Recentemente ouvi uma entrevista de rádio em que um eminente economista estava defendendo as medidas tomadas pelo presidente do Federal Reserve (o Banco Central americano), Ben Bernanke, para estimular os mercados em Wall Street. Bernanke, disse enfaticamente o economista, passou anos estudando os “equívocos” do Fed durante a Grande Depressão e não iria repetir os “erros” que os diretores do Fed cometeram de 1930 a 1933.
Os “erros” aos quais se referia o economista foram delineados pelo falecido Milton Friedman em dois livros:Uma História Monetária dos Estados Unidos (escrito com Anna Schwartz), de 1963, e seu famoso Liberdade de Escolher (com Rose Friedman), publicado em 1979. De acordo com Friedman e seus co-autores, o colapso econômico que ocorreu nos EUA de 1930 a 1933 se deu porque o Federal Reserve System não agiu corretamente em face dos pânicos e colapsos bancários, levando a uma maciça contração da quantidade de dinheiro em circulação, o que ao final levou à calamidade.
Friedman construiu seus argumentos como forma de contrabalançar a explicação comum para a Grande Depressão – a de que ela era o resultado de “contradições internas” do capitalismo. A explicação típica, popularizada por John Kenneth Galbraith e pelos tagarelas keynesianos que proliferaram nas universidades norte-americanas, era a de que o sistema capitalista tendia ao “subconsumo” – ou à sua gêmea maligna, a “superprodução”.
(Galbraith dizia que o subconsumo ocorreu porque a “diferença” de renda entre os ricos e os pobres havia crescido durante os anos 1920 – outro resultado “natural” do capitalismo -, enquanto John Maynard Keynes e seus seguidores diziam que os gastos com investimentos privados eram voláteis por causa do “animal spirits” dos investidores. Por algum motivo intrínseco, esse sistema entrava em uma espiral descendente e auto-multiplicadora sempre que os investidores privados não se mostravam dispostos a jogar mais dinheiro na economia).
Aqueles que diziam que a Grande Depressão foi causada pelas “falhas” do livre mercado estavam todos muito felizes e ansiosos para mostrar suas próprias “soluções”, o que incluía tentativas de se cartelizar toda a economia norte-americana ou de forçar os salários para cima, via aumento da legislação do salário-mínimo ou através do apoio ao crescimento dos sindicatos. Alguns, como Galbraith, foram ainda mais longe e advogaram um socialismo absoluto e um completo planejamento econômico central. O sistema de livre mercado, eles argumentavam, é muito inerentemente instável para ser deixado aos seus próprios caprichos. (Esse é o mesmo argumento que Paul Krugman faz de seu poleiro, duas vezes por semana, na página de opiniões do The New York Times.)
Assim, Friedman estava procurando não só explicar por que ele acreditava que a Grande Depressão ocorreu, como também estava tentando defender o sistema de livre mercado, ou ao menos tentando defender grande parte do sistema de livre mercado. Mas ele argumentava que havia uma parte do sistema que estava destinada ao fracasso, e essa parte era o sistema monetário.
Por si só esse ponto é bastante interessante, dado que Friedman estava disposto a aceitar um sistema monetário gerido pelo governo – dinheiro “socialista” – mesmo ele tendendo a condenar outras coisas que fossem socialistas. Entretanto, ele também estava disposto a admitir que o sistema bancário de reservas fracionárias (o qual ele endossava entusiasmadamente) estava sujeito a todas as instabilidades que se espera de um sistema monetário no qual múltiplas reivindicações são feitas contra uma única fonte.
Entretanto, não é minha intenção concentrar na inconsistência de Friedman. Em vez disso, vou me concentrar mais especificamente em sua alegação de que a Grande Depressão poderia ter sido evitada caso o Fed tivesse fornecido “liquidez” suficiente ao sistema. Isso é mais do que um mero exercício esotérico, pois parece que Bernanke andou roubando uma página – ou, talvez, um número de páginas – do roteiro de Friedman.
A última medida do Fed – permitir que cambaleantes instituições financeiras usem títulos hipotecários quase que sem valor como garantia para empréstimos de $200 bilhões feitos pelo próprio Fed – é apenas mais um exemplo da promessa de Bernanke de “fornecer liquidez” a todo o momento, como se a crise real nesse caso fosse meramente uma falta de dinheiro circulando no sistema financeiro da nação. O problema aqui é que a tese original de Friedman estava errada, e a idéia pela qual Bernanke ficou famoso – metaforicamente, jogar dinheiro de um helicóptero para estimular a economia – é tão insensata quanto a tese de Friedman.
O livro de Murray Rothbard, America’s Great Depression, foi publicado ironicamente também em 1963, mas conta uma história bem diferente daquela de Friedman. O livro de Rothbard mostra que o colapso econômico de 1930 a 1933 aconteceu não porque o Fed simplesmente falhou em fornecer “liquidez” ao sistema, mas, sim, porque o governo interveio em um declínio econômico e foi capaz de transformar uma recessão em uma completa calamidade.
Por exemplo, Friedman observa (acuradamente) que ocorreram mais de 4.000 falências bancárias durante esse período e ele quer que de algum modo acreditemos que se o Fed tivesse emprestado dinheiro suficiente (através de sua máquina de impressão de cédulas) para um número suficiente de bancos, não teríamos visto tantas falências bancárias. Entretanto, ele não menciona algo que é muito importante: a aprovação da lei tarifária Smoot-Hawley, em 1930.
Essa infame tarifa, aprovada e assinada pelo presidente Herbert Hoover, não obstante os apelos de mais de 1.000 economistas que assinaram uma carta incitando-o a vetar o projeto de lei, não apenas tornou quase impossível importar bens de capital e de consumo do exterior, como também destruiu o mercado de exportações para os agricultores norte-americanos. Desse modo, um projeto de lei aprovado com o intuito de aumentar os preços de produção do país acabou por levar a uma redução dos preços dos produtos agrícolas.
A queda dos preços agrícolas também significava que os ativos dos bancos rurais – que mantinham a maior parte dos seus ativos em empréstimos para safras e equipamentos agrícolas, bem como em hipotecas para esse setor – também despencaram em valor. Para piorar as coisas, muitos estados proibiram sucursais bancárias, o que significava que quando os ativos de um banco rural perdiam valor e os bancos se tornavam insolventes, era impossível ter um Plano B. (Durante esse período, nenhum banco no Canadá quebrou, não obstante o país tenha passado pelas mesmas pressões econômicas. O Canadá permitia sucursais bancárias).
Qualquer que fosse o tamanho da intervenção do Fed, ele jamais poderia salvar esses bancos, que foram tão vítimas da Smoot-Hawley quanto as empresas que dependiam de bens importados. Mas essa não foi a única razão por que os bancos entraram em colapso, segundo Rothbard. Durante a década de 1920, o Federal Reserve System – e principalmente o Fed de Nova York – comprou agressivamente títulos do governo (a conhecida operação de mercado aberto – open market) e aumentou a quantidade de dinheiro ao expandir as reservas bancárias, as quais acabaram se transformando em empréstimos.
A resultante expansão monetária mostrou suas conseqüências primeiramente no boom imobiliário da Flórida, e mais tarde na bolha da bolsa de valores. (Nos anos 1990 e 2000, a ordem foi inversa: primeiro tivemos a bolha da bolsa de valores, e depois o boom imobiliário). Um excesso de maus investimentos significa que correções maciças devem ser feitas, que é o que aconteceu em fins de 1929 e em 1930. Da mesma maneira, os maus investimentos que estimularam a bolsa de valores, que fez uma aterrissagem forçada (Hard Landing) em 2001, foram simplesmente redirecionados, desta vez para o mercado imobiliário.
(Há uns dois anos, quando estava apelando de uma sobrevalorização ocorrida no imposto de propriedade para a minha antiga casa em Cumberland, Maryland, eu disse à comissão que o corrente boom imobiliário estava fadado a sofrer um golpe e entrar em colapso. Parecia que eu estava contando a melhor piada do mundo, a julgar pelas gargalhadas que meus comentários receberam. As pessoas nos mercados – que supostamente são mais aptas a entender o sistema financeiro do que alguns políticos picaretas que determinam impostos locais – estavam aparentemente cochilando durante a mudança, também).
Eis aí o problema que Bernanke terá de encarar, e que não pode ser resolvido simplesmente utilizando-se um helicóptero maior: o Fed e o governo americano estimularam enormes e maus investimentos sobre a economia. O mercado imobiliário não era nada consistente com os fundamentos do mercado, e não há como essas políticas desatinadas – que consistem em estimular esse mercado para níveis além do normal – serem abrandadas com a simples impressão de dólares.
A questão central é que o Fed perseguiu uma política de inflação, com grande parte desse novo dinheiro impresso indo para os mercados hipotecários; e não há como evitar as correções dolorosas e terríveis que normalmente se seguem às loucuras fiscais. (Agora nós finalmente estamos vendo aumentos maciços nos preços das commodities, que ocorrem simplesmente porque não há para onde esse novo dinheiro ir que não seja diretamente para essas commodities e para os bens de consumo).
Qualquer um que creia que o Fed possa fazer de conta que títulos hipotecários altamente danificados valham mais do que papel higiênico e, assim, literalmente erigir sobre eles um portfolio de $200 bilhões em empréstimos, não entende nada de finanças. Só porque Ben Bernanke declara que alguma coisa é “valiosa”, isso não confere valor a essa coisa.
A questão não é a falta de liquidez. É o fato de que bilhões – na verdade, trilhões – de dólares foram erroneamente investidos em mercados onde os valores crescentes não eram sustentáveis. Injetar dólares – que está se tornando uma moeda cada vez mais débil – nessa mistura não vai resolver nada; apenas garantirá que o inevitável dia do ajuste de contas seja ainda mais desagradável do que poderia ter sido de outra forma.
No início dos anos 1930, Hoover gabou-se de que a intervenção do governo impediu que a crise financeira se tornasse ainda pior. Ele estava iludido, para colocar de maneira branda. Na realidade, o “New Deal” de Hoover levou ao “New Deal” de Roosevelt, que levou a uma década de desemprego de dois dígitos – algo sem precedentes na história dos EUA.
Esperemos que Bernanke não faça por merecer o manto de Hoover. Entretanto, enquanto ele estiver tentando seguir a tese de Friedman, ele corre o risco destruir não apenas sua própria reputação, mas também toda a economia americana.
Tradução de Leandro Roque