Thursday, November 21, 2024
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Em uma sociedade sem estado, os déspotas não assumiriam o controle?

mercNão é raro pessoas contrárias à teoria anarcocapitalista – ou até mesmo ardorosas defensoras – mandarem-me e-mails perguntando praticamente a mesma questão:  “Em um sistema ‘anarcocapitalista’ – isto é, em uma ordem de livre mercado puro – a sociedade não iria se degenerar em batalhas constantes entre líderes militares privados?”.  Como não pude dar respostas adequadas e completas à época, espero que o seguinte artigo comprove o adágio de que o tardio é melhor do que o nunca.

COMPARANDO MAÇÃS E LARANJAS

Ao lidar com essa questão dos déspotas privados – seja na forma de polícia ou de forças armadas – é preciso garantir que as comparações sejam justas.  Em nada adianta imaginar uma sociedade A, povoada de selvagens ignorantes e sádicos que vivem em anarquia, e compará-la a uma sociedade B, composta de cidadãos iluminados e cumpridores da lei, que vivem sob um governo limitado.  O anarquista não vai negar que a vida será melhor na sociedade B.  Mas o que o anarquista irá de fato afirmar é que, para qualquer população, a imposição de um governo coercivo irá piorar as coisas.  A ausência do estado é uma condição necessária, mas não o suficiente, para se atingir uma sociedade livre.

Não importam quais sejam as condições culturais e as preferências populares de um país, não importa quão forte sejam as tendências para o totalitarismo e para o trabalho duro, e independente do fato de haver ou não justiça e de os contratos serem ou não respeitados, não há nada que o estado possa fazer para melhorar a situação.  É verdade que uma sociedade pode ser pobre e belicista sem o estado.  Ela pode ser brutal e miserável.  Mas impor um estado sobre essa sociedade irá apenas exacerbar suas piores tendências ao mesmo tempo em que sobrepuja as melhores.  O estado não oferece benefício algum a sociedade alguma, não importa suas condições culturais.  E isso vale para qualquer lugar do mundo.  O estado institucionaliza e fortifica as coisas ruins e obstaculiza o surgimento das boas.  Este é, em resumo, o foco da doutrina libertária.

Colocando de outra forma: não basta dizer que uma sociedade sem governo e baseada na propriedade privada poderia se degenerar em guerras infindáveis, onde não haveria um grupo único poderoso o suficiente para domar todos os desafiantes, e daí então afirmar que, nesse cenário, seria impossível o estabelecimento da “ordem”.  Afinal, há vários exemplos de comunidades que vivem sob um estado e que se degeneraram em guerras civis.  O que houve mais recentemente na Colômbia e no Iraque não são demonstrações de anarquia que se transformou em caos, mas sim exemplos de sociedades governadas que mergulharam no caos.

Para que o argumento “os déspotas vão assumir o controle!” seja válido, o estatista teria de arfirmar que uma dada comunidade seria ordeira sob um governo e que essa mesma comunidade iria se esfarelar em guerras contínuas caso todos os serviços judiciais e de segurança se tornassem privados.  O popular caso da Somália, portanto, não ajuda nenhum dos lados da discussão, pois não se tratava de uma sociedade ordeira mesmo sob um governo.[1]  É verdade que os rothbardianos deveriam estar um pouco inquietos com o fato de que o respeito ao princípio da não agressão é aparentemente muito raro na Somália, o que impede o surgimento espontâneo de uma ordem de livre mercado.  Porém, da mesma maneira, o estatista deveria se incomodar com o fato de que o respeito pela “lei” também era muito fraco, de modo que o governo original da Somália jamais foi capaz de manter a ordem.

Agora que já nos centramos na questão, creio que haja fortes razões para supor que uma guerra civil seria muito menos provável em uma região dominada por agências judiciais e de defesa privadas, do que por um estado monopolista.  Agências privadas são donas dos ativos à sua disposição, ao passo que políticos (principalmente em democracias) meramente exercem controle temporário sobre o equipamento policial e militar do estado.  Por exemplo, já se comprovou que Bill Clinton estava perfeitamente disposto a disparar dezenas de mísseis teleguiados quando o escândalo Monica Lewinsky começava a ganhar fôlego – tudo para distrair a atenção do público.

Da mesma, a Guerra Civil Americana – e seu 1 milhão de mortos, entre soldados e civis – não teria sido possível.  Nos anos 1860, será que um combate em larga escala teria acontecido, pelo menos nessa magnitude, se, ao invés das duas facções controlando centenas de milhares de recrutas, todos os comandantes militares tivessem de contratar mercenários voluntários e pagar-lhes um salário de mercado pelos seus serviços?

O GOVERNO E SUA TEORIA DE CONTRATO

Até agora, posso imaginar o leitor endossando de modo geral a análise acima, porém ainda resistindo à minha conclusão.  Ele pode estar pensando algo assim: “Em um estado natural, as pessoas inicialmente têm diferentes visões sobre justiça.  Sob uma anarquia de mercado, diferentes consumidores iriam ser clientes de várias agências de defesa, e cada uma delas tentaria utilizar suas forças para implantar seus códigos de lei, tornando todo o sistema incompatível.  É verdade que essas gangues profissionais, em geral, poderiam evitar conflitos entre si, por uma questão de prudência, mas o equilíbrio ainda assim seria precário”.

“Para evitar esse resultado”, meu crítico poderia elaborar, “os cidadãos colocariam de lado suas insignificantes diferenças e concordariam em apoiar uma única agência monopolista, que teria o poder de esmagar todos aqueles que desafiassem sua autoridade.  Isso confessadamente geraria o novo problema de se controlar o leviatã que surgiria, mas ao menos resolveria o problema da infindável guerrilha doméstica.”

Há vários problemas com essa abordagem.  Primeiro, ela assume que o perigo advindo de agências de defesa privadas seria pior do que a ameaça representada por um governo central tirânico.  Segundo, há um fato bastante inconveniente: nunca houve na história a formação voluntária e espontânea de um estado.  As pessoas que se estabeleciam em determinadas áreas e regiões jamais se preocupavam em definir quem elas iriam escolher para mandar em tudo dali em diante.  Mesmo aqueles cidadãos que, digamos, apoiaram a ratificação da Constituição americana, a eles jamais foi dada a opção de viver sob uma anarquia de mercado; eles tiveram de escolher um governo que estivesse sob o jugo ou da Constituição ou dos Artigos da Confederação.

Mas para os nossos propósitos, o problema mais interessante em relação e essa objeção é que, caso ela realmente fosse válida, seria desnecessário que os cidadãos formassem um governo.  Se, por hipótese, a vasta maioria das pessoas – embora tenha diferentes conceitos de justiça – pudesse concordar que é errado utilizar deviolência para resolver suas pendengas, então as forças de mercado inevitavelmente iriam impor a paz e a cooperação entre as agências privadas de polícia.

Sim, é totalmente verdadeiro que as pessoas possuem opiniões vastamente distintas em relação a questões legais de cunho particular.  Algumas pessoas defendem a pena de morte e outras consideram que o aborto é assassinato.  E não haveria consenso em relação a quantos culpados deveriam ser absolvidos para evitar que um réu inocente seja condenado.  Entretanto, se a teoria de contrato do governo estiver correta, a vasta maioria dos indivíduos pode concordar em um ponto: eles deveriam resolver suas desavenças não através da força, mas, sim, através de um procedimento ordeiro (tal como ocorre durante eleições periódicas).

Mas se isso de fato descreve o comportamento de uma determinada população, então por que seria de se esperar que pessoas tão virtuosas iriam, como consumidores, prestigiar agências de defesa que rotineiramente utilizam sua força contra concorrentes mais fracos?  Por que a esmagadora maioria desses consumidores sensatos não iria prestigiar as agências de defesa que tivessem acordos de arbitragem integrados e que submetessem suas disputas legítimas a arbitradores de boa reputação no mercado?  Por que essa estrutura legal, privada e voluntária não iria funcionar como um mecanismo ordeiro capaz de resolver questões de “política pública”?

Novamente, a descrição acima não é aplicável para todas as sociedades da nossa história.  Porém, de maneira similar, pessoas de tendência belicosa também seriam incapazes de manter uma sociedade ordeira sob um estado limitado.

O PROBLEMA DO CARONA?

Um sofisticado apologista do estado – principalmente um versado em economia ortodoxa – poderia reagir com outra justificativa: “A razão por que é necessário termos governo é que não podemos confiar que o mercado irá adequadamente financiar as forças policiais.  Pode ser verdade que 95% dos indivíduos de uma sociedade teriam visões similares quanto a justiça, de modo que a paz seria obtida caso todos eles contribuíssem substancialmente para agências defesas dedicadas a executar essas mesmas visões“.

“Entretanto”, continuaria o apologista, “caso essas agências de polícia não tenham o direito de extrair contribuições de todos que endossam suas ações, então elas seriam incapazes de manter um efetivo substancial.  O mercado falha especificamente por causa do problema do carona: quando uma empresa legítima suprime ou toma medidas duras contra uma empresa fraudulenta e perigosa, todas as pessoas de bem se beneficiam disso, mas em um livre mercado elas não seriam obrigadas a pagar por esse ‘bem público’.  Consequentemente, em uma anarquia, agências desonestas financiadas por bandidos maléficos teriam uma dimensão e uma abrangência de operação muito mais ampla”.

De novo, há várias respostas possíveis a essa argumentação.  Primeiro, tenhamos em mente que um amplo exército efetivo e permanente, pronto para esmagar uma minoria discordante, não é exatamente uma característica de governo unanimemente desejada.

Segundo, o alegado problema do carona não seria nem de longe tão desastroso como muitos economistas creem.  Por exemplo, empresas de seguro iriam, em grande medida, “internalizar as externalidades”.  Pode ser verdade que, se as agências policiais tivessem de pedir contribuições para os cidadãos particulares, um número “ineficiente” de assassinos seriam capturados.  (Claro, todos se beneficiam ao saber que um assassino em série foi capturado, mas o fato de uma pessoa contribuir ou não para uma agência não será o fator diferencial entre a captura e a fuga).

Porém, a solução real se encontra naquilo que é o baluarte de um livre mercado: as seguradoras.  Assim, as empresas de seguro que fornecessem apólices para milhares de pessoas em uma cidade grande estariam dispostas a contribuir com quantias substanciais para as agências policiais de modo a eliminar a ameaça de um serial killer.  Afinal, se o assassino atacar novamente, uma dessas seguradoras teria de pagar centenas de milhares de dólares para o espólio da vítima.  E esse mesmo raciocínio demonstra que o livre mercado poderia adequadamente financiar programas que visam “conter” as agências mal intencionadas.

Terceiro, se as pessoas realmente imaginarem um cenário assustador, verão o quão absurdo é a ideia de que isso será a norma.  Imagine uma cidade agitada, como Nova York, que inicialmente seja um paraíso livre-mercadista.  É realmente plausível imaginar que, com o tempo, gangues rivais iriam crescer substancialmente até chegarem ao ponto de dominar a cidade e aterrorizar todo o público?[2]  Lembre-se: essas seriam organizaçõesadmitidamente criminosas; ao contrário da prefeitura de Nova York, não haveria apoio ideológico a essas gangues.

É preciso considerar que, em um ambiente sem governo, a maioria cumpridora das leis teria todos os tipos de mecanismos legais à sua disposição.  Uma vez que juízes privados tenham sentenciado uma determinada agência criminosa, os bancos privados poderiam bloquear suas contas (no valor total das multas impostas pelos arbitradores).  Além disso, as empresas de utilidade privada poderiam cortar a eletricidade, o telefone e a água dessa agência, de acordo com as cláusulas de seu contrato.

É claro que é teoricamente possível que uma agência bandida possa superar esses obstáculos, seja através da intimidação ou da mancomunação com juízes, e tomar o controle de vários bancos, companhias de eletricidade, supermercados, etc. Mas isso só seria possível através de um ataque militar em larga escala.  A questão é que, começando uma anarquia hoje, esses pretensos tiranos teriam de começar do zero.  Em contraste, mesmo sob um atual governo limitado, todo o aparato de destruição e escravização em massa já está ali, pronto para ser tomado pelo próximo eleito.

CONCLUSÃO

A objeção padrão de que a anarquia levaria a uma batalha sangrenta entre déspotas é infundada.  Nas comunidades em que tal fenômeno porventura ocorresse, a adição de um estado não ajudaria em nada.  Comefeito, o exato oposto é verdadeiro: os arranjos voluntários de uma sociedade baseada na propriedade privada seriam muito mais propícios à paz e ao império da lei do que o arranjo coercivo de um monopólio estatal parasítico.

___________________________________________

[1] Tendo feito essa concessão, devo dizer que os anarcocapitalistas podem ver suas teorias sendo, de certa forma, confirmadas na Somália.

[2] Tenhamos também em mente que os grupos mafiosos que existem atualmente: (1) nem de longe extorquem tanto dinheiro ou matam tantas pessoas quanto qualquer governo em um dia típico de trabalho, e (2) só existem para fornecer bens e serviços que foram proibidos pelo governo (jogos, drogas, prostituição, agiotagem, etc.).  É desse cenário de ilegalidade, onde os contratos são cumpridos à força, que derivam sua força e poder.  Logo, a máfia dificilmente existiria em um mundo anarquista.

Robert P. Murphy
Robert P. Murphy
Robert P. Murphy é Ph.D em economia pela New York University, economista do Institute for Energy Research, um scholar adjunto do Mises Institute, membro docente da Mises University e autor do livro The Politically Incorrect Guide to Capitalism, além dos guias de estudo para as obras Ação Humana e Man, Economy, and State with Power and Market É também dono do blog Free Advice.
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