Como adquirimos conhecimento sobre o mundo externo — ou sobre a realidade, para ser mais exato? De onde vem nosso conhecimento sobre ela? A tentativa de se responder a essa questão nos leva à epistemologia, o ramo da filosofia que lida com a origem, o escopo e a validade do conhecimento humano.
No debate epistemológico, existem dois conceitos arquetípicos e, na realidade, diametralmente opostos: o empirismo e o racionalismo. O empirismo alega que a experiência sensorial (a observação) é a principal (ou até mesmo a única) fonte de conhecimento do homem, ao passo que o racionalismo alega que o conhecimento advém da razão humana.
Dificilmente alguém negaria que existem conhecimentos que adquirimos por meio de experiência sensorial. Por exemplo, o conhecimento de que a água congela a zero grau Celsius. É realmente necessário fazer observações para se adquirir tal conhecimento.
Entretanto, no campo da ciência, que formula conhecimentos que se aplicam universalmente, independentemente do tempo e do local, o racionalismo afirma que o conhecimento empírico adquirido por meio da experiência sensorial não possui a mesma validade que o conhecimento deduzido por meio da razão.
Peguemos, por exemplo, as duas seguintes observações aleatórias:
1. Nas últimas décadas, a oferta monetária aumentou 200% ao todo, ao passo que o PIB real, nesse mesmo período, aumentou 50%.
2. Nas últimas décadas, as receitas de impostos do governo subiram de 10 para 50% do PIB, ao passo que a renda per capita aumentou 40%.
Como podemos tirar algum sentido destes fatos? O PIB real cresceu por causa do aumento na oferta monetária, ou o PIB real cresceu apesar do aumento na oferta monetária? Da mesma forma, o PIB real cresceu por causa ouapesar do aumento na carga tributária?
Cada uma destas explicações aparenta ser igualmente plausível. Sendo assim, qual a correta? O primeiro passo para se responder a essa questão é entender que empregar uma teoria (a ideia de construir e agrupar, de maneira sistemática, todo o conhecimento que o indivíduo possui acerca dos aspectos da realidade) é algo indispensável para se observar corretamente os “fatos”.
II.
Com efeito, é impossível fazer uma observação dos fatos sem qualquer pressuposição, como Ludwig von Mises (1881-1973) apontou:
Não tem sentido registrar fatos autênticos sem fazer qualquer referência a uma teoria. O simples registro de dois eventos como pertencentes a uma mesma classe já implica a existência de uma teoria.[1]
A ideia de “deixar os fatos falarem por si sós” sem se recorrer a nenhuma teoria é algo absurdo.[2] Mises estava ciente de que “ação sem pensamento e prática sem teoria são inimagináveis. O raciocínio pode ser falso e a teoria, incorreta; mas o pensamento e a teoria estão presentes em toda ação.”[3]
Mas como sabemos e como podemos ter a certeza de que estamos empregando uma teoria correta? Felizmente, nas ciências sociais, uma resposta satisfatória pode ser dada a essa pergunta ao se recorrer a umateoria apriorística — proposições que fornecem uma compreensão verdadeira sobre a realidade, e cuja veracidade pode ser confirmada independente de experimentos.
Para explicar melhor, temos de nos voltar brevemente para o filósofo prussiano Immanuel Kant (1723-1804) e seu pioneiro e revolucionário A Crítica da Razão Pura (1781). Um dos principais resultados daquilo que Kant rotulou de investigação transcendental foi a sua descoberta dos chamados juízos sintéticos a priori.
A expressão a priori denota uma proposição (uma afirmação declarativa) que expressa um conhecimento que é adquirido antes — ou independente — da experiência. Em contraste, a expressão a posteriori denota um conhecimento que é adquirido por meio da — e baseando-se na — experiência. Os defensores do aposteriorismo são também chamados de empiristas.
Um juízo sintético se refere ao conhecimento que não está contido no objeto. Um exemplo seria “Todos os corpos são pesados”. Aqui, o predicado “pesados” transmite um conhecimento que vai além do mero conceito geral de corpo. Um juízo sintético, portanto, gera novo conhecimento sobre o objeto.
Juízos analíticos repetem aquilo que o próprio conceito do objeto já pressupõe. Um exemplo seria “Todos os corpos possuem dimensões”. Para saber que corpos possuem dimensões não é necessário fazer experimentos, uma vez que essa informação já está contida no conceito de corpos.
Seria de se esperar que juízos analíticos fossem apriorísticos e juízos sintéticos fossem aposteriorísticos. Entretanto, Kant afirma que existem juízos sintéticos a priori — um conhecimento que não se limita a repetir o significado do conceito que está sob análise e tampouco requer experimentos para se descobrir alguma novidade sobre o objeto.
Como um juízo sintético a priori pode ser identificado? De acordo com Kant, uma proposição deve satisfazer dois requisitos para poder ser classificada como um juízo sintético a priori. Primeiro, ela não pode resultar da experiência, mas sim da razão. Segundo, ela não pode ser negada sem que o autor da negação caia em contradição intelectual.
III.
Mises constatou que o axioma da ação humana é um juízo sintético a priori. O axioma da ação humana afirma que os humanos agem. Isso pode soar trivial à primeira vista. Entretanto, à segunda vista, torna-se óbvio que o axioma da ação humana possui implicações de longo alcance e de amplas consequências.[4]
O axioma da ação satisfaz os requerimentos de um juízo sintético a priori. Primeiro, não é possível observar que os humanos agem sem que, antes de se fazer tal observação, o indivíduo saiba o que é uma ação humana. Ou seja, para se observar que os humanos agem, primeiro é preciso saber o que é uma ação humana. E esse conhecimento não pode ser adquirido por meio de experimentos, pois ele advém da razão e não da experiência.
Segundo, não é possível negar que os humanos agem, pois tal ato resultaria em uma contradição intelectual. O simples ato de dizer “os humanos não podem agir” é em si uma forma de ação humana e, como tal, contradiz a veracidade dessa afirmação.
Mises também constatou que, utilizando-se a lógica formal, outras verdades universais podem ser deduzidas do irrefutavelmente verdadeiro axioma da ação humana. Essa abordagem foi por ele rotulada de praxeologia: a lógica da ação humana[5]. Mises reconstruiu a ciência econômica baseando-se na praxeologia.
A praxeologia é uma teoria apriorística. Ela gera proposições sobre a realidade que são irrefutavelmente verdadeiras — proposições que podem ser validadas sem que se tenha de recorrer à experiência. Peguemos, por exemplo, o conceito de causalidade — a ideia de que todo efeito possui uma causa. Tal conceito está logicamente subentendido no axioma da ação humana.
Como disse Mises,
O homem tem condições de agir porque tem a capacidade de descobrir relações causais que determinam mudanças e transformações no universo. Ação requer e pressupõe a existência da causalidade. Só pode agir o homem que percebe o mundo à luz da causalidade. Neste sentido é que podemos dizer que a causalidade é um requisito da ação. A categoria meios e fins pressupõe a categoria causa e efeito. Em um mundo sem causalidade e sem a regularidade dos fenômenos, não haveria campo para o raciocínio humano nem para a ação humana. Um mundo assim seria um caos no qual o homem estaria perdido e não encontraria orientação ou guia. O homem nem sequer é capaz de imaginar um universo caótico de tal ordem. O homem não pode agir onde não percebe nenhuma relação causal.[6]
Uma teoria apriorística oferece uma abordagem por meio da qual é possível examinar, criticar, e possivelmente repensar todas aquelas explicações teóricas padrão para eventos históricos.[7] Quando revistas, reexaminadas e repensadas do ponto de vista da teoria apriorística, o que se pode dizer daquelas duas observações feitas lá no início deste artigo?
Re 1: Do ponto de vista da teoria apriorística, podemos dizer com toda a certeza que um aumento na oferta monetária não pode aumentar o padrão de vida de uma sociedade. Um aumento na quantidade de dinheiro na economia não possibilita um benefício social, pois a única função do dinheiro é servir como meio de troca.
Ademais, a teoria apriorística demonstra que a moeda fiduciária de curso forçado gera efeitos economicamente perniciosos para a economia. A moeda fiduciária de curso forçado é normalmente criada por meio da expansão creditícia feita pelo sistema bancário de reservas fracionárias, o qual cria moeda eletrônica literalmente do nada, sem nenhum lastro — o que se chama de meios fiduciários. Isso necessariamente gera consumo (esgotamento) de capital e investimentos errôneos e insustentáveis.
A criação de meios fiduciários reduz a taxa de juros para um nível abaixo daquele que prevaleceria em um mercado livre de intervenções — a taxa de juros natural, que é aquela determinada pela preferência temporal dos indivíduos da economia. Essa distorção dos juros, os quais estarão artificialmente reduzidos, fará com que as empresas produzam bens e serviços que na verdade não correspondem à real demanda do mercado. Isso criará um período de expansão econômica que inevitavelmente terminará em recessão, que é o período em que a economia passa por reajustes estruturais para fazer com que a oferta volte a estar alinhada com a demanda.
O aumento na produção oriundo da expansão monetária é insustentável e inevitavelmente será corrigido mais cedo ou mais tarde. Os ganhos de produção daquelas atividades que foram estimuladas pela criação de dinheiro tendem a ser vivenciados antes de as perdas de produção se manifestarem, o que gera a sensação de que um aumento na oferta monetária pode aumentar a produção. A verdade, entretanto, é que a criação de dinheiro não aumenta o padrão de vida das pessoas; ao contrário: faz com que o padrão de vida fique abaixo de onde poderia estar caso não tivesse havido esse aumento na oferta monetária.
Re 2: Podemos dizer com toda a certeza que aumentar impostos irá reduzir, não aumentar, o padrão de vida das pessoas. Isso porque impostos mais altos retiram proporcionalmente mais recursos escassos dos produtores, e consequentemente redistribuem esses recursos escassos para os não produtores. Como bem explicou Hans-Hermann Hoppe, “riqueza e renda são forçosamente tomadas de seus proprietários e de seus produtores e transferidas para pessoas que não são proprietárias dessa riqueza e que não produziram essa renda. A acumulação futura de riqueza e a produção de renda serão, desta forma, desestimuladas, e o confisco e o consumo da riqueza existente serão estimulados.”
A poupança e os investimentos irão declinar, e o estoque de capital e a massa salarial crescerão mais lentamente (ou podem até mesmo diminuir). Como resultado, a sociedade ficará mais pobre em relação a uma situação em que não há tributação.
IV.
A teoria apriorística fornece um verdadeiro conhecimento a respeito do mundo externo, e a veracidade do conhecimento derivado da teoria apriorística pode ser validada independentemente de experimentos sensoriais.
Tão importante quanto é o fato de que o conhecimento apriorístico sobrepuja o conhecimento empírico: “Uma proposição teórica apriorística jamais pode ser refutada por experimentações.”[8]
A praxeologia, a ciência apriorística da ação humana — e, mais especificamente, seu até agora mais bem desenvolvido ramo, a ciência econômica —, fornece em sua área de atuação uma completa interpretação dos eventos passados e uma completa antecipação dos efeitos a serem esperados de determinadas ações futuras.[9]
Um teórico seguidor do apriorismo pode assim decidir antecipadamente (isto é, sem incorrer em experimentações sociais, ou ensaios e verificações) se uma determinada ação — medida política — irá gerar os efeitos desejados e prometidos.
Por exemplo, sabemos a priori que criar meios fiduciários não gera prosperidade econômica, que gastos do governo financiados por meio de impostos ou de endividamento não melhoram o bem-estar material da sociedade, e que essas medidas na realidade são economicamente nocivas.
O apriorismo é uma defesa intelectualmente poderosa contra as promessas feitas pelas falsas teorias e, principalmente, contra as danosas (até mesmo desastrosas) consequências econômicas que inevitavelmente surgiriam caso tais teorias fossem colocadas em prática. Estudantes das ciências sociais deveriam, portanto, ser contínua e crescentemente estimulados a dominar a teoria apriorística.
[1] Mises, L., Ação Humana, p. 738
[2] Ver, por exemplo, Cohen, M.R., Nagel, E. (2002 [1934]), An Introduction To Logic And Scientific Method, Simon Publications Inc., Safety Harbor, Capítulo XI, esp. p. 199.
[3] Mises, L., Ação Humana, p. 221
[4] Sobre isso, uma leitura obrigatória é Hoppe, H.H. (2007 [1995]), A Ciência Econômica e o Método Austríaco.
[5] Praxeologia: do grego praxis – ação, hábito, prática – e logia – doutrina, teoria, ciência. É a ciência ou teoria geral da ação humana. Mises definiu ação como “manifestação da vontade humana”: ação como sendo um “comportamento propositado”. A praxeologia a partir deste conceito apriorístico da categoria ação analisa as implicações plenas de todas as ações. A praxeologia busca conhecimento que seja válido sempre que as condições correspondam exatamente àquelas consideradas na hipótese teórica. Sua afirmação e sua proposição não decorrem da experiência: antecedem qualquer compreensão dos fatos históricos. (extraído de Mises Made Easier. Percy L. Greaves Jr.).
[6] Mises, L., Ação Humana, p. 47
[7] Ver, por exemplo, Hoppe, H.H. (2006), Democracia — o deus que falhou, em particular sua Introdução, pp. xv-xix.
[8] Mises, L. (2003), Epistemological Problems of Economics, 3rd ed., “The Task and Scope of the Science of Human Action,” Ludwig von Mises Institute, Auburn, US Alabama, p. 30.
[9] Mises, L. (1985), Theory and History: An Interpretation of Social and Economic Evolution, Ludwig von Mises Institute, Auburn, US Alabama, p. 309.