Friday, November 22, 2024
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Entendendo a diferença entre dinheiro e juros

N. do T.: para uma melhor compreensão do artigo a seguir, que versa sobre o funcionamento do mecanismo de determinação dos juros, recomenda-se a leitura desse artigo, que explica de modo mais detalhado todos os meandros desse sistema.

 

Há uma piada antiga em que um cara pergunta para o outro: “Qual a diferença entre uma cortina e um papel higiênico?”.  O outro diz: “Não sei. Qual?”.  E o primeiro responde: “Então você está proibido de entrar na minhacasa!”

Vendo os economistas “especialistas” debaterem a atual crise financeira, percebi que a piada acima pode ser modificada.  Hoje eu perguntaria a eles “Qual a diferença entre política monetária e taxas de juros?”.  Aquele que respondesse “Não sei.  Qual?” estaria proibido de dar seus conselhos aos governos.  Qualquer “especialista” que confunda dinheiro e juros irá, sob certas condições, inevitavelmente fornecer recomendações horríveis, como veremos mais abaixo.

Dinheiro e Juros São Coisas Distintas

Embora muitos tenham sido levados a crer que um aumento na oferta monetária é a mesma coisa que uma diminuição na taxa de juros, ambas são coisas bem diferentes.  Na realidade, a conexão aparentemente óbvia entre crescimento monetário e taxas de juros é, em grande medida, um acidente de percurso decorrente da maneira como os bancos centrais se desenvolveram historicamente.  Em uma economia genuinamente baseada na propriedade privada, os escavadores de ouro – isto é, os produtores de dinheiro – não teriam absolutamente qualquer conexão direta com as taxas de juros.  Caso os escavadores decidissem, por exemplo, aumentar sua produção, essa decisão teria um impacto direto muito pequeno sobre as taxas de juros.

Os bancos centrais, de maneira bastante arbitrária, injetam dinheiro novo na economia por meio dos mercados de crédito.  Suponhamos, para facilitar o entendimento, que o governo controle totalmente a “indústria monetária”.  E suponhamos ainda que estejamos em uma situação em que o governo determina que uma injeção de mais dinheiro se faz necessária para tirar o mercado de sua letargia (não é esse o argumento?).  Ainda assim, não há razão alguma para que o banco central tenha de escolher a compra de títulos da dívida como ponto de entrada para o novo dinheiro.

Este é um ponto crucial, portanto vamos nos deter um pouco mais nele.  Atualmente, quando o banco central pratica suas “operações de mercado aberto”, seus funcionários vão até o mercado e compram, digamos, $10 milhões em títulos da dívida que estavam em posse de um negociante de títulos qualquer (dealerssecundários).  Como o banco central paga por esses títulos?  Ora, ele simplesmente emite um cheque em nome do banco central.

Quando o negociante deposita esse cheque de $10 milhões em sua conta, seu banco credita sua conta-corrente com $10 milhões.  Após isso, esse banco irá repassar esse cheque para o banco central, de modo que ele seja compensado.  Prepare-se, pois agora vem a parte divertida: quando o banco central recebe um cheque – escrito em nome dele próprio – do banco A, o banco central processa esse cheque e aumenta em $10 milhões o saldo da conta que o banco A tem junto ao banco central.  Porém, não há um débito correspondente em nenhuma outra conta bancária!  A quantia total de reservas bancárias, que são mantidas como depósitos junto ao banco central, aumentou magicamente $10 milhões.

Como bem se lembra qualquer economista que não tenha cabulado as aulas introdutórias de Macroeconomia I, o atual sistema bancário é do tipo reservas fracionárias, o que significa que uma injeção de $10 milhões em novas reservas irá na realidades fazer com que praticamente $100 milhões em dinheiro novo entre na economia (tomando-se como base um compulsório de 10%).  Mas não é nesse efeito pirâmide que quero me concentrar.

Quero na verdade me concentrar em um fato no mínimo excêntrico: o banco central determina que os negociantes de títulos (dealers) serão os primeiros recebedores desse novo dinheiro injetado na economia, e pronto.  Isso, porém, implica um impacto colossal na maneira como a economia opera.  Mas raramente paramos para pensar nesse aspecto da situação, tão acostumados ficamos a achar que tudo é natural.

Com efeito, trata-se de um arranjo horrendamente artificial.  E pior: é esse arranjo que causa os ciclos econômicos.  Para ilustrar a anormalidade desse arranjo, peguemos um exemplo mais bizarro, porém que funciona da mesma forma que o atual: suponha que o banco central, quando quer aumentar a oferta monetária, ao invés de recorrer ao mercado de títulos, recorresse ao mercado de veículos utilitários esportivos (conhecidos pela sigla SUV).  Nesse caso, ao invés de expandir a base monetária comprando títulos da dívida, o banco central iria comprar SUVs.  Você consegue o quanto isso iria distorcer o mercado de automóveis?

O BC dos SUVs

Não é atípico um banco central aumentar seus ativos – isto é, aumentar os bens adquiridos via operações de mercado aberto – na casa dos bilhões em um período de um ano.  Isso significa que, no decurso de um ano, é totalmente possível que um banco central coloque sua impressora em rotação máxima e acumule títulos da dívida avaliados em, por exemplo, $5 bilhões.  Consequentemente, não é atípico que, mais à frente, o banco central possa se desfazer rapidamente desses títulos, vendendo-os não de acordo com alguma fórmula previsível, mas basicamente de acordo com os caprichos de um único homem – o presidente do BC.

Tendo isso em mente, imagine agora que o BC, ao invés de títulos, tenha acumulado enormes estoques de SUVs praticando suas operações de mercado aberto.  Nesse caso, o BC iria até as concessionárias e lhes escreveria vários cheques em nome do próprio BC (sendo que, como explicado, esses cheques estão lastreados por uma oferta infinita de reservas eletrônicas, criada pelo BC ao simples apertar de teclas em um computador).

Em troca, a concessionária iria vender um veículo de verdade para o BC.  E o cliente normal que estava de olho naquela SUV em particular teria de sair à procura de outra, porque aquela estaria dentro de um caminhão-cegonha indo em direção aos cofres do BC.

Entretanto, esse cliente ainda teria uma outra opção: ele poderia decidir adiar sua compra na esperança de que o BC adotasse uma política monetária mais restritiva.  Nesse caso – quando o BC quer retirar dinheiro da economia para conter a inflação de preços -, ele iria despejar as SUVs de volta no mercado.  Aí o procedimento seria invertido: as concessionárias comprariam as SUVs em posse do BC escrevendo cheques em nome delas.  Esses cheques, ao serem compensados, retirariam dinheiro das contas bancárias das concessionárias.  No final do processo, as reservas do sistema bancário – as contas que os bancos têm junto ao BC – teriam uma parte de si simplesmente deletadas.

Embora esse nosso sistema hipotético trouxesse extrema volatilidade aos preços dos SUVs, é mais do que óbvio que as montadoras iriam adorar o arranjo, desde que o governo atuasse como um comprador líquido de SUVs.  Ou seja, desde que o estoque de SUVs em posse do governo tendesse a aumentar ao logo do tempo, as montadoras estariam efetivamente recebendo subsídios indiretos, mesmo se o governo jamais lidasse diretamente com as montadoras e sempre comprasse os SUVs de revendedoras.

Os consumidores atuais e potenciais de SUVs iriam sofrer, obviamente.  Não apenas eles iriam pagar preços mais altos, mas também estariam menos certos quanto à disponibilidade de veículos e quanto ao preço deles, devido às intervenções constantes e repentinas do banco central nesse mercado.

Os Preços dos Títulos e as Taxas de Juros

Distorções similares ocorrem no mundo real, mas já deixamos de notá-las.  Quando o banco central “corta as taxas de juros”, o que ele está realmente fazendo é criando dinheiro do nada e entregando-o para as “montadoras” dos títulos.  E o que é um “montador” de títulos?  É apenas um termo elegante para designar umtomador de empréstimo.

O mais privilegiado produtor de títulos é, obviamente, o Tesouro.  Sim, estou convencido de que tudo não passou de uma enorme coincidência que, ao criar o banco central – a entidade que controla a impressora de dinheiro -, o governo tenha determinado, explícita ou implicitamente, que o BC só poderia injetar dinheiro na economia por meio da compra de títulos emitidos pelo Tesouro.  Isso garante que, toda vez que o BC injeta dinheiro novo no sistema, o preço dos títulos do Tesouro aumenta.  Considerando-se que o Tesouro estávendendo esses títulos recém-emitidos, o Tesouro obviamente se beneficia com esse esquema.

Por outro lado, o pessoal do setor privado que compra títulos do governo e/ou outros títulos corporativos perdem.  Se eles tivessem entrado no mercado com a intenção de comprar um título que renda $10.000 em dez anos, eles agora terão de pagar um preço maior por causa dessa intervenção do BC.

Um outro nome para esses compradores que estão no setor privado é poupadores.  Assim, a decisão do BC de acumular títulos da dívida – ao invés de veículos utilitários – tem por efeito subsidiar os tomadores de empréstimo e penalizar os poupadores.  Suas ações também fazem com que as pessoas poupem menos, ou se endividem mais, do que caso estivessem operando em um livre mercado de títulos.  Talvez ainda mais sério, o comportamento do banco central provoca os ciclos de expansão e recessão que misteriosamente atormentam as economias de mercado.

O BC e Seu Ataque Duplo à Economia

O que as pessoas frequentemente ignoram é o fato de que o banco central distorce a economia de duas maneiras isoladas: primeiro, ele destrói o valor da moeda ao expandir a oferta de dinheiro ano após ano.  Mas além de aumentar generalizadamente os preços, as ações do banco central também provocam distorções porque elas elevam primeiramente os preços dos títulos, de modo que eles são temporariamente maiores do que os outros preços de todos os outros bens.

Se o banco central dobrar a oferta monetária, no longo prazo isso irá, grosso modo, duplicar os preços de todos os bens e serviços.  Porém, se o banco central restringir a injeção de dinheiro novo a somente alguns poucos recebedores privilegiados, essas pessoas terão uma vantagem fantástica (embora temporária) em relação a todo o resto da economia.  Elas terão em suas mãos bilhões de novas unidades monetárias ao mesmo tempo em que os preços ainda estarão refletindo a realidade antiga.  Esse novo dinheiro irá então fluir de um setor para outro, elevando os preços à medida que vai perpassando toda a economia.  Mas as últimas pessoas na fila para receber esse novo fluxo de cédulas recém-criadas estarão muito mais pobres que as outras, pois, quando o novo dinheiro chega até elas, os preços já se estabilizaram em seu novo nível.  Seus contracheques foram os últimos a subir, e, enquanto isso não acontecia, elas ficaram apenas assistindo, desamparadamente, aos preços dobrarem.  (Para uma explicação mais detalhada desse processo, veja esse artigo de Ludwig von Mises).

Uma Combinação Mortal

Agora, o que acontece quando a economia está em uma situação em que (a) ela “necessita” de mais dinheiro, e (b) ela “necessita” de taxas de juros maiores?  (Estou utilizando vagamente o termo “necessita” apenas para subentender “requerido pela eficiência econômica”).  Por exemplo, imagine um país que até então estava economicamente isolado e agora passou a fazer parte do mercado mundial.  Seus cidadãos originalmente comercializavam entre si com sua própria moeda domestica, mas agora eles querem utilizar a moeda de troca internacional.

Sob um genuíno livre mercado monetário, o ouro provavelmente seria a moeda-commodity mundial.  Isso significa que toneladas de ouro extra (na forma de barras e moedas) iriam fluir para o país em desenvolvimento, sendo adicionadas aos encaixes de seus cidadãos.

Mas, ao mesmo tempo, como essas pessoas saberiam que seu padrão de vida iria avançar imensamente no futuro próximo, elas iriam querer contrair empréstimos baseando-se em sua renda futura.  Em outras palavras, agora que seu país estava aberto ao comércio internacional, sua produtividade iria se multiplicar por um fator de dez dentro de poucos anos.  Óbvio que a mudança não seria da noite para o dia, pois levaria algum tempo para que as empresas multinacionais viessem e construíssem fábricas modernas, ou começassem a extração em larga escala de recursos minerais.

Do ponto de vista dos nativos, eles iriam perceber que sue renda média anual saltaria de, digamos, $500 para $5.000 em dois anos, ficando nesse nível até sua aposentadoria.  Nessa situação, eles naturalmente iriam tomar emprestado bastante dinheiro.  Esse aumento da demanda por empréstimos iria aumentar as taxas de juros, o que atrairia mais poupança do resto do mundo e racionaria os fundos disponíveis para outros tomadores de empréstimos.

É assim que um genuíno livre mercado iria lidar com um cenário no qual o mercado precisa de mais dinheiro e de juros mais altos.  O aumento do preço mundial do ouro iria induzir os escavadores a elevar a produção, ao passo que o aumento do preço dos empréstimos iria induzir os poupadores a pouparem mais (o que forneceria crédito realmente lastreado pela poupança).  Não há razão por que as ações dos escavadores iria se conflitar com as ações dos poupadores.

Mas o que acontece quando há um banco central manipulando a situação?  Quando ele tenta elevar a oferta monetária, ele necessariamente joga para baixo as taxas de juros, ao menos em relação ao nível que elas teriam na ausência da intervenção.  Desta forma, em um cenário no qual as pessoas simultaneamente querem portar mais dinheiro e estão desesperadamente necessitadas de mais poupança, o banco central só poderá resolver um desses problemas piorando o outro.

Isso é exatamente o que está ocorrendo na atual crise.  A enorme incerteza nos mercados financeiros – ela própria causada pelas políticas governamentais – fez com que todos procurassem manter uma maior quantidade de dinheiro em suas posses.  As pessoas não têm ideia de qual será sua renda daqui a 6 ou 12 meses, o que faz com que elas tentem exercer um maior controle sobre seus ativos mais líquidos.

Ao mesmo tempo, o estouro das bolhas imobiliária e financeira revelou que muitas pessoas ricas ao redor do globo não haviam poupado tanto quanto imaginavam.  O alarme soou pelo mundo todo: “Poupem mais! Poupem mais! Isso é uma emergência! Toda a estrutura do capital estará em risco caso não tapemos logo esses buracos!”

Tragicamente, o atual arranjo dos bancos centrais permitiu que os governos solucionassem apenas um dos problemas.  Eles optaram por inundar os mercados com dinheiro, derrubando desta forma as taxas de juros para o absurdo nível de praticamente zero (em especial no EUA, na Inglaterra e no Japão).

Com isso, no momento mais crucial da história mundial, em que as taxas de juros deveriam subir acentuadamente, elas foram derrubadas para zero.  Logo quando mais desesperadamente se faz necessário um nível extra de poupança, os governos mundiais fizeram com que o próprio ato de se emprestar se tornasse praticamente inútil.

Conclusão

Taxas de juros são preços, e como tais, elas devem ser deixadas livres para que possam transmitir corretamente informações sobre o real nível de escassez no mundo.  As pessoas falam sobre as questões financeiras que se espalham para a “economia real” como se a alocação de capital fosse um detalhe insignificante.  Muito pelo contrário, os mercados de capital – guiados pelas taxas de juros – representam o mais importante “administrador” da “real” economia de mercado ao longo do tempo.

Ao inundarem os mercados de crédito com dinheiro criado do nada, os bancos centrais do mundo estão interferindo nas tentativas dos humanos se comunicarem entre si após o estouro da bolha imobiliária.  Seria como se os governos utilizassem aviões militares para interferir nos rádios utilizados pelas equipes de resgate em uma área atingida por um terremoto.

Os políticos e burocratas falam como se os membros do setor privado estivessem alheios a tudo durante a crise.  Mas, ao contrário, as pessoas ao redor do mundo estão mais concentradas do que nunca em suas finanças.  O problema é que os governos seguem interferindo nos sinais que essas pessoas estão tentando mandar entre si.

Dinheiro e juros são coisas distintas.  Há momentos em que a “correta” resposta do mercado é aumentar a oferta monetária e aumentar as taxas de juros.  Como os bancos centrais modernos só conseguem injetar dinheiro novo no sistema pelo artifício de diminuir as taxas de juros, eles acabam piorando – e muito – os pânicos financeiros.

Robert P. Murphy
Robert P. Murphy
Robert P. Murphy é Ph.D em economia pela New York University, economista do Institute for Energy Research, um scholar adjunto do Mises Institute, membro docente da Mises University e autor do livro The Politically Incorrect Guide to Capitalism, além dos guias de estudo para as obras Ação Humana e Man, Economy, and State with Power and Market É também dono do blog Free Advice.
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