Thursday, November 21, 2024
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Depois do salário mínimo, o governo inventa o salário máximo

mantega_meirellesA sanha autoritária do governo Lula segue a toda nesse fim de mandato.  Primeiro veio o Plano Nacional de Direitos Humanos – que já foi bem destrinchado por alguns (poucos) veículos da mídia.  Depois veio a proposta (na verdade, a materialização de um velho sonho socialista) de se obrigar as grandes empresas a distribuir 5% do seu lucro para os empregados (“Todo poder ao proletariado!”).  Já na semana passada surgiu mais um destrambelho: acriação de uma estatal de banda larga, que passa pela reativação da Telebrás – que agora será uma estatal ‘voltada para o lucro’, pois essa é a visão dos “comunistas modernos” (palavras de Lula).

De uma coisa não se pode reclamar do atual governo: ele é veloz.  Assim que você acaba de criticar uma medida, surgem pelo menos outras quatro, em estonteante profusão.  E é sobre a quarta medida que vamos falar nesse artigo: o Banco Central, além de depreciar diariamente o poder de compra da moeda, agora quer regulamentar a remuneração de executivos de instituições financeiras.  Segue o principal da notícia:

O Banco Central colocou em audiência pública proposta de resolução para regulamentar a remuneração de administradores e empregados de instituições financeiras. A proposta segue compromisso assumido por todos os países do G20 (grupo dos principais países ricos e emergentes) em reuniões de abril e setembro de 2009 e ficará em consulta pública por 90 dias.

Em nota, o BC afirma que os líderes do G20 veem a necessidade de “padrões internacionais robustos para a política de remuneração, visando desencorajar práticas que levem à assunção de riscos excessivos, como forma de fortalecer a estabilidade do sistema e alinhar práticas de remuneração com criação de valor a longo prazo.”

Ao contrário das parvoíces do decreto dos Direitos Humanos, que pelo menos encontrou alguma resistência, essa nova medida tende a receber grande aprovação do público, principalmente por causa daquele sentimento de inveja e rancor que sempre permeou a humanidade – afinal, por que não finalmente controlarmos esses banqueiros?  Até mesmo aquele “baluarte do mercado” Henrique Meirelles – provavelmente um tanto entusiasmado quanto ao seu futuro político, algo por essas latitudes sempre foi sinônimo de medidas mais populistas – foi cooptado pela proposta, demonstrando frente às câmeras uma discreta excitação em relação ao projeto.  Já Guido Mantega, por motivos óbvios, está quase atingindo o nirvana.

Embora essa seja uma medida recheada do que há de pior na teoria moral e econômica, seria uma grande desonestidade de nossa parte não antes relatarmos os fatos que a estimularam e reconhecermos sem qualquer hesitação que eles realmente não podem ser tolerados.  A questão é que a medida governamental proposta, embora diagnostique corretamente a doença (comportamento temerário das instituições financeiras), erra na causa (sempre a tal da ganância – como se essa fosse uma característica exclusiva de banqueiros, e de ninguém mais) e piora ainda mais ao receitar a cura (fixar salários).

O que aconteceu

Como já é sabido de todos, as raízes da atual crise econômica tiveram suas origens nos EUA.  Cada economista oferece seus diagnósticos de acordo com sua ideologia, mas é fato que os argumentos fornecidos pela Escola Austríaca continuam até hoje incontestados.  No máximo, eles são “refutados” com algumas risadinhas um tanto desesperadas de seus adversários – uma atitude que, no mundo intelectual de hoje, contaminado por apenas duas escolas de pensamento econômico, passa-se facilmente por argumentação robusta e gabaritada.

Nesse artigo, porém, vamos nos ater exclusivamente ao assunto em pauta: as “práticas que lev[aram] à assunção de riscos excessivos” de várias instituições financeiras, o que exige “padrões internacionais robustos para a política de remuneração [de seus executivos], visando desencorajar [essas] práticas”.

Afinal, o que tem a ver a remuneração dos executivos com o comportamento das instituições financeiras?

Para tal, vou recorrer aos ensinamentos de ninguém menos que Peter Schiff.  A explicação é ligeiramente longa, mas eu prometo me esforçar para não cansar o leitor, tornando a leitura mais palatável.

Fundos mútuos

Toda a lambança começou com os fundos mútuos.  Fundos mútuos são companhias de investimento que recebem dinheiro de vários investidores distintos (principalmente bancos) para investi-lo em ações, títulos, instrumentos de curto prazo e em vários outros papeis.

O problema principal das várias empresas de fundos mútuos é que elas dão mais importância para o preço das ações em suas carteiras do que para os dividendos que essas ações pagam.  Isso gerou um problema que é raramente discutido: a questão da performance relativa versus performance absoluta.

Um investidor de longo prazo deveria obviamente estar preocupado com a performance absoluta de seus investimentos.  Porém, os administradores dos fundos mútuos, sempre competindo com seus pares, estão preocupados apenas com a performance relativa.

Esse conflito de interesses, quase sempre negligenciado pelos investidores, é de importância vital, pois o que gera esse conflito é justamente a maneira como os administradores são pagos e a maneira como os fundos são por ele propagandeados.

Explicando melhor: uma empresa de fundo mútuo está preocupada exclusivamente com suas performances trimestrais, tanto em relação a um determinado referencial (benchmark) quanto em relação à performance de fundos rivais que tenham os mesmo objetivos.  Sendo assim, nenhum administrador quer apresentar um desempenho pior que o de seus rivais no curto prazo, e nenhum fundo quer que sua recente performance tenha uma comparação desfavorável à de seus concorrentes.

Tal raciocínio, obviamente, estimula um comportamento puramente especulativo, fazendo com que os administradores dos fundos, na ânsia de quererem demonstrar boas performances, saiam comprando ações que já estão sobrevalorizadas, sendo que os preços destas continuarão subindo à medida que mais ações forem sendo compradas.

Enquanto durar esse ciclo de compras, a farra estará garantida.  Os fundos que estão comprando ações sobrevalorizadas serão capazes de apresentar números muito impressionantes em relação aos concorrentes, sendo que essa boa performance irá resultar em um aumento do número de investidores interessados justamente em performance.  Essa entrada de novos investidores faz com que os fundos sejam novamente reinvestidos nas mesmas ações sobrevalorizadas que estimularam essa performance.  Ou seja, trata-se de um ciclo que (aparentemente) se alimenta a si próprio.

O “aparentemente” se aplica porque tal comportamento especulativo, no qual as ações estão constantemente subindo e atraindo mais investidores, obviamente só é possível num ambiente de expansão monetária acelerada, isto é, um ambiente em que o banco central esteja criando dinheiro a taxas cada vez maiores.

Assim que houver uma interrupção na expansão monetária, essa bolha especulativa irá chegar ao fim.  Os preços das ações despencarão (como ocorreu) e os investidores interessados no longo prazo serão os mais prejudicados.  E os administradores?  Ora, esses já ganharam seus bônus; e como todos os fundos despencaram juntos, ninguém fica preocupado, pois as performances relativas ficaram na mesma.  Todos perderam juntos.

Por outro lado, imagine um administrador cauteloso, interessado em dividendos e voltado para o longo prazo, com o bom senso de não investir em ações sobrevalorizadas, preferindo investir em empresas subvalorizadas.  Os preços das ações dessas empresas podem ficar lá embaixo durante anos, até que eles finalmente subam e passem a refletir o real valor das empresas.  Embora essa estratégia seja ótima para os investidores, elas podem ser desastrosas para os administradores, que provavelmente já terão sido demitidos muito antes de seus investimentos se mostrarem acertados.

Portanto, a conclusão é que realmente não é uma boa política os fundos mútuos pagarem a seus administradores bônus robustos de acordo com exultantes performances de curto prazo.  Afinal, quando os investidores de longo prazo precisarem de seu dinheiro, este já terá evaparado.  O que interessa ao investidor é uma performance absoluta de longo prazo, algo no qual a maioria dos administradores de fundos não está interessada.

Seria uma solução, portanto, o governo controlar os salários e os bônus?  Óbvio que não.  Parar com a expansão monetária – o que aniquilaria os comportamentos especulativos, pois seria impossível os preços das ações subirem tanto e conjuntamente – e deixar claro que não haverá pacotes de resgate quando as inevitáveis lambanças ocorrerem (risco moral) já seriam medidas amplamente suficientes para conter esse furor.  Mas isso não interessa nem ao governo e muito menos às instituições financeiras

Essa proposta de regulamentar a remuneração dos administradores em momento algum vai contra os interesses de quem ela finge atacar.  Muito pelo contrário: ela é um grande subsídio, pois ajuda a desviar o foco dos reais problemas ao mesmo tempo em que agrada às massas.  Não é desarrazoado dizer que os fundos preferem muito mais um governo que regule salários (algo que pode perfeitamente ser “contornado”) do que um governo que pare de expandir a base monetária, interrompa o sistema de reservas fracionárias e deixe claro que não irá socorrer empresas quebradas.  Isso, sim, iria totalmente contra os interesses de Wall Street e dos grandes barões do mercado financeiro espalhados pelo mundo, inclusive no Brasil.  (Ou você realmente acha que Henrique Meirelles vai determinar os ganhos de Armínio Fraga e Gustavo Franco?)

Hedge funds

Mas se os fundos mútuos ainda não lhe convenceram de que há um conflito de interesses entre investidores e administradores, então os hedge funds farão o serviço.

Em crescente expansão no Brasil e no mundo, os hedge funds começaram nos EUA como obscuros bastiões para os super-ricos.  Sempre foram em grande parte muito pouco regulados (já dá pra ouvir a gritaria) e desobrigados de qualquer transparência.

Atualmente viraram moda e, só nos EUA, já há por volta de 9.000 hedge funds que juntos detêm mais de US$1 trilhão em ativos.  Seus administradores, a última safra dos trilhardários, costumam cobrar de 1 a 2% de taxa de administração mais 20% ou mais dos lucros trimestrais.  Não, não houve erro de digitação: eles cobram 20% ou mais dos lucros trimestrais.  O que isso implica?

Dado que “hedge” significa proteger contra riscos, não deixa de ser irônico que os ganhos dos hedge funds advenham justamente do enorme nível de risco em que incorrem, justamente o tipo de coisa que um hedge supostamente deveria minimizar.

Explico: os hedge funds se vangloriam de ser uma indústria que gera altíssimos retornos.  O problema é que esses retornos não advêm de investimentos visionários ou de melhor qualidade que os dos concorrentes, mas de investimentos comuns, com retornos normais, mas que são amplificados em decorrência de uma alavancagem excessiva.  Ou seja: essa alavancagem faz com que investimentos com retornos comuns sejam transformados em retornos gigantescos sobre os quais os administradores coletam seus 20%.  Não há praticamente nenhum hedge sendo feito.  Como disse Peter Schiff, a maioria dos hedge funds deveria ser chamada de “risk funds” ou de “fundos ultra-alavancados”.

Como ocorre esse processo?

Ele curiosamente é muito simples.  Por exemplo, suponha que um hedge fund compre um título de uma empresa que esteja descapitalizada e que, por isso, ofereça altos rendimentos (os chamados junk bonds, títulos que oferecem altos rendimentos mas com baixa segurança).  Vamos supor que o papel esteja dando um retorno de 8%.

Portanto, em teoria, se o hedge fund investir $100, ele receberá $108 dali a algum tempo.  Porém, se o hedge fund se alavancar em um fator de dez, contraindo empréstimos com juros de 4% – isto é, pegando $1.000 emprestados e tendo de devolver $1.040 -, ele poderá ampliar seu retorno em cinco vezes.

Funciona assim: o hedge fund investe $1.000 no junk bond e recebe $1.080 de retorno.  Desses $1.080 ele paga $1.040 para o credor de quem pegou dinheiro emprestado como alavancagem.  Lucro líquido: $40.  Lucro que teria sem a alavancagem: $8.

Ou seja: ao assumir o risco adicional, um retorno de 8% virou um retorno de 40%, tudo em decorrência da mágica da alavancagem.  Assim, se um hedge fund especializado em junk bonds alavancar-se em dez vezes para um investimento de $1 bilhão, um retorno de 8% se transforma em um lucro de $400 milhões.  Como o administrador cobra 20% dos lucros, ele vai ganhar fácil $80 milhões.

Destarte, quem investe em hedge funds está incorrendo em riscos que nunca aceitaria em condições normais.  E pior: dando de lambuja 20% para os administradores, que por sua vez estão se arriscando, só que com o dinheiro dos outros.  Quando a coisa dá certo, os administradores coletam os 20% e compram suas Maseratis.  Quando dá errado, eles não perdem nada; eles simplesmente deixam de ganhar.  Os investidores é que são expropriados – embora, não custa lembrar, eles entraram nessa por livre e espontânea vontade; logo, devem assumir suas responsabilidades.

Disso podemos concluir que essa taxa de 20% cria um poderoso incentivo para que um hedge fund se alavanque além do prudente e invista em títulos de alto rendimento mas de precária segurança.  E como todos os hedge funds tendem a perseguir estratégias similares, eles acabam criando um impulso de curto prazo no mercado, direcionando-o para onde o dinheiro está indo.  Isso tende a aumentar os ganhos daqueles fundos já posicionados nessa estratégia, o que faz a alegria dos administradores, que assim podem coletar obscenas taxas de performance nesse processo.

E o que acontece quando todo mundo quiser sair dessa estratégia?  Carnificina, é claro.  Os lucros propiciados pelos retornos desses papeis irão subitamente evaporar quando toda a tendência se reverter.  Mas isso, como já explicado, é problema do investidor.  Os administradores já coletaram suas taxas de 20% durantes vários trimestres; eles não têm nada a perder quando o cenário se reverte.  Enquanto estiver havendo lucros, eles estão ganhando.  Sendo assim, eles têm todos os incentivos para seguir estimulando o mercado em uma dada direção.  Não há nenhum motivo para querer sair antes simplesmente porque não tem como eles perderem.

O que fazer nesse caso?  O governo tem de intervir e regular os ganhos desses administradores?

Isso obviamente vai criar pretextos para a expansão de um estado-babá totalitário, que, no extremo, vai nos proibir até de atravessar a rua por conta própria.  Os hedge funds são arranjos voluntários e só participa deles quem quer.  Quem optar positivamente tem a obrigação de se informar sobre as práticas dessas empresas – da mesma forma que um cidadão que faz uso dos serviços de garotas de programa deve se informar sobre os riscos que corre, sobre os prazeres que pode ter em retorno e, a partir disso, ponderar se deve ou não adentrar (sem trocadilhos, por favor) no esquema.

Ademais, os mesmos remédios citados para o caso dos fundos mútuos valem para os hedge funds, com um acréscimo: essa prática temerária dos hedge funds prolifera exatamente naqueles cenários de crédito farto e barato.  Afinal, para que as alavancagens possibilitem altos retornos, os juros devem ser baixos.  Portanto, não praticar juros abaixo dos de mercado já faria muito para amenizar essa prática.  Mas quem manipula os juros é exatamente o banco central.  E eles agora querem se eximir de suas responsabilidades e criar esparadrapos.  Ao invés de estancarem a hemorragia com um torniquete, eles estão mais preocupados em limpar o sangue que cai no chão.

Por fim, há também a questão dos incentivos.  Um setor cujos salários estão congelados pelo governo não será exatamente um ímã para as melhores mentes.  E vamos ser sinceros: uma vez que o atual arranjo monetário nos obriga a utilizar bancos, que por sua vez utilizam várias outras instituições financeiras, então é melhor que todos sejam geridos por pessoas competentes.  E pessoas competentes não exatamente se sentem atraídas por setores cujos salários estão congelados e desvinculados da qualidade do trabalho apresentado.

Leandro Roque
Leandro Roque
Leandro Roque é tradutor e estudioso de Economia Austríaca.
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