Thursday, November 21, 2024
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Em defesa do euro – uma perspectiva austríac

Euro (2)1. Introdução: o sistema monetário ideal

Os seguidores da Escola Austríaca já dedicaram esforços consideráveis para tentar elucidar o sistema monetário ideal para uma economia de mercado. Em nível teórico, eles desenvolveram toda uma teoria sobre ciclos econômicos, a qual explica como uma expansão do crédito orquestrada pelos bancos centrais e intensificada pelo sistema bancário de reservas fracionárias — ou seja, uma expansão creditícia não baseada em uma poupança real — continuamente gera ciclos econômicos.

Em nível histórico, eles descreveram como o dinheiro surgiu espontaneamente no mercado — por meio da opção voluntária dos indivíduos — e como a coerciva intervenção do estado na economia, estimulada por poderosos grupos de interesse, corrompeu a evolução natural das instituições bancárias, afastando-as de um arranjo de livre mercado.

Em nível ético, eles revelaram quais são os requerimentos gerais legais e os princípios do direito de propriedade concernentes aos contratos bancários, princípios estes que surgem da própria economia de mercado e que, por sua vez, são essenciais para o seu funcionamento adequado.

Todas as análises teóricas supracitadas levam a três conclusões: o atual sistema monetário e bancário é incompatível com uma verdadeira economia de livre mercado; ele contém todos os defeitos identificados pelo teorema da impossibilidade do socialismo; e ele é uma contínua fonte de instabilidade financeira e de desordem econômica. Donde se conclui que é indispensável fazer uma profunda reestruturação do sistema financeiro e monetário mundial, atacando a raiz dos problemas que nos afligem e solucioná-los em definitivo.

Tal empreendimento deve ser baseado nas três seguintes reformas: (a) a abolição do sistema de reservas fracionárias, restabelecendo a exigência de 100% de reservas para todos os depósitos em conta-corrente e seus equivalentes — um princípio essencial do direito de propriedade; (b) a abolição de todos os bancos centrais (os quais se tornam desnecessários como emprestadores de última instância caso a reforma (a) acima seja implementada, e os quais, como verdadeiras agências de planejamento central financeiro, são uma constante fonte de instabilidade) e a revogação das leis de curso forçado, bem como todo o emaranhado de regulações governamentais gerado por elas; e (c) um retorno a um padrão-ouro clássico, o único padrão monetário mundial capaz de fornecer uma oferta monetária que as autoridades políticas não poderiam manipular e de restringir e disciplinar os anseios inflacionários de todos os diferentes tipos de agentes econômicos.

Como já afirmado, as recomendações acima nos permitiriam solucionar todos os nossos problemas bancários e monetários desde sua raiz, ao mesmo tempo em que promoveriam um desenvolvimento econômico e social como jamais visto na história. Adicionalmente, tais medidas podem não apenas indicar quais reformas incrementais seriam um passo na direção correta, como também permitir um julgamento mais sensato sobre as diferentes opções de política econômica existentes no mundo real. E é desta perspectiva estritamente circunstancial e possibilística que o leitor deve entender minha análise austríaca em relativo “apoio” ao euro que tentarei desenvolver no presente artigo.

2. A tradição austríaca de defender taxas de câmbio fixa em oposição ao nacionalismo monetário e taxas de câmbio flexíveis

Tradicionalmente, os membros da Escola Austríaca de economia sempre sentiram que, enquanto o sistema monetário ideal não fosse atingido, vários economistas, especialmente aquelas da Escola de Chicago, cometiam um grave erro de teoria econômica e de ação política ao defenderem taxas de câmbio flexíveis e um nacionalismo monetário, como se ambos fossem mais condizentes a uma economia de mercado.

Em contraste, os austríacos acreditam que, até que os bancos centrais sejam abolidos e o padrão-ouro clássico seja restabelecido em conjunto com um sistema bancário que pratique reservas de 100% para os depósitos em conta-corrente, devemos tentar de todos os modos levar o sistema monetário para o mais perto possível deste ideal, tanto em termos de operação quanto de resultados. Isto significa limitar o nacionalismo monetário ao máximo possível, eliminando toda e qualquer possibilidade de que cada país possa criar e desenvolver sua própria política monetária, e restringindo o tanto quanto possível políticas inflacionárias de expansão de crédito, criando-se um arranjo monetário que discipline rigorosamente os agentes econômicos, políticos, sociais e, especialmente, sindicatos e outros grupos de interesse, políticos e bancos centrais.

É somente dentro deste contexto que devemos interpretar a posição de eminentes economistas austríacos (e distintos membros da Mont Pèlerin Society) como Mises e Hayek. Por exemplo, há a extraordinária e devastadora análise contra o nacionalismo monetário e contra taxas de câmbio flexíveis que Hayek começou a desenvolver em 1937 em seu particularmente excelente livro Monetary Nationalism and International Stability.[1] Neste livro, Hayek demonstra que taxas de câmbio flexíveis impossibilitam uma alocação eficiente de recursos em nível internacional, uma vez que taxas de câmbio flexíveis imediatamente obstruem e distorcem os fluxos de consumo e investimento. Adicionalmente, elas fazem com que, em vez de necessárias reduções reais de custos, haja um aumento em todos os preços nominais, em um caótico ambiente de contínuas desvalorizações cambiais, expansão de crédito e inflação. Tal política também estimula e sustenta todos os tipos de comportamento irresponsável dos sindicatos, pois incita contínuas exigências salariais e trabalhistas que só poderão ser satisfeitas sem produzir desemprego se a inflação monetária for continuamente elevada. Trinta e oito anos depois, Hayek sintetizou seu argumento da seguinte maneira:

É inegável, creio eu, que a demanda por taxas de câmbio flexíveis surgiu, em sua totalidade, em nações como a Grã-Bretanha, cujos economistas queriam uma margem mais ampla de expansão inflacionária (chamada de “política de pleno emprego”). Estes economistas, infelizmente, receberam pouco tempo depois o apoio de outros economistas[2] que, embora não fossem propriamente tomados pelo desejo de mais inflação, pareciam ignorar o mais forte dos argumentos em defesa de taxas de câmbio fixas: elas restringem de modo praticamente insubstituível os políticos e as autoridades monetárias submetidas a eles, ajudando a manter a moeda estável [ênfase minha].

Para esclarecer ainda mais seu argumento, Hayek acrescenta:

Manter o valor da moeda e evitar a inflação monetária são atitudes que sempre irão exigir do político medidas extremamente impopulares. O político só poderá justificar tais medidas perante as pessoas desfavoravelmente afetadas por elas caso ele consiga mostrar que o governo é obrigado a tomar estas medidas. Somente enquanto a preservação do valor internacional da moeda nacional for considerada uma necessidade indiscutível, como ocorre quando as taxas de câmbio são fixas, é que os políticos poderão resistir às constantes demandas por crédito barato, pela não subida das taxas de juros, por mais gastos com obras públicas e por aí vai. Com taxas de câmbio fixas, uma queda no valor externo da moeda ou uma fuga de ouro ou de reservas internacionais do país atuam como um sinal de alerta que requer imediata ação do governo.[3] Com taxas de câmbio flexíveis, o efeito de um aumento na quantidade de dinheiro sobre o nível interno de preços é muito lento para ser notado por todos, o que permite que os responsáveis não sejam devidamente acusados. Ademais, a inflação de preços é geralmente precedida de uma bem-vinda redução no desemprego. Ela pode, portanto, ser até mesmo saudada, pois seus efeitos perniciosos só serão notados bem mais tarde.

Hayek conclui:

Não creio que seja possível estabelecermos um sistema de estabilidade internacional sem que retornemos a um sistema de taxas de câmbio fixas, as quais impõem restrições essenciais sobre os bancos centrais nacionais, fazendo com que eles exitosamente resistam às pressões dos entusiastas da inflação em seus respectivos países — dentre os quais, geralmente, os ministros da fazenda (Hayek 1979 [1975], 9-10).

Com relação a Ludwig von Mises, é bem sabido que ele se distanciou de seu estimado discípulo Fritz Machlup por este ter, em 1961, começado a defender taxas de câmbio flexíveis nos encontros da Mont Pèlerin Society. Com efeito, de acordo com R.M. Hartwell, que foi o historiador oficial da Mont Pèlerin Society,

Machlup defender taxas de câmbio flexíveis fez com que Mises deixasse de conversar com ele por aproximadamente três anos (Hartwell 1995, 119).

Mises até conseguia entender por que macroeconomistas sem nenhum treino acadêmico em teoria do capital — como Friedman e seus colegas de Chicago, e também keynesianos em geral — defendiam taxas de câmbio flexíveis e todo o inflacionismo invariavelmente implícito nelas, mas ele não estava disposto a ignorar o erro de alguém que, como Machlup, havia sido seu discípulo — e, portanto, realmente entendia de economia — e ainda assim havia se deixado levar pelo pragmatismo e pelos modismos passageiros do politicamente correto. Com efeito, Mises chegou até mesmo a explicar para sua mulher por que ele era incapaz de perdoar Machlup:

Ele participava de meus seminários em Viena; ele entende e sabe de tudo. Ele sabe muito mais do que a maioria deles e sabe exatamente o que está fazendo (Margit von Mises 1984, 146).

A defesa de Mises das taxas de câmbio fixas é comparável à sua defesa do padrão-ouro como o sistema monetário ideal em nível internacional. Por exemplo, em 1944, em seu livro Omnipotent Government, Mises escreveu:

O padrão-ouro restringia os planos do governo de criar crédito barato. Era impossível ceder ao desejo de fazer uma expansão creditícia e, ao mesmo tempo, manter a paridade da moeda com o ouro fixada por lei. Os governos tinham de escolher entre o padrão-ouro ou uma — desastrosa no longo prazo — política de expansão de crédito. O padrão-ouro nunca entrou em colapso; foram os governos que o destruíram. Assim como o livre comércio, o padrão-ouro era incompatível com o estatismo. Os governos abandonaram o padrão-ouro porque eles estavam ávidos para que os preços domésticos e os salários subissem acima dos níveis praticados pelo mercado mundial, e também porque eles queriam estimular as exportações e coibir as importações. A estabilidade das taxas de câmbio era, a seu ver, não um benefício, mas sim uma perda. Esta é exatamente a essência dos ensinamentos monetários de Lord Keynes. A escola keynesiana defende calorosamente a instabilidade das taxas de câmbio [ênfase minha].[4]

Adicionalmente, não é surpresa alguma que Mises tenha desdenhado os teóricos de Chicago, tanto nesta área quanto em outras, por eles terem se deixado levar pelo mais grosseiro tipo de keynesianismo. Ademais, Mises afirmava que seria relativamente simples restabelecer o padrão-ouro e retornar às taxas de câmbio fixas:

A única condição necessária é o abandono das políticas de crédito fácil e dos esforços para se combater as importações por meio da desvalorização cambial.

Além disso, Mises afirmava que apenas um câmbio fixo é compatível com uma genuína democracia, e que todo o inflacionismo livremente permitido pelo câmbio flexível é essencialmente antidemocrático:

A inflação é essencialmente antidemocrática. Controle democrático significa que a população tem o controle do orçamento do governo. O governo tem apenas uma fonte de receita — impostos. Nenhuma tributação é legítima sem o consentimento da população. Mas se o governo criar para si outras fontes de renda, ele poderá se livrar do controle da população (Mises 1969, 251-253).

Somente quando a taxa de câmbio é fixa os governos são obrigados a dizer a verdade para os cidadãos. Por isso, a tentação de recorrer à inflação e ao câmbio flexível para evitar o custo político dos sempre impopulares aumentos de impostos é tão forte e destrutiva. Consequentemente, mesmo que não haja um padrão-ouro, uma taxa de câmbio fixa restringe e disciplina a arbitrariedade dos políticos:

Mesmo na ausência de um padrão-ouro puro, taxas de câmbio fixas propiciam alguma blindagem contra a inflação, algo que não ocorre em um sistema de câmbio flexível. Com um câmbio fixo, se um país inflacionar sua oferta monetária, os preços internos irão subir e, como o câmbio é fixo, haverá um forte aumento das importações, causando uma saída de moeda estrangeira. O país será, portanto, vítima de uma crise no balanço de pagamentos, causada por uma moeda sobrevalorizada. Caso o nível das reservas internacionais caia muito, o governo terá de desvalorizar sua taxa de câmbio, um processo relativamente difícil, repleto de riscos para os líderes políticos envolvidos. Por outro lado, com uma taxa de câmbio flexível, uma inflação monetária não gera nenhuma crise no balanço de pagamentos, tampouco qualquer necessidade de desvalorizações cambiais politicamente constrangedoras. Ao contrário, há uma relativamente indolor depreciação da moeda nacional em relação às moedas estrangeiras (Block 1999, 19, ênfase minha).

3. O euro como um “substituto” do padrão-ouro — ou, por que os defensores da livre iniciativa e do livre mercado deveriam defender o euro, uma vez que a única alternativa é um retorno ao nacionalismo monetário

Como vimos, economistas seguidores da Escola Austríaca defendem o padrão-ouro porque ele coíbe e limita as decisões arbitrárias de políticos e burocratas. Ele disciplina o comportamento de todos os agentes que participam do processo democrático. Ele promove hábitos morais de comportamento humano. Em suma, ele restringe as mentiras e a demagogia, e facilita e amplia a transparência e a verdade nas relações sociais. Nem mais e nem menos. Talvez Ludwig von Mises tenha colocado da melhor maneira:

O padrão-ouro faz com que a determinação do poder aquisitivo da moeda seja independente das ambições e doutrinas dos partidos políticos e dos grupos de pressão. Isto não é um defeito do padrão-ouro; é a sua principal virtude (Mises 1966, 474).

A introdução do euro em 1999 e sua culminação no início de 2002 significou o desaparecimento do nacionalismo monetário e das taxas de câmbio flexíveis na maior parte do continente europeu. Mais ao final analisaremos os erros cometidos pelo Banco Central Europeu. Por ora, o que nos interessa é constatar que as várias nações-membro da união monetária abandonaram e perderam sua autonomia monetária, isto é, a possibilidade de manipular sua moeda nacional de acordo com as necessidades políticas de cada momento. Neste sentido, pelo menos em relação aos países da zona do euro, o euro começou a agir e continua agindo muito semelhantemente ao funcionamento de um padrão-ouro. Sendo assim, temos de enxergar o euro como um passo claro e genuíno, ainda que imperfeito, rumo ao padrão-ouro.

Adicionalmente, o evento da Grande Recessão de 2008 revelou com ainda maior nitidez a natureza disciplinadora do euro: pela primeira vez, os países da união monetária tiveram de enfrentar uma profunda recessão econômica sem poder recorrer a políticas monetárias autônomas. Antes da adoção do euro, sempre que surgia uma crise, os governos e seus bancos centrais invariavelmente agiam da mesma maneira: eles imprimiam dinheiro e injetavam toda a liquidez necessária em suas economias, faziam com que suas moedas se desvalorizassem em relação às outras e postergavam indefinidamente as dolorosas reformas estruturais necessárias, as quais englobam liberalização econômica, desregulamentação, maior flexibilidade nos preços e nos mercados (especialmente nos preços dos salários e no mercado de trabalho), redução nos gastos públicos e desmantelamento do poder dos sindicatos e do estado de bem-estar social. Com o euro, não obstante todos os erros, fraquezas e concessões que iremos discutir mais abaixo, este tipo de protelação e comportamento inconsequente deixou de ser possível.

Por exemplo: na Espanha, em apenas um ano, dois diferentes governos foram literalmente forçados a adotar uma série de medidas que, embora ainda bastante insuficientes, seriam outrora consideradas politicamente impossíveis e utópicas, até mesmo pelo mais otimista dos observadores:

O artigo 135 da Constituição espanhola recebeu uma emenda que inclui o princípio anti-keynesiano da estabilidade e do equilíbrio orçamentário para o governo central, para as comunidades autônomas e para os municípios;
Todos os projetos que implicam aumentos nos gastos públicos, favorecimento eleitoral e subsídios — projetos sobre os quais os políticos regularmente baseavam suas ações e popularidade — foram repentinamente suspensos;
Os salários de todos os funcionários públicos foram reduzidos em 5% e subsequentemente congelados, enquanto seus cronogramas de trabalho foram expandidos;
Os reajustes da Previdência foram genuinamente congelados;
A idade de aposentadoria foi elevada uniformemente de 65 para 67 anos;
Os gastos públicos totais programados foram reduzidos em 15%; e
Significativas liberalizações foram feitas no mercado de trabalho, na jornada de trabalho e, de maneira geral, em todo o emaranhado de regulamentações.[5]
Ademais, isso que ocorreu na Espanha também está ocorrendo na Irlanda, em Portugal, na Itália e até mesmo em países que, como a Grécia, até hoje representavam o paradigma da frouxidão social, da falta de rigor orçamentário e da demagogia política.

Pela primeira vez, e graças ao euro, a Grécia está enfrentando os desafios impostos pelo seu próprio futuro. Pela primeira vez, o tradicionalmente corrupto e falido governo grego adotou medidas drásticas. Em dois anos (2010-2011), o déficit público caiu 8 pontos percentuais; os salários dos funcionários públicos foram cortados inicialmente em 15% e posteriormente em mais 20%, e a quantidade deles foi reduzida em aproximadamente 80.000 empregados; o número de câmaras municipais foi cortado à metade; a idade de aposentadoria foi elevada; o salário mínimo foi reduzido. Esta “heróica” reconstrução contrasta com a decomposição social e econômica da Argentina, que tomou a estrada oposta (keynesiana e monetarista) rumo ao nacionalismo monetário, à desvalorização e à inflação.[6]

No que mais, os líderes políticos destes cinco países (Irlanda, Portugal, Espanha, Itália e Grécia), que agora não mais podem manipular a política monetária com o intuito de enganar seus cidadãos quanto ao verdadeiro custo de suas políticas, foram sumariamente ejetados de seus respectivos cargos. E nações que até então pareciam imunes e impassíveis à necessidade de reformas, como a Bélgica e principalmente a Holanda e França, estão também começando a ser obrigadas a reconsiderar o volume total de seus gastos públicos, bem como a estrutura de seus extremamente inchados programas assistencialistas.

Tudo isto inegavelmente se deve ao novo arranjo monetário criado pela introdução do euro, o qual, exatamente por isso, deve ser visto com auspicioso regozijo por todos os defensores da economia baseada na livre iniciativa e na limitação dos poderes do governo. É muito difícil imaginar qualquer uma destas medidas sendo adotada em um contexto de moedas nacionais e taxas de câmbio flexíveis: sempre que puderem, políticos irão evitar reformas impopulares, e os cidadãos, qualquer medida que requeira sacrifício e disciplina. Por conseguinte, na ausência do euro, as autoridades teriam novamente incorrido naquele velho caminho de sempre: adiar o processo de correção recorrendo à inflação monetária para desvalorizar a moeda e com isso recuperar o “pleno emprego” e ganhar competitividade no curto prazo (com os políticos se resguardando das responsabilidades e ocultando a grave responsabilidade dos sindicatos como os reais causadores do alto desemprego). Em suma, a protelação indefinida das reformas estruturais necessárias.

(Neste ponto, vale a pena um parênteses para chamar a atenção para um fenômeno semelhante ocorrido no Brasil: o único momento de nossa história recente em que o governo se viu compelido a adotar reformas mais liberais foi justamente quando estávamos sob um câmbio semi-fixo, entre 1995 e 1999. Além de reformas na política salarial do setor público, na Previdência, na política de salário mínimo, e das privatizações da Vale e da telefonia, havia rumores de intenção de privatização da Petrobras, da Eletrobras e do BNDES, privatizações essas que foram completamente abandonadas com a adoção do câmbio flexível em 1999. Desde então, não mais houve qualquer esforço de contenção do crescimento do estado.)

Outro ponto essencial a ser observado é que abandonar o euro é muito mais difícil do que foi sair do padrão-ouro. Com efeito, as moedas ancoradas ao ouro mantiveram sua denominação local (o franco, a libra, o dólar etc.), o que tornava relativamente fácil, ao longo da década de1930, desatrelá-las do ouro. Como ensinado pelo teorema da regressão monetária formulado por Mises em 1912 (Mises 2009 [1912], 111-123), os agentes econômicos puderam simplesmente continuar utilizando sem nenhuma interrupção a moeda nacional — a qual não mais era conversível em ouro — baseando-se no poder de compra que a moeda possuía imediatamente antes da reforma. Hoje, esta possibilidade não existe para aqueles países que desejarem, ou forem obrigados, a abandonar o euro.

Dado que o euro é a única unidade monetária compartilhada por todos os países da união monetária, seu abandono requer a introdução de uma nova moeda nacional, com poder de compra desconhecido e muito menor que o do euro. Adicionalmente, não podemos ignorar os imensos distúrbios que tal mudança acarretaria para todos os agentes econômicos do mercado: devedores, credores, investidores, empreendedores e trabalhadores. Pelo menos nesta questão específica, e do ponto de vista da teoria austríaca, temos de admitir que o euro é superior ao padrão-ouro, e que teria sido extremamente útil para a humanidade se, na década de 1930, todos os diferentes países houvessem sido obrigados a permanecer no padrão-ouro, sabendo que, como ocorre hoje com o euro, qualquer outra alternativa seria praticamente impossível de ser colocada em prática, e teria afetado os cidadãos de uma maneira muito mais danosa, dolorosa e óbvia.

Logo, até certo ponto não deixa de ser cômico (e também patético) notar que aqueles engenheiros sociais e políticos intervencionistas que, liderados à época por Jacques Delors, criaram a moeda única com o intuito de fazer com que ela fosse apenas mais uma ferramenta a ser utilizada em seu grandioso projeto de alcançar uma união política europeia, hoje constatam com total desespero aquilo que não foram capaz de prever: que o euro acabou funcionando como um padrão-ouro genuíno, disciplinando cidadãos, políticos e autoridades, amarrando as mãos de demagogos, expondo grupos de interesse (liderados pelos eternamente privilegiados sindicatos), e até mesmo questionando a sustentabilidade dos fundamentos essenciais do estado de bem-estar social.[7]

De acordo com a Escola Austríaca, esta é precisamente a principal vantagem comparativa do euro como padrão monetário em geral e contra o nacionalismo monetário em particular, e não aqueles argumentos mais prosaicos, como “redução dos custos de transação” ou “eliminação dos riscos cambiais”, os quais foram apresentados à época pelos invariavelmente tacanhos e imediatistas engenheiros sociais do momento.

Agora, consideremos a diferença entre o euro e um sistema de taxas de câmbio fixas no que concerne ao processo de reajuste que ocorre quando diferentes graus de expansão do crédito e intervencionismo surgem entre os diferentes países. Obviamente, em um sistema de câmbio fixo, estas diferenças se manifestam em consideráveis tensões cambiais que, no final, irão culminar em explícitas desvalorizações e em altos custos em termos de prestígio perdido, os quais, felizmente, recaem sobre as correspondentes autoridades políticas. No caso de uma moeda única, como o euro, tais tensões se manifestam em uma perda generalizada de competitividade, a qual só poderá ser recuperada com a introdução das reformas estruturais necessárias para garantir mais flexibilidade de mercado, com a desregulamentação de todos os setores da economia e com as reduções e reajustes necessários na estrutura de preços relativos.

Adicionalmente, tais medidas acabam afetando as receitas do setor público, e consequentemente os riscos de crédito da cada país. Com efeito, sob as atuais circunstâncias, na zona do euro, o valor atual da dívida pública soberana de cada país nos mercados financeiros passou a refletir as tensões que antes se transformavam apenas em crises cambiais, quando as taxas de câmbio eram relativamente fixadas em um ambiente de nacionalismo monetário. Por isso, atualmente, o papel principal da fiscalização dos governos não está sendo desempenhado por especuladores de moedas estrangeiras, mas sim pelas agências de classificação de risco, e especialmente por investidores internacionais, os quais, ao decidirem se compram ou não títulos da dívida soberana, estão saudavelmente determinando o ritmo das reformas ao mesmo tempo em que também disciplinam e determinam o destino de cada país.

Este processo tende a ser considerado “não-democrático”, mas a realidade é exatamente oposta. No passado, a democracia sofria cronicamente e era corrompida por ações políticas irresponsáveis baseadas em manipulações monetárias e inflação, um tributo real de consequências devastadoras, o qual é imposto desde fora do parlamento sobre todos os cidadãos de maneira gradual, insidiosa e sorrateira. Hoje, com o euro, o recurso ao imposto inflacionário foi bloqueado, ao menos em nível local para cada país, e os políticos foram repentinamente expostos e têm sido obrigados a dizer a verdade e a aceitar a correspondente perda de apoio que tal medida acarreta.

Se é para haver democracia, e se quiserem que ela funcione, tal arranjo requer um arcabouço que discipline os agentes que participam dela. E hoje, na Europa Continental, esta função está sendo exercida pelo euro. Consequentemente, as sucessivas quedas dos governos da Irlanda, da Grécia, de Portugal, da Itália, da Espanha e da França, longe de revelarem uma falta de democracia, revelam na verdade um crescente grau de rigor, de transparência orçamentária e de saúde democrática que o euro está estimulando em suas respectivas sociedades.

4. A diversa e heterogênea “coalizão anti-euro”

Por ser interessante e de valor altamente ilustrativo, façamos agora, de maneira sucienta, alguns comentários sobre o diverso e heterogêneo amálgama formado pelos inimigos do euro. Este grupo inclui em suas fileiras elementos díspares como doutrinários de extrema-esquerda e extrema-direita, keynesianos nostálgicos ou inflexíveis como Krugman e Stiglitz, monetaristas dogmáticos defensores de taxas de câmbio flexíveis, como Barro e outros, defensores ingênuos da teoria de Robert Mundell sobre áreas monetárias ótimas, chauvinistas apavorados com o futuro do dólar (e da libra), e, por fim, toda a legião de confusos derrotistas que “face ao iminente desaparecimento do euro” propõem a “solução” de explodir tudo e abolir a moeda o mais rápido possível.[8]

Talvez a mais clara ilustração (ou, melhor ainda, a mais convincente evidência) do fato de que Mises estava totalmente correto em sua análise sobre os efeitos disciplinadores das taxas de câmbio fixas, e especialmente do padrão-ouro, sobre a demagogia de políticos e sindicatos jaz na maneira como os líderes de partidos políticos de esquerda, membros de sindicatos, formadores de opinião “progressistas”, espanhóis do movimento indignados, políticos nacionalistas e, no geral, todos os fãs de gastos públicos descontroladas, de subsídios estatais e de intervencionismo se revoltam aberta e diretamente contra a disciplina imposta pelo euro, e especificamente contra a perda de autonomia na política monetária de cada país e tudo o que isso implica: a tão ultrajante dependência dos mercados, dos especuladores e dos investidores internacionais, os quais agora decidem se irão ou não comprar os títulos da crescente dívida soberana destes países, decisão esta essencial para o financiamento dos contínuos déficits públicos.

Basta apenas dar uma olhada nos editoriais da maioria dos jornais de esquerda[9], ou ler as declarações dos políticos mais demagogos[10], ou dos mais proeminentes sindicalistas, para se constatar esta realidade. Nos dias atuais, assim como na década de 1930 sob o padrão-ouro, os inimigos do mercado e os defensores do socialismo, do estado assistencialista e da demagogia sindicalista estão protestando em uníssono, tanto em público quanto em privado, contra “a rígida disciplina que o euro e os mercados financeiros estão impondo sobre nós”, e estão exigindo a imediata monetização de toda a dívida pública necessária, sem oferecer qualquer contramedida na forma de austeridade financeira ou de reformas que estimulem a competitividade.

Já na esfera mais acadêmica, mas que também goza de ampla cobertura da mídia, teóricos contemporâneos do keynesianismo estão montando uma grande ofensiva contra o euro, com uma beligerância comparável àquela que o próprio Keynes havia demonstrado contra o padrão-ouro nos anos 1930. Especialmente paradigmático é o caso de Krugman[11], que, como colunista nacional, conta semanalmente exatamente a mesma e antiga cantilena sobre como o euro significa uma “camisa-de-força” para a recuperação do emprego, indo ainda mais longe a ponto de criticar o perdulário governo americano por não ser expansionista o suficiente e por não ter aumentado ainda mais seu (enorme) pacote de estímulos fiscais.[12] Um pouco mais inteligente e erudita, mas não menos enganada, é a opinião de Skidelsky, dado que ele ao menos explica que a teoria austríaca dos ciclos econômicos[13] oferece a única alternativa ao seu adorado Keynes e claramente reconhece que a atual situação de fato envolve uma repetição do duelo entre Hayek e Keynes durante a década de 1930.[14]

Ainda mais estranha é a posição em relação a taxas de câmbio flexíveis assumida por teóricos neoclássicos em geral e por monetaristas e membros da Escola de Chicago em particular.[15] Tudo indica que o interesse deste grupo em taxas de câmbio flexíveis e em nacionalismo monetário predomina sobre seu (presumo que seja sincero) desejo de estimular reformas econômicas liberalizantes. Com efeito, seu objetivo principal é manter a autonomia da política monetária e poder desvalorizar (ou depreciar) a moeda local para “recuperar a competitividade” e absorver o desemprego o mais rápido possível, e então, somente então, eles passam a se concentrar em tentar estimular reformas de livre mercado. Sua ingenuidade é extrema, e nos referimos a ela em nossa discussão sobre as razões da discordância entre Mises, do lado da Escola Austríaca, e Friedman, do lado dos teóricos de Chicago, no debate sobre taxas de câmbio fixas versus flexíveis.

Mises sempre entendeu claramente que políticos não têm nenhuma propensão a tomar medidas na direção correta caso são sejam literalmente obrigados a fazer isso, e que taxas de câmbio flexíveis e nacionalismo monetário removem praticamente todos os incentivos capazes de disciplinar políticos, de abolir a “rigidez para baixo” dos salários (rigidez esta que se torna uma espécie de suposição auto-realizável que monetaristas e keynesianos aceitam animadamente) e de acabar com os privilégios usufruídos pelos sindicatos e por todos os outros grupos de interesse. Mises também observou que, em decorrência de tudo isso, no longo prazo, monetaristas acabam se tornando seguidores das velhas doutrinas keynesianas: tão logo a “competitividade” da economia é “recuperada” em decorrência da desvalorização da moeda, as reformas são postergadas; e o que é ainda pior, sindicalistas se tornam acostumados a ver os efeitos destrutivos de suas políticas restritivas sendo continuamente mascarados por sucessivas desvalorizações.

Esta latente contradição entre defender o livre mercado e apoiar o nacionalismo monetário e a manipulação da moeda por meio de taxas de câmbio “flexíveis” é também evidente em vários seguidores daquela que é a mais difundida interpretação da teoria das “áreas monetárias ótimas” de Robert A. Mundell.[16] Segundo esta teoria, uma área monetária ótima é aquela na qual todos os fatores de produção têm mobilidade perfeita; caso não haja esta mobilidade perfeita, então, segundo a teoria, seria melhor subdividir esta área em regiões ainda menores, cada uma com sua própria moeda, de modo que elas possam aplicar uma política monetária autônoma caso haja algum “choque externo”. No entanto, temos de fazer a pergunta: este raciocínio é sensato? Nem um pouco. A principal fonte de rigidez nos mercados de trabalho e de fatores de produção está na intervenção e na regulação estatal dos mercados, de modo que é absurdo pensar que estados e seus governos irão voluntariamente cometer harakiri e abrir mão voluntariamente de seus poderes e trair sua clientela política com o intuito de adotar uma moeda comum após tudo isso. Em vez disso, a verdade é exatamente oposta: somente quando um país aderiu a uma moeda comum (no caso da Europa, o euro) é que seus políticos foram forçados a implementar reformas que, até muito recentemente, teriam sido inconcebíveis. Nas palavras de Walter Block:

O governo é a principal ou a única causa da imobilidade de fatores de produção. O estado, com suas regulamentações … é a principal razão por que os fatores de produção apresentam menos mobilidade do que poderiam apresentar. Em outras épocas, os custos de transporte seriam a principal explicação; porém, com todo o progresso tecnológico alcançado, tal quesito se tornou muito menos importante no mundo moderno. Sendo assim, sob um genuíno capitalismo laissez-faire, não haveria praticamente nenhuma imobilidade de fatores. Mesmo considerando que estas suposições sejam apenas aproximadamente verdadeiras, a região mundelliana seria todo o globo — exatamente como ocorreria sob um padrão-ouro.[17]

Esta conclusão de Block é igualmente aplicável à zona do euro, no sentido de que o euro age, como já indicado, como um “substituto” do padrão-ouro que disciplina e limita o poder arbitrário dos políticos e das nações-membro.

Nunca é demais enfatizar que keynesianos, monetaristas e mundellianos estão coletivamente errados porque raciocinam exclusivamente em termos de agregados macroeconômicos. Daí proporem, com pequenas diferenças de método, o mesmo tipo de ajuste via manipulações monetárias e fiscais, “ajuste fino” e taxas de câmbio flexíveis. Eles acreditam que todo o esforço necessário para se superar uma crise deve ser guiado por modelos macroeconômicos e por mais engenharia social. Sendo assim, eles desconsideram por completo as profundas distorções macroeconômicas que as manipulações monetárias (e fiscais) geram na estrutura dos preços relativos e na estrutura de bens de capital. Eles imaginam que uma desvalorização forçada da moeda é uma solução do tipo “uma medida serve para tudo”, no sentido de que ela gerará um aumento percentual linear no preço dos bens de consumo, dos serviços e dos fatores de produção, um aumento que será o mesmo para todos. Embora, no curto prazo, isto dê a impressão de uma intensa recuperação da atividade econômica e de uma rápida absorção do desemprego, o que se está fazendo na verdade é distorcer completamente a estrutura dos preços relativos (dado que, sem manipulações monetárias, alguns preços cairiam mais, outros cairiam menos, outros não cairiam e outros até mesmo poderiam aumentar), o que acaba levando a uma alocação errônea e insustentável de recursos produtivos e causando um grande desajuste que qualquer economia levaria anos para processar, absorver e se recuperar.[18] Esta é a análise microeconômica centrada nos preços relativos e na estrutura produtiva, a qual os economistas austríacos desenvolveram de maneira distinta[19] e a qual, em contraste, está totalmente ausente do ferramental analítico dos teóricos econômicos que se opõem ao euro.

Finalmente, fora da esfera puramente acadêmica, a enfadonha insistência com que economistas, investidores e analistas financeiros anglo-saxões tentam desacreditar o euro profetizando os cenários mais sombrios possíveis é, de certa forma, um tanto suspeitoso. Tal impressão é reforçada pela posição hipócrita dos diferentes governos americanos (e também, em um grau menor, do governo britânico) em desejar (de maneira indiferente) que a zona do euro “coloque sua economia em ordem” e, não obstante, deixando de mencionar, por interesse próprio, que a crise financeira começou do outro lado do Atlântico, isto é, com as políticas negligentes expansionistas implantadas pelo Federal Reserva durante anos, cujos efeitos se espalharam para o resto do mundo por meio do dólar, que ainda é a moeda utilizada como reserva internacional. Adicionalmente, há uma pressão quase que irresistível para que a zona do euro introduza políticas monetárias pelo menos tão expansionistas e irresponsáveis (“afrouxamento quantitativo” — QE) quanto aquelas adotadas pelos EUA, e esta pressão é duplamente hipócrita porque tal ocorrência iria, sem dúvida nenhuma, desfechar o golpe de misericórdia na moeda única europeia.

Seria desarrazoado dizer que esta postura do mundo político, econômico e financeiro anglo-saxão estaria camuflando algum temor de que o futuro do dólar como moeda internacional de troca possa estar ameaçado caso o euro sobreviva e seja capaz de efetivamente competir com o dólar em um futuro não muito distante? Todos os indicadores sugerem que esta questão está se tornando cada vez mais pertinente, e embora hoje não seja muito politicamente correto dizer isso, o fato é que tal questão está jogando sal na ferida mais dolorosa dos analistas e das autoridades do mundo anglo-saxão: o euro está surgindo como um potencial e enormemente poderoso rival para o dólar em nível internacional.[20]

Como podemos ver, a coalizão anti-euro reúne interesses bastante variados e poderosos. Cada um deles receia o euro por motivos distintos. No entanto, todos eles compartilham um mesmo denominador comum: os argumentos que formam a base de sua oposição ao euro seriam exatamente os mesmos — e eles inclusive poderiam repeti-los ainda mais enfaticamente — se eles tivessem de lidar com o padrão-ouro clássico caso este fosse o sistema monetário internacional. Com efeito, há um enorme grau de semelhança entre as forças que se aliaram em 1930 para incitar o abandono do padrão-ouro e as forças que hoje buscam (até agora, sem sucesso) reintroduzir o velho e superado nacionalismo monetário na Europa.

Como já indicado, era tecnicamente muito mais fácil abandonar o padrão-ouro do que é hoje para um país abandonar a união monetária. Neste contexto, não deveria ser surpresa alguma que os membros da coalizão anti-euro frequentemente recaiam no mais desavergonhado derrotismo: primeiro eles preveem um desastre e a impossibilidade de se manter a união monetária; e então, logo em seguida, eles propõem a “solução” de desmantelar tudo imediatamente. Eles inclusive chegam ao ridículo de promover competições internacionais (na Inglaterra, é claro, lar de Keynes e do nacionalismo monetário) nas quais centenas de “especialistas” e doidivanas fornecem suas propostas para a melhor e mais inócua maneira de se aniquilar a união monetária europeia.[21]

Em suma, já está muito claro que os defensores da concorrência entre moedas deveriam direcionar seus esforços contra o monopólio do dólar (por exemplo, apoiando o euro) em vez de defender a reintrodução de, e a competição entre, “pequenas moedas locais” de pequena importância (o dracma, o escudo, a peseta, a lira, a libra e até mesmo o marco).

5. Os verdadeiros pecados cardinais da Europa e o erro fatal do Banco Central Europeu[22]

Ninguém pode negar que a União Europeia sofre cronicamente de vários e sérios problemas econômicos e sociais. No entanto, o tão difamado euro não representa nenhum deles. Muito pelo contrário: o euro está agindo como um poderoso catalisador capaz de revelar a severidade dos reais problemas da Europa e, com isso, acelerar ou “precipitar” a implementação das medidas necessárias para solucioná-los. Com efeito, hoje, o euro está ajudando a difundir, mais do que nunca, a conscientização de que o inchado estado assistencialista europeu é insustentável e tem de ser substancialmente reformado.[23]

O mesmo pode ser dito sobre os programas universais de auxílios e subsídios, dentre os quais a Política Agrícola Comum ocupa uma posição destacada, tanto em termos de seus efeitos economicamente danosos quanto em termos de sua total falta de racionalidade econômica.[24] Acima de tudo, o mesmo pode ser dito da cultura de engenharia social e das regulamentações opressivas, a qual, sob o pretexto de harmonizar a legislação dos diferentes países, paralisa o mercado único europeu e o impede de ser um genuíno livre mercado.[25] Hoje, mais do que nunca, os reais custos de todas estas falhas estruturais estão se tornando aparentes na zona do euro: sem possuírem uma política monetária autônoma, os diferentes governos estão literalmente sendo forçados a reconsiderar (e, quando necessário, a reduzir) seus gastos públicos em todas as áreas, e a tentar recuperar e ganhar competitividade internacional por meio de desregulamentações, aumentando o máximo possível a flexibilidade de seus mercados (especialmente o mercado de trabalho, o qual tradicionalmente sempre foi muito rígido em vários dos países da união monetária.)

Além dos supracitados pecados cardinais da economia europeia, faz-se necessário acrescentar mais um, o qual talvez seja ainda mais grave devido à sua natureza peculiar e sorrateira. Estamos nos referindo à grande facilidade com que as instituições europeias — muitas vezes por falta de visão, de liderança ou de convicção quanto ao seu próprio projeto — se permitem enroscar em um emaranhado de políticas que, no longo prazo, são incompatíveis com as exigências impostas por uma moeda única e por um mercado único e genuinamente livre.

Primeiro, é surpreendente observar a crescente regularidade com que novas, fartas e opressivas medidas regulatórias — inventadas pelo mundo político e acadêmico anglo-saxão, especificamente nos EUA[26] — são introduzidas na Europa, e quase sempre quando tais medidas já se comprovaram ineficazes ou extremamente destruidoras. Esta perniciosa influência é uma tradição há muito estabelecida. (Lembremo-nos que os subsídios agrícolas, as legislações antitruste e as regulamentações voltadas para a “responsabilidade social corporativa” foram inventadas, assim como vários outros intervencionismos fracassados, nos EUA.) Atualmente, na Europa, estas medidas regulatórias surgem recorrentemente e são impingidas em todos os níveis — por exemplo, com respeito ao chamado “valor de mercado justo” e ao resto do Padrão Internacional de Contabilidade, ou às (até o momento, felizmente fracassadas) tentativas de implementar os chamados acordos de Basileia III para o setor bancário e Solvência II para o setor de seguros, ambos os quais sofrem de intransponíveis e fundamentais deficiências teóricas, bem como de sérios problemas com relação à sua aplicação prática.[27]

Um segundo exemplo da perniciosa influência anglo-saxã pode ser encontrado no Plano de Recuperação Econômica da Europa, que a Comissão Europeia lançou ao final de 2008 sob os auspícios da Reunião de Cúpula de Washington, sob a liderança de políticos keynesianos como Barack Obama e Gordon Brown, e sob os conselhos de teóricos econômicos que são inimigos do euro, como Krugman e outros.[28] O plano recomendava aos países adotantes do euro um aumento dos gastos públicos em aproximadamente 1,5% do PIB (algo em torno de 200 bilhões de euros em nível agregado). Embora alguns países, como a Espanha, tenham cometido o erro de expandir seus orçamentos, o plano, graças a Deus e ao euro, e para o total desespero dos keynesianos e de seus acólitos[29], rapidamente se esvaiu tão logo se tornou claro que ele servia apenas para aumentar os déficits, impossibilitar a consecução dos objetivos do Tratado de Maastricht, e desestabilizar severamente os mercados da dívida soberana dos países da zona do euro. Mais uma vez, o euro impôs um arcabouço disciplinador e uma precoce restrição aos déficits, em contraste à negligência orçamentária de países vítimas do nacionalismo monetário, especificamente EUA e Inglaterra, que fecharam o ano de 2010 com um déficit público de 10,1% do PIB e o de 2011 com um de 8,8% — os quais, em escala mundial, só são superados por Grécia e Egito. Não obstante déficits tão inchados e pacotes de estímulos fiscais tão agigantados, o desemprego na Inglaterra e nos EUA permanece em níveis recordes, e suas respectivas economias simplesmente não saem do chão.

Terceiro e principal: há uma crescente pressão para uma completa união política europeia, a qual, sugerem alguns, seria a única “solução” que possibilitaria a sobrevivência do euro no longo prazo. Além dos “eurofanáticos”, que sempre defendem qualquer desculpa que possa justificar mais poder e centralismo para Bruxelas, dois outros grupos coincidem em seu apoio à união política. Um grupo é formado, paradoxalmente, pelos inimigos do euro, particularmente aqueles de origem anglo-saxã: há os americanos, que, deslumbrados pelo poder centralizador de Washington e cientes de que ele não tem como ser duplicado na Europa, sabem que, com sua proposta, estarão injetando um vírus desagregador e mortal ao euro; e há os britânicos, que fazem do euro um (injustificável) bode expiatório sobre o qual descarregam suas (totalmente justificáveis) frustrações em vista do crescente intervencionismo de Bruxelas. O outro grupo é formado por todos aqueles teóricos e intelectuais que creem que somente a disciplina imposta por uma agência governamental centralizadora pode garantir o cumprimento dos objetivos estabelecidos por Maastricht quanto aos déficits e ao endividamento público. Trata-se de uma crença errônea. O próprio mecanismo inerente à união monetária garante, assim como o padrão-ouro, que aqueles países que abandonarem o rigor orçamentário e a estabilidade verão sua solvência colocada em risco e serão forçados a adotar medidas urgentes para restabelecer a sustentabilidade de suas finanças públicas caso não queiram ser forçados a decretar moratória.

Não obstante tudo o que foi dito acima, o mais sério problema não jaz na ameaça de uma impossível união política, mas sim no inquestionável fato de que uma política de expansão de crédito mantida de maneira contínua pelo Banco Central Europeu durante um período de aparente prosperidade econômica é capaz de cancelar, pelo menos temporariamente, os efeitos disciplinadores exercidos pelo euro sobre os agentes econômicos da cada país. Assim, o erro fato do Banco Central Europeu consiste em não ter conseguido isolar e proteger a Europa da grande expansão do crédito orquestrada em escala mundial pelo Banco Central americano, o Federal Reserve, que começou em 2001.

Ao longo de vários anos, em flagrante desacato ao Tratado de Maastricht, o Banco Central Europeu permitiu que o M3 crescesse a uma taxa maior que 9% ao ano, a qual excede em muito a meta de 4,5% de crescimento da oferta monetária, meta esta originalmente estipulada pelo próprio BCE.[30] Adicionalmente, embora este aumento fosse consideravelmente menor do que aquele provocado pelo Banco Central dos EUA, o dinheiro não foi uniformemente distribuído entre os países da união monetária, gerando assim um impacto desproporcional sobre os países periféricos (Espanha, Portugal, Irlanda e Grécia), os quais viram seus agregados monetários crescer a um ritmo bem mais rápido, de três a quatro vezes mais rápido do que na França ou na Alemanha. Várias razões podem ser fornecidas para se explicar este fenômeno, desde a pressão aplicada pela França e pela Alemanha — ambos os quais queriam uma política monetária que, durante aqueles anos, não fosse muito restritiva para eles —, até a extrema miopia dos países periféricos, que não queriam admitir que estavam vivenciando uma bolha especulativa, como foi o caso da Espanha, e com isso foram incapazes de dar instruções categóricas para seus representantes no conselho do BCE para chamar a atenção quanto à importância de a instituição obedecer estritamente às metas de crescimento da oferta monetária estabelecidas pelo próprio Banco Central Europeu.

Com efeito, durante os anos anteriores à crise, todos estes países, exceto a Grécia[31], observaram com sobras o limite de 3% para seus déficits orçamentários; e alguns, como a Espanha e a Irlanda, até mesmo apresentaram grandes superávits em suas contas[32]. Daí, embora o núcleo da União Europeia houvesse se mantido longe do processo americano de exuberância irracional, este processo foi repetido com intensa virulência nos países da periferia europeia, e muito poucas pessoas diagnosticaram corretamente o grave perigo de tudo o que estava acontecendo[33].

Se, em vez de utilizarem ferramentas analíticas macroeconômicas e monetaristas importadas do mundo anglo-saxão, os acadêmicos e as autoridades políticas tanto dos países afetados quanto do Banco Central Europeu houvessem utilizado a teoria austríaca dos ciclos econômicos[34] — a qual, afinal, é um produto do mais genuíno pensamento econômico do continente europeu —, eles teriam sido capazes de detectar a tempo a natureza amplamente artificial da prosperidade daqueles anos, a insustentabilidade de vários dos investimentos (especialmente no que diz respeito ao mercado imobiliário) que estavam sendo lançados em decorrência da grande facilidade de crédito e, principalmente, que o surpreendente aumento das recitas do governo seriam de duração extremamente curta.

Ainda assim, felizmente — embora no mais recente ciclo o Banco Central Europeu tenha falhado em cumprir os padrões que os cidadãos europeus tinham o direito de exigir que ele cumprisse, e por isso possamos classificar sua política de “uma grave tragédia” —, a lógica do euro como moeda única prevaleceu, expondo claramente os erros cometidos pelos políticos e obrigando todos a retornarem ao caminho do controle e da austeridade. Na próxima seção, iremos sucintamente abordar a maneira específica como o Banco Central Europeu formulou sua política durante a crise e como e em quais pontos essa política se difere daquela seguida pelos bancos centrais dos EUA e do Reino Unido.

6. O euro versus o dólar (e a libra) e a Alemanha versus os EUA (e o Reino Unido)

Uma das mais marcantes características do último ciclo, que terminou na Grande Recessão de 2008, foi sem dúvida o comportamento divergente entre as políticas monetárias e fiscais das áreas anglo-saxãs, baseadas em um nacionalismo monetário, e aquelas seguidas pelos países-membros da união monetária europeia. Com efeito, desde o momento em que a crise financeira e a recessão se manifestaram em 2007-2008, tanto o Federal Reserve quanto o Banco da Inglaterra adotaram políticas monetárias que se resumiam a reduzir as taxas básicas de juros para quase zero, injetar enormes quantias de dinheiro na economia (política eufemisticamente chamada de “afrouxamento quantitativo”), e monetizar de maneira contínua, direta e descarada a dívida pública soberana em escala maciça.[35] A esta extremamente frouxa política monetária (com a qual monetaristas e keynesianos concordam) foi acrescentado um forte estímulo fiscal que, tanto nos EUA quanto na Inglaterra, gerou déficits orçamentários da ordem de 10% de seus respectivos PIBs (os quais, não obstante seu gigantismo, alguns keynesianos mais recalcitrantes, como Krugman e outros, não consideram nem sequer perto do suficiente).

Em contraste com a situação do dólar e da libra, na zona do euro, felizmente, o dinheiro não pode ser tão facilmente injetado na economia, tampouco uma imprudência fiscal pode ser mantida indefinidamente e impunemente. Ao menos em teoria, o Banco Central Europeu não possui autoridade para monetizar a dívida pública europeia, e embora ele tenha aceitado títulos da dívida pública como colateral em troca de vultosos empréstimos para o sistema bancário, e em meados de 2010 tenha esporadicamente comprado diretamente títulos dos mais ameaçados países da periferia (Grécia, Portugal, Irlanda, Itália e Espanha), há certamente uma diferença econômica fundamental entre o comportamento dos EUA e do Reino Unido e a política da Europa continental: ao passo que a expansão monetária e a imprudência orçamentária são feitas de maneira deliberada, descarada e sem nenhuma reserva no mundo anglo-saxão, na Europa tais políticas são feitas de maneira relutante, e em muitos casos após numerosas, consecutivas e intermináveis “reuniões de cúpula”. Elas são o resultado de longas e difíceis negociações entre os vários lados, negociações nas quais países com interesses bastante distintos têm de chegar a um acordo.

Adicionalmente, e o que é ainda mais importante: quando o dinheiro é injetado na economia, dando apoio às dívidas dos países em dificuldade, tais medidas são sempre contrabalançadas por, e implementadas em troca de, reformas baseadas em austeridade orçamentária (e não por pacotes de estímulos fiscais) e na introdução de políticas que estimulam a liberalização do mercado e a competitividade.[36] Ademais, embora teria sido melhor caso tudo houvesse acontecido bem antes, a suspensão “de facto” do governo grego dos pagamentos de sua dívida — cujo valor foi reduzido (“haircut”) em aproximadamente 75% para os investidores privados que portavam essa dívida e que erroneamente confiaram na sustentabilidade da dívida soberana da Grécia —, sinalizou claramente aos mercados que outros países em apuros não têm outra alternativa senão implementar de maneira firme, rigorosa e sem demoras todas as reformas necessárias. Como já vimos, até mesmo estados como a França, que até hoje pareciam intocáveis e confortavelmente aninhados em um intumescido estado assistencialista, perderam a ótima classificação de risco de sua dívida, viram seu diferencial de juros em relação aos títulos alemães subir, e se descobriram crescentemente condenados a introduzir austeridade e reformas liberalizantes para evitar pôr em risco sua até então indiscutível filiação à linha dura do euro.[37]

Do ponto de vista político, é bastante óbvio que a Alemanha (e particularmente a chanceler Angela Merkel) possui o papel principal em exortar a continuidade de todo este processo de restauração e austeridade (e de se opor a todos os tipos de propostas inadequadas que, assim como a emissão de “títulos europeus”, removeriam todos os incentivos que os diferentes países têm hoje para agir com rigor). Por vários momentos, a Alemanha terá de nadar contra a correnteza. De um lado, há uma constante pressão política internacional por medidas de estímulo fiscal, pressão esta oriunda especialmente do governo americano, que está utilizando a” crise do euro” como uma cortina de fumaça para ocultar os monumentais fracassos de suas próprias políticas. E, de outro lado, a Alemanha tem de lidar com a rejeição e uma falta de compreensão de todos aqueles países que desejam permanecer no euro unicamente por causa das vantagens que este lhes oferece, mas que, ao mesmo tempo, violentamente se rebelam contra a amarga disciplina que a moeda única europeia impõe sobre todos, e especialmente sobre os políticos mais demagogos e sobre os mais irresponsavelmente privilegiados grupos de interesse.

Em todo caso, e como uma ilustração que compreensivelmente irá exasperar keynesianos e monetaristas, temos de ressaltar os resultados bastante desiguais que até agora foram conseguidos pelas políticas americanas de estímulos fiscais e de “afrouxamento quantitativo” monetário e pelas políticas alemãs de austeridade fiscal dentro do ambiente monetário do euro: déficit público, na Alemanha, de 1%; nos EUA, de mais de 8,20%. Desemprego, na Alemanha, de 5,9%; nos EUA, perto de 9%. Inflação de preços, na Alemanha, de 2,5%; nos EUA, de 3,17%. Crescimento econômico, na Alemanha, de 3%; nos EUA, de 1,7%. (Os valores para o Reino Unido são ainda piores do que estes dos EUA). O conflito de paradigmas e contraste nos resultados não poderia ser mais impressionante.[38]

7. Conclusão: Hayek versus Keynes

Assim como ocorreu com o padrão-ouro em sua época, hoje uma legião de pessoas critica e menospreza o euro justamente por aquela que é a sua principal virtude: sua capacidade de disciplinar políticos extravagantes e grupos de interesse. Para deixar claro, o euro de maneira alguma constitui o padrão monetário ideal, o qual, como vimos na primeira seção, pode ser encontrado apenas no padrão-ouro clássico, com 100% de reservas sobre depósitos em conta-corrente e com a abolição do banco central. Logo, é bastante possível que, tão logo um determinado espaço de tempo tenha se passado e a memória histórica dos recentes eventos monetários e financeiros tenha se apagado, o Banco Central Europeu volte a cometer os graves erros do passado, e a promover e acomodar uma nova bolha causada pela expansão de crédito.[39] No entanto, lembremo-nos de que os pecados cometidos pelo Federal Reserve e pelo Banco Central da Inglaterra foram ainda muito piores e que, ao menos na Europa continental, o euro acabou com o nacionalismo monetário, e que, para os estados da união monetária, ele está atuando, mesmo que apenas muito timidamente, como um “substituto” do padrão-ouro, impondo rigor orçamentário e reformas para estimular a competitividade, e colocando um freio nos abusos do estado assistencialista e da demagogia política.

Em todo caso, temos de reconhecer que chegamos a uma encruzilhada histórica.[40] O euro terá de sobreviver caso toda a Europa queira internalizar e adotar como sendo sua a tradicional estabilidade monetária alemã, a qual, na prática, é a única e essencial estrutura disciplinadora por meio da qual, no curto e no médio prazo, a competitividade e o crescimento da União Europeia poderão ser estimulados. Em escala mundial, a sobrevivência e a consolidação do euro irão permitir, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, o surgimento de uma moeda capaz de efetivamente concorrer com o monopólio do dólar como moeda internacional de troca, e portanto capaz de disciplinar a capacidade americana de provocar crises financeiras sistêmicas recorrentes, as quais, como a de 2007, ameaçam perigosamente a ordem econômica mundial.

Apenas oitenta anos atrás, em um contexto histórico muito similar ao atual, o mundo estava dividido entre manter o padrão-ouro, e com ele a austeridade orçamentária, a flexibilidade do mercado de trabalho, e o comércio livre e pacífico; ou abandonar o padrão-ouro e, assim, difundir mundialmente o nacionalismo monetário, as políticas inflacionistas, a rigidez trabalhista, o intervencionismo, o “fascismo econômico”, e o protecionismo no comércio internacional. Hayek e os teóricos austríacos liderados por Mises incorreram no titânico esforço intelectual de analisar, explicar e defender as vantagens do padrão-ouro e do livre comércio, em oposição aos teóricos que, liderados por Keynes e pelos monetaristas, optaram por abolir as fundações monetárias e fiscais da economia laissez-faire, a qual, até então, havia gerado a Revolução Industrial e o progresso da civilização.

Naquela ocasião, o pensamento econômico acabou tomando um caminho muito diferente daquele defendido por Mises e Hayek, e todos nós estamos bem familiarizados com as consequências econômicas, políticas e sociais que advieram desta decisão. Como resultado, hoje, já bem avançados no século XXI, inacreditavelmente o mundo ainda segue sendo atormentado por instabilidades financeiras, falta de rigor orçamentário e demagogia política. Por todas estas razões, mas principalmente porque a economia mundial urgentemente necessita disso, nesta nova ocasião[41], Mises e Hayek merecem finalmente triunfar, e o euro (ao menos provisoriamente, e até ele ser finalmente substituído de uma vez por todas pelo padrão-ouro) merece sobreviver.[42]

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[1] F.A. Hayek 1971 [1937].

[2] Embora Hayek não os mencione explicitamente, ele está se referindo aos teóricos da Escola de Chicago, liderados por Milton Friedman, que nessa e em outras áreas andavam de mãos dadas com os keynesianos.

[3] Mais abaixo veremos que, com uma moeda única como o euro, a função disciplinadora da taxa de câmbio fixa é assumida pelo valor de mercado das dívidas soberana e corporativa de cada país.

[4] Para salientar ainda mais o argumento de Mises, devo esclarecer que de modo algum é correto atribuir ao padrão-ouro o erro cometido por Churchill, após a Primeira-Guerra, quando ele estipulou a paridade do ouro com a libra sem levar em conta a enorme quantidade de cédulas de libra esterlina que haviam sido emitidas para financiar a guerra. Este evento nada tem a ver com a atual situação do euro, cujo valor flutua livremente nos mercados internacionais, e nem tampouco com os problemas que afligem os países da periferia da zona do euro, cujas causas estão na perda de competitividade real sofrida por suas economia durante a bolha (Huerta de Soto 2012 [1998], 447, 622-623 na edição em inglês).

[5] Na Espanha, diferentes economistas austríacos, inclusive eu, vinham há décadas clamando, sem nenhum êxito, pela introdução destas (e de várias outras) reformas que, somente agora, se tornaram politicamente exequíveis, de maneira súbita e com surpreendente urgência. E tudo por causa do euro. Duas observações: primeiro, estas medidas que constituem um passo na direção correta foram maculadas pelo aumento nos impostos implementados pelo novo governo espanhol, principalmente nos impostos sobre a renda, sobre ganhos de capital e sobre a riqueza (veja o manifesto contra o aumento de impostos que eu e mais cinquenta outros acadêmicos assinamos em fevereiro de 2012); segundo, os princípios do equilíbrio e da estabilidade orçamentária são uma condição necessária, porém insuficiente, para o país voltar ao caminho do crescimento econômico sustentável, uma vez que, caso haja um novo episódio de expansão creditícia, somente um enorme superávit orçamentário durante os anos de prosperidade tornaria possível, tão logo a recessão se instalasse, evitar os graves problemas que hoje atingem a Espanha.

[6] Talvez o mais trivial exemplo contemporâneo que os keynesianos e monetaristas têm a oferecer para ilustrar os “méritos” de uma desvalorização e abandono do câmbio fixo é o da Argentina após o congelamento dos saques bancários (o “corralito”) que ocorreu no início de dezembro de 2001. Este exemplo é seriamente incorreto por dois motivos. Primeiro, no máximo, o congelamento das contas bancárias é simplesmente uma ilustração do fato de que um sistema bancário de reservas fracionárias não funciona sem um emprestador de última instância. Segundo, imediatamente após esta tão aclamada desvalorização cambial, o PIB per capita da Argentina caiu de US$7.726 em 2000 para US$2.767 em 2002, o que significa uma perda de dois terços do seu valor. Esta queda de 65% na renda e na riqueza argentina deveria seriamente fazer com que todos aqueles que hoje estão grosseira e violentamente protestando na Grécia refletissem melhor, dado que eles estão protestando contra sacrifícios e reduções de preços — medidas estas exigidas pela saudável e inevitável disciplina imposta pelo euro — relativamente muito menores.

Ademais, toda a arenga a respeito das “impressionantes” taxas de crescimento da Argentina, de mais de 8% ao ano desde 2003, não deveria realmente impressionar ninguém se consideramos a base de cálculo extremamente baixa após a desvalorização do peso, bem como a pobreza, a paralisia e a natureza caótica da economia argentina, na qual um terço da população tornou-se necessitada de subsídios e auxílios do governo, a taxa real de inflação excede os 30%, e restrições, escassezes, regulamentações, demagogia, ausência de reformas e controles totalitários (bem como medidas temerárias) do governo se tornaram rotina. Nesta mesma linha de raciocínio, Pierpaolo Barbieri declarou: “É realmente inacreditável que comentaristas sérios como Nouriel Roubini estejam oferecendo a Argentina como exemplo a ser seguido pela Grécia” (Barbieri 2012).

[7] Até mesmo o presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, foi obrigado a admitir explicitamente que o “modelo social do continente já era” (Blackstone, Karnitschnig, and Thomson 2012).

[8] Não incluo aqui a análise de meu estimado discípulo e colega Philipp Bagus (A Tragédia do Euro, Instituto Mises Brasil, 2012), dado que, do ponto de vista da Alemanha, a manipulação à qual o Banco Central Europeu está submetendo o euro ameaça a estabilidade monetária que a Alemanha tradicionalmente sempre desfrutou sob o marco. Não obstante, seu argumento de que o euro estimulou políticas irresponsáveis por meio de um típico efeito da “tragédia dos comuns” me parece um tanto fraco, pois, durante a formação da bolha, a maioria dos países que hoje está tendo problemas, com a única possível exceção da Grécia, estava apresentando superávits em seus orçamentos (ou apresentavam resultados muito próximos de um superávit). Assim, creio que Bagus teria sido mais acurado caso houvesse intitulado seu excelente livro como A Tragédia do Banco Central Europeu (e não do euro), particularmente à luz dos graves erros cometidos pelo BCE durante os estágios de formação do bolha, erros que destacaremos nas últimas seções deste artigo.
[9] A linha editorial do extinto jornal espanhol Público era paradigmática neste sentido. (Ver também, por exemplo, o caso de Estafanía 2011 e de sua crítica à supracitada reforma do artigo 135 da Constituição espanhola para estabelecer o anti-keynesiano princípio da estabilidade e do equilíbrio orçamentário.)

[10] Ver, por exemplo, as declarações do novo presidente socialista francês, para quem “o caminho da austeridade é ineficaz, mortal e perigoso” (Hollande 2012), ou as declarações da candidata nacionalista Marine Le Pen, que acredita que os franceses “deveriam voltar ao franco e finalizar de uma vez por todas com o domínio do euro” (Martín Ferrand 2012).

[11] Um exemplo dentre vários artigos é Krugman 2012; ver também Stiglitz 2012.

[12] O déficit público americano tem permanecido entre 8,2% e 10% do PIB nos últimos três anos, e acentuado contraste ao déficit alemão, que foi de apenas 1% em 2011.

[13] Uma explicação atualizada da TACE pode ser encontrada em Huerta de Soto 2012 [1998], capítulo 5.

[14] Skidelsky 2011.

[15] Uma legião de economistas pertence a este grupo, e a maioria deles (surpresa, surpresa!) advém da região do dólar e da libra. Dentre todos, poderia mencionar, por exemplo, Robert Barro (2012), Martin Feldstein (2011), e o conselheiro de Barack Obama, Austan Goolsbee (2011). Na Espanha, embora por diferentes razões, devo citar economistas eminentes como Pedro Schwartz, Francisco Cabrillo e Alberto Recarte.

[16] Mundell 1961.

[17] Block 1999, 21.

[18] Ver a excelente análise de Whyte (2011) a respeito dos sérios danos que a desvalorização da libra está causando ao Reino Unido; e com relação aos EUA, ver Laperriere 2012.

[19] Huerta de Soto 2012 [1998].

[20] “O euro, como a moeda de uma área econômica que exporta mais do que os Estados Unidos, que possui um mercado financeiro muito bem desenvolvido, e que é apoiada por um banco central de primeiro mundo, é em vários aspectos a óbvia alternativa ao dólar. Embora atualmente esteja na moda formular todas as discussões sobre o euro em termos sinistros e soturnos, o fato é que o euro representa 37% de todo o mercado cambial internacional, 31% de todas as emissões de títulos internacionais e 28% das reservas internacionais totais em posse dos bancos centrais mundiais” (Eichengreen 2011, 130). Guy Sorman, por sua vez, comentou sobre “a ambígua atitude dos especialistas financeiros e agentes de mercado dos EUA. Eles nunca gostaram do euro porque, por definição, o euro concorre com o dólar: obedecendo ordens, os ‘especialistas’ americanos nos explicam recorrentemente que o euro não sobreviveria sem um governo econômico centralizado e sem um sistema fiscal único” (Sorman 2011).

[21] O mais recente e famoso exemplo foi o torneio realizado no Reino Unido por Lord Wolfson, proprietário da rede de lojas Next. Até o momento, esta competição já atraiu nada menos que 650 “especialistas” e malucos. Não fosse pela obtusidade e óbvia hipocrisia envolvida em tais iniciativas, as quais sempre são realizadas fora da zona do euro (e principalmente no mundo anglo-saxão, por aqueles que temem, odeiam e desdenham o euro), poderíamos até elogiar o grande esforço e interesse que tais pessoas veem demonstrando pelo destino de uma moeda que, afinal, não é utilizada por eles.

[22] Vale notar que o autor destas linhas é um “eurocético” que afirma que a função da União Europeia deveria ser limitada exclusivamente a garantir a livre circulação de pessoas, de capitais e de bens dentro do contexto de uma moeda única (se possível, o padrão-ouro).

[23] Já mencionei, por exemplo, as recentes mudanças legislativas aprovadas com o intuito de aumentar a idade de aposentadoria para 67 anos (e até mesmo indexá-la de acordo com as tendências futuras da expectativa de vida), mudanças estas já introduzidas ou a caminho na Alemanha, na França, na Itália, na Espanha, em Portugal e na Grécia. Poderia também citar a criação de um sistema de “co-pagamento”, bem como crescentes áreas de privatização, no sistema de saúde. São medidas pequenas na direção correta, mas que, por causa de seu alto custo político, jamais teriam sido implementadas sem o euro. Elas também contrastam com a tendência oposta demonstrada pelo plano de reforma do sistema de saúde de Barack Obama, e com a óbvia resistência a mudanças que surge quando se trata da inevitável reforma do Serviço Nacional de Saúde Britânico.

[24] O’Caithnia 2011.

[25] Booth 2011.

[26] Ver, por exemplo, “United States’ Economy: Over-regulated America: The home of laissez-faire is being suffocated by excessive and badly written regulation,” The Economist, 18 de fevereiro de 2012, p. 8, e os exemplos lá citados.

[27] Huerta de Soto 2003 e 2009.

[28] Sobre o histérico apoio aos pomposos pacotes de estímulos fiscais deste período, ver Fernando Ulrich 2011.

[29] Krugman 2012, Stiglitz 2012.

[30] Especificamente, o aumento médio do M3 na zona do euro, de 2000 a 2011, excedeu 6,3%, e devemos ressaltar os aumentos ocorridos durante os anos do auge da bolha: 2005 (de 7 a 8%), 2006 (de 8 a 10%), e 2007 (de 10 a 12%). Os dados acima mostram que, como já indicado, a meta de um déficit zero, embora louvável, é uma necessária, mas não suficiente condição para a estabilidade: durante a fase expansionista de um ciclo iniciado pela expansão do crédito, compromissos de gastos públicos tendem a ser feitos baseando-se na falsa tranquilidade gerada pelos superávits; no entanto, mais tarde, quando a inevitável recessão se impõe, estes compromissos se revelam completamente insustentáveis. Isso demonstra que ter como objetivo um déficit zero é algo que também requer uma economia que não esteja sujeita aos altos e baixos da expansão de crédito; ou que pelo menos os orçamentos sejam fechados com superávits muito mais altos durante os anos expansionistas.

[31] Portanto, a Grécia seria o único caso em que poderíamos aplicar o argumento da tragédia dos comuns que Bagus (2010) desenvolve em relação ao euro. À luz do raciocínio apresentado neste artigo, e como já mencionado acima, creio que um título mais correto para o notável livro de Bagus, A Tragédia do Euro, teria sido A Tragédia do Banco Central Europeu.

[32] Os superávits na Espanha foram os seguintes: 0,96%, 2,02% e 1,90% em 2005, 2006 e 2007, respectivamente. Os da Irlanda foram 0,42%, 1,40%, 1,64%, 2,90% e 0,67% em 2003, 2004, 2005, 2006 e 2007, respectivamente.

[33] O autor destas linhas poderia ser citado como uma exceção (Huerta de Soto 2012 [1998], xxxvii).

[34] Ibid.

[35] Neste período (2011-2012), o Federal Reserve está comprando diretamente pelo menos 40% de toda a dívida americana que está sendo emitida. Algo similar vem sendo feito pelo Banco Central da Inglaterra, que é o detentor direto de 25% de toda a dívida pública do Reino Unido. Comparada a estes números, a monetização (direta e indireta) empreendida pelo Banco Central Europeu parece uma inocente “brincadeira de criança.”

[36] Também altamente significativo é “Um Plano para o Crescimento da Europa”, o qual foi apresentado em 20 de fevereiro de 2012 pelos líderes de doze países da União Europeia (dentre eles Itália, Espanha, Holanda, Finlândia e Polônia), plano esse que apresenta apenas políticas do lado da oferta e não menciona nenhum tipo de estímulo fiscal. Há também o manifesto “Iniciativa para uma Europa Livre e Próspera” assinado em Bratislava em janeiro de 2012 por, entre outros, o autor destas linhas. Em suma, uma mudança de modelos parece uma prioridade em países que, como a Espanha, têm de abandonar sua atual economia baseada na especulação e na expansão do crédito em prol de uma economia baseada na competitividade. Com efeito, assim que os preços declinarem (“deflação interna”) e a estrutura de preços relativos for reajustada em um ambiente de liberalização econômica e reformas estruturais, várias oportunidades para lucros empreendedoriais surgirão em investimentos sólidos, os quais, em uma área monetária tão ampla quanto a área do euro, certamente atrairão financiamento. Esta é a maneira correta de se viabilizar a necessária restauração econômica e garantir uma recuperação mais sólida nas economias, recuperação esta que, enfatizando, tem de ser baseada na competitividade e não em expansão do crédito e em especulações.

[37] Dentro deste contexto, e como já explicado na seção “A diversa e heterogênea “coalizão anti-euro””, não deveríamos nos surpreender com as declarações dos candidatos à presidência da França, as quais foram mencionadas na nota número 10.

[38] Dados estimados em 31 de dezembro de 2011.

[39] Em outras ocasiões, mencionei as reformas incrementais que, assim como a radical separação entre bancos comerciais e bancos de investimentos, poderia aperfeiçoar o euro de certa forma. Ao mesmo tempo, é no Reino Unido que, paradoxalmente (ou não, à luz da dos devastadores estragos sociais resultantes de sua crise bancária), minhas propostas geraram o maior interesse, ao ponto em que um projeto de lei chegou até mesmo a ser apresentado no Parlamento Britânico para completar o Peel’s Bank Charter Act de 1844 (curiosamente, ainda em vigor), ampliando a exigência de 100% de reservas para os depósitos à vista. O consenso atingido naquele país, de que se deve separar bancos comerciais de bancos de investimento é algo que deve ser considerado uma medida (ainda muito pequena) na direção correta (Huerta de Soto 2010 and 2011).

[40] Meu tio torto, o empreendedor Javier Vidal Sario, de Navarra, que, aos 93 anos de idade continua perfeitamente lúcido e ativo, me assegura que, em toda a sua vida, nem mesmo durante os anos do Plano de Estabilização de 1959, ele jamais testemunhou na Espanha um esforço coletivo para se alcançar uma disciplina institucional e orçamentária, bem como uma restauração econômica, comparável ao atual. Também historicamente significativo é o fato de que este esforço não está ocorrendo em apenas um país (por exemplo, a Espanha), e tampouco em relação apenas à moeda local (por exemplo, a velha peseta), mas está difundido por toda a Europa, e está sendo feito por centenas de milhões de pessoas dentro da estrutura de uma unidade monetária comum (o euro).

[41] Adicionalmente, esta histórica situação está sendo agora repetida, e em toda a sua severidade, na China, cuja economia está neste momento à beira de um colapso expansionista e inflacionário. Ver “Keynes versus Hayek in China,” The Economist, 30 de dezembro de 2011.

[42] Como já vimos, Mises, o grande defensor do padrão-ouro e de um sistema bancário livre e com 100% de reservas para depósitos à vista, colidiu de frente, na década de 1960, com teóricos que, liderados pro Friedman, defendiam taxas de câmbio flutuantes. Mises condenou o comportamento de seu discípulo Machlup por este ter abandonado sua defesa das taxas de câmbio fixas. Agora, cinquenta anos depois e por causa do euro, a história está se repetindo. Naquela ocasião, os defensores do nacionalismo monetário e da instabilidade das taxas de câmbio venceram, gerando consequências com as quais todos estamos familiarizados. Desta vez, resta-nos torcer para que a lição tenha sido aprendida e que as ideias de Mises possam prevalecer. O mundo necessita disso e merece isso.

Jesús Huerta de Soto
Jesús Huerta de Soto
Jesús Huerta de Soto professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor de A Escola Austríaca: Mercado e Criatividade Empresarial, Socialismo, cálculo econômico e função empresarial e da monumental obra Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos.
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