Thursday, November 21, 2024
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Como funcionaria um sistema bancário genuinamente livre

N. do T.: George Selgin – ao lado de Lawrence White, Roger Garrison e do falecido Larry Sechrest, além do próprio Hayek, de certa forma – pertencem à ala austríaca que não tem nada contra o sistema bancário de reservas fracionárias, desde que implantado em um ambiente genuinamente concorrencial – isto é, sem um banco central e sem qualquer tipo de protecionismo estatal.

George Selgin concedeu a entrevista a seguir à Region Focus, uma publicação do Federal Reserve de Richmond, Virgínia.

Para a leitura desse texto recomenda-se a leitura prévia deste:

O sistema bancário de reservas fracionárias

 

 

Descreva como seria o sistema bancário livre (também chamado de livre atividade bancária ou free banking).  Como ele se difere do tipo de sistema que temos atualmente?

Eu gosto do termo ‘sistema bancário laissez-faire’ – um sistema bancário sem quaisquer regulações ou restrições do governo.  Assim como o livre comércio, trata-se de um conceito ideal.  Não se refere a qualquer sistema bancário específico ou atual – não obstante o sistema ocorrido na Escócia do início do século XIX tenha chegado muito perto.

Na minha versão ideal de free banking não haveria qualquer requisito especial para a emissão de cédulas.  Bancos privados estariam livres para emitir suas próprias cédulas da mesma maneira que atualmente criam contas-correntes.  Eles também seriam livres para abrir filiais e investir em todos os tipos de papeis.  Finalmente, não haveria qualquer tipo de garantia governamental implícita ou explícita, como seguro para depósitos.

Nesse cenário de livre concorrência, aquele banco que tentasse lucrar emitindo mais moeda que seus competidores estaria rapidamente insolvente, pois seus clientes mudariam rapidamente para uma moeda concorrente ao sentirem a inflação de preços em sua atual moeda, e também porque esses bancos passariam dificuldades no mercado interbancário, como falarei mais adiante.

Seria necessário utilizar alguma commodity como padrão monetário neste cenário de free banking?  Ou, colocando de outra maneira, um papel-moeda fiduciário não seria incompatível com o free banking?

Creio ser necessária uma distinção entre, de um lado, o regime bancário e, de outro lado, o padrão da base monetária.  Da maneira como vejo o free banking, o sistema não depende necessariamente de algum padrão em particular.  É verdade que, como a história já nos ensinou, se tivéssemos um free banking desde o início, não teríamos bancos centrais e quase certamente teríamos um padrão monetário baseado em alguma commodity, provavelmente o ouro.  Mas é perfeitamente possível imaginar o free banking sob o atual arranjo de papel-moeda fiduciário.  O que deixaria esse sistema livre é que o banco central não teria um monopólio sobre a emissão de papel-moeda da forma como os bancos centrais atuais têm.

Uma proposta moderna e absolutamente viável de transição para um sistema bancário de livre concorrência seria congelar a base monetária em seu nível atual, permitir que os bancos passem a emitir qualquer tipo de obrigações financeiras – inclusive papel-moeda – e abolir os seguros sobre depósitos.  O banco central ainda manteria a base monetária, porém, em princípio, seria apenas para manter um estoque fixo de reservas compulsórias com as quais os bancos poderiam se lastrear.  Nesse caso, teríamos um free banking cujo padrão monetário seria um papel-moeda fiduciário.

O papel-moeda fiduciário que temos atualmente é puramente o produto de bancos centrais.  Creio que já está bem claro que, se nunca tivéssemos tido bancos centrais, não teríamos papel-moeda fiduciário.  Ao contrário, ainda teríamos uma moeda commodity.  Não creio que teria havido quaisquer tipos de forças evolucionárias capazes de retirar dos sistemas monetários padrões-commodities já estabelecidos, principalmente o ouro e a prata.

O que realmente creio que iria acontecer – que era o que já estava tendendo a acontecer enquanto ainda estávamos naqueles padrões – é que a necessidade real de se utilizar ouro e prata como moeda cairia, graças a inovações financeiras, a níveis extremamente baixos.

No sistema de free banking escocês, por exemplo, a proporção de reserva em moedas de ouro que os bancos mantinham como lastro para todas as suas obrigações pendentes era de meros 1 ou 2%.  E isso nos anos 1820.  Essas obrigações pendentes eram, em sua maioria, apenas cédulas bancárias, uma vez que depósitos não eram tão importantes à época.  Em todo caso, os bancos escoceses não precisavam de muito ouro, e o sistema estava sempre encontrando novas maneiras de economizar o uso de ouro.  Mas, em última instância, o padrão ainda era o ouro, e creio que assim teria permanecido caso não tivesse havido nenhuma interferência governamental.

Você considera que o sistema bancário de reservas fracionárias é inerentemente problemático?  O sistema defree banking requereria alguma commodity como padrão monetário, de forma a impedir que os bancos privados emitissem muita moeda?

As vantagens do free banking são diferentes das vantagens trazidas pelo padrão-ouro ou por qualquer outra commodity.  Isso não significa que eu ache que o padrão-ouro seja ruim.  Em termos históricos, é uma vergonha que o padrão-ouro tenha sido desmantelado.  Esse desmantelamento começou a sério durante a Primeira Guerra Mundial, e o padrão-ouro que foi restaurado depois disso for um padrão temporário, precário, emergencial e, no final, extremamente instável .

Mas é possível ter um sistema bancário melhor sob um free banking, seja com um padrão-ouro ou não.  O papel-moeda fiduciário também funcionaria melhor em um sistema bancário livre do que no atual sistema.

Quanto ao sistema bancário de reservas fracionárias, acho que é uma instituição maravilhosa, e é insensato dizer que temos de nos livrar dela para termos um regime monetário estável.  Aqueles economistas pretensamente austríacos – em sua maioria seguidores de Murray Rothbard -, que insistem que esse sistema é de natureza fraudulenta ou inerentemente instável, estão, francamente, utilizando argumentos fracos.  Não creio que as evidências respaldem sua visão.  Ademais, eles ignoram provas claríssimas dos benefícios que o sistema bancário de reservas fracionárias já trouxe ao desenvolvimento econômico, como, por exemplo, ao estimular o investimento.

A principal questão a se ter em mente é que, em um sistema genuinamente concorrencial, nenhum banco pode ter o monopólio sobre as emissões monetárias.  Assim, nenhum banco está na posição de poder imprimir suas próprias reservas ou de poder imprimir qualquer coisa sabendo que os outros bancos serão obrigados a aceitar como reservas.  Sob a liberdade, os bancos concorreriam entre si sob iguais condições.  Todos estariam livres para emitir suas próprias cédulas (que basicamente nada mais são do que notas promissórias, títulos de dívida, promessa de pagamento, etc.).  Cada um desses bancos teria de redimir essas cédulas diariamente: a concorrência entre diferentes emissores significaria que suas cédulas seriam tratadas da mesma forma que os cheques são tratados pelos bancos atualmente.  Elas seriam acumuladas por um dia e então seriam enviadas ao sistema de compensação, onde cada banco trocaria o dinheiro do concorrente pelo seu próprio.

Assim, quando o banco A enviasse as cédulas que recebeu do banco B para o sistema de compensação, o banco B teria de trocá-las por cédulas do banco A.  Caso o banco B não tenha cédulas suficientes do banco A, terá de pegar emprestado no mercado interbancário.  É essa concorrência entre os emissores que vai garantir que nenhum deles tenha o poder de levar todo o sistema a uma expansão excessiva e generalizada.

Isso é bem contrário à situação atual, em que há um banco que tem o monopólio da emissão monetária.  Mesmo sob um padrão-ouro, quando as cédulas dos bancos são elas próprias redimíveis em ouro, um banco que tenha o monopólio da emissão de moeda tem a certeza de que os outros bancos irão tratar suas cédulas e seus depósitos creditados nas contas desses outros bancos como ativos de reserva – ou seja, esses outros bancos irão tratar as cédulas e os depósitos como se fossem ouro.  Como resultado dessa tendência – que existe só porque os bancos recipientes são proibidos do direito de emitir seu próprio papel-moeda – os bancos menos privilegiados se tornam dependentes do emissor monopolista e, por conseguinte, são obrigados a tratar o dinheiro deste como dinheiro de reserva.

Assim, esse banco que tem o monopólio da emissão tem o poder de gerar mais reservas para todo o sistema; e, ao mesmo tempo, ele está livre da disciplina do mecanismo do sistema de compensação.  É daí que advém o poder dos bancos centrais.  É isso que permite aos bancos centrais promoverem uma expansão generalizada do crédito e da inflação.

O que acabei de descrever é exatamente o tipo de coisa que desencadeou muitas das crises financeiras do século XIX.  A ironia é que as pessoas hoje veem aquelas crises periódicas, principalmente na Inglaterra, como prova de que era necessário um banco central e um emprestador de última instância.  Walter Bagehot (ensaísta britânico do século XIX), por outro lado, reconheceu que os ciclos econômicos eram um produto do monopólio da emissão de moeda.

Hoje, o pobre Bagehot deve estar se revirando em sua sepultura, pois os apologistas do banco central gostam de citá-lo como alguém que defendia a ideia de que cada país deveria ter seu próprio banco central.  Isso é uma calúnia.  Bagehot na realidade escreveu bem explicitamente que ele acreditava que teria sido muito melhor que nunca tivesse existido um Bank of England (o banco central da Inglaterra) e que a Inglaterra tivesse um sistema bancário competitivo como o da Escócia.  Nesse caso, não haveria a necessidade para um emprestador de última instância.  Ao recomendar que o Bank of England servisse como tal, Bagehot não estava dizendo que um sistema bancário desregulamentado era inerentemente problemático; ele estava apenas tentando fazer com que um essencialmente nefasto Bank of England se comportasse melhor.

Defensores da existência do banco central alegam que este é superior a um arranjo de free banking porque o banco central pode servir como um emprestador de última instância em um momento de crise.  Em um ambiente de free banking haveria algumas características que tornariam desnecessário um emprestador de última instância?

A visão padrão é que os sistemas bancários são inerentemente frágeis e estarão sujeitos a corridas bancárias frequentes, as quais, sob um sistema bancário de reservas fracionárias, teriam consequências extremamente sérias.  Mas não há qualquer boa evidência que apóie essa visão.

É necessário dizer duas coisas.  Primeiro, corridas bancárias verdadeiramente irracionais e aleatórias, geradas por um pânico infundado, são a exceção, e não a regra.  Na maioria dos casos, as corridas acabam ocorrendo em decorrência de informações relativamente acuradas sobre quais bancos estão insolventes e quais não estão.  Em outras palavras, o “contágio” bancário tende a ser muito limitado.

As pessoas costumam se referir ao pânico ocorrido nos EUA em fevereiro de 1933 como a exceção.  Entretanto, aquela enorme corrida foi gerada por duas coisas.  A primeira foi a expansão de feriados bancários, que eram tolas e desnecessárias alternativas às suspensões parciais.  A outra foi uma corrida ao dólar causada pelo temor de que Roosevelt iria desvalorizá-lo assim que tomasse posse.  Como Roosevelt em momento algum negou categoricamente qualquer intenção de desvalorização monetária, isso aditivou as corridas bancárias.  Assim, uma corrida para converter dólares em ouro fez com que o Federal Reserve Bank de Nova York, que sentiu o impacto daquela corrida, pressionasse o estado de Nova York para decretar um feriado bancário, o que acabou precipitando o feriado bancário nacional.  É claro: se há um temor de desvalorização da moeda em um padrão-ouro, as pessoas vão correr para os bancos, sacar seu papel-moeda e convertê-lo em ouro.  Mas isso não implica desconfiança no sistema bancário.

Ademais, a tendência de os sistemas bancários sofrerem colapsos, especialmente um grande conjunto de quebras, depende do ambiente regulatório.  Fosse, desde sempre, permitida a prática nacional de filiais bancárias nos EUA, apenas isso já teria feito com que muitos problemas e quebras bancárias que ocorreram fossem evitados.  Assim, a questão que tem de ser perguntada não é se os sistemas bancários fortemente regulamentados e estruturalmente fracos do passado poderiam ter se beneficiado com um emprestador de última instância.  Talvez poderiam, sim.  A questão principal é se a solução de acabar com as regulamentações que tornaram esses sistemas artificialmente frágeis antes de tudo não teria sido melhor.  Não creio que um sistema bancário laissez-faire, ou as aproximações mais próximas que temos estudado, tenha demonstrado o tipo de fragilidade que sugira qualquer necessidade de haver um emprestador de última instância.  Na minha opinião, um emprestador de última instância é uma solução secundária para os problemas causados pelas regulamentações equivocadas dos sistemas bancários.

A liberdade de emitir notas é importante também.  Quando os bancos não podem emitir suas próprias moedas, então, obviamente, eles acabam precisando de um emprestador de última instância para supri-los com moeda.  Se disséssemos a empresas que fabricam sapatos que elas, de agora em diante, só poderiam fabricar sapatos para o pé esquerdo, pasmem!, haveria a necessidade de uma fonte “emergencial” de sapatos para o pé direito, a qual poderia ser criada estabelecendo-se uma nova agência governamental com esse propósito.  No fim, as pessoas diriam, “Louvado seja o governo por ter criado a Agência Governamental de Sapatos.  Sem ela, como alguém iria andar?”

Você já disse que o sistema bancário escocês do início do século XIX foi o melhor exemplo histórico de um sistema free banking funcional.  Como o sistema escocês surgiu?

O sistema escocês foi ímpar – e tudo por causa da política.  Após o Tratado de União de 1707 (tratado que aboliu a independência da Escócia e da Inglaterra em favor do Reino Unido), as autoridades inglesas não queriam que a Escócia acabasse tendo uma instituição com o mesmo poder e prestígio do Bank of England.  Eles mais ou menos insistiram que a Escócia tivesse uma livre entrada no negócio de emissão monetária.  Assim, o Bank of Scotland, criado em 1695 pelo parlamento escocês, ganhou primeiro a companhia do Royal Bank of Scotland e depois de outros bancos que também podiam emitir sua moeda, de modo que a Escócia acabou tendo dezenas de bancos emissores – alguns grandes, alguns pequenos -, todos concorrendo entre si.  Dessa forma, os ingleses, bem involuntariamente, deram à Escócia o sistema bancário mais estável e mais invejado do mundo – e um que era muito superior ao sistema britânico.  E mais: durante esse período, a Escócia manteve-se relativamente livre de crises, ao passo que a Inglaterra foi fustigada por crise atrás de crise.

Aliás, a mesma comparação pode ser feita entre o sistema bancário americano e o sistema bancário canadense durante a última metade do século XIX.  Nenhum dos dois eram sistemas bancários livres, mas o sistema canadense era mais livre em vários aspectos cruciais, como permitir que os bancos emitissem cédulas sem requisitos especiais e que eles abrissem filiais.  Essa maior liberdade fez do sistema bancário canadense a inveja dos comentaristas americanos da época.

Fale mais sobre isso.  O período anterior à Guerra Civil americana é frequentemente chamado de “a era do free banking“.  Seria esse um termo impróprio?

Os bancos eram livres nesse período em apenas um sentido.  Originalmente, você poderia abrir um banco apenas após receber um alvará especial aprovado pela legislatura estadual.  Ou seja, a entrada era restrita.  Em alguns casos, era severamente restrita.  Havia alguns estados e territórios, principalmente no Oeste, que baniram por completo qualquer atividade bancária, e havia outros que autorizavam as atividades de apenas um único e privilegiado banco.

Já no final da década de 1830, em reação à corrupção do sistema anterior, os estados – começando por Michigan e Nova York – criaram as supostas leis pró-free banking.  Essas leis permitiam que os bancos se estabelecessem através de algo tipo um ato geral de incorporação.  Assim, sob essas leis, o sistema bancário foi livre no sentido de que havia uma maior liberdade de entrada.

Mas os bancos não eram livres no sentido de estarem livres de regulações especiais.  Em cada caso, suas cédulas tinham de estar lastreadas por um título muito bem especificado, e essa exigência frequentemente trazia más consequências.  Em muitos estados, os bancos foram forçados a comprar ativos que acabavam se revelando podres, e essa foi uma das grandes causas do fracasso desse sistema supostamente livre.  Outra coisa: nenhum dos bancos podia abrir filiais.  Como ficou evidente para todos atualmente, a falta de filiais bancárias se revelou uma fonte muito importante da debilidade e fragilidade do sistema bancário americano.

Nesse cenário de free banking, haveria alguma função para regras legais, tipo responsabilidade ilimitada para os proprietários dos bancos?

Responsabilidade ilimitada faz com que os bancos sujeitos a ela tenham um maior e mais efetivo “colchão de capital”, com maiores garantias para os portadores de sua moeda.  Nesse caso, esses portadores estariam sujeitos a perdas somente após os proprietários dos bancos terem sido destituídos não apenas de sua participação acionária nos bancos, mas também de suas propriedades pessoais.  Assim, a responsabilidade ilimitada constitui um tipo de seguro realmente efetivo, além de incentivar genuinamente a concorrência – e de ser muito melhor que o seguro de depósitos fornecido pelo governo.  Mas é importante não exagerarmos o papel da responsabilidade ilimitada.  No sistema escocês, por exemplo, apenas alguns bancos tinham responsabilidade ilimitada – os bancos “comerciais” mais antigos não tinham.  E as evidências de modo algum sugerem que um sistema bancário livre pode funcionar somente com responsabilidade ilimitada.  Não creio que os teóricos dofree banking tenham alguma posição em particular sobre qual a quantidade ideal de responsabilidade.  Antes, creio que a visão é que essa escolha será melhor se deixada para o mercado.

Em um ambiente de liberdade bancária, podem surgir alguns arranjos institucionais que protejam os bancos em caso de pânico?

Sim.  Por exemplo, as cédulas bancárias podem incluir “cláusulas de opção”.  As cédulas escocesas carregavam tais cláusulas antes de 1765, embora os bancos não as utilizassem para evitar pânicos, como explicarei daqui a pouco.  Com uma cláusula de opção, um banco se reserva o direito de poder não redimir cédulas sob demanda, com a condição de que ele pague juros sob essas cédulas durante todo esse período de suspensão.  Enquanto as taxas de juros forem suficientemente altas, as cláusulas de opção só serão invocadas quando isso for do interesse do portador da cédula.  Por exemplo, se ocorresse uma corrida completamente irracional a um banco perfeitamente solvente, a cláusula poderia ser invocada e impedir que os portadores das notas devastassem o banco.  O próprio fato de o banco invocar a cláusula já mostraria para os clientes em pânico que aquele é um banco solvente, porque se não fosse, faria muito mais sentido que seus proprietários deixassem o banco quebrar.

Mas os bancos escoceses de fato não utilizaram a cláusula de opção para impedir corridas.  Eles a utilizavam para se proteger contra ataques da concorrência – nesse caso, bancos rivais iriam acumular notas de um determinado banco e em seguida simular uma corrida a esta banco, para acabar com suas reservas (ouro, à época) e fali-lo.  Tais ataques ocorreram nos primórdios do sistema bancário escocês.  As cláusulas de opção poderiam ter sido utilizadas para se proteger contra pânicos aleatórios, exceto pelo fato de que não ocorriam pânicos aleatórios naquela época.  Assim, ao menos na teoria, há uma solução contratual que poderia funcionar muito bem contra tais pânicos.

Ademais, quando você proíbe a concorrência na emissão monetária, você está eliminando o mercado secundário que fiscaliza a saúde do sistema financeiro.  Suponha que um determinado banco esteja insolvente.  Nesse caso, os agentes de mercado mais atentos iriam transacionar as cédulas desse banco a um desconto – isto é, elas passariam a valer menos.  Inversamente, se essas cédulas não sofressem essa desvalorização, ninguém iria se preocupar com o banco.  No primeiro caso, os clientes mais “ingênuos” desse banco poderiam simplesmente checar o preço de mercado de suas cédulas para saber se deveriam ou não correr a esses bancos.  Portanto, a informação advinda do mercado secundário de notas pode impedir que corridas e pânicos se espalhem aleatoriamente.  Agora, se você fechar esse mercado, como ao proibir a concorrência na emissão de cédulas, você está criando uma base para que haja pânicos desnecessários – algo que não ocorreria em um cenário de concorrência.

Qual é o “grande problema dos trocados”?

O grande problema dos trocados – que é o título de um livro muito bom do Thomas Sargent e do François Velde – se refere ao problema de tentar manter moedinhas de pequena denominação circulando lado a lado com as moedas de maior denominação.  Suponha que estejamos em um padrão-ouro.  Se a casa da moeda cunhar apenas moedas de ouro bem encorpadas, as denominações menores acabarão sendo muito diminutas.  De fato há exemplos históricos de moedas minúsculas que foram emitidas.  Mas as pessoas rotineiramente as perdiam – além de serem moedas muito inconvenientes.  Assim, o que se pode fazer?  Pode-se mudar para prata ou cobre, mas aí as moedas de maior denominação seriam enormes.  Na prática, nenhum metal pode ser conveniente para todo o escopo de denominações que as pessoas necessitam.

Outra opção seria ter dois tipos de metais circulando como moedas – algo chamado de “bimetalismo”.  Mas o bimetalismo tem seus problemas.  Enquanto a casa da moeda estiver seguindo uma única unidade de conta, suas taxas de cunhagem irão sugerir que o preço relativo dos dois metais é fixo.  Mas esse preço inevitavelmente irá diferir do preço relativo mundial.  Quando isso ocorrer, o metal que está relativamente subvalorizado pela casa da moeda não mais será oferecido a ela, e as moedas já em circulação feitas com esse metal irão desaparecer de circulação – a menos que estejam bastante desgastadas.  Essa é a Lei de Gresham.

A outra solução, aquela que foi adotada em todos os lugares, é utilizar moedas “fiduciárias” ou moedas simbólicas.  Nesse caso, o metal não é a fonte do valor da moeda.  Seu valor depende de uma escassez artificial ou de sua convertibilidade em moeda não fiduciária.  O problema com esse tipo de moeda é que elas podem ser um objeto tentador para falsificadores.

O que nos leva ao caso britânico.  Por volta de 1780, estimou-se que mais de 90 por cento das moedas simbólicas – moedas de cobre – em circulação na Grã-Bretanha eram falsas.  E as verdadeiras estavam em péssimas condições.  Os comerciantes e os donos das fábricas simplesmente não conseguiam juntar moedas decentes o suficiente para comercializar e pagar seus empregados.  É claro, esses problemas estavam inter-relacionados.  A escassez de moedas oficiais decentes tornava fácil para os falsificadores colocarem no mercado suas falsas moedas; e esse volume de falsificação desestimulava a Royal Mint (a Casa da Moeda Real) a produzir mais moedas legítimas.  Ao fim e ao cabo, por várias décadas, começando em 1775, a Royal Mint decidiu não mais produzir qualquer tipo de moeda de cobre.

A Grã-Bretanha também utilizava as moedas de prata para trocados não muito pequenos.  Porém, como a prata tornou-se subvalorizada na Royal Mint em decorrência do bimetalismo oficial adotado pela Grã-Bretanha durante todo o século XVIII, nenhuma prata estava mais sendo levada à Royal Mint para ser cunhada.  Em outras palavras, de 1775 em diante, a Royal Mint dificilmente produzia trocados de qualquer tipo.

E isso não era algo sem importância.  Os britânicos precisavam de moedas de prata e cobre em pequenas denominações para todos os pagamentos menores que um guinéu (moeda de ouro inglesa em uso a partir de 1663 até 1813).  As cédulas não ajudavam, pois a menor até 1797 era uma de cinco libras esterlinas.  E isso numa época em que o trabalhador britânico comum era sortudo se ganhasse 10 xelins – o que equivalente a uma libra esterlina – por semana.  Assim, não havia dinheiro decente e oficial para pagamentos salariais, vendas no varejo e, principalmente, para qualquer transação entre os mais pobres.  Ao mesmo tempo, a Revolução Industrial estava se intensificando.  Mas aquela revolução dependia crucialmente do crescimento do varejo e da expansão das fábricas.  Dependia, em outras palavras, exatamente do tipo de meio de troca que o governo não mais estava fornecendo.  Destarte, a escassez de trocados ameaçou frear o processo da industrialização britânica.

Entretanto, o governo britânico, ao invés de tentar solucionar o problema, largou-o completamente de lado, deixando que os comerciantes privados e os industrialistas se virassem para encontrar uma solução.  E eles encontraram, e passaram a cunhar e a emitir suas próprias moedas.  Assim, durante boa parte da Revolução Industrial, o meio de troca utilizado para sustentar aquela revolução veio em sua enorme maioria do setor privado.  É esse processo que conto em detalhes no meu livro Good Money.

George Selgin
George Selgin
George Selgin professor da West Virginia University, descobriu o equivalente monetário à cidade perdida de Atlantis. Ele escreveu uma narrativa histórica integral - envolvente e extremamente interessante - que era até então largamente desconhecida, até mesmo para estudiosos da Revolução Industrial.
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