Thursday, November 21, 2024
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Como nos tornamos donos de nós mesmos

O principal malefício social da nossa época é a falta de respeito ao direito à auto-propriedade. É isso que está na base tanto de crimes pessoais como de crimes institucionais perpetrados pelo estado. Leis, regulamentações e ações estatais são condenáveis apenas porque o estado está alegando ter o direito de controlar como o corpo de uma pessoa deve ser usado.

Quando o estado recruta um homem para o serviço militar obrigatório ou o ameaça de prisão se ele violar suas leis anti-narcóticos, por exemplo, o estado está assumindo um controle parcial sobre o corpo dessa pessoa, infringindo seu direito à propriedade de si próprio.

Ademais, leis como leis tributárias e as multas pelo não cumprimento de decretos estatais arbitrários (por exemplo: regulamentações econômicas, leis anti-discriminação) também violam o direito à auto-propriedade porque assumem a posse de uma propriedade que pertence aos indivíduos.

Afinal, apesar de a propriedade de si mesmo ser mais fundamental do que direitos sobre recursos materiais — você antes precisa ser dono de si próprio para poder ser dono de outras coisas —, a auto-propriedade torna-se insignificante se o direito de possuir propriedade privada também não for respeitado. Foi por isso que Murray Rothbard insistiu que todos os “direitos humanos” são direitos de propriedade — direitos à propriedade de recursos escassos, seja o direito à propriedade do próprio corpo ou o direito à propriedade de objetos externos.

Porém, como mostra o exemplo acima, todas as teorias políticas defendem alguma forma de direitos de propriedade, já que elas especificam quais os proprietários de vários tipos de recursos. Políticas estatais que tributam, recrutam, aprisionam ou multam indivíduos que não obedecem a várias regulamentações na verdade estão atribuindo ao estado a propriedade parcial ao corpo ou às posses desses indivíduos. O estado alega ter o direito à propriedade parcial desses recursos.

Todos os sistemas políticos seguem alguma regra de adjudicação para determinar quais devem ser os proprietários de certos recursos. O que torna o libertarianismo uma filosofia à parte é a sua regra única de atribuição de propriedade: a regra que especifica que indivíduos, não o estado, são os donos de seu próprio corpo e de sua propriedade.

Primeiro Uso e Apropriação Original (Homesteading) de recursos sem dono

Assim, é crucial que a teoria libertária apresente fundamentos sólidos sobre direitos de propriedade e esclareça sua singular regra de atribuição de propriedade.

Fiando-se em alguma versão da noção lockeana de homesteading — um indivíduo se apropriando de algo sem dono, em seu estado natural, tornado-se assim o proprietário —, o libertarianismo corretamente se foca no conceito do primeiro uso de um recurso escasso e previamente sem dono como sendo o teste essencial para se determinar a propriedade deste.[1]

A impressão inicial poderia ser a de que o primeiro uso é a base fundamental do credo libertário sobre a atribuição de propriedade, isto é, que ele decide as questões sobre a propriedade de todos os recursos escassos, tanto corpos humanos como coisas materiais. O proprietário de um pedaço de terra será aquele que for o primeiro usuário dela (ou o seu herdeiro intitulado), assim como o primeiro usuário de um corpo é o seu dono. Isso significaria que a propriedade sobre si mesmo se baseia no princípio do primeiro uso.

Os pais como Primeiros Donos

Mas o que há de errado em se basear na questão do primeiro uso como a base para a auto-propriedade? É claro que, no que tange a maioria das reivindicações de posse sobre um corpo de uma pessoa — um assaltante ou o estado tentando recrutar alguém, por exemplo —, apenas essa pessoa é de fato o “primeiro usuário”, e, assim, ela tem uma melhor reivindicação sobre o seu corpo do que o intruso. Mas, e quanto aos pais de uma pessoa? Será que essa pessoa é de fato a primeira usuária do seu corpo? Estaria esse corpo simplesmente a esmo e sem dono, em seu estado natural, esperando que algum ocupante o apanhasse e se apropriasse dele?

Não, é claro que não. Essa pessoa estava sob os cuidados de — e foi produzida por — seus pais. Assim, se mantivermos que o “primeiro uso” sempre determina a resposta para a questão “quem é o dono deste recurso?”, para absolutamente qualquer recurso, seria de se supor então que os pais de fato são os donos de seus filhos. A mãe é dona da matéria física e dos pedaços de comida e nutrição que se agregam formando um zigoto, depois embrião, depois feto e, finalmente, um bebê.

Portanto, quando a criança se torna dona de si mesma? Ou, será que ela de fato se torna? O libertário parece estar frente a um dilema.

Possíveis soluções para o dilema

Vários possíveis argumentos podem ser apresentados para se evitar o desconfortável espectro de crianças em servidão. Primeiro, pode-se dizer que a principal questão política na sociedade envolve terceiros que querem dominar e controlar outros. Pais que escravizam filhos não parece ser o perigo mais premente. Para esse típico caso de conflito, o princípio do primeiro uso é suficiente para provar a auto-propriedade de um corpo vis-à-vis as pretensões de terceiros sobre esse corpo. Ainda assim, isso deixa em aberto a possibilidade de pais serem donos de seus filhos.

Em segundo lugar, pode-se argumentar que, mesmo que os pais de fato sejam donos de seus filhos, na maioria dos casos pais decentes iriam emancipar os filhos em uma idade apropriada. Isso provavelmente é verdade, mas a possibilidade de pais brutais venderem seus filhos para serem escravos ainda está perturbadoramente não resolvida.

Terceiro, talvez poder-se-ia tentar algum tipo de “teorema da regressão” para essa questão — até chegarmos a Adão. Mas isso provavelmente não seria frutífero.

Quarto, não é difícil prever um cenário no qual a maioria das linhas de descendência, em algum ponto, foi permanentemente “liberada” ou “emancipada” pelas ações benevolentes de um ancestral importante. O tatataravô emancipou seu filho sob a condição de que este liberasse seus descendentes, e assim por diante. Dessa forma, todas ou quase todas as linhagens hereditárias se tornaram livres por causa de um distante ato no passado feito por um ancestral benevolente. Mas, ainda assim, está em aberto a possibilidade de que algumas não o foram; e, de qualquer forma, esse raciocínio admite que, em certos períodos do tempo, a escravidão infantil exista e seja permissível.

Finalmente, e para mim a mais decisiva: o libertário poderia argumentar que os pais têm várias obrigações positivas para com os filhos, tais como a obrigação de alimentar, dar abrigo, educar, etc. A idéia aqui é a de que o libertarianismo não se opõe a “direitos positivos”[2] — desde que voluntariamente praticados. Uma maneira de fazer isso é através de um contrato; outra, é através da violação da propriedade alheia. Assim, se você estiver passando por um homem se afogando em um lago, você não tem a obrigação (legal) de tentar resgatá-lo; mas se você empurrar alguém em um lago, aí sim você tem a obrigação positiva de tentar resgatá-lo. Se não o fizer, responderá por homicídio. Do mesmo modo, se suas ações voluntárias derem vida a uma criança que tenha necessidades naturais de abrigo, comida, proteção e cuidados, essa situação será semelhante a jogar alguém num lago. Em ambos os casos, você cria uma situação em que um outro ser humano está em desesperadora necessidade de ajuda, sem a qual morrerá. Ao criar essa situação de necessidade, você passa a ser obrigado a saciar essas necessidades. E certamente esse conjunto de obrigações positivas incluiria a obrigação de emancipar a criança em um certo momento.

Esse último argumento é, para mim, o mais atraente, mas também é o que tem a menor probabilidade de ser aceito pela maioria dos libertários, que geralmente se opõem a obrigações positivas, mesmo que elas sejam o resultado das ações de uma pessoa. Rothbard, por exemplo, apresenta várias objeções a tal abordagem.[3]

O Elo Objetivo: O verdadeiro critério

Apesar disso tudo, todos esses esforços herculanos são desnecessários. O dilema surgirá apenas se for assumido que o “primeiro uso” determina a propriedade não apenas de recursos originalmente apropriados (homestead), mas também a propriedade sobre corpos.

Entretanto, a regra do “primeiro uso” é meramente o resultado da aplicação do princípio mais geral do elo objetivo para o caso de objetos que podem ser originalmente apropriados de um estado em que se encontravam sem dono. Lembre-se que o propósito dos direitos de propriedade é evitar conflitos sobre recursos escassos (e concorrentes). Para cumprir esse propósito, títulos de propriedade sobre recursos particulares são atribuídos a proprietários particulares. Entretanto, essa atribuição não pode ser aleatória, arbitrária ou tendenciosa, se é que se queira de fato torná-la uma regra que evite conflitos. O que isso significa é que esses títulos têm de ser atribuídos a um dos reivindicantes concorrentes baseando-se na “existência de um elo objetivo, e intersubjetivamente apurável, entre o pretendente a proprietário” e o recurso reivindicado.[4]

Assim, é o conceito de elo objetivo entre reivindicantes e o recurso reivindicado que determina a posse de uma propriedade. O primeiro uso é meramente o que constitui o elo objetivo no caso de recursos previamente sem dono. Nesse caso, o único elo objetivo para o objeto é aquele entre o primeiro usuário — o apropriador — e o objeto. Qualquer outro pretenso elo não é objetivo, e é baseado meramente em um decreto verbal, ou em algum tipo de formulação que viola a distinção entre a situação anterior e a posterior. Mas essa distinção entre o antes e o depois é crucial se quisermos que os direitos de propriedade de fato estabeleçam direitos e evitem conflitos. Ademais, reivindicações sobre propriedade não podem se basear em meros decretos verbais, pois isso não iria ajudar a reduzir conflitos, já que qualquer um poderia simplesmente decretar sua posse sobre o objeto.[5]

Então, para objetos originalmente apropriados — recursos previamente sem dono —, o elo objetivo é o primeiro uso. Tem de ser assim pela natureza da situação.

Mas para corpos, as coisas não são as mesmas. Como observado acima, uma pessoa não é de fato a “primeira usuária” de seu corpo da mesma maneira que uma pessoa é a primeira usuária de um objeto previamente sem dono que se torna sua posse. Não é como se o corpo estivesse lá, a esmo e sem uso, solitário, esperando que um ocupante se apropriasse dele. E tem mais: como observado acima, o ocupante não é exatamente o primeiro usuário de seu corpo, em relação a seus pais.

Adicionalmente, apropriar-se originalmente de um recurso sem dono pressupõe que uma pessoa já tenha um corpo, o qual ela usa para agir no mundo e para se apropriar originalmente de objetos sem dono. Mas esse não é o caso quando se trata de “apropriar-se originalmente” de um corpo. Uma pessoa só vai ter um corpo quando já tiver ganhado direitos sobre ele.[6]

Se o “primeiro uso” não é o teste supremo para o “elo objetivo” no caso da propriedade do corpo, então qual é? Resposta: trata-se da relação única entre uma pessoa e “seu” corpo — seu controle direto e imediato sobre o corpo, e o fato de que, pelo menos de uma maneira, um corpo representa uma dada pessoa e vice versa. É isso que faz o elo objetivo ser suficiente para dar àquela pessoa — e não a qualquer outro reivindicante — um melhor título de propriedade sobre seu corpo. Nem mesmo seus pais superariam esse pressuposto. (Uma exceção seria a vítima de um crime cometido pelo proprietário do corpo, que poderia por isso adquirir um elo “superior” ao, ou uma reivindicação sobre, o corpo do criminoso).

Ademais, qualquer estranho que reivindique a propriedade sobre o corpo de uma pessoa não pode negar esse elo objetivo e nem seu status especial, já que esse estranho necessariamente também pressupõe isso para ele próprio. Isso ocorre porque, ao tentar exercer domínio sobre essa outra pessoa, ao tentar afirmar posse sobre o corpo dela, esse estranho tem de pressupor que ele é dono do seu próprio corpo, o que demonstra que ele de fato reconhece uma certa importância nesse elo, ao mesmo tempo em que desconsidera a significância desse elo entre aquela pessoa e seu respectivo corpo. (Observe que se uma vítima busca exercer domínio sobre o corpo do seu agressor para propósitos de punição proporcional, sua alegação de propriedade sobre o corpo do agressor não é incompatível com uma alegação de auto-propriedade, já que os casos são diferentes. Não é inconsistente alegar que o elo especial entre uma pessoa inocente e seu corpo lhe dá a melhor reivindicação sobre esse corpo, e, ao mesmo tempo, também alegar que isso não é válido para um agressor porque este cometeu agressão. Essa distinção não é arbitrária e nem particularizável; ela está fundada na natureza mesma das coisas).[7]

A questão essencial da primazia do elo “direto” sobre um elo “indireto” (ceteris paribus — ver a questão acima sobre a punição de criminosos) foi sugerida a mim pela primeira vez por Hans-Hermann Hoppe. Como pode ser evidente para aqueles familiarizados com a ética da argumentação de Hoppe, a teoria hoppeana deduz a prioridade lógica do controle direto sobre o corpo de alguém versus o controle indireto. De fato, a argumentação feita acima (que qualquer estranho que reivindique a propriedade sobre o corpo de uma pessoa não pode negar o elo objetivo entre pessoa e corpo) é simplesmente uma aplicação da abordagem da ética da argumentação de Hoppe. Na realidade, Hoppe apresentou um argumento similar em uma publicação alemã de 1985:

“A resposta para a pergunta “O que torna o meu corpo ‘meu’?” jaz no fato óbvio de que essa não é meramente uma declaração; essa é realmente a questão em cheque. Por que nós dizemos “este é o meu corpo”? Existem dois requisitos para essa questão. Por um lado, tem de ser verdadeiro o fato de que o corpo chamado de “meu” deve realmente (de uma maneira intersubjetivamente apurável) expressar ou “materializar” minhas vontades. A prova disso, no que diz respeito ao meu corpo, é fácil de demonstrar: quando eu anuncio que agora irei levantar meu braço, virar minha cabeça, relaxar na minha cadeira (ou qualquer outra coisa) e essas notificações se tornam verídicas (são executadas), então isso mostra que o corpo que faz essas ações foi de fato apropriado pela minha vontade. Se, ao contrário, meus anúncios não mostrarem nenhuma relação sistemática com o comportamento efetivo do meu corpo, então a sentença “esse corpo é meu” teria de ser considerada uma declaração vazia e objetivamente infundada; e, igualmente, essa sentença seria rejeitada como incorreta se, após o meu anúncio, não fosse o meu braço que se levantasse, mas, sim, o braço de Müller, ou o de Méier, ou o de Schulze (situação essa na qual uma pessoa estaria mais inclinada a considerar que o corpo de Müller, ou de Méier ou de Schulze é “meu”). Por outro lado, independentemente de ter demonstrado que minha vontade foi “materializada” no corpo chamado de “meu”, há de ser demonstrado que a minha apropriação tem prioridade em relação à possível apropriação do mesmo corpo por uma outra pessoa.

No que diz respeito a corpos, isso também é fácil de comprovar. Demonstramos isso mostrando que o corpo está sob meu controle direto, ao passo que qualquer outra pessoa somente pode se materializar (expressar) em meu corpo indiretamente, isto é, por meio de seus próprios corpos; e um controle direto deve obviamente ter prioridade lógica e temporal (precedência) em relação a qualquer controle indireto. Essa última afirmação simplesmente se deriva do fato de que qualquer controle indireto de um bem por uma pessoa pressupõe o controle direto dessa pessoa sobre seu próprio corpo; assim, para que um bem escasso se torne corretamente apropriado, temos de pressupor que a apropriação e o controle direto do corpo dessa pessoa (o apropriador) foi feita de maneira justificável. Somente assim a apropriação desse bem será defensável. Sendo assim, segue-se que: se a justiça de uma apropriação por meio de controle direto deve ser uma pressuposiçãopara quaisquer apropriações indiretas futuras, e se somente eu tenho controle direto sobre meu corpo, então ninguém além de mim pode jamais ser justificadamente dono do meu corpo (ou, colocado de maneira diferente, então a propriedade do meu corpo não pode ser transferida para outra pessoa), e qualquer tentativa de controle indireto sobre meu corpo por parte de outra pessoa deve, a menos que eu tenha explicitamente concordado, ser considerada injusta e injustificável.”[8]

Então, quem é o dono do corpo de uma criança? Inicialmente, os pais o são, como um tipo de tutor temporário. Os pais, como os produtores da criança, têm um elo objetivo ao corpo da criança, um elo que anula qualquer reivindicação por parte de estranhos (a menos que os pais rompam esse elo ao abusarem de sua posição). Ou seja: os pais têm mais direitos sobre a criança do que quaisquer estranhos, por causa de seu elo natural com a criança. Entretanto, quando a criança se “apropriar” de seu corpo, estabelecendo o necessário elo objetivo suficiente para estabelecer a auto-propriedade, a criança se torna um adulto, por assim dizer, e agora passa a ter uma melhor reivindicação sobre seu corpo em relação a seus pais.

Hoppe reconheceu essa conclusão em seu tratado de 1989, no qual ele escreveu:

É valioso mencionar que o direito de propriedade proveniente da produção encontra sua limitação natural somente quando, como no caso das crianças, a coisa produzida é ela mesma um outro agente-produtor. De acordo com a teoria natural da propriedade, uma criança, uma vez nascida, é tão dona de seu próprio corpo quanto qualquer outra pessoa. Então, não apenas a criança tem o direito de não ser fisicamente agredida, mas como dona de seu próprio corpo a criança tem o direito, em particular, de abandonar seus pais uma vez que esteja capaz de fugir deles e dizer “não” às suas possíveis tentativas de recapturá-la. Os pais apenas têm direitos especiais com relação à sua criança — proveniente de seu status único de produtores da criança — enquanto eles (e ninguém mais) puderem reivindicar o direito de serem os tutores da criança. E isso só acontece enquanto ela for fisicamente incapaz de fugir e dizer “não”.[9]

Aqui, Hoppe adota a abordagem rothbardiana, que usa a capacidade da criança de fugir e dizer “não” como uma espécie de regra prática para indicar quando uma criança já se apropriou completamente de seu corpo.[10] Mas uma concepção mais geral de apropriação corpórea pode ser desenvolvida ao se considerar o seguinte: Primeiro, como Hoppe enfatiza, apropriar-se significa trazer sob o controle.[11] Hoppe também argumenta que direitos são dados a agentes racionais — aqueles que são “capazes de se comunicar, discutir, argumentar e em particular, [que são] capazes de participar em uma argumentação sobre problemas normativos”.[12] Isso sugere que uma pessoa atinge a maturidade, ou se “apropria” de seu corpo e ganha direitos irrestritos de propriedade sobre ele, quando ela atinge o ponto em que se torna um agente racional nesse sentido. (O ato de se ganhar em plenitude o direito de auto-propriedade pode ser considerado como um tipo de apropriação original do corpo de uma pessoa — atingindo a maturidade, por assim dizer — desde que se tenha em mente que esta é um tipo especial de apropriação: não se trata de uma apropriação feita pelo dono de um corpo sobre um recurso sem dono (não-agente), mas o estabelecimento de um elo objetivo constituído por um controle direto e imediato sobre o corpo por um agente racional).

Obviamente, há outras questões que podem ser exploradas aqui: quando e exatamente como uma criança se apropria de si própria, ou atinge a maioridade; e quais as exceções ao caso óbvio, como no caso em que uma pessoa comete um crime que de algum modo rompe seu elo objetivo ou o transfere para sua vítima (criando um elo “superior” em a favor da vítima), de modo que a vítima passa a ter o direito de retaliar. Mas já deve estar claro que o que distingue o libertarianismo de todas as teorias políticas concorrentes é a sua adesão escrupulosa — instruída por uma sólida teoria econômica, isto é, a economia austríaca — à idéia de que direitos de propriedade sobre recursos escassos devem ser dados à pessoa com o melhor elo objetivo ao recurso em questão; e que, no caso de corpos, o elo é a conexão natural — bem como a relação — entre o ocupante e o corpo, ao passo que para todos os outros recursos, o elo objetivo é o primeiro uso.

 

___________________________

Notas

[1] Para mais explicações sobre a importância e a razão de o primeiro uso ser o critério de posse de uma propriedade, veja meus artigos A Theory of Contracts: Binding Promises, Title Transfer, and Inalienability e Defending Argumentation Ethics, esp. a seção “Objective Links: First Use, Verbal Claims, and the Prior-Later Distinction,” e os links nesse artigo para os vários escritos de Hans-Hermann Hoppe sobre o assunto; ver também as postagens de blog The Essence of Libertarianism? e Thoughts on Intellectual Property, Scarcity, Labor-ownership, Metaphors, and Lockean Homesteading.

[2] Um direito positivo impõe a uma pessoa a obrigação de fazer alguma coisa por outra pessoa; um direito negativo obriga uma pessoa a meramente se abster de interferir na vida de outra pessoa. Posto de outra forma: um direito negativo é o direito a não ser submetido a uma ação de outro ser humano, ou de um grupo de pessoas — como o estado —, geralmente na forma de abuso ou coerção. Um direito positivo é o direito de ser servido beneficamente através da ação não voluntária de uma outra pessoa ou do estado. [N. do T.]

[3] Ver Murray N. Rothbard, A Ética da Liberdade, capítulo 14, “As crianças e seus direitos.”

[4] Hans-Hermann Hoppe, Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo, p. 12.

[5] Hoppe aperfeiçoa esses temas nos capítulos 1, 2, e 7 de Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo.

[6] Para maiores discussões sobre a diferença entre corpos e coisas originalmente apropriadas, para o propósito de direitos, ver Kinsella, “A Theory of Contracts: Binding Promises, Title Transfer, and Inalienability,” Journal of Libertarian Studies, vol. 17, nº. 2, pp. 11-37 (e.g., a seção “Property in the Body” na pág. 29).

[7] Para mais sobre isso, ver meu ensaio A Libertarian Theory of Punishment and Rights, pp. 617-25; e Hans-Hermann Hoppe, Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo, pp. 131-38.

[8] Tradução informal de Hans-Hermann Hoppe, Eigentum, Anarchie und Staat (Manuscriptum Verlag, 2005, pp. 98-100; originalmente publicado em 1985).

[9] Hoppe, Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo, nota 9 do capítulo 2, pág. 130; ênfase acrescentada.

[10] Rothbard, A Ética da Liberdade, capítulo 14, “As crianças e seus direitos.”

[11] Hans-Hermann Hoppe, “Four Critical Replies,” p. 242.

[12] Hoppe, Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo, nota 2 na pág 129.

Stephan Kinsella
Stephan Kinsella
Stephan Kinsella advogado especialista na área de patentes, é autor/editor de vários livros e artigos sobre leis de propriedade intelectual, direito internacional e outros tópicos jurídicos. Visite seu website.
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1 COMENTÁRIO

  1. Os pais nunca são donos dos filhos.
    Isto porque homestad não se aplica a pessoas, seres humanos.
    Eu poderia deixar alguém ficar em minha casa (um parente, por exemplo), alimentar, proteger e prover absolutamente todas as necessidades físicas, fisiológicas e sociais que esta pessoa precise que, ainda assim, não serei dono dessa pessoa.
    Se seguir essa mesma lógica, a escravidão portanto é valida, já que, ao comprar um escravo, eu apenas fiz uma troca mútua entre mim e outro dono da escravos, nada de errado.
    Entretanto, não é bem assim. Seres humanos não podem ser donos de seres humanos pois isto é uma contradição per si; ao momento em que se é dono de alguém, i.e, utilizar outra pessoa como meio para atingir fins, automaticamente isto é uma proposição contraditória. Ao passo de que, no momento em que se priva a liberdade de alguém, o agressor tem de estar usando sua própria propriedade e, logo, admitindo ser dona de, no mínimo, si mesmo; no momento em que isto é preposicionado em simultaneidade á agressão de propriedade, se dá uma contradição.
    Sendo assim, a criança não se torna dona de si mesma, isto pois ela sempre foi, desde o momento da fecundação

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