Thursday, November 21, 2024
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Impor o ‘Princípio da Neutralidade de Rede’ é o melhor para a Internet?

logo_neutralidade_redeUm dos assuntos mais discutidos atualmente na prestação de serviços de telecomunicações, em especial o serviço de acesso a Internet, é a respeito da chamada neutralidade de rede. Há um sem número de artigos temáticos, com argumentos a favor e contra a proposta. Tal assunto, aparentemente transvestido de questão prioritariamente técnica tem repercussões que podem ser muito importantes para a Internet e para a comunicação através dessa rede. Desta maneira, o presente artigo tem como proposta abordar esse tema, fazendo uma análise das principais opiniões do tema e apresentando uma linha argumentativa com uma perspectiva calcada na teoria da Escola Austríaca de Economia.
Apresentando conceitos

Inicialmente, há necessidade de definir o que é neutralidade de rede. Tecnicamente, a neutralidade de rede pode ser definida como tradução de network neutrality que consiste no princípio de desenho da rede de comunicações, segundo o qual esta rede ou quem a opera, seja em que nível for, deve ser neutra em relação aos pacotes de conteúdo que por ela transitam[1]. Na prática, neutralidade de rede significa que todas as informações que trafegam na rede devem ser tratadas da mesma forma. Em uma definição mais cristalizada, Sergio Silveira sintetiza o seguinte: “o dono das redes físicas deve ser neutro em relação ao tráfego de informações. Na prática, a neutralidade impede que as Operadoras da Telecom possam bloquear pacotes de dados, filtrar o tráfego e definir que tipo de aplicações podem andar mais ou menos rápido dentro dos seus cabos e fibras óticas”.[2]

Talvez, a melhor maneira para ter um entendimento próximo ao princípio da neutralidade de rede (PNR) é mostrar alguns exemplos de redes não-neutras. O primeiro exemplo é a rede dos Correios e serviço de entrega rápida (Sedex), o segundo é a rede rodoviária e o tráfego de veículos em uma estrada. No caso dos Correios, o cliente paga mais caro para um entrega mais rápida daquele pacote de correspondência. O pacote tem prioridade no uso da rede de logística dos Correios. Nesse caso, não importa o pacote ser meramente uma simples carta ou alguma encomenda. Não há discriminação do conteúdo, mas de velocidade. Já para as cartas comuns a rede logística dos Correios é “neutra”.

No exemplo da rodovia, há alguma diferenciação de tráfego na estrada. Os exemplos de exceções ao princípio da neutralidade nesse caso se dão basicamente por motivo de segurança: ambulâncias e viaturas policiais têm preferência de passagem e podem trafegar mais rápido, já veículos pesados têm limitações de velocidade e deve dar passagem aos mais leves, para todos os demais veículos não há discriminação. Nesse segundo caso há uma discriminação por tipo de “pacote” (tipo do veículo) que trafega. Fosse o caso de qualquer veículo trafegar na mesma velocidade a rodovia seria “neutra”.

Definindo a problemática

Entendido o conceito de neutralidade de rede, é importante mencionar, conforme Guilherme P. Pinheiro preconiza, que a Internet não possui uma administração centralizada, mas constitui um esforço comum de inúmeras organizações, governos, empresas privadas para sua operacionalização.

Desta maneira, atualmente não existe uma regulação internacional, ou mesmo nacional, sistematizada e geral para a rede mundial de computadores. Por isso os autores Costa do Vale, Coutinho e Alves Jr. seguem a linha de Pinheiro e argumentam que tanto a administração quanto a operação da Internet são descentralizadas, apenas alguns serviços tais como definição de padrões e pesquisas e ainda a distribuição dos endereços são administrados por instituições regulamentadoras.[3] Nessa linha, informam que enquanto no Brasil o principal orgão de administração da rede é o Comitê Gestor Internet no resto do mundo as principais instituições são listadas abaixo:

•The Internet Society (ISOC) — procura orientar a pesquisa e utilização através de fóruns, debates e publicações.

•The Internet Architeture Board (IAB) — fundada em 1983 e integrada ao ISOC em 1992, coordena os grupos IETF e IRTF descritos abaixo, na pesquisa e desenvolvimento envolvidos no funcionamento da Internet.

•The Internet Research Task Force (IRTF) — grupo de pesquisadores que se dedicam a projetos de longo prazo referentes ao funcionamento da Internet.

•The Internet Engineering Task Force (IETF) — grupo de pesquisadores responsáveis pelo desenvolvimento de padrões a serem divulgados através de Request for Comments (RFC) que no princípio tinham a intensão de serem propostas e tornaram-se padrões oficiais da Internet.

•The Internet Network Information Center (InterNIC) — composto de 3 instituições (AT&T, PSI e General Atomics) que organizam a distribuição dos endereços e registros de domínios e também das RFC’s.

•The Internet Assigned Numbers Authority (IANA) — mantido pelo Instituto de Ciência e Informação da Universidade do Sul da Califórnia, controla a distribuição dos identificadores para serviços a serem oferecidos pela Internet.

Entende-se assim que na Internet, hoje em dia, prevalece um ambiente aonde inexiste (ao menos de forma generalizada) a regulação coercitiva estatal. Logo o princípio de neutralidade de rede (PNR) não é imposto aos agentes que atuam na rede[4]. Tanto para os provedores de conteúdo (todos os usuários no fim das contas), quanto para os provedores de infraestrutura (a rede física em si). Pode-se dizer que esse princípio surge de padrões compactuados espontaneamente e tão livres quanto se possam ser. Assim, esse princípio de total isonomia no tratamento dos pacotes de informação emerge, no limite do possível, de uma ordenação espontânea dos agentes atuantes no mercado.

Escassez na Internet e a neutralidade de rede

Entendendo-se a definição do conceito de PNR no contexto do presente artigo e traçado o panorama atual da rede, aonde há a predominância de tal conceito através de uma interação não regulamentada da rede, lançamos algumas questões. Qual o sentido para se demandar alguma intervenção estatal com o intuito de impor esse princípio a quem desenha a rede? E quais os potenciais impactos de uma intervenção como essa? Nesses casos, é possível que uma pista inicial de resposta possa ser analisar tais impactos sob a perspectiva do grau de escassez na rede.[5]

Desde que a Internet foi criada, a “batalha” entre os consumidores de capacidade de tráfego e os ofertantes dessa capacidade existe, e sempre irá existir. Os usuários e ofertantes de conteúdo sempre demandam mais e melhores conexões na sua infinita necessidade de comunicação, enquanto os provedores de infraestrutura buscam sempre inovações para ofertar mais capacidade e um menor custo possível.[6] Esse processo ininterrupto vem levando a Internet, ao longo dos anos, a aumentar a sua imensurável quantidade de conteúdo e seu próprio desenvolvimento. Ocorre que atualmente, o grau de escassez da rede provavelmente não seja suficiente grande para emergir a necessidade de acabar com a neutralidade de rede.

Em outras palavras, há sim alguma escassez na rede mundial de computadores. Há problemas de congestionamento de tráfego. Porém, para o nível de serviços ofertados atualmente e quantidade de conteúdo disponibilizada talvez seja possível que o princípio da neutralidade ainda seja viável, considerando apenas o atual estágio de evolução da Internet. Todavia, com a sempre crescente necessidade humana de mais comunicação, e com possibilidade infinita de se produzir informação, sempre será necessária cada vez mais banda larga. Isso sem considerar o aumento do numero de pessoas que não têm acesso à rede hoje e terão no futuro.

Em um cenário em que tanto quem consome quanto quem produz informação (no limite são as mesmas pessoas) têm infinito potencial, sempre haverá pressão destes agentes em cima daqueles que disponibilizam os meios da comunicação no sentido de aumentar a capacidade desses meios. Desta maneira, cravar que a Internet deve sempre ser neutra, apesar de haver possibilidades de novas tecnologias para aumentar a capacidade de tráfego é uma afirmação muito forçada, diante da incerteza do comportamento da demanda.

Assim sendo, pode ser que não estamos diante de um grau de escassez tão relevante que seja necessário, discriminar o tráfego na rede e criando uma espécie de mercado de prioridades de pacotes de informação. Se não é possível afirmar a necessidade da neutralidade de rede hoje, certamente, prever que tal princípio deve prevalecer no futuro é mais difícil ainda. Argumentar então que apenas a tal arquitetura deve prevalecer soa arrogância. É provável que não haja tanta Internet para ser “consumida” no futuro a ponto de atender a crescente demanda (mesmo com futuras tecnologias de capacidade), de forma a manter o privilégio de tratar todos os pacotes de informação de forma isonômica, como é feito hoje.

Por isso, a resposta à pergunta anteriormente apresentada deve considerar o efeito de impor aos agentes atuantes na rede essa limitação no modelo de gestão. Uma imposição como essa (via regulamentos) causa impacto não apenas na mensuração do grau de escassez da Internet como elimina a aplicação uma das variáveis para gestão da rede. No primeiro impacto, há uma imposição que impossibilita os agentes, atuando livremente, obter a correta valoração de quais pacotes de informação devem ser ou não priorizados. No segundo, os provedores perdem uma ferramenta que eventualmente pode ser bem interessante.

Prós e contras da imposição do princípio — controle de dados

Não me parece que os defensores do princípio da neutralidade levem em consideração a totalidade dos efeitos dessa imposição de modelo ao demandar regulação estatal para o PNR. Ainda assim, vamos fazer uma abordagem dos outros argumentos apresentados sobre o tema e a análise no impacto da regulação do PNR na alocação de recursos e no grau de escassez da Internet será resgatada a diante.

Um dos principais argumentos dos defensores do princípio da neutralidade de rede é que ao modificar tal arquitetura na Internet as companhias que ofertam a rede teriam o controle de filtrar sites ou conteúdos. As empresas poderiam decidir quais sites serão rápidos ou lentos ou nem carregarão, ou seja, não poderão priorizar seus próprios serviços enquanto diminuem a velocidade ou bloqueiam seus competidores. A Internet se transformaria em uma grande “rede de TV a Cabo”, aonde algumas companhias acabam por controlar o que os usuários veriam, e o quanto pagam.

Respeitosamente, não concordo com a linha argumentativa. Primeiramente, devemos ter em mente que quem dita o que vai acessar, assistir ou ler, é o consumidor (usuário). Se determinado provedor de conteúdo estiver fornecendo algum produto que seja valorado por muitos e muitos usuários é de interesse de quem fornece acesso não obstruir tal fornecedor de conteúdo, mas criar melhores maneiras para que os usuários tenham acesso a ele. Cabe lembrar que quanto mais conteúdo logo mais demanda por tráfego, e mais demanda logo mais potencial de venda de bytes.

Segundo lugar: dizer que as empresas de rede vão ditar preços é também desconhecer a dinâmica do mercado e a formação dos preços. A formação dos preços é decorrente de uma relação de troca e em última instância, os preços são determinados pelo julgamento de valores feitos pelos consumidores. Ludwig von Mises diz que cada indivíduo, ao comprar ou não comprar e ao vender ou não vender, dá a sua contribuição à formação dos preços de mercado.

Terceiro ponto: a perspectiva de bloquear sites “competidores” me aprece ser uma postura muito mais de sabotar seu próprio mercado — afinal os provedores de conteúdo também são clientes dos provedores de rede — do que atuar prejudicando potenciais oponentes. E mesmo que a possibilidade do bloqueio, filtro ou sabotagem de sites “concorrentes” ainda seja mais plausível cabe lembrar que caso ocorra uma discriminação negativa aos provedores de conteúdo, por parte dos provedores de rede, seria um imenso incentivo para entrada de novos competidores no mercado de infraestrutura de rede.

Os defensores do PNR não levam esse argumento em consideração. Acusam as empresas de infraestrutura de quererem apenas ampliar a sua “lucratividade”. Nesse caso está sendo desconsiderada uma das funções dos lucros, que em síntese é guiar e canalizar os fatores da produção, de modo a serem distribuídos seus milhares de artigos diferentes, em conformidade com a procura [7].

No caso em questão, havendo um ambiente de não neutralidade na Internet, se a ação de discriminação decorrer para maior lucratividade para as empresas de Telecom é um sinal que os próprios consumidores valorizam tanto esse serviço de forma que estimule a entrada de potenciais novos concorrentes na oferta de redes de telecomunicações.

Uma quarta questão é o fato que a imposição da neutralidade de rede pode inibir a transferência de ganhos de escopo e integrações verticais ou até ganhos de possíveis parcerias entre provedores de conteúdo e provedores de rede. A interpretação da necessidade de se impor o PNR pode chegar a tal ponto que há aqueles que acreditam que a disponibilização de um site, rede social ou congênere de forma não onerosa ao usuário é “prejudicial”. Alguns defensores do PNR entendem que “promoções” prejudicam a Internet![8] Ironicamente, a imposição desse princípio não deixa de ser também um desincentivo a inovação de novos produtos e serviços que possibilitariam dar desconto ou vantagens em conteúdos feitos pelo próprio provedor de rede.

Outro argumento a favor da neutralidade de rede seria que a atual cultura da liberdade seria substituída pela “cultura de permissão”. Sergio Amadeu Silveira argumenta: “Todo novo protocolo ou aplicação poderá ser bloqueado pelas Operadoras de Telecom com argumento de que não faz parte de sua política de tráfego. Será impossível um protocolo sem ter as teles como sócias ou, no mínimo, sem a sua autorização”.

O catastrofismo dessa afirmação parece extremamente sensacionalista e um pouco pretensioso, uma vez que o autor afirma que em ambiente não neutro nada que não tivesse na mão das “Teles” prosperaria. Cabe lembrar que no ambiente da tecnologia de informação e comunicação a história nos mostra exatamente o contrário. Apenas como exemplos podemos citar que o conceito do computador pessoal e ascensão da Microsoft surgiram mesmo com o “poder” da IBM, o Google surgiu do nada e o Facebook idem.

Uma vez entendendo que protocolos têm funções diferentes, em cada camada da rede, mas procuram sempre trazer mais eficiência na comunicação, não há nenhum motivo econômico para não adotar novos protocolos mais eficientes do que os previamente estabelecidos. Evidentemente, os ganhos desse novo grau de eficiência devem compensar custos de alteração do padrão anterior.

Outro argumento pró-neutralidade é o de que “qualquer violação à neutralidade da rede não envolverá investimento, ao contrário, acarretará em pagamentos por serviços desnecessários e duvidosos”. Os investimentos não seriam feitos para fornecer a usuários serviços mais rápidos, mas a não neutralidade objetivaria remuneração por parte de sites que desejam maior rapidez do que outros. Nesse caso, entende-se que o argumento está completamente errado, pois supondo que haja a criação dos tais serviços “desnecessários” é difícil de imaginar que o consumidor, ao perceber a desnecessidade desse serviço, continuaria a comprar tal serviço.

Neutralidade de rede uma abordagem austríaca

Perpassado a fase de contrapor os principais argumentos a favor da neutralidade de rede, resgata-se a análise da questão da escassez da rede e a valoração da discriminação dos pacotes de informação.

Como dito anteriormente, pode ser que não estamos diante de um grau de escassez tão relevante que seja necessário criar um mercado para prioridade de tráfego na rede, ou um mercado de discriminação de pacotes de informação. Ocorre que uma vez sendo feita uma regulação estatal de neutralidade de rede, a possibilidade de criação de um “mercado da prioridade de tráfego” é completamente negada. Sem a possibilidade da criação deste “mercado” a possibilidade de valoração de prioridades de tráfego, feita pela livre interação dos usuários e provedores, é negada. Assim, a percepção de grau de escassez na rede é danificada. E este dano é suficientemente significativo para não se saber ao certo se há necessidade da discriminação do tráfego ou permanecer com a neutralidade de rede. Nesse sentido, seria então impossível implantar um mecanismo de gerir a rede de forma a considerar qual é a real valoração que os usuários dão para privilegiar (ou não privilegiar) determinados pacotes de informação.

Esse caso é uma situação semelhante à impossibilidade de cálculo econômico no socialista descrita por Ludwig von Mises[9]. Ele argumenta o seguinte:

Em uma economia de trocas voluntárias, a unidade comum de cálculo econômico é representada pelo valor objetivo de troca das mercadorias. Isso gera uma vantagem tripla. Em primeiro lugar, passa a ser possível basear o cálculo econômico de acordo com as valorações de todos os participantes da troca. O valor subjetivo que um dado bem tem para uma pessoa é um fenômeno puramente individual e, portanto, não pode ser imediatamente comparado ao valor subjetivo que esse mesmo bem tem para as outras pessoas. Isso só se torna possível quando se utiliza valores de troca, os quais surgem naturalmente da interação das valorações subjetivas de todos os indivíduos que participam da troca. Nesse caso, o cálculo baseado nos valores de troca fornece um controle sobre o método mais apropriado de se empregar os bens. Qualquer um que deseje fazer cálculos relacionados a algum complicado processo de produção irá imediatamente perceber se ele está agindo de maneira mais econômica que os concorrentes ou não; se ele descobrir — por meio das relações de troca predominantes no mercado — que não será capaz de produzir lucrativamente, isso significa que outros estão sabendo melhor como fazer um uso mais adequado desses bens de ordem alta. Por último, utilizar os valores e troca para se fazer cálculos econômicos é o que possibilita avaliar os bens de acordo com uma unidade de conta definida. (negrito meu)

Portanto, impondo-se a neutralidade de rede, não seria possível para as empresas e usuários criarem um mercado de prioridade de tráfego na Internet, e assim não haveria como saber se tipos de pacotes de informação deveriam trafegar com alguma preferência, ou se alguém daria tanto valor para “preferência” de forma a haver necessidade de mercado para isso. Por isso, não há como saber o quanto é importante o fator da neutralidade para o saber ser realmente ele é ou não necessário[10].

Outra forma de colocar esse argumento seria da seguinte maneira; não havendo a possibilidade de discriminar tráfego na rede, ficaria impossível para os usuários e provedores valorar satisfatoriamente quais dos pacotes de informação devem ter (ou não ter) prioridade, uma vez que todos os pacotes teriam que ter a mesma prioridade, ou seja, nenhuma. A partir daí, a primeira vantagem do sistema de trocas voluntárias seria descartada.

Nesse caso, sendo impossível criar qualquer discriminação dos pacotes de informação, os consumidores ficam impossibilitados de valorar qual tráfego deve ou não ser priorizado (e por quê). Por conseguinte, os provedores de rede perdem uma poderosa ferramenta para a gestão eficiente da mesma, qual seja, a sinalização de quais pacotes devem ser discriminados e qual tipo de discriminação deve ser feita. Isso traz uma limitação muito significante para alocação e recursos de ampliação e desenvolvimento da rede. Os provedores de rede perdem parte do controle sobre o método mais apropriado de se empregar os bens para que estes sejam mais bem alocados na provisão de rede. Logo, a segunda vantagem do sistema de trocas voluntárias fica enfraquecida.

Do ponto de vista dos consumidores também há problemas. Ao proibir qualquer tipo de privilégio de tráfego, todo e qualquer pacote no tráfego de informação seria tratado com o mesmo status, portanto sem qualquer prioridade. Essa estrutura de tratamento isonômico de pacotes leva os consumidores a se comportarem de forma a não terem a percepção de estarem pagando por uma prioridade do tráfego que eles de fato priorizariam caso tivessem que pagar diretamente por isso. Os usuários então adotam um perfil de consumo mais perdulário do que aquele que teriam caso tivessem que pagar pela priorização/discriminação do seu tráfego. Cabe mencionar que essa estrutura de incentivo já existe hoje e seria reforçada com a imposição do PNR.

O resultado desse somatório de efeitos em função do tratamento socializante do tráfego de pacotes de informação na Internet não pode ser outro senão um aumento da demanda com redução da oferta de capacidade de rede. O resultado de uma estrutura de incentivos dessa, levado ao limite, pode ser visto em qualquer sistema de serviço público. Escassez, filas, racionamento, ineficiência etc. Por isso, a imposição do PNR incrementa o risco de uma degradação do nível de serviço de acesso à Internet.

Estendendo um pouco mais o raciocínio econômico

Ainda assim, havendo-se a imposição do PNR, poderíamos supor que com essa variável eliminada os consumidores e ofertantes de rede iriam buscar outras soluções para continuar a aumentar a capacidade de tráfego e gerenciamento desse tráfego. Em razão disso, os provedores de rede seriam forçados a investir mais em capacidade de rede do que provavelmente investiriam caso o PNR não lhes fosse imposto. Até mesmo para tentar compensar a tendência de uso adicional de rede que a regulamentação do PNR reforçaria. Logo o incentivo para realizar investimentos de aumento de capacidade de tráfego seria incrementado, mantendo o atual ritmo de crescimento de oferta de capacidade ou até acelerando esse ritmo. Alguém poderia entender que esse efeito seria positivo, mas convém não esquecer que tal fato decorreria da intervenção estatal impondo a neutralidade de rede.

Nesse caso, a sinalização econômica para investimentos em aumento de capacidade de rede (simples aumento de oferta de capacidade) contra investimentos em melhor gerenciamento da rede (formas de gerenciar essa capacidade) estaria maculada. O esforço aplicado no aumento da capacidade estaria com incentivo supervalorizado contra um esforço subdimensionado para gestão da capacidade de rede. Isto porque investir em tecnologias para priorizar, organizar e discriminar o tráfego dos pacotes de informação seria algo inútil diante de um cenário de neutralidade de rede absoluta. Assim, os investimentos não estarão sendo orientados para atender as necessidades dos consumidores atuando livremente em um ambiente de trocas voluntárias. Os incentivos de investimentos estariam alterados para atender uma distorção causada pela intervenção estatal.

Regulação privada versus regulação estatal

Constatou-se até aqui um pouco da capacidade de danos que uma imposição do PNR, por mais bem intencionada que seja, pode causar na Internet. Como se não bastasse, permitir uma regulação estatal desse porte na Internet seria abrir uma Caixa de Pandora com potencial muito maior de malefícios do que benefícios (se é que haveria algum benefício). Vint Cerf, um dos criadores da Internet, escreveu um interessante argumento em seu artigo “Por que precisamos lutar pela liberdade da internet”.[11]

O único caminho sensato é um modelo de política de desenvolvimento da internet que envolve diversos órgãos multissetoriais, como Internet Engineering Task Force, a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers, o Internet Governance Forum, o Regional Internet Registries, entre muitos outros.

As práticas de baixo para cima, bilaterais e com múltiplas organizações envolvidas que criaram a rede de redes que chamamos de internet também viabilizam uma ampla gama de modelos de novos negócios. Normas técnicas cruciais desenvolvidas pela Internet Engineering Task Force e pela World Wide Web Consortium criaram a interoperabilidade necessária para que a rede funcionasse.

Um sistema estatal de regulação não é somente desnecessário – ele quase que invariavelmente aumentaria os custos e preços e interferiria com o crescimento rápido e orgânico da internet que temos visto desde seu surgimento comercial na década de 1990.

O futuro da rede está longe de ser garantido, e a história nos oferece muitos alertas. Décadas depois da criação de imprensa de Gutenberg, diversos príncipes e sacerdotes se mobilizaram para restringir o direito de imprimir livros. A história está repleta de exemplos de governos que tomaram medidas para “proteger” seus cidadãos, controlando o acesso à informação e a liberdade de expressão e inibindo outras liberdades enunciadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos. (negrito meu)

Ao argumento de Cerf deve ser acrescido outro aspecto. Como podemos verificar a existência de todos aqueles órgãos listados no inicio do artigo, e como também se argui a quase inexistência de legislação estatal na rede mundial de computadores, podemos afirmar que a Internet não deixa de ser, também, um case de sucesso na implantação de regulamentos privados[12]. Logo, argumentar a favor da necessidade da imposição da norma (estatal ou supra-estatal) de neutralidade de rede é subestimar esse sucesso. E não há como negar que regulação privada pode ser bem sucedida.

Em seu artigo “O princípio da neutralidade de rede na Internet: uma análise regulatória e concorrencial” o Dr. Guilherme Pereira Pinheiro também faz outro alerta, que seria a regulamentação do PNR partir para eventual descaminho. Ele termina seu artigo fazendo um questionamento chave:

Ao mesmo tempo em que é necessário proteger a competição e evitar condutas criminosas na Internet, é cogente fazê-lo sem destruir pelo caminho o modelo livre da rede mundial de computadores. O princípio da neutralidade de rede é econômica e juridicamente justificável, mas deve ser aplicado de maneira seletiva, de modo que, simultaneamente, proteja a competição e livre circulação de conteúdo na Internet, resguarde possibilidade razoável de gerenciamento da rede pela incumbent e impeça a manipulação do conteúdo pelos poderes estatais. (negrito meu)

A pergunta que se coloca é: o que é melhor para o Brasil, uma liberdade imperfeita, hands-off, ou um controle bem intencionado, mas potencialmente desastroso? Se para se evitar um mal maior, que é o Estado entremear-se definitivamente na administração da Internet, é necessário se tolerar um mal menor, que é a discriminação, às vezes injusta, de pacotes de dados de usuários por certas empresas; é quase sempre mais sábio escolher o mal menor. (negrito meu)

Pelos argumentos expostos no presente artigo não se verifica, ao menos na parte analisada, justificativa econômica plausível para a imposição do princípio da neutralidade de rede. Mais ainda, caso a neutralidade de rede deva prevalecer, então o próprio “mercado regulatório” da Internet, por meio de seus órgãos gestores e reguladores multi-setoriais pode estabelecer tal regra. Os próprios agentes atuantes da Internet hão de dar conta da manutenção desse princípio através de regulamentos privados, caso tal arquitetura de rede realmente seja uma solução melhor do que uma arquitetura em que se permita discriminar pacotes de informação.

Conclusão

Assim, responder à pergunta do Dr. Guilherme Pereira Pinheiro fica mais fácil. No caso visto no presente texto, entre a liberdade imperfeita e o controle (que pode nem sempre ser bem intencionado) não restam dúvidas. Ainda mais quando o próprio Pinheiro da pergunta caracteriza qual é o menor dos males.[13]
[1] Definição apresentada por Guilherme Pereira Pinheiro no trabalho “O princípio da neutralidade de rede na Internet: uma análise regulatória e concorrencial”, disponível em http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/prisma/article/view/682/570

[2] A neutralidade da rede é um dos principais fundamentos da internet livre, disponível em http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-neutralidade-da-rede-por-sergio-amadeu-da-silveira

[3] Internet; Histórico, Evolução e Gestão: Maria do Socorro Costa do Vale, Denise Coutinho Costa, Nilton Alves Jr. Disponível em: http://www.rederio.br/downloads/pdf/nt00501.pdf

[4] Aparentemente, o único caso de imposição estatal do PNR está no Chile http://blogs.estadao.com.br/link/chile-aprova-lei-de-neutralidade/

[5] Grau de escassez pode ser definido como sendo a capacidade de tráfego de conteúdo (informações), e as limitações a essa capacidade, que estão disponíveis aos usuários da Internet.

[6] Diversas foram as tentativas de inferir na necessidade de capacidade de tráfego na Internet por parte dos consumidores. Todas foram subestimadas. É seguro dizer, para efeitos mercadológicos, que a necessidade de capacidade de tráfego de um consumidor é virtualmente infinita. Os usuários sempre irão desejar mais e mais banda, como mais e mais velocidade.

[7] http://www.mises.org.br/EbookChapter.aspx?id=91

[8] http://observatoriodainternet.br/promocoes-da-telefonia-movel-brasileira-colocam-em-xeque-a-neutralidade-da-internet

[9] http://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=66

[10] É por essa razão que anteriormente a questão da neutralidade de rede foi tratada com condicionantes. É impossível saber o grau de escassez relativa na Internet; e, em um ambiente de imposição de neutralidade, tudo ficaria até mais complicado. Por pura inferência, acredita-se que o grau de escassez não seja tão significativo ao ponto de ser imprescindível a priorização de tráfego. Uma pista disso é o fato de que a discriminação dos pacotes não é implantada.

[11] http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2012/12/03/vinton-cerf-por-que-precisamos-lutar-pela-liberdade-da-internet.htm

[12] De fato há participação de governos em órgãos gestores da Internet, mas esses órgãos são o que poderíamos dizer como multi-setores. E os governos não têm a predominância jurisdicional nesses casos. Dessa forma, os regulamentos feitos por tais órgãos podem ser considerados “privados” na medida do possível, ou pelo menos “não estatais”.

[13] Por enquanto ainda estamos livres do mal maior! Ver: http://olhardigital.uol.com.br/negocios/digital_news/noticias/fracassa-tentativa-de-regular-a-internet-em-escala-global

Pedro Borges Griese
Pedro Borges Griese
Pedro Borges Griese possui mestrado em economia e colabora regularmente com o Instituto Carl Menger, de Brasília.
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