A divisão do espectro político entre “esquerda” e “direita”, desde que tomou forma na Revolução Francesa, se tornou praticamente universal. Apropriado, considerando a relevância da Revolução, tanto por suas consequências diretas, quanto como símbolo da passagem de uma era.
Apesar de essa dicotomia ser criticada constantemente por sua simplicidade, que claramente não reflete as nuances infindáveis das opiniões das pessoas, ela teimosamente se recusa a morrer. Na verdade, “direita vs. esquerda” tem se tornado, mais uma vez, a narrativa dominante da paisagem política, à medida que a agenda “woke” e a reação conservadora se radicalizam e cerram fileiras.
A natureza da política prática se empresta a essa polarização deplorável. Afinal, o objetivo é tomar controle do Estado, e usá-lo para perpetuar o poder e destruir inimigos. A despeito das fantasias progressistas, há muito pouco que um governo pode fazer para melhorar a vida das pessoas (exceção feita ao pequeno grupo de “amigos do rei”), mas há muito que o governo pode fazer para piorar a vida de largos segmentos da população.
Com essa assimetria, evitar a ascensão do inimigo inevitavelmente se torna muito mais importante do que discussões meticulosas sobre “planos de governo”. E, como resultado, à medida que o inimigo ganha força, as pessoas sentem-se pressionadas a apoiar a alternativa “menos pior” com a maior chance de sucesso.
Reconhecida a existência prática da dicotomia esquerda-direita, vamos ao ponto: o que separa uma da outra, pelo menos em princípio? Gostaria aqui de avançar uma teoria que, acredito, faz um excelente trabalho de explicar a realidade, e ainda por cima oferece uma esperança, se não de reconciliação, pelo menos de respeito e compreensão mútuas.
Vamos começar pela esquerda, que, de acordo com o “mito fundador” dessa polarização, foi quem motivou a separação, agindo de forma baderneira e até indecente na Assembleia Nacional, motivando os outros a irem para o outro lado da sala. Já naquela época, a “esquerda” se caracterizava pela agitação em prol de mudanças políticas e sociais, frequentemente baseadas nas ideias de algum intelectual.
A partir daí, e passando por outros representantes da esquerda desde então, como os Românticos, liberais ingleses, socialistas utópicos, marxistas, anarquistas, sindicalistas, fabianos, progressistas, modernistas, bolcheviques, fascistas (sim!), teólogos da libertação, pós-modernistas, ativistas por direitos civis, a Nova Esquerda, até chegarmos na atual cultura do cancelamento, percebe-se que há uma variedade impressionante.
Aquilo que tem sido chamado de “esquerda” tem variantes que estão em todos os cantos de todos os espectros: desde os mais sérios até os marginalmente cômicos; dos assassinos em massa aos pacifistas incondicionais; dos regimentadores ditatoriais aos proponentes da liberdade total; dos pretensamente científicos aos abertamente místicos; dos coletivistas proletários aos admiradores de bilionários; dos nacionalistas xenofóbicos aos internacionalistas sonhadores; dos piores poluidores aos ambientalistas misantropos…
Existe um fio conectando tudo isso: o ímpeto de moldar o mundo de acordo com uma visão holística. O esquerdista não se satisfaz com uma sociedade orgânica, baseada em um equilíbrio dinâmico (e portanto, em estado permanente de desequilíbrios estáticos), que seja compatível com a natureza imperfeita do homem. Ele enxerga os homens principalmente como produtos de seu meio, e portanto, a questão de como manipular esse meio para “aperfeiçoar” o homem (o que quer que isso signifique) torna-se essencial.
Por um lado, isso pode parecer confortante e inspirador; por outro, soa até um pouco ridículo: não é nenhum segredo que o homem é uma criatura inerentemente falível. Qualquer sistema social composto por seres humanos, por mais perfeito que seja “no papel”, está fadado à ineficiência e à corrupção. E também existe o incômodo fato de que os arquitetos do “sistema” são, eles próprios, seres humanos limitados e falíveis. Por último, as pessoas não são idiotas: elas são capazes de perceber quando as circunstâncias estão sendo manipuladas para pressioná-las; isso tende a gerar ressentimento e desilusão que só aumentam com o tempo.
Não é surpreendente, portanto, que o esquerdismo esteja associado à juventude, aquela fase da vida em que o potencial do homem está em seu zênite; e, ao mesmo tempo, a experiência e a sabedoria estão em seu nível mais baixo. Confiante, ele olha para o mundo à sua volta, cheio de erros e inconsistências, e o que naturalmente lhe vem à cabeça é: “velhos incompetentes! Como que ainda não consertaram esses problemas tão óbvios?” Instaura-se, então, aquela vontade de “salvar os outros de si próprios”, através da implementação de um brilhante Sistema – e para implementar esse novo Sistema, obviamente torna-se necessário destruir o velho Sistema.
Esse aspecto tolo e corajoso da juventude já foi explorado de todos os ângulos imagináveis nas várias culturas do mundo. Sabe-se muito bem que ele traz terríveis sofrimentos, muitas vezes repetindo cegamente os erros do passado sob a ilusão de “tentar algo novo”. Mas essa atitude também possibilita a renovação e o crescimento, que são indispensáveis para a saúde de longo prazo de qualquer grupo – e, vale dizer, também torna a vida muito mais interessante. Além disso, a experiência (mesmo que dolorosa) é a melhor professora. Todos já passaram por situações em que só aprenderam uma lição depois de quebrar a cara.
Tendo definido a esquerda em termos amplos, vamos à outra ponta do espectro: o que define a “direita”?
Este autor, e creio que a maioria das pessoas que passou por escolas com currículo e professores progressistas, cresceu acreditando que a “direita” consistia de pessoas rabugentas, com mentes pequenas, e ideais mesquinhos: verdadeiras pedras no caminho do progresso. Era impossível imaginar uma pessoa informada e bem-intencionada sendo de direita.
Por caminhos tortuosos, fui eventualmente salvo dessa caricatura por Hans-Hermann Hoppe, possivelmente o libertário mais controverso de todos os tempos. As obras de Hoppe escandalizam o progressista doutrinado, mas a lógica delas é tão avassaladoramente coerente que, com o passar do tempo, surge eventualmente um certo respeito e aceitação… e até admiração.
A leitura de autores intelectualmente sólidos, como Hoppe, Chesterton, e Lewis, revela que em seu núcleo, a direita se baseia em uma premissa eminentemente sensata – aliás, óbvia: existe uma realidade objetiva da qual fazemos parte, e nossa capacidade de muda-la é limitada. Logo, devemos construir nossa visão de mundo e nossas sociedades de forma a respeitar essa ordem natural.
Aqui, o contraste com a esquerda fica óbvio: enquanto os esquerdistas enxergam a realidade como argila para ser moldada, os direitistas veem uma inspetora severa, com pouca paciência para tolos – os quais correm um grande risco ao desafiá-la.
Os esquerdistas acusam a direita de ser retrógrada, de impedir o progresso, de perpetuar coisas ruins por terem medo de que novidades atrapalhem o status quo com o qual estão confortáveis. Os direitistas, por sua vez, acusam os esquerdistas de avançarem ideias baseadas em fantasias irrealizáveis, que perturbam e destroem a ordem orgânica da sociedade, em troca de benefícios duvidosos.
Colocado dessa forma, fica fácil perceber que cada lado está descrevendo um aspecto indispensável da realidade humana. Ao mesmo tempo em que somos parte da realidade e precisamos respeitar as limitações por ela impostas, a própria realidade nos impõe a necessidade de agir sobre o mundo e transformá-lo.
Na medida que a esquerda representa essa necessidade de agir sobre o mundo de forma transformadora, ela tem uma função legítima em uma ordem social compatível com a natureza do homem. Infelizmente, a linha divisória entre agir sobre o mundo, de um lado, e buscar substituir o mundo por algo totalmente diferente, do outro, pode ser tênue – tênue demais para uma espécie propensa à arrogância, como a nossa.
Os sucessos da ciência e tecnologia durante a era moderna pioraram o cenário, atiçando as imaginações de intelectuais que, infantilmente, acreditaram que podiam estudar e projetar uma sociedade da mesma forma que cientistas e inventores faziam com eletricidade e motores a vapor. Para piorar, a fragmentação e enfraquecimento do cristianismo deixou em sua esteira um vácuo que foi inundado por toda maneira de visões superficiais e fátuas. A insanidade que vivemos hoje, em que nem mesmo questões aparentemente óbvias estão livres de serem desconstruídas, é sucessora direta desse “progresso” desgovernado que fascina e ilude a esquerda há séculos.
Tendo dito isso, é justo lembrar à direita que a preservação da ordem natural não é simplesmente a defesa com unhas e dentes de instituições estabelecidas. Para começar, a mesma falibilidade dos homens que torna impossíveis as fantasias da esquerda também dita que instituições humanas são falíveis e corruptíveis, e precisam de adaptações e reformas regulares. Além disso, apesar de podermos e devermos aprender com o passado, não podemos voltar para o passado – por isso o viés de qualquer ideologia ou movimento deve ser a construção do futuro. A direita ocidental moderna tem sido péssima em compreender esse ponto, limitando-se a tentar bloquear as últimas novidades estapafúrdias da esquerda.
A direita deveria compreender que seu objetivo não é posar de “razoável” ou “moderada”, de terno e com expressão constipada, mas sim avançar a ideia de uma ordem social baseada na ordem natural – uma ideia muito mais reformista e radical (no sentido de estar fundamentada em raízes sólidas) do que qualquer coisa que a esquerda moderna tenha a oferecer. Teólogos cristãos, desde Santo Agostinho, exploraram profundamente o assunto do logos divino (lei natural) e o papel correto das leis humanas. É trágico que esse legado tenha sido menosprezado desde a Reforma Protestante – que, não por coincidência, lançou a era moderna em que vivemos.
Para resumir e concluir, o estado ideal de uma sociedade é a busca constante da ordem natural, daquele estado que facilita o desenvolvimento do indivíduo rumo à realização do seu propósito como ser humano. Sendo que homens são limitados e falíveis, o estado ideal nunca será atingido; mas é crucial que ele se mantenha como um centro, um objetivo que deve ser usado como alvo e como referência.
Algumas vezes, a busca da ordem natural requer estabilidade e preservação; em outras, reforma e inovação. O critério de juízo não deve ser a estabilidade ou a mudança por si próprias, mas o quão compatíveis são, dentro do contexto apropriado, com aquilo que sabe-se ser certo. E para isso, é necessário ter uma definição do que é certo, um ponto de referência fidedigno: é necessário entender, tanto quanto podemos, o propósito do homem, de acordo com sua natureza e sua realidade; e os contornos da ordem que melhor se empresta a esse propósito. Sem esse farol para nos orientar no mar da filosofia política, estamos condenados a “progredir” em direções destrutivas e insustentáveis.