O artigo a seguir pretende ser um guia para entender as pequenas diferenças entre esses três principais proponentes do construto austro -libertário. Enquanto todos os três estão certamente dentro do conjunto austro-libertário e, em muitos aspectos, são os principais desenvolvedores dessa estrutura, é útil entender pequenas variações em seus pensamentos. O desacordo entre eles é um aspecto saudável e encorajador das doutrinas que eles avançaram.
O debate sobre o fundamento filosófico apropriado para a teoria econômica, ética e política (que, sendo focado na justificativa para o uso da força na sociedade, é uma aplicação particular da ética), está todo fundamentado no estudo do conhecimento; ou epistemologia. É por isso que as primeiras cem páginas do tratado de Ludwig von Mises, Ação humana, são pura epistemologia; um assunto seco, mas ainda assim imperativo.
Ideias que devem ser argumentadas e defendidas devem ter justificativa intelectual. Não há muito sentido em discutir com alguém se a posição dele não possuir justificativa.. Quando afirmamos que aderimos à Escola Austríaca de economia, estamos dizendo que rejeitamos a base empírica de outras escolas – sejam elas o monetarismo, o keynesianismo, o marxismo, o classicismo, etc. – e abraçamos a base racionalista ou a priori da economia. Escola Austríaca.
Ser um economista austríaco é aceitar que as proposições econômicas são entendidas independentemente da experiência e da observação empírica. São fatos que devem ser aprendidos pelo emprego das leis da lógica e não dependem de toda a pletora de dados e estatísticas e do processamento de números da maioria das escolas econômicas de pensamento amplamente aceitas. Eles não podem ser falsificados pela observação empírica, mais do que qualquer silogismo lógico pode ser falsificado. Nenhuma quantidade de testes e análise histórica pode falsificar o fato de que 1 + 1 = 2.
Os fundamentos da teoria econômica
O ponto de partida da metodologia austríaca é que “os seres humanos agem com propósito”. A partir disso, mais proposições são deduzidas e derivadas. Mises foi o primeiro a realmente aperfeiçoar esse “axioma”. No entanto, Mises e Hoppe justificam esse ponto de partida de uma maneira diferente do que Rothbard. Mises e Hoppe, sendo neo-kantianos, justificam isso racionalmente; isto é, eles consideram que negar essa proposição é afirmá-la. Pois não se pode negar que os seres humanos agem intencionalmente sem agir intencionalmente. Portanto, esse axioma é resultado da aplicação das leis da lógica e depende de um modo de pensar a priori.
Em A Ciência Econômica e no Método Austríaco , Hoppe escreve (página 19):
O que torna esses axiomas [“sintéticos a priori”] auto-evidentes? Kant responde, não é porque eles são evidentes em um sentido psicológico, caso em que estaríamos imediatamente conscientes deles. Pelo contrário, insiste Kant, é geralmente muito mais trabalhoso descobrir tais axiomas do que descobrir alguma verdade empírica como a de que as folhas das árvores são verdes. Eles são auto-evidentes porque não se pode negar sua verdade sem autocontradição; isto é, ao tentar negá-los, admitir-se-ia implicitamente sua verdade.
Em tudo isso, Mises segue Kant.
Em ligeira distinção com Hoppe e Mises, Rothbard encontra suas raízes epistemológicas na tradição empírica de Tomás de Aquino. Assim, ele considera a proposição de que “os seres humanos agem com propósito” a se basearem na experiência, na observação de si mesmos e de outros seres humanos. Em seu ensaio “Em Defesa do Apriorismo Extremo”, Rothbard explica a diferença:
Quer consideremos a ação axioma “a priori” ou “empírica” depende de nossa posição filosófica final. O professor Mises, na tradição neo-kantiana, considera esse axioma uma lei do pensamento e, portanto, uma verdade categórica a priori a toda experiência. Minha própria posição epistemológica repousa sobre Aristóteles e São Tomás, em vez de Kant, e, portanto, eu interpretaria a proposição de maneira diferente. Eu consideraria o axioma uma lei da realidade em vez de uma lei do pensamento e, portanto, “empírica” em vez de “a priori“.
Os fundamentos da teoria política
No campo da teoria política e da ética, esses três gigantes intelectuais “austro-libertários” têm um pouco mais de diversidade. Enquanto Mises não adotou princípios libertários tanto quanto Rothbard e Hoppe (chegando ao anarcocapitalismo), todos eles podem ser vistos como membros da tradição libertária. O argumento de Mises para uma sociedade libertária era utilitarista. O sistema de livre mercado, para Mises, é tão poderoso e benéfico para a humanidade que só irão querer ele em comparação com todos os outros sistemas, sejam comunistas, fascistas, intervencionistas e suas variações.
Por uma questão de prosperidade e florescimento humano, somente uma sociedade livre pode alcançar esses fins. Qualquer governo que prometa agir no lugar da sociedade livre em busca de um mundo melhor, pode ser provado como impossível com base na teoria econômica. E em todas as suas declarações sobre os benefícios do livre mercado e do capitalismo, Mises estava certo.
[Mises] prefere a vida sobre a morte, a saúde sobre a doença, a abundância sobre a pobreza. E na medida em que tais fins, em particular o objetivo de alcançar o mais alto padrão de vida possível para todos, são de fato compartilhados por outras pessoas, como ele supõe que geralmente são, como um cientista econômico Mises recomenda que o curso correto de ação escolhido seja uma política de laissez faire. E, sem dúvida, na medida em que a economia pode dizer isso, o argumento do laissez-faire é de grande importância.
No entanto, e se as pessoas não considerarem a prosperidade seu objetivo final? Como ressalta Rothbard, a análise econômica apenas estabelece que o laissez faire levará a padrões mais elevados de vida a longo prazo. A longo prazo, no entanto, a pessoa estará morta. Por que então não seria razoável uma pessoa argumentar que, embora concordasse perfeitamente com tudo o que a economia tem a dizer, a pessoa ainda estava mais preocupada com o bem-estar a curto prazo e, claramente, para nenhum economista negar, um privilégio ou um subsídio seria a melhor coisa?
Além disso, por que o bem-estar social, a longo prazo, deve ser a primeira preocupação de todos? As pessoas não poderiam defender a pobreza, seja como um valor final em si mesmo ou como um meio de produzir algum outro valor final, como a igualdade? Em outras palavras, argumenta Hoppe, Mises deve ser apreciado por ter mostrado o potencial do livre mercado e seus resultados. Mas por que os resultados são bons? A economia não estabelece o que é certo e errado. Poderosos e ricos e tiranos não têm razão para desejar a prosperidade para muitos que os mercados capitalistas e livres produzem. Mises, no entanto, negou que proposições éticas poderiam ser racionalmente defendidas. Seu utilitarismo era a única coisa que lhe restava.
Rothbard rejeitou o utilitarismo de seu mestre. Devemos considerá-lo em alta estima pelo simples fato de que ele teve a coragem de rejeitar as soluções relativistas de tantos na época atual. Mises certamente não era um relativista cultural e, de fato, era um defensor dos maneirismos do Velho Mundo, do comportamento e da respeitabilidade social, mas essas coisas vinham de sua herança austríaca e não de qualquer justificação por pura razão.
Ao discordar do utilitarismo, Rothbard buscou uma ética transcendente que fosse obrigatória para todas as pessoas em todos os momentos. O libertarianismo da Lei Natural de Rothbard foi construído sobre as proposições normativas em torno do fato de que o homem tem propriedade em seu corpo e propriedade externa. A propriedade implica que o proprietário tenha o direito exclusivo de determinar o uso da propriedade em questão. A natureza dessa propriedade é tal que o uso da propriedade por um não-proprietário é eticamente errado. Assim, o homem é livre para usar sua propriedade de acordo com seus desejos em virtude do fato de que ninguém tem autoridade moral para impedir tal uso. A implicação disso, é claro, é que o limite do uso que o homem faz de sua propriedade é o direito de propriedade daqueles na sociedade. Assim, para Rothbard, a ordem social dos direitos de propriedade era de natureza ética, e não utilitária.
Hoppe, no entanto, sendo um apriorista rigoroso, rejeita tanto o empirismo de Lei Natural de Rothbard quanto o utilitarismo de Mises. Sua opinião é que a teoria libertária deve ser defendida com a
mesma metodologia que sua teoria austríaca. Isso é importante. E quando ele introduziu essa ideia pela primeira vez, foi bastante contestada e bastante controversa nos círculos libertários. Se Mises era um utilitarista e Rothbard um tomista, Hoppe fez o argumento praxeológico para uma ordem de propriedade privada.
Ele afirma que o objetivo da teoria política é fornecer normas que impeçam conflitos. Onde conflitos não são possíveis não há necessidade de uma teoria política. Mas conflitos existem em um mundo de recursos escassos e, portanto, as regras de atribuição de propriedade são demandadas. Para justificar qualquer dessas regras, isto é, para apresentar um argumento em defesa de uma teoria política, deve-se pressupor a autopropriedade. Deve-se supor desde o início que ele possui o corpo através do qual ele (o homem é espírito, não corpo) comunica e justifica sua posição.
Assim, Hoppe encontra o mesmo potencial lógico aqui do que o em sua justificativa para o “axioma da ação” econômico descrito acima. Pois se alguém tenta negar que os humanos têm domínio sobre seus corpos, mas ao se engajar em argumentos a fim de negar isso, eles exercitam ou provam essa crença, eles estarão apenas contradizendo suas pressuposições. Assim, para Hoppe, qualquer teoria política, exceto a libertária, é uma teoria contraditória.
Para ser claro, isso não é uma afirmação de “deveria”. Não pretende explicar por que pode ser errado alguém roubar ou assassinar, apenas que essas coisas não podem ser racionalmente justificadas. Ele procurou evitar completamente o problema da filosofia. Nenhuma ordem política pode ser racionalmente defendida, exceto a austro-libertária, sem cair em autocontradição.
Mas o crítico pode se perguntar: por que é ruim contradizer a si mesmo? Certamente, o criminoso ou político (desculpe a redundância) não se importa com as leis da lógica. E Hoppe reconhece essa crítica. Sua resposta, no entanto, é que ele está preocupado apenas com o que pode ser racionalmente defendido. Na medida em que o filósofo prefere ser racional ao invés de irracional, nessa medida os princípios da propriedade privada devem ser estendidos em todos os casos, começando, é claro, com a propriedade de alguém sobre o corpo.
Isto implica, obviamente, dizer que ele adota a visão agostiniana do homem, onde o homem é sua mente, não seu corpo – mas seu corpo é sua possessão e de ninguém mais.
A teoria austro-libertária dos direitos de propriedade e a teoria econômica da Escola Austríaca precisam de um fundamento epistemológico. O grande debate é exatamente o que é esse fundamento. Estudar as distinções dentro do mundo austro-libertário é um esforço gratificante e esclarecedor.
Artigo original aqui.
Tradução de Paulo Roberto Cavalcante Junior
Muito obrigado pela tradução. Sempre tive dúvidas sobre as diferenças entre os três autores.
Estou mais acostumado a ler Rothbard, por ser uma leitura mais didática, no meu ponto de vista, mas pretendo sim ler outras obras que sejam destes dois (Mises e Hoppe).