Crise bancária e moeda fracionária
A quebra do Banco Lehman Brothers em 2008 associou a palavra “crise” ao sistema bancário americano e europeu; até agora, o último capítulo dessa novela foi a perda sofrida pelos depositantes de Chipre em meados de abril deste ano. E em que consiste uma crise bancária?
Para o que interessa à grande maioria dos correntistas, há uma crise quando o banco em que se possui conta bancária não tem o dinheiro necessário para satisfazer os direitos de saque de seus clientes. Uma corrida bancária, iniciada por alguma notícia negativa sobre a saúde financeira de um banco, também gera essa consequência. E como é possível a um banco não possuir dinheiro suficiente para honrar os depósitos que se lhe fazem?
Simples: quando o banco empresta mais do que tem. Tal situação decorre da antiquíssima prática da reserva fracionária, adotada pelos bancos. Esta consiste pura e simplesmente na utilização, para novos empréstimos, de parte dos depósitos que se lhe efetuam. Ou seja, parcela do que é depositado representa o “depósito compulsório” em percentual fixado por bancos centrais, segundo critérios por eles sabidos. O que excede do compulsório a instituição é livre para emprestar. Isso quer dizer, sem rodeios, que o banco lança mão do dinheiro de propriedade dos depositantes para realização de seu objeto social, com vistas ao lucro. E aí vem a pergunta: podem os bancos, sendo depositários à vista de moeda de seus clientes, lançar mão desses recursos, como se fossem propriedade sua, para auferir lucros e alterar/influir no fluxo da economia de um país?
O Instituto Ludwig von Mises Brasil (IMB) publicou inúmeras e elucidativas matérias sobre reserva fracionária, compulsório e suas consequências; recomenda-se, inclusive, a magnífica obra de Jesús Huerta de Soto, Moeda Crédito Bancário e Ciclos Econômicos. Consequências da prática da reserva fracionária são muito bem relatadas em interessante artigo do Leandro Roque [1], componente dos quadros do IMB.
Garantia constitucional da propriedade
A questão da propriedade dos recursos depositados pelos clientes em bancos não é absolutamente pacífica. Afinal, por ocasião do depósito, a propriedade da moeda é ou não é transferida para o banco? É que se não houver transferência, a utilização dos recursos depositados seria abusiva e ilegal. Resposta a essa questão será dada com base no Direito Positivo brasileiro, embora se possa adiantar que nosso Judiciário, igualmente com fundamento no mesmo Direito Positivo, entende que no depósito bancário há transferência de propriedade do dinheiro do cliente para o banco. Como se vê, opiniões divergentes sob o mesmo pano de fundo.
Nossa Constituição é o fundamento de validade da ordem jurídica brasileira e já no art. 1º, incisos III e IV, assegura implicitamente o direito de propriedade, pois não se concebem dignidade da pessoa humana e valores da livre iniciativa sem que haja direito de propriedade.[2] É no art. 5º e no inciso XXII que a Constituição expressamente garante o direito de propriedade a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País. Todavia, no inciso seguinte, XXIII, é limitado esse direito, pois é estatuído que a propriedade atenderá a sua função social (seja lá o que isso possa representar)[3]. Portanto, tendo-se em conta essas regras constitucionais, a apropriação pelos bancos dos recursos lá depositados por seus clientes tem de ser algo muito bem justificado, pois de outro modo, a apropriação será indevida. A menos que recursos depositados em conta corrente possuam alguma “função social”, o que deverá ser muito bem explicada! Vejamos se isso ocorre.
Os leitores deste IMB já estão familiarizados com expressões como “interesse público”, “função social”, e outras, denotativas de não se sabe o quê, referidas a algo que não pertence ou não diz respeito a mim, nem a você, nem a ninguém, mas que, por razões quase metafísicas possuem significado para os “iniciados”. E tais expressões se utilizam, principalmente, para limitar o direito individual em prol de um místico direito coletivo, e justificar ação do poder público para essa limitação. Assim, quando a Constituição refere que a propriedade atenderá a sua função social, devemos, à falta de uma noção axiomática dessa tal função social, procurar na legislação infraconstitucional o seu significado. Já adianto, não vamos encontrá-lo. Esse é um enunciado vago, uma forma vazia que molda aquilo que a mão que usa a forma quer moldar…
Contrato de empréstimo e de depósito
O Código Civil, que é uma lei infraconstitucional, regula dois tipos de contratos que se relacionam com o tema aqui tratado: o contrato de empréstimo e o de depósito. O contrato de empréstimo pode ser de dois tipos: o de coisas não fungíveis denomina-se comodato (art. 579), e o de coisas fungíveis, mútuo (art. 586). Fungíveis são as coisas móveis que se podem substituir por outras da mesma espécie, qualidade e quantidade, e seu uso acarreta o consumo e destruição da coisa, como moeda, açúcar, soja (art. 85). No comodato, o comodatário pode fazer uso da coisa (carro, bicicleta, martelo), e tem de devolvê-la no prazo convencionado ou quando requerido pelo comodante; no mútuo, o uso da coisa pelo mutuário, implica sua destruição/consumo (óleo, açúcar, moeda), e a devolução da coisa se dá por outra de mesma espécie, qualidade e quantidade, após decurso de prazo fixado pelas partes, se outra forma não tiver sido contratada. Já o Depósito é o contrato pelo qual o depositário recebe um bem móvel do depositante para guardá-lo até que este o reclame de volta, se não houver sido pactuado prazo no contrato.
Revisando esse ponto e referindo tudo a dinheiro, temos: o empréstimo de dinheiro que obtemos no banco chama-se mútuo, e o dinheiro que lá depositamos chama-se depósito. Esse depósito, todos sabemos, pode ser à vista, em conta corrente, ou a prazo, a tempo certo, chamado aplicação.
Ocorre que há no Código Civil um dispositivo que se encontra na raiz de toda essa confusão. Confusão essa oportunamente utilizada para embasar e justificar a aparente transferência de propriedade do dinheiro depositado para o banco. Esse dispositivo é o art. 645, que equipara o depósito de coisas fungíveis ao mútuo: “O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo”. E o art. 587, que trata do mútuo, estatui que “Este empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário, por cuja conta correm todos os riscos dela desde a tradição“. Por causa desse dispositivo, quase toda a doutrina e jurisprudência entendem que o depositante de dinheiro à vista perde a propriedade de seus recursos para o banco.
Eis aí a suposta causa de todos os males. Suposta porque, bem lidos esses dispositivos legais, jamais alguém pode concluir que uma pessoa, ao depositar certa quantia num banco, em depósito à vista, esteja transferindo o domínio, a propriedade desse dinheiro para o banqueiro! Uma consequência tão importante assim deveria estar expressa no contrato e dela estar ciente o depositante. Fazer depósito à vista não é o mesmo que fazer uma aplicação por tempo certo, embora ambas contemplem um ato inicial de depósito. A primeira operação não nos rende juros, a segunda sim. Para que o depósito a prazo renda juros é necessário que o banco “trabalhe” esse dinheiro; por isso ele tem de apropriar-se desses recursos pelo prazo fixado.
É por essa razão que a lei equipara o depósito de coisa fungível (os depósitos a prazo) ao mútuo (o dinheiro emprestado pelo banco), que é o empréstimo de coisa fungível. Exemplo de depósito de coisa fungível é o de soja, milho, feijão nos armazéns e silos: os produtos lá depositados misturam-se aos demais. O dono do silo ou armazém tem o direito de retirar do todo a parte reclamada por algum depositante, daí a transferência de propriedade, meramente funcional. Então, o depósito que a lei equipara ao mútuo não pode ser outro que o depósito a prazo e não o depósito à vista. Esse tem de estar a todo tempo disponível para que o depositante possa sacá-lo. TODOS os depositantes e todo o saldo, se for o caso, entenda-se bem! Sem reserva fracionária a corrida bancária é inofensiva para bancos criteriosos, e todos os depositantes à vista poderiam sacar de uma vez seus depósitos.
O que diferencia os negócios jurídicos uns dos outros é justamente o motivo ou causa de sua prática, isto é, a razão que leva alguém a realizar um negócio regulado pelo Direito. Se o motivo ou causa de sua realização for ilícito, então o negócio será nulo (art. 166, III, do CC) [4]. É claro que a razão determinante daquele que faz um depósito à vista não é a mesma do que faz um depósito a prazo. Quem deposita dinheiro no banco quer apenas guardá-lo; quem aplica, transfere a propriedade para que o banco obtenha-lhe o rendimento pactuado. A transferência de propriedade, assim, deveria ser, no caso do depósito à vista, constitutiva do próprio depósito, o que obviamente não é. Logo, o motivo que leva o banco a apropriar-se dos recursos depositados à vista é inexistente no pacto (ainda que sumário) do depósito.
Por isso, insista-se que a equiparação legal entre depósito de coisa fungível e mútuo somente é possível entre depósito a prazo (que transfere a propriedade dos recursos para o banco) e mútuo/empréstimo (que transfere a propriedade dos recursos do banco para o cliente). Sem a transferência de propriedade no depósito a prazo (do cliente para o banco) e no empréstimo que tomamos (do banco para nós), a utilização do dinheiro seria ilícita, pois ninguém pode dispor do que não lhe pertence.
Bancos recebem depósitos e emprestam
A própria lei do sistema bancário (Lei nº 4.595/64), no art. 17 [5], distingue as duas atividades básicas praticadas pelas instituições financeiras: (i) uma é a coleta, intermediação ou aplicação de recursos próprios ou de terceiros, e (ii) outra é a custódia de valor de propriedade de terceiros. Em outras palavras, os bancos intermedeiam ou aplicam recursos e custodiam (recebem em depósito) recursos de terceiros. Para a primeira atividade, a propriedade dos recursos recebidos presume-se transferida ao banco (mesmo no caso de recursos de terceiros), pois só assim podem intermediá-los ou aplicá-los. Para a segunda (custodiar, que é o mesmo que receber para depósito) a transferência não se presume, nem se opera.
Pode-se constatar, pelo que já foi dito até agora, que nem a Constituição, nem o Código Civil e nem a Lei 4.595/64 estabelecem “função social” para a propriedade dos recursos dos cidadãos. Portanto, essa propriedade é plena e não condicionada, o que impede qualquer inferência de que ao fazermos um depósito à vista num banco estamos transferindo-lhe a propriedade desses recursos. E sem transferência de propriedade no depósito à vista, os bancos não poderiam emprestar os recursos lá depositados. Cai por terra todo o alicerce da reserva fracionária. E, com ela, a criação de moeda a partir do nada, a geração de inflação pelo Estado e a vassalagem do cidadão.
Esse ponto deve ser realçado: a transferência da propriedade do dinheiro depositado à vista é condição sine qua non para a prática da criação de crédito bancário, expansão do crédito e das consequências negativas daí decorrentes. Sem transferência de propriedade não há sistema de reserva fracionária. Ou, de outra forma, a obrigação de manterem os bancos 100% de reserva dos depósitos à vista, impede a criação de moeda por reserva fracionária.
Contradição do judiciário
O Judiciário entende que aquele dispositivo do Código Civil (art. 645) se aplica tanto a depósitos à vista quanto a prazo, e por isso estabelece que a propriedade do dinheiro depositado à vista também se transmite ao banco. Curiosamente, entretanto, ele se contradiz quando determina a penhora de recursos detidos pelo devedor em sua conta corrente. Para aqueles que são advogados, é curial a ferramenta utilizada em execução, chamada BACENJUR, pela qual o juiz determina ao banco a penhora de depósito bancário do devedor. Ora, a contradição consiste, precisamente, em penhorar-se (na concepção do Judiciário) recurso do banco e não do cliente/devedor executado. Se o Judiciário entende que o depositante perde para o banco a propriedade de seus recursos depositados à vista, como é possível a penhora? Não é possível, claro; verifica-se aí a fluidez de conceitos. A penhora somente é possível se entendermos que o depositante não perde a propriedade de seus recursos.
Simplificação mutiladora
O raciocínio que se desenvolveu aqui distingue depósitos à vista e a prazo, em harmonia com o art. 17 da Lei nº 4.595/64. E conclui que a transferência de propriedade, decorrente do art. 645 do CC, somente se dá nos depósitos a prazo.
Diante dessa constatação, indaga-se: por que ainda persiste na doutrina e no Judiciário o entendimento de que no depósito à vista há transferência de propriedade do dinheiro depositado? Duas razões básicas podem ser enunciadas. Uma, decorre do inegável poder detido pelos bancos perante as forças que movimentam as regras da “democracia”, na elaboração de leis que os favoreçam. Outra, é que o pensamento humano tende a evitar a complexidade e busca atingir o conhecimento pelo caminho da simplicidade.
O simples, no caso da transferência de propriedade, é não se diferenciarem depósitos à vista de depósitos a prazo para incidência do disposto naquele art. 645 do Código Civil. Tal simplificação quase sempre mutila a compreensão da realidade. Edgar Morin refere-se “a um modo mutilador de organização do conhecimento, incapaz de reconhecer e de apreender a complexidade do real.” [6]. No caso, a “complexidade do real” consiste na diferença entre os dois tipos de depósito. Em não se perceber a dicotomia da atividade bancária apontada na letra do art. 17 da Lei nº 4.595/64, entre depósitos à vista e depósitos a prazo.
A obrigação de os bancos possuírem, sempre, os recursos depositados à vista para saque de seus clientes, não deve ser resultado de cálculo estatístico, operado pelo banqueiro a partir de indução sobre o montante médio deixado pelos depositantes em sua conta. A simplificação aqui é letal a ponto de fazer ruir todo o conceito jurídico sobre o depósito monetário e permitir absurda justaposição conceitual entre depositante e mutuário, este, sim, proprietário do montante que lhe foi mutuado pelo prazo do contrato. E possibilitar ao Estado um poder que a Constituição não lhe dá: manipular a moeda e avassalar o cidadão.
[1] “O sistema bancário brasileiro e seus detalhes quase nunca mencionados”, in http://rothbardbrasil.com/o-sistema-bancario-brasileiro-e-seus-detalhes-quase-nunca-mencionados/ o qual sintetiza e faz referência a vários outros, seguidores da Escola Austríaca de Economia, que bem descrevem o tipo de relacionamento mencionado neste item do trabalho.
[2] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
[3] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
[4] Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
[5] Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.
[6] Edgar Morin, in Introdução ao Pensamento Complexo, ed. Sulina, 4ª ed., pág. 10