Thursday, November 21, 2024
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Ética Argumentativa: quatro objeções respondidas

I. Preferência Demonstrada e Propriedade Privada[1]

O professor Osterfeld, depois de generosamente reconhecer a natureza “inovadora” da minha defesa a priori da ética da propriedade privada, concentra-se em quatro objeções aos meus argumentos.

Eu comentarei sobre todas as quatro objeções que o professor Osterfeld sublinha. No entanto, já que ele depende de um entendimento correto do meu argumento central e sua força lógica, eu irei primeiro apresentar novamente minha justificativa da maneira mais breve possível.

Como Osterfeld corretamente percebe, eu dou uma prova praxeológica para a validade da ética da propriedade privada essencialmente lockeana. Mais precisamente, eu demonstro que apenas essa ética pode ser argumentativamente justificada porque ela é a pressuposição praxeológica da argumentação, e qualquer proposta ética divergente pode por isso mostrar-se estar violando a preferência demonstrada. Tal proposta pode ser levantada, mas seu conteúdo proposicional contradiria a ética pela qual se teria demonstrado uma preferência em virtude da própria ação de fazer uma afirmação, i.e., pelo ato de se engajar numa argumentação. Da mesma forma que alguém pode dizer “eu sou e sempre serei indiferente quanto a fazer coisas”, embora essa proposição contradiga o ato de fazer uma afirmação, o qual revela preferências subjetivas (dizer isso em vez de dizer outra coisa ou de não dizer nada), propostas éticas deturpadas são falseadas pela realidade de efetivamente propô-las.

Para alcançar essa conclusão e entender adequadamente sua importância, dois insights são essenciais.

Primeiro, a questão do que é justo ou injusto (ou do que é válido ou não) apenas surge na medida em que eu e os outros somos capazes de realizar trocas de proposições – de argumentar. A questão não surge para uma pedra ou um peixe, porque eles são incapazes de produzir proposições com reivindicação de validade. Mas se é assim – e não se pode negá-lo sem se contradizer, pois não se pode argumentar que não se pode argumentar -, então qualquer proposta ética, de fato qualquer proposição, deve ser assumida como reivindicando que pode ser validada por meios argumentativos e proposicionais. Ao produzir qualquer proposição, manifestamente ou como um pensamento interno, demonstra-se a própria preferência pela vontade de contar com meios argumentativos para convencer a si ou a outros de alguma coisa. Não existe, portanto, nenhuma maneira de justificar algo a não ser que seja uma justificação por meio de trocas proposicionais e argumentos. Deve-se considerar a derrota final de uma proposta ética se se puder demonstrar que seu conteúdo é logicamente incompatível com a reivindicação do proponente de que sua validade pode ser verificada por meios argumentativos. Demonstrar tal incompatibilidade equivaleria a uma prova de impossibilidade, e essa prova é letal no campo da investigação intelectual.

Segundo, os meios pelos quais uma pessoa demonstra preferência ao engajar-se numa argumentação são os de propriedade privada. Obviamente, ninguém poderia propor nada ou ser convencido de qualquer proposição por meios argumentativos se o direito de uma pessoa ao uso exclusivo de seu corpo físico não fosse pressuposto. Além disso, seria igualmente impossível sustentar a argumentação e contar com a força proposicional do argumento se não fosse permitido apropriar outros bens escassos por meio de apropriação original, colocando-os em uso antes que alguém o fizesse, ou se tais bens e o direito de controle exclusivo relativo a eles não fosses definidos em termos físicos objetivos. Se tal direito não fosse pressuposto, ou se retardatários tivessem reivindicações legítimas sobre coisas, ou se coisas apropriadas fossem definidas em termos avaliativos subjetivos, ninguém poderia sobreviver enquanto uma unidade fisicamente independente de tomada de decisão; por isso, ninguém poderia jamais levantar qualquer proposição com reivindicação de validade.

Assim, ao se estar vivo e formular proposições, demonstra-se que qualquer ética é inválida, a não ser essa da propriedade privada.

A quarta objeção de Osterfeld afirma que meu argumento é uma instância do naturalismo ético, mas que depois eu entro em conflito com a falácia naturalística de derivar um “dever” de um “ser”. A primeira parte de sua proposição é aceitável, mas não a segunda. O que eu ofereço é um sistema ético inteiramente livre de juízos de valor. Eu permaneço exclusivamente no domínio das afirmações factuais e em lugar algum tento derivar um “dever” a partir de um “ser”. A estrutura do meu argumento é esta: (a) uma justificação é proposicional ou argumentativa (afirmação factual verdadeira a priori); (b) a argumentação pressupõe o reconhecimento da ética da propriedade privada (afirmação factual verdadeira a priori); (c) nenhum desvio de uma ética da propriedade privada pode ser justificada argumentativamente (afirmação factual verdadeira a priori). Assim, minha refutação de todas as éticas socialistas é puramente cognitiva. Que Rawls ou outros socialistas possam ainda defender tais éticas está completamente fora de questão. Que um mais um seja igual a dois não descarta a possibilidade de alguém dizer que é igual a três, nem significa que não se deveria tentar fazer de um mais um igual a três a lei aritmética do mundo. No entanto, isso não afeta o fato de que um mais um é igual a dois. Em estrita analogia com isso, eu “apenas” afirmo provar que o que quer que Rawls e outros socialistas digam é falso e pode ser entendido como falso por todos os homens intelectualmente competentes e honestos. Isso não muda o fato de que incompetência ou desonestidade e o mal possam ainda existir e possam até mesmo prevalecer sobre a verdade e a justiça.

A segunda objeção sofre da mesma má compreensão da natureza livre de juízos de valor de minha defesa da propriedade privada. Osterfeld concorda que argumentação pressupõe o reconhecimento da propriedade privada. Mas em seguida ele se pergunta sobre a fonte desse direito. Porém como se pode levantar tal questão? Somente porque ele, também, é capaz de argumentar. Sem argumentação não haveria nada senão silêncio ou barulho sem significado. A resposta é que a fonte dos direitos humanos é e deve ser a argumentação enquanto manifestação da nossa racionalidade. É impossível afirmar que qualquer outra coisa seja o ponto de partida para a derivação de qualquer sistema ético porque afirmá-lo iria novamente pressupor a própria capacidade argumentativa. Não poderiam os direitos, pergunta Osterfeld, serem derivados a partir de um contrato detrás de um “véu de ignorância”? Sim e não. Pode haver, é claro, direitos derivados de contratos, mas para um contrato ser possível devem já existir donos privados e propriedade privada; caso contrário não haveria contratantes fisicamente independentes e nada sobre o que concordar contratualmente. E “não”: nenhum direito pode ser derivado “detrás de um véu de ignorância” porque ninguém vive detrás de tal coisa a não ser zumbis epistemológicos, e somente um zumbi ético rawlsiano pode ser derivado de detrás disso. Podem direitos emergir da tradição à la Hume e Burke? Claro, eles sempre o fazem. Mas a questão da emergência factual de direitos não tem nada a ver com a questão de se o que existe pode ou não ser justificado.

Em sua terceira objeção, Osterfeld afirma que eu construo uma alternativa entre propriedade individual e propriedade comunitária mundial, mas que essa alternativa não é exaustiva. Isso é uma deturpação. Em lugar nenhum eu digo algo semelhante a isso. Na sessão a que Osterfeld se refere, eu estou preocupado com explicar a alternativa inteiramente distinta entre propriedade enquanto definida em termos físicos e originando-se em pontos definidos do tempo para indivíduos definidos em contraste com propriedade enquanto definida em termos de valor e não específica quanto ao seu tempo de origem, e forneço a refutação da última como absurda e autocontraditória. Eu não descarto de modo algum a possibilidade de propriedades “comunais intermediárias”. No entanto, tal propriedade pressupõe propriedade privada individual. Propriedade coletiva requer contratos, e contratos só são possíveis se antes já existirem reivindicações de propriedade adquirida não contratualmente. Contratos são acordos entre unidades fisicamente independentes que são baseados no reconhecimento mútuo da reivindicação de cada contratante individual sobre coisas adquiridas antes do acordo e dizem respeito à transferência desses títulos de propriedade de um dono específico anterior para um dono posterior (ou donos).

Quanto à primeira objeção de Osterfeld, eu não escrevi que os objetivos fundamentais da economia política e da filosofia política eram “complementários”. O que eu disse foi que eles são diferentes. Ninguém tentando responder à pergunta “o que é justo?” está logicamente comprometido com insistir que sua resposta deve também contribuir para a maior produção de riqueza possível (pelo menos eu não afirmo em lugar algum que tal comprometimento lógico exista!). Por isso, não é uma objeção válida às minhas observações sobre a relação entre a filosofia e economia políticas a de que Hobbes, Rousseau e outros sugerem que sistemas políticos não aumentam a riqueza, mas a escassez. Sua alegação de que esses sistemas são justos não pode ser bem feita, e como se constata, a única ética que pode ser justificada ajuda de fato a maximizar a produção de riqueza. Felizmente, isso é uma questão de fato. No mínimo isso não muda o fato de que a filosofia política e a economia política ocupam-se de questões completamente separadas.

Esta e somente esta tem sido a tese: enquanto filósofos políticos como tais não precisam se preocupar com o problema da redução da escassez, a filosofia política e a economia política têm em comum o fato de que, sem escassez, nenhuma dessas disciplinas iria fazer sentido. Não iria existir nenhum conflito interpessoal sobre nada, nem uma questão como quais normas deveriam ser aceitas para se evitarem tais possíveis confrontos! Não é ir além do limite dizer que filósofos políticos têm estado invariavelmente preocupados quanto à atribuição de direitos de controle exclusivo sobre bens escassos. Tal é o caso quando um lockeano propõe aceitar a ética da propriedade privada, e não menos quando um hobbesiano sugere, ao contrário, fazer de uma pessoa o Führer supremo, cujos comandos todos devem seguir.

II. Utilitaristas e Randianos vs. a Razão[2]

Não é possível, e nem vale a pena, abordar todos os pontos levantados na discussão anterior. Eu irei me concentrar naqueles críticos que se colocaram mais veementemente contra meu argumento – todos eles utilitaristas de pouco valor. Em seguida comentarei brevemente sobre o tipo randiano de reação.

Incrivelmente, Friedman, Yeager, Steel, Waters, Virkkala e Jones acreditam que eu negligenciei o fato de que todas as sociedades são menos que completamente libertárias (os fatos de que há escravidão, gulag ou de que maridos possuem esposas, etc.) e creem que isso de algum modo invalida meu argumento. Por óbvio, eu dificilmente teria escrito esse artigo se minha opinião fosse a de que o libertarianismo já prevalecesse. Assim, deveria estar claro que foi precisamente esse caráter não libertário da realidade que me motivou a mostrar algo bem diferente: por que tal estado de coisas não pode ser justificado. Mencionar fatos como a escravidão como exemplo em contrário é praticamente o mesmo que refutar a prova de que 1 + 1 = 2 apontando que alguém achou 3 como resposta – e quase tão ridículo quanto isso.

Para redizer minha afirmação: se algo é ou não verdadeiro, falso ou indeterminável; se foi ou não justificado; o que se exige para justificá-lo; se eu, meus oponentes ou nenhum de nós está certo – tudo isso deve ser decidido no curso da argumentação. Essa proposição é verdadeira a priori, porque não pode ser negada sem ser afirmada no ato de sua negação. Não se pode argumentar que não se pode argumentar, e não se pode contestar saber o que significa levantar uma afirmação válida sem implicitamente afirmar pelo menos que a negação dessa proposição é verdadeira.

Isso tem sido chamado de “o a priori da argumentação”, e foi por causa do status axiomático dessa proposição, análoga ao “axioma da ação” da praxeologia, que eu invoquei Mises no meu artigo. (O ultraje de Virkkala contra isso desqualifica a si mesmo porque eu afirmei explicitamente que Mises pensou que o que eu estava tentando fazer era impossível. Ademais, é seu entendimento de Mises que é cômico. Enquanto é verdade que a praxeologia fala sobre marginalismo, obviamente não é o caso que a praxeologia como um corpo de proposições seja em qualquer sentido afetada por escolhas marginais. A praxeologia contém proposições universalmente verdadeiras, e se nós escolhemos ou não aceitá-las não afeta esse fato. Está além de mim o motivo pelo qual isso deveria ser diferente quando se trata de proposições éticas. Virkkala poderia muito bem atacar Mises por “retirar-se do marginalismo” devido à sua afirmação de que a praxeologia é verdadeira.)

Com o a priori da argumentação estabelecido como um ponto de partida axiomático, segue-se que nada que deve ser pressuposto no ato de fazer proposições pode ser contestado novamente de maneira proposicional. Seria sem significado pedir a justificação de proposições que, em primeiro lugar, tornam possível a produção de proposições significativas. Em vez disso, elas deveriam ser consideradas fundamentalmente justificadas pelo próprio propositor. Qualquer conteúdo proposicional que conteste sua validade poderia ser entendido como implicando uma contradição performativa (no sentido explicado por David Gordon) e, por isso, como definitivamente falseado.

A lei da contradição é uma dessas proposições. Não se pode negar essa lei sem pressupor sua validade no ato de negá-la. Mas há outra proposição desse tipo. Proposições não são entidades flutuando soltas. Elas exigem um propositor que, para produzir qualquer proposição com reivindicação de validade, deve ter controle exclusivo (propriedade) sobre alguns meios escassos definidos em termos objetivos e apropriados (trazidos sob controle) em pontos definidos do tempo por meio do ato de apropriação original. Assim, qualquer proposição que contestasse a validade do princípio da apropriação original para aquisição de propriedade ou que afirmasse a validade de um princípio diferente incompatível seria falseada pelo ato mesmo de propor algo, da mesma forma que a proposição “a lei da contradição é falsa” seria contradita pelo próprio fato de se afirmá-la. Enquanto pressuposição praxeológica da feitura de proposições, a validade do princípio da apropriação original não pode ser argumentativamente contestada sem se incorrer numa contradição performativa. Qualquer outro princípio para aquisição de propriedade pode, então, ser entendido – reflexivamente -, por qualquer propositor, como definitivamente impossível de ser justificado de maneira proposicional. (Note, em particular, que isso inclui todas as propostas que afirmam ser justificado restringir a gama de objetos que podem ser apropriados originalmente. Elas falham porque, uma vez que o controle exclusivo sobre alguns meios apropriados originalmente é admitido como justificado, torna-se impossível justificar qualquer restrição no processo de apropriação – exceto uma restrição autoimposta – sem dessa maneira incorrer numa contradição. Pois, se o proponente de tal restrição fosse consistente, ele poderia ter justificado controle somente sobre alguns meios físicos que ele não teria permissão de empregar para qualquer apropriação adicional. Obviamente, ele não poderia interferir na apropriação estendida dos outros simplesmente por causa de sua própria falta de meios físicos para fazer qualquer coisa quanto a isso justificadamente. Mas, se ele interferir, ele estaria dessa forma estendendo inconsistentemente suas reivindicações de propriedade para além dos seus próprios meios apropriados justamente. Além disso, a fim de justificar essa extensão, ele teria de invocar um princípio de aquisição de propriedade incompatível com o princípio da apropriação original, cuja validade ele já teria admitido.)

Meu argumento inteiro, então, afirma ser uma prova de impossibilidade. Não é, como seus mencionados críticos parecem crer, uma prova que pretende mostrar a impossibilidade de certos eventos empíricos de modo que pudesse ser refutada por evidência empírica. Em vez disso, é uma prova de que é impossível justificar princípios de propriedade não libertários de forma proposicional sem cair em contradições. Qualquer que seja o valor de tal coisa (e eu chegarei a esse ponto em breve), deveria estar claro que evidência empírica não tem absolutamente nenhuma influência nisso. E daí que há escravidão, gulag, imposto? A prova concerne a questão de que alegar que tais instituições possam ser justificadas envolve uma contradição performativa. É puramente intelectual em natureza, como provas lógicas, matemáticas ou praxeológicas. Sua validade, como a dessas outras, pode ser estabelecida independentemente de quaisquer experiências contingentes. Tampouco é sua validade afetada, como diversos críticos – mais notoriamente Waters – parecem pensar, por se as pessoas gostam dela, lhe são a favor, entendem-na ou chegam a um consenso sobre a ela, ou se elas estão ou não efetivamente engajadas numa argumentação.

Já que considerações como essas são irrelevantes para julgar, por exemplo, a validade de uma prova matemática, elas estão, também aqui, fora de questão. Do mesmo jeito que uma prova matemática não está restrita ao momento de sua demonstração, assim também a validade da teoria libertária da propriedade privada não está limitada a circunstâncias de argumentação. Se correto, o argumento demonstra sua justificação universal. (De todos os críticos utilitaristas, apenas Steele aceita o desafio que eu lhes propus: de que a atribuição de direitos de propriedade não pode ser dependente de nenhum resultado posterior, porque, nesse caso, ninguém poderia jamais saber antes do resultado o que estava ou não justificado de se fazer; e de que, ao defender uma posição consequencialista, o utilitarismo não é [estritamente falando] uma ética de modo algum se ele falha em responder à questão decisiva de “o que eu posso fazer justificadamente agora?” Steele resolve esse problema da mesma maneira como procede ao longo de seu comentário: compreendendo mal o que ele é. Ele interpreta mal meu argumento como sujeito a teste empírico e deturpa-o como afirmando mostrar que “eu sou a favor de uma ética libertária” se segue de “eu estou dizendo algo”, enquanto que na verdade o argumento afirma que, independentemente do que as pessoas venham a favorecer ou proferir, “à ética libertária pode-se dar uma justificação proposicional definitiva” se segue de “eu afirmo isso e aquilo serem válidos, i.e., aptos à justificação proposicional”. Sua resposta ao problema consequencialista é, porém, outro golpe de gênio: Não, diz Steele, o consequencialismo não deve envolver uma ética de espere-pelo-resultado praxeologicamente absurda. Seu exemplo: certas regras são defendidas primeiro, depois implementadas, e depois ajustadas dependendo dos resultados. Enquanto que isso é decerto um exemplo de consequencialismo, eu não consigo ver como isso deve fornecer uma resposta a “o que eu posso fazer justificadamente agora?” e assim escapar dos absurdos de uma ética de espere-pelo-resultado. O ponto de partida é injustificado [Quais regras? Não só o resultado depende disso!]; e o procedimento consequencialista é injustificado também. [Por que não adotar regras e cumpri-las independentemente do resultado?] A resposta de Steele à pergunta “o que eu posso fazer justificadamente agora?” é “isso depende de quais sejam lá as regras com as quais você comece, depois de seja lá qual for o resultado a que elas levarem, e finalmente de se você se importa ou não com o resultado”. O que quer que seja isso, não é uma ética.)

A reação do lado randiano, representado por Rasmussen, é diferente. Ele tem poucas dificuldades em reconhecer a natureza do meu argumento, mas então me volta a pergunta: “e daí? Por que deveria uma prova a priori da teoria libertária da propriedade fazer qualquer diferença? Por que não empreender agressões, de todo jeito?” De fato, por quê?! Mas então, por que deveria a prova de que 1 + 1 = 2 fazer qualquer diferença? Pode-se certamente ainda agir com a crença de que 1 + 1 = 3. A resposta óbvia é “porque existe uma justificação proposicional para fazer uma coisa e não outra”. Em seguida se retrucará: mas por que deveríamos ser razoáveis? De novo, a resposta é óbvia. Primeiro, porque seria impossível argumentar contra isso; e, ademais, porque o proponente dessa questão já estaria afirmando o uso da razão em seu ato de questionar. Isso pode ainda não ser suficiente, e todos sabem que não é, pois, mesmo se a ética libertária e o raciocínio argumentativo devem ser considerados definitivamente justificados, isso ainda não impede que as pessoas ajam com base em crenças injustificadas, porque elas não sabem, não se importam ou preferem não saber. Não consigo ver por que isso deveria ser surpreendente ou tornar a prova defeituosa. Mais do que isso não pode ser feito por argumentos proposicionais.

Rasmussen parece pensar que, se você puder obter um “dever” derivado de algum lugar (algo que Yeager alega que estou tentando fazer, embora eu o negue explicitamente), então as coisas seriam melhoradas. Mas isso é simplesmente uma esperança ilusória. Pois mesmo se Rasmussen tivesse provado a proposição de que se deve ser razoável e deve-se agir de acordo com a ética libertária da propriedade, isso ainda seria apenas outro argumento proposicional. Isso não pode assegurar que as pessoas farão o que devem mais do que pode minha prova garantir que elas farão o que é justificado. Qual é a diferença e do que se trata o rebuliço? Há e continua havendo uma diferença entre estabelecer uma declaração verdadeira e inspirar um desejo de agir conforme a verdade – com ou sem “dever”. É decerto magnífico se uma prova puder inspirar esse desejo. Mas mesmo que não o faça, isso dificilmente pode ser usado contra ela. Também não se subtrai nada ao seu mérito se em alguns ou muitos casos algumas afirmações utilitaristas cruas se provassem mais bem-sucedidas do que ela em persuadir qualquer um em favor do libertarianismo. Uma prova continua sendo uma prova, e psicologia social continua sendo psicologia social.

III. Intimidação por Argumento[3]

Loren Lomasky ficou intimidado e enfurecido com meu livro Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo. Pois, primeiro, o livro é mais ambicioso do que seu título indica. “Não é”, ele lamenta, “menos que um manifesto por anarquismo desimpedido”. Que seja. Mas e daí? Como explicado em meu livro, mas convenientemente não mencionado por Lomasky, anarquismo desimpedido não é senão o nome para uma ordem social de direitos de propriedade privada desimpedidos, i.e, de direito absoluto de autopropriedade e o direito absoluto de apropriar recursos sem dono, de empregá-los para qualquer propósito que se achar cabível desde que isso não afete a integridade física dos recursos igualmente apropriados dos outros, e de entrar em qualquer acordo contratual que se julgue mutuamente benéfico com outros proprietários. O que é tão apavorante nessa ideia? Empiricamente falando, essa teoria da propriedade constitui o núcleo do senso de justiça intuitivo da maioria das pessoas e dificilmente poderia ser chamada de revolucionária. Somente alguém defendendo o impedimento dos direitos de propriedade privada se ofenderia, como faz Lomasky, com minha tentativa de justificar uma economia pura de propriedade privada.

Porém Lomasky não está só enfurecido com minhas conclusões. Sua ira é ainda mais agravada porque eu não tento meramente fornecer evidência empírica para elas, mas uma prova rigorosa – repreende Lomasky – “validada pela razão pura e não contaminada por quaisquer possibilidades meramente empíricas”. Não é surpreendente que um opositor dos direitos de propriedade privada desimpedidos, como Lomasky, fosse achar esse empreendimento duplamente ofensivo. Porém, o que há de errado com uma teorização apriorística em economia e ética? Lomasky aponta que existem tentativas falhas de construir uma teoria a priori. Mas e daí? Isso só se reflete nessas teorias específicas. Ademais, isso efetivamente pressupõe a existência de um raciocínio a priori no qual a refutação de uma teoria a priori deve ser ela mesma uma prova. Para Lomasky, no entanto, nada senão hipérbole intelectual pode possivelmente ser responsável por “abster-se do caminho inferior do empirismo, elevando-se, ao invés disso, com Kant e von Mises pelo reino das necessidades a priori“. Um livro sobre filosofia política e economia, portanto, jamais deveria vir com conclusões inequívocas quanto ao que fazer e a que regras seguir. Tudo deveria se deixar vago e num estágio não operacional de desenvolvimento conceitual, e ninguém nunca deveria tentar provar nada, mas sim, ao invés disso, seguir a abordagem mente sempre aberta empirista de tentativa e erro, de conjecturas provisórias, de refutações e confirmações. Tal é, para Lomasky, o caminho adequado, o caminho inferior e despretensioso, pelo qual se deve viajar. Por certo, a maioria dos filósofos políticos contemporâneos parece ter seguido de todo o coração esse conselho no seu caminho para a fama. Tomando, em vez disso, o caminho elevado, eu apresento uma tese inequívoca, atestada em termos operacionais, e tento prová-la por argumentos axiomático-dedutivos. Se isso faz do meu livro o insulto máximo em alguns círculos filosóficos, tanto melhor. Afora outras vantagens, como a de que esse deve ser com efeito o único método de investigação apropriado, ele pelo menos nos força a dizer algo específico e a nos abrir para a crítica lógico-praxeológica rigorosa ao invés de produzir, como fazem Lomasky e seus companheiros do caminho inferior, conversa fiada e distinções não operacionais sem sentido.

Além de encontrar defeito na arrogância de alguém escrevendo um livro que apresenta uma tese praxeologicamente significativa e facilmente compreensível sobre os problemas centrais das filosofias política e econômica e que a defende vigorosamente a ponto de descartar qualquer outra resposta como falsa, Lomasky tem também algumas lêndeas para catar. Como se pode esperar de um intimidado viajante do caminho inferior, têm-se comentários vulgares não sistemáticos ou mostras de completa má compreensão do problema.

Sou criticado por não prestar suficiente atenção a Quine, Nozick e corpos inteiros de pensamento filosófico. Talvez sim, apesar de Nozick, mesmo que em apenas uma nota de rodapé, como observa Lomasky indignado, ser com efeito refutado sistematicamente. No entanto, se desejaria saber por que isso deveria fazer diferença para o meu argumento. Meras sugestões de leitura são muito fáceis de serem feitas nestes tempos. Eu sou criticado por interpretar mal Locke, ao não mencionar sua famosa cláusula, mas eu não estou engajado numa interpretação de Locke. Eu construo um teoria positiva e, ao fazê-lo, emprego ideias lockeanas; e, assumindo como correta minha teoria em prol do argumento, não pode haver nenhuma dúvida quanto ao meu veredicto acerca da cláusula. Ela é falsa e incompatível com o princípio da apropriação original enquanto pilar central da teoria de Locke. Lomasky não demonstra que é de outro jeito. Ele está irritado com minha dissolução do problema dos bens públicos como um pseudo-problema sem mais do que mencionar meu argumento central sobre o problema, i.e., de que a noção de classes objetivamente distintas de bens privados vs. públicos é incompatível com a economia subjetivista e, desse modo, deve cair no esquecimento juntamente com todas as distinções baseadas nisso. Ele acha deficientes meus argumentos em prol da tese da eterna otimização dos livres mercados porque eles devem contar com a assunção da “otimização universal das transações voluntárias”. Eles devem, de fato. Eu nunca afirmei qualquer outra coisa. Porém essa assunção vem a ser verdadeira – de fato, como eu argumento, incontestavelmente verdadeira. Então e daí? Ou Lomasky está disposto a assumir a tarefa de prová-la falsa?! Vez que eu ouso – numa nota de rodapé – criticar Buchanan e Tullock por linguagem orwelliana, Lomasky se queixa. Ele só se esquece de mencionar que eu dou razões específicas para essa caracterização: entre outras, o uso da noção de acordos e contratos “conceituais” em sua tentativa de justificar um estado, quando, de acordo com a linguagem comum, tais acordos e contratos são não acordos e nem contratos. Não contratar significa contratar! De maneira semelhante, para as minhas tão insolentes observações sobre as teorias de propriedade ao estilo de Chicago eu dou razões (sua assunção de mensurabilidade da utilidade, por exemplo) que Lomasky simplesmente suprime. O resto, concernente à minha teoria da justiça, são entendimentos equivocados ou deturpações deliberadas. A partir da leitura da reconstrução de Lomasky do meu argumento central, em que ele reveladoramente não emprega nenhuma citação direta, ninguém poderia compreender seu principal impulso e estrutura: sem escassez não pode haver nenhum conflito interpessoal e por isso nenhuma questão ética (o que eu posso ou não fazer justificadamente?). Conflitos são o resultado de reivindicações incompatíveis sobre recursos escassos, e não há senão uma maneira de evitar tais impasses: através da formulação de regras que atribuam títulos de propriedade mutuamente exclusivos sobre recursos físicos escassos de modo a tornar possível para agentes distintos agir simultaneamente sem dessa forma gerar conflito. (Como a maioria dos filósofos contemporâneos, Lomasky não dá uma indicação de que compreendeu o elementar, porém fundamental, ponto de que qualquer filosofia política que não seja construída como uma teoria de direitos de propriedade privada falha inteiramente em seu próprio objetivo e, assim, deve ser descartada desde o início como tolice praxeologicamente sem sentido.)

Porém a escassez, e a possibilidade de conflitos, não são suficientes para o surgimento de problemas éticos. Obviamente, poderia ter-se um conflito relativo a recursos escassos com um animal, mas não se consideraria possível resolver esses conflitos por meio da proposição de normas de propriedade. Em tais casos, a precaução contra esses conflitos é meramente um problema técnico, e não ético. Pois para se tornar um problema ético é também necessário que os agentes conflitantes sejam capazes, em princípio, de argumentar. (O exemplo do mosquito de Lomasky é, assim, parvo: animais não são agentes morais, porque eles são incapazes de argumentar. Minha teoria da justiça nega explicitamente sua aplicabilidade a animais e, de fato, implica que eles não têm direitos!)

Além disso, é incontestável que não pode haver qualquer problema de ética sem a argumentação. Não só eu me engajei numa argumentação o tempo inteiro, como é impossível, sem cair numa contradição, negar que, caso se tenham ou não direitos e quais sejam eles, isso deve ser decidido no curso da argumentação. Assim, não pode haver qualquer justificação ética de nada, exceto na medida em que seja argumentativa. Isso tem sido chamado de “o a priori da argumentação”. (Na medida em que Lomasky tenha entendido isso, ele definitivamente parece estar inconsciente do status axiomático dessa proposição, i.e., do fato de que o a priori da argumentação fornece um ponto de partida absoluto, não exigindo, nem possibilitando, qualquer justificação ulterior!)

Argumentar é uma atividade e requer o controle exclusivo de uma pessoa sobre recursos escassos (seu cérebro, pregas vocais, etc.). Mais especificamente, tão logo haja argumentação, há um reconhecimento mútuo do controle exclusivo de cada um sobre tais recursos. É isto que explica o caráter único da comunicação: enquanto se pode discordar a respeito do que foi dito, é ainda possível concordar, independentemente, ao menos sobre o fato de que há discordância. (Lomasky não parece contestar isso. Ele afirma, entretanto, que isso prova meramente o fato de domínios de controle mutuamente exclusivo, e não o direito de autopropriedade. Ele erra. O que quer que se deva pressupor [por exemplo, a lei da contradição] na medida em que se argumenta não pode ser contestado significativamente, porque se trata da própria precondição da dúvida significativa; por isso, deve ser considerado incontestável ou válido a priori. Na mesma linha, o fato da autopropriedade é uma precondição praxeológica da argumentação. Qualquer pessoa tentando provar ou refutar qualquer coisa deve ser um dono de si. É um absurdo autocontraditório pedir por qualquer justificação mais fundamental para esse fato. Exigida, por necessidade, por toda argumentação significativa, a autopropriedade é um fato absoluta e definitivamente justificado.)

Por fim, se agentes não fossem autorizados a possuir recursos físicos além de seus corpos, e se eles enquanto agentes morais – categoricamente distintos dos mosquitos de Lomasky – seguissem essa prescrição, eles estariam mortos e problema nenhum iria existir. Para problemas éticos existirem, então, propriedade sobre outros bens deve ser justificada. Além disso, se não fosse permitido apropriar outros recursos através de apropriação original, i.e., colocando-os em uso antes que qualquer outra pessoa o faça, ou se a gama de objetos a ser apropriados fosse limitada de algum modo, isso só seria possível se a propriedade pudesse ser adquirida por mero decreto em vez de pela ação. Entretanto, isso não se qualifica como uma solução para o problema da ética, i.e., de evitar conflitos, mesmo no campo puramente técnico, pois isso não iria permitir que se decidisse o que fazer se tais reivindicações declarativas se achassem incompatíveis. Mais decisivo ainda: seria incompatível com a já justificada autopropriedade, pois se se pudessem apropriar recursos por decreto, isso implicaria que se poderia também declarar-se dono do corpo de outra pessoa. Assim, qualquer um a negar o princípio da apropriação original – cujo reconhecimento já está implícito ao se argumentar o respeito mútuo de duas pessoas pelo controle exclusivo uma do corpo da outra – contradiria o conteúdo da sua proposição através do próprio ato de propor. (Por alguma razão, num golpe de gênio, Lomasky encontra defeito no fato de que a primeira parte desse argumento não fornece uma justificação para apropriação ilimitada. Verdade. Mas ela também não alega fazer nada disso. A segunda parte – o argumentum a contrario – o faz. Com respeito ao meu argumento em sua inteireza, Lomasky afirma que eu apenas mostrei a validade do princípio da não agressão para o ato mesmo da argumentação e não para além… ele não se estende ao objeto de discussão. Na melhor das hipóteses, essa objeção indica uma falha total em compreender a natureza das contradições performativas: se a justificação de qualquer coisa é uma justificação argumentativa, e se o que deve ser pressuposto por qualquer argumentação deve ser considerado definitivamente justificado, então toda proposição reivindicando validade cujo conteúdo seja incompatível com tais fatos definitivamente justificados é falseada em absoluto por envolver uma contradição performativa. E é isso.)

Teorização filosófica e econômica é de fato um trabalho sério.

IV. Sobre a Indefensibilidade dos Direitos de Bem-Estar[4]

David Conway afirma que meu argumento pretendendo mostrar a validade irrestrita do princípio da apropriação original, i.e., a regra do primeiro-usuário-primeiro-dono com relação recursos sem dono dados pela natureza, é falho e que ele pode demonstrar a defensibilidade dos direitos de bem-estar. Eu permaneço não convencido e afirmo que seu contra-argumento é que é defeituoso.

Embora eu não tenha nenhuma desavença quanto à sua apresentação do meu argumento, eu irei primeiro expor novamente minha prova. Segundo, eu apontarei os erros centrais de sua réplica. Terceiro, eu desejo oferecer uma explicação à rejeição de Conway do meu argumento como resultante de um equívoco comum com relação à lógica do raciocínio ético.

Caso se tenham ou não quaisquer direitos, e, se se tiver algum, quais são eles, isso só pode ser decidido no curso de uma argumentação. É impossível negar a verdade disso sem cair numa contradição. Argumentar exige o controle exclusivo (propriedade) de uma pessoa sobre recursos escassos (seu cérebro, pregas vocais, etc.). Negá-lo iria de novo meramente provar o ponto. Além disso, uma pessoa deve ter adquirido essa propriedade simplesmente em virtude do fato de que ela começou a usar esses recursos antes que qualquer outra pessoa o fizesse; de outro modo, ela não poderia, para começo de conversa, nunca dizer ou argumentar em favor de nada. Assim, qualquer um que negue a validade do princípio da apropriação original ao menos com respeito a alguns recursos escassos iria contradizer o conteúdo de sua proposição através do próprio ato de propor. Até aí, ao que parece, Conway concordaria. Mas ele iria impor limitações quanto à gama de objetos que podem legitimamente ser apropriados. Infelizmente para o caso de Conway, porém, uma vez que o controle exclusivo sobre alguns meios apropriados seja admitido como justificado, torna-se impossível justificar quaisquer restrições no processo de apropriação – exceto alguma restrição autoimposta voluntária – sem desse modo incorrer em contradições. Pois se o propositor de tal restrição fosse consistente, ele teria controle justificado somente sobre alguns recursos escassos, ainda que limitados, que ele não teria permissão para empregar para apropriação adicional. Porém, obviamente, ele não poderia então interferir na apropriação estendida dos outros, simplesmente por conta de sua própria falta de meios para fazer qualquer coisa a respeito disso. E se ele interferisse, ele iria dessa forma (inconsistentemente) estender suas reivindicações de propriedade para além de seus recursos justamente apropriados. Ademais, a fim de justificar sua interferência, ele teria de invocar um princípio de aquisição de propriedade incompatível com o princípio da apropriação original: ele teria que reivindicar (inconsistentemente) que uma pessoa que estende sua apropriação, e que o faz conforme o princípio que ninguém pode argumentar ser em geral inválido, é, ou pelo menos pode ser, um agressor (ainda que fazendo isso não se pudesse dizer que essa pessoa tomou algo de outrem, porque ela teria meramente apropriado recursos previamente sem dono, i.e., coisas que ninguém até aquele momento havia reconhecido como recurso escasso e que qualquer outra pessoa poderia igualmente ter apropriado se tivesse apenas reconhecido sua escassez mais cedo, inclusive qualquer pessoa como Conway, que estava preocupado com o destino de retardatários e queria preservar esses recursos para o benefício posterior deles). E, além disso, teria de reivindicar também que uma pessoa que interferisse em tal ação e que o fizesse de acordo com um princípio que ninguém poderia argumentar ser em geral válido está, ou ao menos pode estar, agindo legitimamente (mesmo que ele fosse sempre tomar algo de alguém cujas apropriações não ocorreram às custas de ninguém).

O erro central na rejeição de Conway a esse argumento é sua recusa em reconhecer a incompatibilidade lógica entre sua ideia de direitos de bem-estar, por um lado – a noção de que se podem ter reivindicações imponíveis contra apropriadores -, e o princípio da apropriação original, por outro. Ou a primeira ideia é correta, ou o é a segunda. No entanto, a primeira não se pode dizer correta, porque, para que se o diga, a segunda deve se pressupor como válida. Não pode haver, portanto, algo como um direito a vida no sentido adotado por Conway de um direito a ter sua vida sustentada por outros. Só pode haver o direito de cada pessoa possuir seu corpo físico e tudo apropriado com usa ajuda, e o de se engajar em trocas mutuamente benéficas com outros. Suponha, por exemplo, que eu esteja doente em estado terminal e o único modo de eu sobreviver é se meu cérebro for posto em curto-circuito com o de Conway. Ele tem o direito de recusar? Eu penso que sim, e estou certo de que ele também. Mas ele não pode ter esse direito sobre bases de bem-estar (assumindo-se que sua vida não fosse ser ameaçada por tal operação), mas apenas com base no princípio da apropriação original enquanto a precondição da existência como ser físico com raciocínio e argumentação independentes. Além disso, sua afirmação de que direitos de bem-estar são “tão objetivos” quanto aqueles implicados ao se misturar o próprio trabalho com recursos escassos (ao contrário da minha tese de que os primeiros são subjetivos, arbitrários, verbais, derivados de nenhum lugar) é falaciosa. Através da apropriação original, um vínculo objetivo entre uma pessoa específica e um recurso específico é criado. Mas como pode alguém dizer que minha necessidade pode dar origem a uma reivindicação sobre qualquer recurso específico ou qualquer dono específico X de recursos, em vez do dono Y ou do Z, se eu não apropriei ou produzi nenhum deles?! O desprovimentonão é só incapaz de identificação ou mensuração objetiva: quem determina quem é necessitado ou não? Cada um por si mesmo? Mas o que acontece se eu vir a discordar da autoavaliação de alguém? Pessoas morreram por paixão. Elas têm um direito de ter um amante? Pessoas sobreviveram comendo grama, casco de árvore, ratos, baratas e o lixo dos outros. Então não haveria pessoas necessitadas tão logo houvesse grama ou lixo suficiente para comer? Se não, por quê? Por quanto tempo deveria durar o suporte ao necessitado? Para sempre? E quanto aos direitos daqueles que sustentam, que se tornariam escravos perpétuos do necessitado? Ou, e se minha ajuda ao necessitado causasse minha transformação num necessitado eu mesmo ou de algum modo aumentasse minhas próprias necessidades futuras? Eu ainda teria de continuar lhe dando suporte? E quanto trabalho eu posso esperar do desprovido em retorno ao meu suporte, dado, para início de conversa, o fato de que não se está lidando com uma relação de emprego mutuamente benéfica ou de caridade voluntária? O tanto que o desprovido sentir ser adequado?

Além do mais, mesmo se todas essas dificuldades fossem superadas, mais delas há subjacentes, porque necessidade não conecta o necessitado a nenhum recurso ou dono de recurso em particular, e ainda devem ser, invariavelmente, recursos particulares que provejam alívio. O necessitado pode sê-lo sem qualquer culpa própria, mas o não necessitado pode sê-lo também sem culpa. Então como que o necessitado pode reivindicar ajuda minha mas não sua? Com certeza isso seria totalmente injusto comigo em particular! Na verdade, ou o necessitado não pode ter uma reivindicação contra alguém em particular, o que significa dizer que ele não tem reivindicação nenhuma, ou então sua reivindicação teria que ser igualmente direcionada contra cada um dos não desprovidos do mundo.

Todavia, como poderia o necessitado impor sua reivindicação? Afinal de contas, ele carece de recursos. Para isso ser possível, uma agência mundial operante com recursos ilimitados seria exigida. Supostamente, somente a necessidade cria tais reivindicações. A agência, na verdade, teria que ser considerada um dos principais devedores do necessitado e poderia agir legitimamente apenas contra outros não necessitados se tivesse antes pago voluntariamente sua parte das dívidas de bem-estar e o necessitado tivesse confiado contratualmente essa tarefa de compulsão a ela. Por isso, o problema do bem-estar teria que esperar por uma solução até essa instituição chegar. Até agora ela não chegou, e não há nada que indique que ela chegará num futuro próximo. Mesmo que chegasse, direitos de bem-estar ainda seriam incompatíveis com a regra da apropriação original como um princípio axiomático incontestavelmente válido.

A explicação para a recusa de Conway em aceitar a ética da apropriação original reside numa má compreensão relativa à natureza da teoria ética. Em vez de reconhecer a ética como uma teoria lógica, derivada dedutivamente de axiomas incontestáveis (semelhante à praxeologia), Conway implicitamente compartilha uma popular abordagem empirista-intuitivista(ou de pressentimento) para a ética. Por conseguinte, uma teoria ética é testada contra a experiência moral, de tal maneira que, se a teoria render conclusões em desacordo com as intuições morais, ela deve ser considerada falsa. No entanto, essa visão é inteiramente equivocada e, bem como na economia, o papel da teoria e da experiência na ética é quase precisamente o oposto: é a função mesma da teoria ética fornecer uma justificação racional para nossas intuições morais, ou mostrar por que elas não têm essa base, e nos fazer reconsiderar e revisar nossas reações intuitivas. Isso não é dizer que intuições não possam nunca exercer um papel na construção da teoria ética. Na verdade, conclusões teóricas contraintuitivaspodem muito bem indicar um erro teórico. Mas se, depois do reexame teórico, não se encontrarem erros nem nos axiomas nem nas deduções, então a intuição é que se deve abandonar, não a teoria.

Na verdade, o que choca Conway como uma implicação contraintuitiva da ética da apropriação original, e então o leva a rejeitá-la, pode facilmente ser interpretado de maneira bem diferente. É verdade, como diz Conway, que essa ética permitiria a possibilidade de o mundo inteiro ser apropriado. E quanto aos recém-chegados, que nessa situação não possuem nada senão seus corpos físicos? Não poderiam os apropriadores restringir o acesso às suas propriedades para esses recém-chegados e não seria isso intolerável? Não consigo ver por quê. (Empiricamente, é claro, o problema não existe: se não fosse pelos governos restringindo acesso a terras sem dono, ainda haveria bastantes terras vazias por aí!) Esses recém-chegados normalmente vêm à existência em algum lugar como crianças nascidas de pais que são donos ou locatários de terras (se eles viessem de Marte e ninguém os quisesse aqui, e daí? Eles assumiram um risco ao vir, e se agora eles têm que retornar, azar!). Se os pais não sustentam os recém-chegados, estes são livres para procurar no mundo todo por empregadores, vendedores ou praticantes de caridade, e uma sociedade governada pelo princípio da apropriação original seria, como Conway admite, a mais próspera possível! Se eles ainda não pudessem encontrar ninguém disposto a empregá-los, ajudá-los ou a realizar trocas com eles, por que não perguntar o que há de errado com eles, em lugar do sentimento de Conway de lamentar-se por eles? Aparentemente eles devem ser sujeitos insuportavelmente desagradáveis e deveriam se adaptar, ou não merecem tratamento diferente. Essa, na verdade, seria minha própria reação intuitiva.

 

 

Tradução de João Marcos Theodoro

———————————————————————————-

Notas

[1] Réplica a David Osterfeld, “Comment on Hoppe”, Austrian Economics Newsletter (Spring/Summer, 1988).

[2] Réplica a “Symposium on Hoppe’s Argumentation Ethic”, Liberty (November 1988).

[3] Réplica a Loren Lomasky, “The Argument From Mere Argument”, Liberty (September 1989).

[4] Réplica a David Conway, “A Theory of Socialism and Capitalism”, Austrian Economics Newsletter (Winter/Spring, 1990).

Hans-Hermann Hoppe
Hans-Hermann Hoppe
Hans-Hermann Hoppe é um membro sênior do Ludwig von Mises Institute, fundador e presidente da Property and Freedom Society e co-editor do periódico Review of Austrian Economics. Ele recebeu seu Ph.D e fez seu pós-doutorado na Goethe University em Frankfurt, Alemanha. Ele é o autor, entre outros trabalhos, de Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo e A Economia e a Ética da Propriedade Privada.
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