No primeiro artigo desta série, foi apresentado um panorama histórico do padrão-ouro clássico. Nesta segunda parte, falaremos exclusivamente sobre como (provavelmente) funcionaria a mecânica de um padrão-ouro puro.
Antes, uma ressalva: não se está falando aqui, de modo algum, que o padrão-ouro puro é o arranjo monetário ideal e que, portanto, ele deve ser imposto por algum governo. Nada estaria mais errado do que isso. Seria uma atitude absolutamente antilibertária impor algum tipo de arranjo monetário. O que está sendo dito aqui — e essa é uma opinião puramente pessoal do autor — é que, caso houvesse uma completa desestatização da moeda, com o banco central perdendo seu poder monopolista e, consequentemente, havendo plena liberdade de escolha de moedas, o ouro teria grandes chances de ser voluntariamente escolhido como o meio de troca geral — como sempre foi ao longo de toda a história.
E é fácil de entender o porquê. O propósito do dinheiro é e sempre foi o de facilitar as transações, possibilitando que elas sejam feitas da maneira mais fácil possível. Sendo assim, a tendência sempre será a de haver uma convergência natural para uma moeda única — ou, ao menos, para uma quantidade mínima de moedas distintas.
Se houver uma multiplicidade de moedas no mercado, então paradoxalmente voltaremos ao sistema de escambo — algo que foi eliminado justamente pela criação do dinheiro. Afinal, se você só tem o dinheiro X e quiser fazer uma compra num determinado lugar que só aceita o dinheiro Y, você antes precisará trocar X por Y para só então poder fazer sua compra. Isso é um custo de transação, algo que um livre mercado sempre procura minimizar. Seria obviamente mais vantajoso se todos pudessem utilizar o mesmo dinheiro em todos os lugares.
Portanto, pessoalmente acredito que, se houver uma desestatização completa da moeda, o livre mercado de moedas inexoravelmente levaria ao estabelecimento de uma ou de poucas moedas. E o ouro, provavelmente, seria a mais proeminente delas, justamente por se tratar de uma commodity escassa. A oferta de ouro aumenta apenas de acordo com o ritmo das escavações. E, historicamente, a quantidade de ouro no mundo cresce a uma taxa de apenas 2% ao ano. Portanto, o ouro sempre será uma commodity escassa — ao contrário das cédulas de dinheiro que usamos hoje, as quais podem ser criadas aos montes e ao simples apertar de um botão.
Ademais, a impressão de uma cédula de 2 reais custa exatamente o mesmo que a impressão de uma cédula de 100 reais. Por outro lado, a “criação” de uma barra de ouro de 3kg exige 100 vezes mais esforço e gastos que a “criação” de uma moeda de ouro de 30 gramas (uma onça). Por que você guardaria toda a sua riqueza em algo que nunca foi e nunca será escasso, como o papel-moeda sem lastro, quando você pode guardá-la em algo que já é escasso e que está destinado a sempre ser escasso? Questão de lógica.
Assim, sem mais delongas, analisemos agora como provavelmente funcionaria um sistema monetário baseado no ouro.
Mecanismo
Em um padrão-ouro puro, o dinheiro utilizado como meio de troca seria, obviamente, o ouro (e muito provavelmente a prata, para transações de menor valor).
Em primeiro lugar, inevitavelmente haveria uma concorrência entre os cunhadores de moedas de ouro. Diferentes pessoas ou empresas ofereceriam serviços para transformar barras de ouro em moedas de ouro, utilizando como diferencial para seus serviços coisas como beleza e qualidade das moedas.
Porém, isso não significa que as pessoas andariam pelas ruas portando barras ou moedas de ouro, pois, além de ridículo, seria algo completamente desconfortável e desajeitado. Da mesma forma, as pessoas provavelmente não carregariam moedas de ouro dentro da carteira, pois o peso seria inviável.
Nesse sistema, inevitavelmente o mercado desenvolveria um substituto monetário para o ouro, muito provavelmente certificados de ouro (tickets de papel) que funcionariam da mesma maneira que as cédulas de dinheiro funcionam hoje em dia. Como seria isso?
Você, as outras pessoas e as empresas, justamente por não quererem portar barras e moedas de ouro para fazer suas transações diárias, guardariam suas barras e moedas em grandes “armazéns”. Ao depositar seu ouro nesses armazéns, você receberia tickets de papel, que nada mais seriam do que certificados de armazenamento ou recibos de armazenagem. São esses tickets — que funcionam como substitutos monetários para o ouro — que irão certificar que você é o proprietário daquele ouro que ali foi depositado. E caso você queira retirar seu ouro daquele armazém, bastaria obviamente você apresentar esses tickets.
Até aqui, nada de mais.
Porém, apenas fazer esse serviço de armazenagem não ajuda muito. Afinal, todo mundo quer comodidade, e não faria sentido você depositar ouro em um armazém ao final do dia apenas para, no início do dia seguinte, você ter de ir novamente até esse armazém e sacar a quantidade de ouro que julga ser necessária para aquele dia. O que você e todos querem é poder fazer transações fáceis e rápidas sem ter de manejar moedas e barras de ouro.
Sendo assim, o mercado novamente virá ao socorro. É certo que esses armazéns de ouro terão todo o interesse em facilitar a vida de seus clientes. Consequentemente, é certo que eles farão de tudo para adquirirem uma reputação de confiabilidade; eles terão todo o interesse em deixar claro para todas as pessoas que os tickets por eles emitidos podem ser ressarcidos em ouro a qualquer momento, assim como carros num estacionamento privado.
Por conseguinte, ao invés de você ter de sacar seu ouro para pagar alguém, você poderá simplesmente entregar seu ticket para uma pessoa com a qual você faça uma transação qualquer, e essa pessoa, justamente por confiar na reputação daquele armazém, irá aceitar esse ticket como pagamento, pois sabe que poderá a qualquer momento ir até lá e retirar seu ouro. Enfatizando: as pessoas vão receber pedaços de papel apenas porque sabem que eles não são meros pedaços de papel. Eles são títulos que podem ser a qualquer momento convertidos em ouro.
Vários desses armazéns — que poderiam ser chamados de bancos — surgirão para ofertar esse serviço, o qual, obviamente, seria pago. A livre concorrência faria com que os preços cobrados por esse serviço de armazenagem fossem os mais baixos possíveis.
Cada banco ofereceria seus próprios substitutos. O Banco A, o Banco B, o Banco C imprimiria seus próprios tickets e, de posse deles, você poderia ir até aquele banco para retirar seu ouro. Por exemplo, se você guardou seu ouro no Banco A, mas numa transação recebeu um ticket do Banco B, você pode ir até o Banco B e redimir esse ticket naquela determinada quantia de ouro. Ou você pode também ficar com esse ticket e utilizá-lo numa futura transação. Ou você pode pedir que o Banco B transfira esse ouro para o Banco A, sendo bastante provável que o custo dessa transferência seja alegremente coberto pelo Banco A, que agora terá mais ouro em seus cofres, o que lhe garantirá mais receitas (assunto para o terceiro artigo).
Já é possível perceber onde estamos chegando. Todas as comodidades que temos hoje, como transferências interbancárias ou pagamentos com cheque e cartão de débito, continuariam sendo feitas exatamente da mesma forma. Tentemos imaginar um exemplo prático.
Você deposita no Banco A 300g de ouro (no preço de hoje, isso é equivalente a nada menos que R$ 23.000). Ao depositar seu ouro no Banco A, além dos tickets é provável que você possa receber também um cartão de débito, por exemplo. Da mesma forma que hoje você decide quanto quer reter de cédulas e quanto quer deixar no banco em forma eletrônica, nesse sistema você terá de escolher quanto quer de tickets e quanto quer em seu cartão de débito.
Assim, suponha que você escolha ficar com 10g (R$ 700) em tickets e 290g no cartão de débito. Tudo isso será, obviamente, controlado eletronicamente pela informática do seu banco. Ao gastar 5g (R$ 350) no cartão de débito, por exemplo, em uma loja que tenha conta no Banco B, este banco reclamará junto ao seu Banco A a transferência dessa quantidade de ouro. Ou ele também poderá optar por deixar o ouro no Banco A, sabendo que poderá demandá-lo a qualquer momento, uma vez que aquela determinada quantia de ouro agora é dele. Não sei, existem várias hipóteses e não cabe a mim ficar dizendo como o mercado funcionará. Estou apenas mostrando que é perfeitamente possível, sob um padrão-ouro puro, haver as mesmas comodidades de hoje.
Por exemplo, uma ATM (caixa eletrônico) funcionaria da mesma maneira que funciona hoje. Você passa seu cartão de débito, digita o valor que quer sacar, e a máquina imprimirá a quantidade de tickets desejada. Atendo-se ao nosso exemplo numérico dado, se você quiser sacar mais 10g (R$ 700) em tickets, seu cartão de débito ficará com 10g a menos e você ficará com 10g a mais em tickets. O total de ouro armazenado no seu banco não foi alterado, e nem poderia ser. Tampouco houve alteração da oferta monetária.[*]
(Em um detalhe mais técnico, atualmente, quando você retira dinheiro do banco, há uma alteração na composição do M1, diminuindo o valor dos depósitos à vista. Isso possui um efeito contracionista sobre o sistema bancário de reservas fracionárias, algo que, se feito em larga escala, poderia causar uma enorme deflação monetária.)
O poder da concorrência para refrear as fraudes
Mas a real vantagem desse padrão-ouro puro está justamente no fato de que esse arranjo desestimularia enormemente a expansão dos meios fiduciários — isto é, a criação de tickets que não sejam lastreados por ouro. E é exatamente isso que o atual sistema bancário de reservas fracionárias faz: criar dinheiro que não existe.
Mas como esse sistema de padrão-ouro poderia impedir essa expansão dos meios fiduciários? Afinal, não há um banco central para coibir a prática, impondo altos compulsórios.
O segredo, novamente, chama-se concorrência. Pra começar, vale dizer que os efeitos da concorrência já começam na cunhagem da moeda. Se uma empresa de cunhagem começa a trapacear, dizendo que suas moedas possuem um grau de pureza maior do que de fato têm, ou mesmo um peso fora do especificado, isso seria rapidamente descoberto e denunciado pelos concorrentes, que, assim como em qualquer outra área, ganham mercado justamente em cima dos erros e falhas de seus rivais.
Fazendo uma comparação jocosa, porém verdadeira, o que impede que um vendedor de atum coloque comida de gato em seu produto é exatamente o fato de que seus concorrentes rápida e prazerosamente o denunciariam. “Ei, consumidores, a marca XYZ diz que vende atum, mas nós analisamos uma amostra e descobrimos que ela é composta de comida de gato”. Tal marca iria rapidamente à bancarrota.
Só pra deixar claro, não estou dizendo que a concorrência tem o poder mágico de acabar com as fraudes. Mas certamente a concorrência é um poderoso mecanismo capaz de diminuir sensivelmente a probabilidade de tais ocorrências.
Da mesma forma, o que impediria que os bancos imprimissem tickets que não fossem lastreados em ouro? Afinal, eles têm todo o estímulo para fazer isso. Quanto mais tickets eles imprimirem, mais eles poderão emprestar, e mais juros poderão ganhar com esses empréstimos. O que os impede?
Ora, a concorrência. Se um banco emitisse mais tickets do que pode redimir em ouro, seus concorrentes iriam à forra. Bastaria que avisassem ao público que o Banco A está praticando fraude e, por isso, está tecnicamente insolvente. “Eles emitiram mais tickets do há que ouro nos cofres. Corram e retirem seu dinheiro enquanto há tempo. Os últimos a irem sacar ficarão sem nada”.
Essa corrida bancária deixaria o Banco A de joelhos e seus concorrentes, rindo à toa.
Entretanto, resta a pergunta: seria possível que todos os bancos fizessem um cartel, imprimissem tickets sem lastro de maneira concertada e concordassem em não exigir a compensação do ouro uns dos outros?
Possível, seria. Porém, altamente improvável. Vale lembrar que, num mercado totalmente desregulamentado, qualquer pessoa pode criar um armazém para atuar como banco (no nosso sistema bancário, o Banco Central proíbe ou restringe severamente a criação de bancos que venham a concorrer com seus favorecidos). Assim, esses novos entrantes seriam uma constante ameaça aos bancos já estabelecidos. Bastaria um pequeno banco exigir a compensação de um banco que criou meios fiduciários, e este ficaria imediatamente em apuros, tendo de pedir ouro emprestado para outros bancos para cobrir seu rombo. Só que, como todos criaram meios fiduciários, algum banco fatalmente ficará sem ouro para restituir seus clientes ou para mandar para outros bancos caso fosse reclamado.
Ou seja, esse cartel é insustentável — como, aliás, são todos os carteis em um mercado desregulamentado e com livre entrada.
Consequentemente, tem-se aí a explicação de por que um sistema bancário livre e operando com uma moeda-commodity tenderia a ser sólido e não incorrer em expansões dos meios fiduciários, o que traria um efeito benéfico em termos de inflação de preços e ciclos econômicos.
Conclusão
O objetivo desse artigo foi apenas o de relatar como funcionariam as transações monetárias em um padrão-ouro puro, algo que sempre intrigou muita gente. No próximo artigo da série, serão explicitadas as vantagens desse sistema em termos de tamanho do governo e liberdade econômica, bem como o funcionamento do sistema bancário no quesito empréstimos e lucratividade.
________________________________________________
[*] A tecnologia vem a cada dia nos deixando mais perto da realidade de um sistema monetário sólido. Um hotel em Abu Dhabi apresentou recentemente um caixa eletrônico que libera barras de ouro de 24 quilates em tamanhos de 1, 5 e 10 gramas, bem como moedas de ouro. Um computador dentro da máquina mostra em tempo real o preço do ouro e faz atualizações a cada 10 segundos. Já há planos para instalar mais 200 dessas máquinas na Áustria, Alemanha e Suíça.
É válido notar que essa tecnologia de mostrar em tempo real o preço do ouro pode ser adaptada para fazer o mesmo com a taxa de câmbio entre o ouro e a prata, reduzindo os custos de transação e facilitando o desenvolvimento de mercados paralelos de ambos os metais. Moedas de prata seriam muito mais convenientes que moedas de ouro para as pequenas transações diárias — ou, como dizem, para os pequenos trocados. A preços atuais, uma barra de prata de 1 grama possui o poder de compra de US$ 0,70 e uma barra de 5 gramas, de US$ 3,50.