seu conhecimento. Indivíduos dentro de grupos identitários subordinados também têm seu próprio conhecimento individual. Para os crentes em justiça social, o conhecimento é pessoal, individual e impenetrável para os outros. Chamo essa noção de conhecimento de “solipsismo epistemológico”. Sob a visão de mundo da justiça social, todos estão presos em uma identidade impenetrável com acesso a um conhecimento pessoal que ninguém mais pode alcançar.
Portanto, a ideologia da justiça social não fomenta o igualitarismo. A classificação é mantida, apenas a parte inferior se torna a parte superior quando o totem da identidade é inevitavelmente virado de cabeça para baixo e fica de ponta-cabeça. É de se admirar, então, que guerreiros da justiça social concorram bravamente pelo status de “mais subordinados” nos jogos pejorativamente chamados de “Olimpíadas da Opressão”? A corrida para o fundo é realmente uma corrida para o topo – embora a corrida corra ladeira abaixo.
Tanto sua epistemologia quanto sua ontologia – seus pressupostos sobre como se adquire conhecimento, quem pode saber e a natureza dos objetos de conhecimento – são impostas com autoritarismo. Afirmações feitas em nome de crenças corretas, redação correta e nomeação adequada – isto é, a própria linguagem – superam as evidências empíricas e anulam descobertas e métodos científicos antecipadamente. Assim, a justiça social representa um entendimento inteiramente novo, bastante distinto das versões anteriores. Também envolve práticas e métodos totalmente diferentes para implementá-la. As reivindicações construtivistas sociais e linguísticas dos ideólogos da justiça social equivalem a uma forma de idealismo filosófico e social que é imposta com um absolutismo moral. Uma vez que as crenças não são restringidas pelo mundo objeto e as pessoas podem acreditar no que quiserem impunemente, a possibilidade de assumir uma pretensão de infalibilidade torna-se quase irresistível, especialmente quando o poder necessário está disponível para sustentar tal pretensão. De fato, dada a sua determinação voluntária da verdade e da realidade apenas com base em crenças, o idealismo filosófico e social torna-se necessariamente dogmático, autoritário, antirracional e efetivamente religioso. Uma vez que não sanciona nenhuma resistência do mundo objeto e o vê com indiferença ou desdém, ele necessariamente encontra resistência do mundo objeto e deve redobrar seus esforços. Por conter tantas bobagens, o idealismo social e filosófico do credo de justiça social deve ser estabelecido pela força, ou pela ameaça da força.
Hoje, discutirei algumas manifestações contemporâneas de “justiça social”, mas não como acontece na academia, tema que tratei em meu livro mais recente, Primavera para flocos de neve: ‘Justiça Social’ e sua parentalidade pós-moderna (2018). Em vez disso, meu tópico hoje é a “justiça social” das corporações americanas com fins lucrativos. Embora considerado novo, mostrarei que o “capitalismo woke” é apenas um subconjunto e um tipo recente de um ethos corporativo mais amplo e duradouro que chamo de “esquerdismo corporativo”. O capitalismo woke também ajuda a entender o tema do meu próximo livro, Archipelago Google, um estudo sobre as grandes empresas de tecnologia digital – os serviços de megadados; serviços de mídia, cabo e internet; plataformas de mídia social; Aagentes de Inteligência Artificial (IA); apps; e o desenvolvimento da Internet das Coisas. O Arquipélago do Google não é apenas um amálgama de interesses comerciais digitais. Ela opera e operará cada vez mais como o que o único teórico pós-moderno que se salva, Michel Foucault, chamou de “governamentalidade”, um meio de governar a conduta das populações, mas também as tecnologias de governança e a racionalidade que sustenta as tecnologias.[1]
Apesar da reação inicial, a campanha publicitária “Believe in Something” da Nike com Colin Kaepernick – que se ajoelhando durante o hino nacional remeteu a um protesto #VidasNegrasImportam na NFL – impulsionou drasticamente as vendas da Nike. O sucesso do anúncio apoiou a teoria do colunista do Business Insider Josh Barro (2018) de que o capitalismo woke fornece uma forma de representação parapolítica para os consumidores corporativos. Dada a sua percepção de privação de direitos políticos na esfera política, o capitalismo woke oferece representação na esfera pública.[2]
Com o wokísmo, argumenta Ross Douthat (2018), do New York Times, as corporações oferecem aos trabalhadores e clientes placebos retóricos em vez de concessões econômicas mais caras, como salários mais altos e melhores benefícios, ou preços mais baixos. Sem uma revolução socialista, o Green New Deal da deputada Alexandria Ocasio-Cortez parece improvável de se concretizar.[3] Douthat sugere que o capitalismo woke funciona substituindo o valor simbólico pelo valor econômico. Os mesmos gestos de wokísmo também podem apaziguar a elite política progressista, promovendo suas agendas de políticas de identidade, pluralismo de gênero, transgeneridade, padrões de imigração frouxos, cidades-santuário e assim por diante. Em troca, as corporações woke esperam ser poupadas de impostos mais altos, regulamentações mais altas e legislação antitruste voltada para monopólios.[4]
Enquanto isso, pelo menos uma corporação woke parece decidida a repreender seus clientes. Refiro-me à Gillette (2019) e ao seu anúncio “We Believe“. Assim como a Nike, a Gillette é uma subsidiária da Proctor & Gamble. Publicado pela primeira vez em suas redes sociais em meados de janeiro de 2019, o anúncio condescendentemente ensina homens, presumivelmente “cishetero”, sobre “masculinidade tóxica”. No anúncio provocativo, três homens se olham em espelhos separados – não para fazer a barba, mas para examinar a si mesmos em busca de vestígios da temida condição. As locuções admoestam os homens “a dizer a coisa certa, a agir da maneira certa”. Dramatizações de bullying, mansplaining, misoginia e predação sexual envergonham homens maus e obrigam uma minoria de homens a “responsabilizar outros homens”, ou então enfrentar vergonha também.
Para a Gillette, se “barbear” agora aparentemente significa cortar as características associadas à masculinidade agora consideradas patológicas pela Associação Americana de Psicologia.[5] Para evitar o início súbito ou a recaída da doença humana, os auto-abusadores devem exercer vigilância, auto-escrutínio mordaz e determinação inabalável. Mesmo que sua malignidade de gênero tenha sido “socialmente construída”, os homens são responsáveis por discernir e extirpar imediatamente seu florescimento. O anúncio da Gillette prescreve, assim, uma nova higiene de gênero pela qual tais brutos podem “evoluir, aperfeiçoando a besta”,[6] tornando-se “O Melhor que um Homem Pode Ser”, um animal recém-tosquiado, ou melhor, um novo tipo de homem despido de animalidade.
Assim como o anúncio da Nike com Kaepernick, o anúncio da Gillette “We Believe” provocou uma reação significativa. Mas a resposta executiva da controladora Proctor & Gamble ao furor que se seguiu sugeriu que a corporação estava disposta a abrir mão dos lucros por pontos de virtude, pelo menos por enquanto. Jon Moeller, CFO da Proctor & Gamble, disse a repórteres que as vendas pós-anúncio estavam “em linha com os níveis de pré-campanha”. Ou seja, em termos publicitários, o anúncio foi um fracasso. No entanto, Moeller viu os gastos como um investimento no futuro. “É uma parte do nosso esforço para nos conectarmos de forma mais significativa com grupos de consumidores mais jovens”,[7] explicou ele, talvez referindo-se àqueles jovens demais para ostentar a barba rala tóxica.
Insatisfeito com as explicações acima, ainda me perguntava como e por que as corporações assumiram o papel de árbitros de justiça social e como e por que a justiça social passou a ser a ideologia das grandes corporações norte-americanas.[8] Mas antes de me aventurar em minha própria teoria, no entanto, gostaria de retraçar uma história do esquerdismo corporativo, que lançará luz sobre a relação entre esquerdismo e corporativismo.
O esquerdismo corporativo tem uma longa história, que remonta pelo menos ao final do século XIX e início do século XX. Eu reconheci pela primeira vez o esquerdismo corporativo através das histórias que documentaram o financiamento da revolução russa e de outras revoluções socialistas pelos principais capitalistas e banqueiros dos EUA. Como Richard B. Spence (2017) corajosamente declara em Wall Street e a Revolução Russa 1905-1925, o termo “socialista-capitalista” não é um oximoro.
Spence não se referia às chamadas “economias mistas”, mas a uma falsa dicotomia, um acasalamento de duas supostas antinomias econômicas, socialismo e capitalismo. Entender por que o termo não é um oximoro não depende necessariamente do conhecimento histórico descoberto por Spence e, antes dele, por Antony C. Sutton (2016) – embora, por ser historiador, tenha achado esse material revelador. Mas a aparente contradição nos termos baseia-se numa descaracterização dos opostos econômicos e numa incapacidade de detectar no nome original para o campo da economia, ou seja, “economia política”, a possibilidade inerente a tal conjunção. Os verdadeiros opostos não são o capitalismo e o socialismo, mas sim a liberdade individual versus o controle político centralizado, seja ele estatista ou corporativo.
De acordo com Wall Street e FDR (1975), de Sutton, “o socialismo corporativo é um sistema onde aqueles poucos que detêm os monopólios legais do controle financeiro e industrial lucram às custas de todos os outros na sociedade”. Para Sutton, “a descrição mais lúcida e franca do socialismo corporativo e seus costumes e objetivos encontra-se em um livreto de 1906 de Frederick Clemson Howe, Confissões de um monopolista. Ao tentar validar a referência de Sutton a Howe como o prototípico monopolista ou mesmo socialista corporativo, fiquei desapontado, mas acabei achando a excursão gratificante.
Começando com Wall Street e a Revolução Russa 1905-1925, de Spence, que tinha o mesmo título de um dos principais livros de Sutton, exceto por um intervalo de datas adicional, procurei desesperadamente por “Howe” e “Confissões de um Monopolista”. (Na verdade, como é meu hábito, eu procurei textos eletrônicos e a versão Kindle de Spence, então minha pesquisa não produziu nada parecido com um desespero. Mas sou nostálgico de um passado que nunca conheci, quando nos romances do século XIX, as pesquisas de personagens fictícios como Victor Frankenstein resultaram em frenesis com risco de vida.)
Meu problema era que eu queria introduzir o esquerdismo corporativo e o socialismo corporativo referindo-me a uma sitcom de televisão dos anos 1970, ou seja, Gilligan’s Island. Alguns de vocês terão idade suficiente e terão vindo de origens tão plebeias quanto a minha para recordar este programa. A situação para este “programa de TV burro”, como bem disse o estudioso de Mises B.K Marcus, é uma pequena comunidade de sete náufragos americanos em uma ilha deserta. Por ter ido ao ar nos anos 1960, Gilligan’s Island é um conto coletivista de Robinson Crusoé com pretexto socialista. Cada personagem representa uma estação de vida diferente em um mundo perdido de individualismo, lançado a partir de uma divisão de trabalho que é tornada absurda e muito menos inaplicável pela vida social e econômica da deserção. Como o criador e produtor da série, Sherwood Schwartz, era pelo menos um marxista inconsciente, a sitcom demonstrou episódio após episódio que “na sociedade comunista… ninguém tem uma esfera exclusiva de atividade.” Atriz, professora, mulher milionária e “todo o resto” devem “caçar de manhã, pescar à tarde, criar gado à noite, criticar depois do jantar” (Marx [1845] 1968). Eles devem superar as especializações limitadas que lhes são impostas pela ordem capitalista. Isso vale para todos na ilha, exceto, ao que parece, para o monopolista, Thurston B. Howell III.
Embora seus nomes não fossem idênticos, eles eram quase homônimos e eu esperava conectar Frederic Howe e Thurston B. Howell. Eu não tinha sido tão sanguinário a ponto de esperar que Thurston Howell tivesse sido batizado diretamente em homenagem a Frederic Howe. Afinal seus nomes eram grafados de forma diferente. No entanto, eu ainda esperava alguma referência. E ambos eram monopolistas, ou assim eu pensava.
Spence não mencionou Howe como o modelo monopolista ou socialista corporativo. Na verdade, ele curiosamente omitiu qualquer referência ao nome de Howe e seu “livro de regras”. Chegando vazio em uma publicação tão cognata, comecei a me sentir corado e um pouco em pânico. (Como você sabe, nós, estudiosos das humanidades, somos suscetíveis à hiperemocionalidade.) Também não consegui encontrar qualquer menção a Frederic Howe em conexão com Thurston B. Howell. E, embora algumas primeiras resenhas de Confissões tomassem o livro ao pé da letra e chegassem à mesma conclusão que Sutton, que representava a autobiografia de um verdadeiro monopolista revelando seus segredos, mesmo a avaliação mais superficial da vida do doutor Frederic Howe e de outras obras teria rapidamente desautorizado qualquer um que não fosse o polemista mais tendencioso da ideia de que as Confissões de Howe era um livro de regras ou manual de instruções para monopolistas. Howe não era nada parecido com o magnata corporativo ou megabanqueiro que Sutton sugeriu que ele era, e por isso ele não poderia ter ajudado a bancar a criação de “um mercado cativo e uma colônia técnica a ser explorada por alguns financistas americanos de alto poder e as corporações sob seu controle”, ou seja, a União Soviética. Em primeiro lugar, Howe obteve um Ph.D. da Universidade Johns Hopkins. Um verdadeiro monopolista esperaria por um diploma honorário. Além disso Confissões de um monopolista não era sequer uma autobiografia, era uma sátira mordaz, uma crítica aos monopólios e monopolistas, escrita por um reformador progressista e depois estadista FDR. Como se viu, tanto Howe quanto Howell tinham sido monopolistas fictícios.
No entanto, o Thurston Howell na Gilligan’s Island era certamente algo como o monopolista estereotipado descrito no livro de Frederic Howe. Como o personagem de Confissões, a regra número um de Howell era “fazer a sociedade trabalhar para você”. Thurston Howell certamente conseguiu comandar o trabalho e a deferência de seus companheiros de ilha. Como Marcus (2004) observa em “The Monetary Economics of Thurston Howell III”, Howell foi capaz de comandar mão de obra e bens em virtude de seu status fora da ilha, para adquirir bens e serviços escrevendo cheques sacados em bancos dos EUA. O fato de que essa moeda fiduciária funcionava na ausência do governo que a apoiava sugere que o dinheiro opera de acordo com um processo evolutivo cultural e lamarckiano. A característica fiduciária imposta pelo governo é uma característica adquirida que é repassada por meio de transações geracionais futuras e mantém essas características mesmo depois que sua base em vigor desaparece – pelo menos até que seja substituída e, às vezes, até depois disso. Como Mises mostrou, o valor de uma moeda é histórico e o estudo das moedas deve ser historicista.
A expressão de Howell de desiderata monopolista, no entanto, é melhor expressa no episódio 9, “The Big Gold Strike”, (Warner Bros. Entertainment [1964] 2013), quando Gilligan, atuando como carregador de tacos de golfe de Howell, cai em um buraco gigante onde ele percebe algo dourado embutido nas paredes da caverna. Naturalmente, Howell reconhece o ouro e assume que é sua propriedade. Afinal, Gilligan estava em seu emprego, embora enganado por uma moeda fiduciária falsa. Howell jura a Gilligan sigilo para garantir sua propriedade contra o acordo dos ilhéus de que todas as propriedades na ilha seriam comunitárias. Mas logo a mina é descoberta pelo resto da comunidade. A falta de confiabilidade do Estado parece explicar o problema de Howell em garantir direitos exclusivos de mineração de ouro. Gilligan é o presidente nominal e ineficaz da ilha e um bufão que não tem poder. Mas o fracasso de Howell como monopolista é mais fundamental. Embora ele seja perfeitamente capaz de “deixar os outros trabalharem para você”, ele não conhece a linguagem ou os caminhos do socialismo corporativo e não entende como estabelecer o monopólio dentro de tal Estado. Em vez de ceder continuamente expressões de flagrante interesse próprio, um socialista corporativo colocaria suas ambições monopolistas na linguagem da igualdade.
Em vez de Frederic Howe, King Camp Gillette teria fornecido um modelo muito melhor para Thurston Howell. O fundador da American Safety Razor Company em 1901, que mudou seu nome para Gillette Safety Razor Company em 1902, Gillette publicou The Human Drift em 1894. Embora reconhecesse que “[nenhum] movimento de reforma pode ser bem-sucedido a menos que esse movimento leve em consideração o poder do capital, e se baseie nos métodos de negócios atuais, e esteja em conformidade com as mesmas leis” (4), The Human Drift de Gillette criticou a concorrência, que ele acreditava ser “a fonte prolífica da ignorância e de toda forma de crime, e que aumenta a riqueza de poucos às custas de muitos… O atual sistema de competição entre indivíduos resulta em fraude, engano e adulteração de quase todos os artigos que comemos, bebemos ou vestimos.” A concorrência resultou em “um desperdício de material e mão de obra além do cálculo”. A competição era a fonte do “egoísmo, da guerra entre nações e indivíduos, do assassinato, do roubo, da mentira, da prostituição, da falsificação, do divórcio, do engano, da brutalidade, da ignorância, da injustiça, da embriaguez, da insanidade, do suicídio e de todos os outros crimes, [que] têm sua base na competição e na ignorância. Isso explica o recente anúncio da Gillette; a empresa finalmente descobriu que a raiz da concorrência e, portanto, de todo o mal, é a masculinidade tóxica.
Mas o socialista corporativo King Camp Gillette pode muito bem ter patenteado a navalha de segurança descartável para evitar que tantas pessoas desesperadas cortassem suas gargantas – pelo menos até que percebessem a resposta para todos os seus problemas, que ele havia introduzido em Human Drift: um monopólio singular, que controlaria “naturalmente” toda a produção e distribuição, especializada em tudo, de modo que “todo artigo vendido ao consumidor, desde a embalagem até seu conteúdo, será produto da Empresa Unida “. Sob a Empresa Unida, a produção dos bens necessários, e eventualmente de tudo, seria consolidada e centralizada, eliminando os desperdícios e perigos das muitas e amplamente dispersas fábricas e edifícios do atual sistema aleatório e caótico. A maioria das cidades e vilas seria “destruída”, assim como todos os concorrentes, já que a grande maioria da população se mudaria para “A Metrópole”, onde, alimentada pelas Cataratas do Niágara, toda a produção aconteceria e a vida de todos se concentraria em torno da corporação, cujo poder comercial e governamental seria total.
Para que não se pense que The Human Drift representava a travessura de um jovem idealista antes que ele chegasse a seus sentidos e fundasse uma empresa com reconhecimento de nome quase incomparável, Gillette publicou World Corporation em 1910, um prospecto para o desenvolvimento de um monopólio singular mundial. Mas, fundando sua empresa e patenteando sua navalha entre escrever esses dois tratados, o biógrafo de Gillette, Russel Adams, brincou: “Era quase como se Karl Marx tivesse parado entre O Manifesto Comunista e Das Kapital para desenvolver uma escova de dentes descartável ou pente dobrável”. (Adams, 1978)
Algumas passagens dae World Corporation devem ser suficientes para estabelecer Gillette como o socialista corporativo prototípico:
AS CORPORAÇÕES CONTINUARÃO A SE FORMAR, ABSORVER, EXPANDIR E CRESCER, E NENHUM PODER DO HOMEM PODE IMPEDI-LAS. Os promotores [da Corporação Mundial] são os verdadeiros socialistas desta geração, os verdadeiros construtores de um sistema cooperativo que está eliminando a concorrência e, de forma prática, alcançando resultados que os socialistas tentaram em vão alcançar por meio de legislação e agitação durante séculos (Gillette, 1910, p. 9).
A oposição à “WORLD CORPORATION” por indivíduos, por estados ou por governos será inútil. A oposição, em qualquer caso, só pode ter efeito temporário, as barreiras só centralizarão o poder e causarão maior impulso quando cederem (Gillette, 1910, p. 62).
A corporação dominará a produção material, mas também mental, como Gillette elogia a mente da colmeia:
A “WORLD CORPORATION” representa inteligência individual e força combinada, centralizada e inteligentemente dirigida. Os indivíduos são DA mente corporativa, mas não são A mente corporativa (Gillette 1910, p. 45).
E, como que antecipando a declaração de missão secreta do Google, Gillette escreveu:
A “WORLD CORPORATION” possuirá todo o conhecimento de todos os homens, e cada mente individual encontrará expressão completa através da grande Mente Corporativa.
Por fim, encerando poética no modo Ray Kurzweil, Gillette escreveu:
A “WORLD CORPORATION” terá vida eterna. O homem individual viverá sua vida e passará para o grande além; mas esta grande Mente Corporativa viverá através dos tempos, sempre absorvendo e aperfeiçoando, para a utilização e benefício de todos os habitantes da Terra.
Vale notar que as práticas comerciais de Gillette não estavam totalmente em desacordo com as ideias de seus livros. Fiel aos seus impulsos monopolistas, ele regularmente registrou patentes e, em 1917, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a empresa forneceu a cada soldado um kit de barbear, pago pelo governo dos EUA. Mas será que as expressões de socialismo corporativo de Gillette realmente ajudaram seus esforços de negócios, ou apenas aliviaram sua consciência culpada? Não podemos ter certeza, mas especular sobre os objetivos dos esquerdistas corporativos de hoje pode ajudar a entender a retórica desses esquerdistas corporativos do passado.
O rebranding de justiça social corporativa de hoje representa pelo menos uma derrubada retórica da visão extremamente estreita de Milton Friedman sobre a responsabilidade corporativa. Em Capitalismo e Liberdade ([1962] 2002), Friedman declarou que a “primeira e única ‘responsabilidade social’ das empresas” é “aumentar os lucros”.[9] Friedman ganhou o Prêmio Nobel de Economia em 1976 e, em meados da década de 1980, a noção de “responsabilidade social” corporativa limitada de Friedman tornou-se amplamente aceita.
No entanto, o capitalismo woke ainda pode satisfazer a máxima de Friedman de apenas lucro. Se todo o mundo é um palco, então o papo corporativo de clichês de justiça social pode ser uma encenação e, portanto, uma paródia ridícula. Ser verdadeiramente woke, então, pode significar que alguém está a par das encenações das corporações woke, dos consumidores woke-crentes, e talvez até mesmo de todas as demandas do wokísmo. Essa explicação é consistente com a necessidade de lucro e permite que alguém de pouca atenção as virtudes corporativas recém-encontradas. É uma farsa cínica e prova mais do que nunca que a chicana das corporações e seus donos bilionários não tem limites. Essa visão é semelhante à defendida por Anand Giridharadas (2019), crítico dos bilionários woke e autor de Os vencedores levam tudo.[10]
Agora, por mais tentador que seja esse cinismo de “pós-verdade”, ele não explica a promoção de visões woke ou esquerdistas por parte das corporações e os efeitos que tais promoções podem ter em tornar suas bases de consumidores mais esquerdistas, circunstância com a qual terão que lidar em algum momento. Indiscutivelmente, as corporações não adotariam e, portanto, potencialmente espalhariam opiniões políticas apenas para acalmar um contingente de consumidores, a menos que tais visões finalmente se alinhassem com seus próprios interesses. Somos levados a se perguntar qual política serviria melhor aos interesses dos esquerdistas corporativos, especialmente aspirantes a socialistas corporativos.
Para beneficiar esquerdistas corporativos, socialistas corporativos ou qualquer governamentalidade e produtor singulares monolíticos, um credo político provavelmente colocaria uma forte ênfase na igualdade. Tal ênfase provavelmente seria acompanhada de vergonha dos privilegiados, juntamente com exigências para que eles abram mão de suas vantagens. Para enfatizar a igualdade, o credo que beneficia a esquerda corporativa reconheceria os refugiados, os desamparados e, pelo menos em teoria, seria internacionalista em vez de nacionalista ou nativista. Ao declarar igualdade, o credo político da esquerda corporativa pode, no entanto, enfatizar a diferença – entre grupos identitários e mesmo dentro deles – e pode se beneficiar da criação de tipos identitários totalmente novos. Tal credo manteria consistentemente os grupos identitários preocupados com o fato de estarem ou não perdendo terreno para outros grupos identitários, em vez de se preocuparem com o socialista corporativo. As palavras de ordem podem incluir “equidade, inclusão e diversidade”. Sempre na vanguarda, a esquerda corporativa acolheria a promoção do novo e a ruptura do velho, mas sempre com o aprimoramento em mente. Um credo político que visasse desmantelar o gênero tradicional, a família, os costumes locais, a tradição e até mesmo a memória histórica removeria os últimos bastiões contra o poder estatal ou corporativo. Em última análise, o esquerdista corporativo ou socialista corporativo se beneficiaria de um monopólio governamental singular, com um conjunto de regras. Como observou Gillette, o ideal seria que esse governo global fosse a própria corporação.
Assim, o capitalismo woke ou o esquerdismo corporativo não consiste apenas em placebos retóricos, concessões simbólicas ao invés de econômicas, ou mesmo o mero apaziguamento das elites políticas progressistas. O capitalismo woke ou esquerdismo corporativo na verdade representa os interesses corporativos do pretenso monopolista, do socialista corporativo e do esquerdista corporativo em geral.
Artigo original aqui
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Notas
[1] Michel Foucault introduziu o termo “governamentalidade” em uma série de palestras de 1977 a 1979. Pela racionalidade que sustenta as tecnologias de governança, Foucault entendeu o modo como o poder racionaliza as relações de poder consigo mesmo e com os governados.
[2] Ver Martinez (2018).
[3] Ver Levitz (2018).
[4] Ver Douthat (2018).
[5] Ver Pappas (2019). Esses traços prejudiciais incluem “estoicismo, competitividade, domínio e agressividade”.
[6] Tennyson (1850, 183). Ao “aperfeiçoar a besta”, Alfred Lord Tennyson pretendia erradicar a baixeza moral da natureza animal, em vez de estabelecer uma utopia terrena, como seu antecessor William Godwin havia sugerido, ou remover os traços associados principalmente aos homens devido à seleção evolutiva.
[7] Meyersohn (2019).
[8] Para um resumo da relação entre ativismo social corporativo e ativistas políticos, ver Lin (2018).
[9] Em 1962, Friedman argumentou contra o valor da “responsabilidade corporativa” que é expresso pelo capitalismo woke. Em uma seção intitulada “Responsabilidade Social das Empresas e do Trabalho”, Friedman escreveu: “A visão vem ganhando aceitação generalizada de que funcionários corporativos e líderes trabalhistas têm uma ‘responsabilidade social’ que vai além de servir aos interesses de seus acionistas ou de seus membros. Essa visão mostra um equívoco fundamental sobre o caráter e a natureza de uma economia livre. Em tal economia, há uma única responsabilidade social das empresas – usar seus recursos e se envolver em atividades destinadas a aumentar seus lucros, desde que se mantenha dentro das regras do jogo, ou seja, engaje-se em concorrência aberta e livre, sem engano ou fraude.” Friedman ([1962] 2002).
[10] Ver Feloni (2019).