Thursday, November 21, 2024
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Como realmente funciona o sistema de saúde americano

American-flag-stethascope-640_s640x427Sempre que há um debate sobre sistemas de saúde e sobre como seria a medicina em um ambiente de genuíno livre mercado, rapidamente alguém menciona os EUA como sendo o exemplo mais óbvio deste arranjo.
O problema é que a comparação é obtusa.

É verdade que os EUA não possuem um sistema público de saúde de estilo europeu (seja ele o modelo Beveridge da Inglaterra ou da Espanha, no qual o estado se encarrega de prover serviços de saúde em troca do pagamento de impostos, seja ele o modelo Bismarck da Alemanha e da Áustria, no qual o estado obriga os cidadãos a comprarem um seguro privado obrigatório e altamente regulado), mas isso não implica que o sistema americano esteja livre da atuação estatal. Muito pelo contrário, como será visto.

Em primeiro lugar, vale ressaltar que os resultados observados no sistema de saúde americano são um tanto deploráveis: o gasto total com a saúde nos EUA chega a 17% do PIB — quase o dobro do que gasta a maioria dos países europeus —, mas isso não fez com que seus resultados fossem espetacularmente superiores. Sim, o sistema de saúde americano está na vanguarda da implantação de novas tecnologias, bem como no uso da medicina preventiva, mas esses elementos diferenciais não parecem justificar o gigantesco custo excessivo. Por esse prisma, o debate sobre a superioridade da saúde pública europeia em relação à americana pareceria definitivamente encerrado: uma qualidade análoga pela metade do preço.

Porém, as coisas não são tão simples quanto os números sugerem. O sistema de saúde americano — como explico em detalhes extensos em meu livro Una revolución liberal para España — está longe de ser o representante de um arranjo de livre concorrência.

Para começar, pelo lado da oferta, a concorrência entre médicos praticamente não existe. O mercado de médicos é artificialmente cartelizado. Para ser médico, você tem de ser aceito pelo conselho profissional da categoria, o qual tem interesse em manter baixo o número de médicos, pois isso eleva artificialmente seus salários. Adicionalmente, um médico tem de adquirir diversos tipos de licenças, sem as quais ninguém pode exercer a medicina. A criação de hospitais também sofre o mesmo tipo de regulamentação, o que dificulta o surgimento de hospitais baratos que poderiam concorrer com os já estabelecidos. Já as seguradoras de saúde são, em sua grande maioria, proibidas pelo governo de concorrer entre si além das fronteiras estaduais. Várias seguradoras não podem ofertar seus serviços em mais de um estado do país.

Mas a coisa piora.

Pelo lado da demanda, 90% dos gastos em saúde ocorrem por meio de canais que não são o paciente: mais especificamente, ocorrem pelas seguradoras e pelo estado. Para se ter uma ideia desse despautério, na Espanha, o gasto público com saúde totaliza 6,9% do PIB. Na União Europeia, 8,2%. Nos EUA, como dito, o gasto total é 17%. Dado que 90% desses 17% são gastos que não são desembolsados pelo paciente, temos que 15,3% dos gastos em saúde nos EUA são terceirizados. Ou seja, nem mesmo a Espanha apresenta um grau tão elevado de socialização da demanda como os EUA.

Mais especificamente, de cada 100 dólares gastos na saúde americana, 45 dólares são desembolsados pelas seguradoras, outros 45 dólares pelos programas estatais Medicare (programa de responsabilidade da Previdência Social americana que reembolsa hospitais e médicos por tratamentos fornecidos a indivíduos acima de 65 anos de idade) e Medicaid (programa financiado conjuntamente por estados e pelo governo federal, que reembolsa hospitais e médicos que fornecem tratamento a pessoas que não podem financiar suas próprias despesas médicas), e apenas 10 dólares são desembolsados pelo próprio paciente.

Dito de outro modo, de cada 100 dólares gastos na saúde, o paciente — que é quem está realmente recebendo os serviços — arca com um custo de apenas 10 dólares. Quem paga os 90 restantes? O resto de seus compatriotas — seja por meio do Fisco, seja por meio de suas apólices de seguros, que compreensivelmente ficam a anualmente mais caras.

Nos EUA, portanto, não há uma correspondência entre custos e benefícios. E dado que as seguradoras são obrigadas pelo governo a cobrir até mesmo consultas de rotina, os preços das apólices seguem em disparada. Se você fizer algo tão simples e corriqueiro quanto um exame de sangue — que é coberto pelos planos de saúde e pelos programas Medicare e Medicaid —, é comum o hospital cobrar um preço astronômico do governo ou da seguradora, a qual, por causa disso, irá aumentar os preços das apólices.

Nesse arranjo, o incentivo para aumentar os gastos é o mesmo que ocorreria se milhões de pessoas fossem a um mesmo restaurante, pedissem individualmente os pratos que quisessem e, no final, dividissem igualmente entre todos a fatura total.

E, com efeito, o estudo mais completo já realizado até o presente momento sobre os custos excessivos da saúde americana não deixa espaço para dúvidas: a explosão dos custos se deve essencialmente a um crescimento descontrolado da demanda (direcionada sobretudo à medicina preventiva), a qual é capaz de suportar preços crescentes devido ao fato de que ninguém — governo, seguradoras e pacientes, como explicado acima — tem o incentivo de reduzir seus gastos. Por mais que a oferta aumente, a demanda cresce a uma velocidade superior, o que multiplica os preços.

Vale ressaltar que, naquelas áreas do sistema de saúde americano em que não há esta socialização dos gastos — porque os programas estatais ou os seguros não cobrem —, não se observa nenhum crescimento anormal dos custos. Este é o caso, por exemplo, dos serviços de odontologia ou das cirurgias oculares a laser, cujos custos caem ano após ano.

Na Europa, onde a saúde pública é “gratuita” para o usuário (embora seja cara para os pagadores de impostos), não ocorrem consequências similares a essas dos EUA simplesmente porque os políticos e burocratas que comandam o setor racionam os serviços que os cidadãos podem receber (os famosos cortes de gastos para a saúde, sobre os quais muito se fala atualmente, sempre foram uma prática estrutural do sistema; apenas se tornaram mais visíveis agora por causa da crise). No Velho Continente, os donos da saúde dos cidadãos europeus não são eles próprios, mas sim os políticos e burocratas que organizam o sistema segundo seus gostos, necessidades e interesses. Daí a frequente ocorrência de fenômenos como listas de espera, adoção tardia de novas tecnologias, tratamentos e medicamentos não cobertos, aglomeração de pacientes etc.

Dito de outra forma: os incentivos perversos para a demanda que levam a uma hipertrofia dos gastos em saúde nos EUA também existem na Europa, só que, na Europa, os políticos controlam severamente a oferta e impedem que os gastos disparem. É como se, ao chegarmos a um restaurante, o dono do estabelecimento limitasse a quantidade e a qualidade daquilo que cada comensal pode pedir: por mais que pudéssemos e quiséssemos pedir mais e melhores pratos, não poderíamos.

Mas, afinal, que foi o motivo que levou a tamanha socialização da demanda por serviços de saúde nos EUA? A criação dos programas estatais Medicare e Medicaid, em 1966, contribuíram substancialmente para as distorções. Mas o principal incentivo foi criado em 1954: as empresas passaram a poder descontar no imposto de renda e na contribuição para a Previdência Social todos os gastos associados à aquisição de um plano de saúde para seus empregados. Ou seja, caso as empresas pagassem planos de saúde para seus empregados, elas ganhariam descontos tanto no IRPJ quanto na contribuição para a Previdência Social.

Isso gerou uma consequência não-prevista. Os incentivos para que todo o gasto em saúde fosse canalizado para os seguros adquiridos por empresas para seus empregados se tornaram enormes. Isso, por conseguinte, elevou substancialmente a demanda por planos de saúde, os quais foram obrigados pelo governo a cobrir uma enorme variedade de serviços, inclusive aqueles associados à medicina preventiva. Os custos das apólices obviamente dispararam.

Apenas imagine quanto custaria o seguro do seu carro caso o governo obrigasse as seguradoras a cobrir serviços como troca de óleo e reabastecimento. Nos EUA, é exatamente isso o que ocorre para os planos de saúde. E tudo começou porque as empresas, muito corretamente, queriam reduzir seus gastos com tributos diretos, um confisco estatal que nem sequer deveria existir. Um perfeito exemplo de como uma intervenção estatal (impostos sobre a renda) gerou uma grande distorção (redução dos lucros das empresas) que, por sua vez, levou à criação de uma medida aparentemente mitigadora (incentivos fiscais para planos de saúde). No final, todo sistema de saúde ficou desarranjado.

Essa socialização de 90% dos gastos em saúde nos EUA — toda ela induzida pelo intervencionismo estatal — é a principal responsável pela hipertrofia dos preços. Os EUA não são de maneira alguma um exemplo de livre mercado no sistema de saúde. Em um arranjo de livre mercado e livre concorrência, os gastos para consultas de rotina são financiados pela própria poupança do paciente, e somente aqueles eventos de natureza extraordinária e catastrófica são cobertos por planos de saúde.

O que o sistema americano ilustra perfeitamente são os efeitos potencialmente devastadores do estatismo, inclusive quando em doses aparentemente inócuas.

______________________________________________________

Leituras complementares:

Como Mises explicaria a realidade do SUS?

Como o SUS está destruindo a saúde dos brasileiros

Verdades inconvenientes sobre o sistema de saúde sueco

A saúde é um bem, e não um direito

O que a medicina soviética nos ensina

Quatro medidas para melhorar o sistema de saúde

Juan Ramón Rallo
Juan Ramón Rallo
Juan Ramón Rallo é diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri. É o autor do livro Los Errores de la Vieja Economía.
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