InícioUncategorizedCapítulo III — Distribuição de renda

Capítulo III — Distribuição de renda

§1
A natureza da distribuição sob o socialismo e sob o liberalismo

Em bases lógicas, o tratamento do problema da renda deveria vir apropriadamente no final de qualquer investigação sobre a vida da comunidade socialista. A produção deve ocorrer antes que a distribuição seja possível, portanto, logicamente, a primeira deve ser discutida antes da segunda. Mas o problema da distribuição é uma característica tão proeminente do socialismo que sugere a discussão mais precoce possível da questão. Pois, fundamentalmente, o socialismo nada mais é do que uma teoria da distribuição “justa”; o movimento socialista nada mais é do que uma tentativa de alcançar esse ideal. Todos os esquemas socialistas partem do problema da distribuição e todos voltam a ele. Para o socialismo, o problema da distribuição é o problema econômico.

Além disso, o problema da distribuição é peculiar ao socialismo. Ele surge apenas em uma economia socialista. É verdade que temos o hábito de falar em distribuição em uma sociedade econômica baseada na propriedade privada, e a teoria econômica trata do problema da renda e da determinação dos preços dos fatores de produção sob o título “Distribuição”. Essa terminologia é tradicional e está tão firmemente estabelecida que a substituição por outra seria inconcebível. No entanto, é enganoso e não indica a natureza da teoria que pretende descrever. Sob o capitalismo, as rendas surgem como resultado de transações de mercado que estão indissoluvelmente ligadas à produção. Não produzimos primeiro as coisas e depois as distribuímos. Quando os produtos são fornecidos para uso e consumo, as rendas na maior parte já foram determinadas, uma vez que surgem durante o processo de produção e, na verdade, derivam dele. Trabalhadores, proprietários de terras e capitalistas e grande parte dos empresários que contribuem para a produção já receberam sua parte antes que o produto estivesse pronto para o consumo. Os preços que se obtêm para o produto final no mercado decidem apenas a receita que uma parte dos empresários obtêm do processo de produção. (A influência que esses preços têm na renda de outras classes já foi exercida pelas antecipações dos empresários. Sendo assim, na ordem capitalista de sociedade o agregamento de rendas individuais para formar uma renda social total é apenas uma concepção teórica, o conceito de distribuição é apenas figurativo. O motivo dessa expressão ser adotada, ao invés do simples e mais adequado termo “formação de renda”, é que os fundadores da economia científica, os Fisiocratas e a Escola Clássica Inglesa, só aprenderam gradualmente para livrarem-se da previsão estatista do mercantilismo. Embora essa análise de formação de renda como um resultado de transações de mercado fosse seu principal feito, eles adotaram a prática — felizmente sem nenhum mal para o conteúdo de seus ensinamentos — de agrupar os capítulos lidando com os diferentes tipos de renda sob o título “distribuição”.[1]

Só na comunidade socialista há alguma distribuição de bens consumíveis no verdadeiro sentido da palavra. Se está em consideração uma sociedade capitalista, nós usamos o termo “distribuição” em nenhum sentido que não o puramente figurativo, então uma analogia está sendo feita entre a determinação de renda numa comunidade socialista e numa capitalista. A concepção de qualquer processo atual de distribuição de renda deve ser mantida longe de qualquer investigação do mecanismo da sociedade capitalista.

§2
Dividendos Sociais

De acordo com a ideia fundamental do Socialismo, apenas bens que estão prontos para serem consumidos são elegíveis para distribuição. Bens de uma ordem maior continuam sendo propriedade da comunidade para propósitos de produções futuras; eles não devem ser distribuídos. Bens de primeira ordem, ao contrário, são sem exceção destinados a serem distribuídos: eles constituem certamente o dividendo social líquido. Desde que se considere a sociedade socialista, nós não podemos nos livrar um pouco de ideias que são apenas apropriadas para a ordem capitalista, é recorrente falar que a sociedade irá reter uma parte dos bens dos consumidores para consumo público. Nós estamos realmente pensando sobre essa parte de consumo que na sociedade capitalista é usualmente gastos públicos. Onde o princípio de propriedade privada é rigidamente aplicado, esse gasto público consiste exclusivamente do custo de manter o aparato que assegura o inalterado curso das coisas. A única tarefa do estrito Estado liberal é proteger vida e propriedade contra-ataques de inimigos externos e internos. Ele é um produtor de segurança, ou, como Lassalle ironicamente definiu, um Estado guarda noturno. Numa comunidade socialista haveria a tarefa de proteger a ordem socialista e o curso pacífico da produção socialista. Se o aparato de coerção e violência que serve esse propósito ainda será conhecido como o Estado ou será chamado por outro nome, e se será legalmente dado um status entre outros títulos de funções na sociedade socialista, é um assunto de completa indiferença para nós. Nós precisamos apenas deixar claro que todo gasto dedicado para esse fim irá aparecer na comunidade socialista como custos gerais de produção. Na medida que eles envolvem o uso do trabalho para propósitos de distribuir o dividendo social, eles devem ser contados de tal forma que os trabalhadores empregados ganhem sua parte. Mas gastos públicos incluem outros investimentos. Muitos Estados e municípios suprem seus cidadãos com certas utilidades em espécie, às vezes gratuitamente, às vezes com uma tarifa que cobre apenas uma parte do gasto. Como uma regra isso acontece no caso de serviços únicos que são fornecidos por commodities duráveis. Portanto parques, galerias de arte, bibliotecas públicas, locais de adoração, se tornam disponíveis para aqueles que desejam usá-los. Similarmente, estradas e ruas estão disponíveis para todos. Além disso, a distribuição direta de bens de consumo ocorre, por exemplo, quando medicamentos e dietas são dados para doentes e aparelho educacional para os alunos; serviços pessoais também são fornecidos quando tratamento médico é dado. Tudo isso não é Socialismo, não é produção baseada em posse coletiva dos meios de produção. Distribuição, certamente, ocorre aqui, mas o que é distribuído é primeiramente coletado por tributação dos cidadãos. Apenas na medida que essa distribuição lida com produtos do Estado ou produção municipal isso pode ser descrito como um pedaço de Socialismo dentro da estrutura de uma ordem liberal de sociedade. Nós não precisamos parar de perguntar até onde esse ramo estadual e atividade municipal é devida a uma visão que foi influenciada pelas críticas socialistas à sociedade capitalista e até onde isso é devido à natureza especial de certos bens de consumo particularmente duráveis que fornecem serviços quase ilimitados. Para nós só é importante que no caso desse gasto público, mesmo em uma sociedade capitalista, uma distribuição no real sentido da palavra acontece.

Além disso, a comunidade socialista não fará a distribuição física de todos os bens de consumo. Não é plausível oferecer uma cópia de todo livro novo para todo cidadão, mas sim colocar os livros numa sala de leitura pública para uso geral. Isso aconteceria com as escolas e ensino, os jardins públicos, playgrounds e salões de reunião. O gasto que todos esses planos requerem não é deduzido do dividendo social; pelo contrário, é uma parte do dividendo. Esta parte do dividendo social exibe esta peculiaridade, que sem prejuízo dos princípios que determinam a distribuição de bens de consumo consumíveis e parte de bens duráveis, princípios especiais de distribuição podem ser aplicados a ele correspondendo a natureza especial dos serviços envolvidos. A maneira que coleções de arte e publicações científicas são feitas para uso geral é totalmente independente das regras que são aplicadas para a distribuição de bens de primeira ordem.

§3
Os Princípios de Distribuição

A comunidade socialista é caracterizada pelo fato de que nela não há conexão entre produção e distribuição. A magnitude da parte que é alocada para o uso de cada cidadão é totalmente independente do valor do serviço que ele presta. Seria fundamentalmente impossível basear a distribuição na imputação de valor, pois é uma característica essencial dos métodos socialistas de produção que as participações dos diferentes fatores de produção no resultado não podem ser estabelecidas; e todo teste aritmético das relações entre esforço e resultado é impossível. Isto faria, portanto, não ser possível basear até mesmo uma parte da distribuição em um cálculo econômico da contribuição de diferentes fatores, e. g. por primeiramente garantir ao trabalhador todo o produto de seu trabalho, que sob o sistema capitalista ele receberia na forma de salário, e então aplicando uma forma especial de distribuição no caso das participações que são atribuídas aos fatores materiais de produção e ao trabalho do empresário. Em geral, socialistas carecem de qualquer concepção clara desse fato.

Mas uma leve suspeita deles permeia a doutrina marxista, de que sob o socialismo as categorias: salários, lucros e aluguéis seriam impensáveis. Há quatro princípios diferentes sobre os quais a distribuição socialista pode concebivelmente ser baseada: distribuição igual por cabeça, distribuição de acordo com o serviço prestado à comunidade, distribuição de acordo com as necessidades, e distribuição de acordo com mérito. Esses princípios podem ser combinados de maneiras diferentes.

O princípio de distribuição igual deriva da velha doutrina da lei natural de igualdade de todos os humanos. Rigidamente aplicado, isso se provaria absurdo. Não permitiria distinção entre adultos e crianças, entre saudáveis e doentes, entre trabalhadores e preguiçosos, ou entre bom e mau. Pode ser aplicado apenas em combinação com os outros princípios de distribuição. Seria pelo menos necessário levar em conta o princípio de distribuição de acordo com as necessidades, então as participações deveriam ser avaliadas de acordo com idade, sexo, saúde e necessidades especiais; seria necessário levar em conta o princípio da distribuição de acordo com os serviços prestados, então a distinção poderia ser feita entre trabalhadores e menos trabalhadores, e entre bons e maus trabalhadores; e finalmente, tem que ser levado em conta o mérito, para tornar a recompensa ou punição efetiva. Mas, mesmo se o princípio de distribuição igual é modificado dessa maneira, as dificuldades da distribuição socialista não são removidas. Na verdade, essas dificuldades não podem ser superadas.

Nós já mostramos as dificuldades surgidas pela aplicação do princípio da distribuição de acordo com o valor dos serviços prestados. No sistema capitalista o sujeito econômico recebe uma renda correspondente ao valor de sua contribuição para o processo de produção geral. Serviços são recompensados de acordo com seu valor. É precisamente esse arranjo que o socialismo deseja mudar e substituir por um sob o qual as participações atribuídas aos fatores materiais de produção e ao empreendedor, seriam então distribuídas, que nenhum proprietário e nenhum empreendedor teria uma posição fundamentalmente diferente do resto da comunidade. Mas isso envolve um divórcio completo da imputação econômica de valor. Não tem nada a ver com o valor do serviço do indivíduo à comunidade. Poderia ser colocado em relação externa com o serviço prestado apenas se o serviço do indivíduo fosse feito a base da distribuição de acordo com alguns critérios externos.

O critério mais óbvio parece ser o número de horas trabalhadas. Mas a importância para o dividendo social de qualquer serviço prestado não deve ser medida pela duração do expediente. Pois, em primeiro lugar, o valor do serviço difere de acordo com seu uso no esquema econômico. Os resultados serão diferentes se o serviço é usado no lugar certo, ou seja, digamos, onde é mais urgentemente necessário ou no lugar errado. Na organização socialista, no entanto, o trabalhador não pode se tornar responsável por isso, mas apenas aqueles que atribuem a ele o trabalho. Em segundo lugar, o valor do serviço varia de acordo com a qualidade do trabalho e de acordo com a capacidade particular do trabalhador; varia de acordo com sua força e seu zelo. Não é difícil encontrar razões éticas para pagamentos iguais aos trabalhadores de capacidades desiguais. Talento e genialidade são presentes de Deus, e o indivíduo não é responsável por eles, como é comumente dito. Mas isso não resolve o problema de saber se é conveniente ou praticável pagar todas as horas de trabalho pelo mesmo preço. O terceiro princípio de distribuição é de acordo com as necessidades. A fórmula de cada um de acordo com suas necessidades é um velho slogan do comunista pouco sofisticado. Ocasionalmente, é apoiado por referência ao fato de que os primeiros cristãos compartilhavam todos os bens em comum.[2] Outros ainda consideram isso praticável porque deve-se formar a base da distribuição dentro da família. Sem dúvida, poderia se tornar universal se a disposição da mãe, que tem fome de bom grado para que seus filhos não fiquem sem, pudesse ser tornada universal. Os defensores do princípio da distribuição de acordo com as necessidades ignoram isso. Além disso, eles ignoram muito mais. Eles ignoram o fato de que, enquanto qualquer tipo de esforço econômico for necessário, apenas uma parte de nossas necessidades pode ser satisfeita e uma parte deve permanecer insatisfeita. O princípio de a cada qual segundo suas necessidades permanece sem sentido enquanto não for definida a medida na qual cada indivíduo pode satisfazer suas necessidades. A fórmula é ilusória, pois cada um precisa renunciar à satisfação total de todas as suas necessidades.[3]Isso poderia, certamente, ser aplicado dentro de limites estreitos. Os doentes e feridos podem receber remédios, cuidados e assistência especiais, melhor atenção e tratamento especial para suas necessidades especiais, sem fazer dessa consideração para casos excepcionais a regra geral.

Similarmente, é um tanto impossível fazer do mérito do indivíduo o princípio geral de distribuição. Quem deve decidir sobre os méritos? Os que estão no poder frequentemente têm opiniões muito estranhas sobre os méritos ou deméritos de seus contemporâneos. A voz do povo não é a voz de Deus. Quem as pessoas escolheriam hoje como o melhor de seus contemporâneos? Não é improvável que a escolha recaia sobre uma estrela de cinema, ou talvez sobre um lutador premiado. Hoje, o povo inglês provavelmente estaria inclinado a chamar Shakespeare de O Maior Inglês. Seus contemporâneos teriam feito isso? E como eles avaliariam um segundo Shakespeare se ele estivesse entre eles hoje? Além disso, por que deveriam ser penalizados aqueles em cujo colo a natureza não colocou os grandes dons de talento e genialidade? A distribuição de acordo com os méritos de cada indivíduo abriria as portas ao mero capricho e deixaria o indivíduo indefeso diante da opressão da maioria. Seriam criadas condições que tornariam a vida insuportável.

À medida que se preocupa com a economia de tal problema, é indiferente qual princípio ou qual combinação de princípios diferentes se torna uma base para a distribuição. Qualquer que seja o princípio adotado, permanece o fato de que cada indivíduo receberá uma alocação da comunidade. O cidadão receberá um conjunto de reivindicações que podem ser trocadas dentro de um certo tempo por uma determinada quantidade de bens diferentes. Dessa forma, ele obterá suas refeições diárias, abrigo fixo, prazeres ocasionais e de vez em quando roupas novas. Se a satisfação das necessidades que ele obtém dessa maneira é grande ou pequena, dependerá da produtividade dos esforços da comunidade.

§4
O Processo de Distribuição

Não é necessário que cada indivíduo deva ele mesmo consumir toda a parte atribuída a ele. Ele pode desperdiçar, doar, ou, até onde a mercadoria permitir, separar um pouco para consumo posterior. Além disso, ele pode trocar. O bebedor de cerveja abrirá mão de sua parte da bebida não alcoólica para obter mais cerveja. O abstêmio estará preparado para renunciar a sua reivindicação de bebidas alcoólicas se, em vez disso, puder adquirir outras mercadorias. O esteta abrirá mão de uma visita ao cinema em prol de mais oportunidades de ouvir boa música; o inculto vai de bom grado trocar ingressos para galerias de arte por prazeres mais convenientes. Todos estarão prontos para trocar, mas a troca ficará restrita aos bens de consumo. Bens de produção serão res extra commercium.

Essa troca não precisa se limitar ao intercâmbio direto: ela também pode ocorrer indiretamente dentro de certos limites estreitos. As mesmas razões que levaram a troca indireta em outros tipos de sociedade a tornarão vantajosa para aqueles que fazem trocas na comunidade socialista. Segue-se que mesmo aqui haverá oportunidade para o uso de um meio geral de troca — o dinheiro.

O papel do dinheiro na economia socialista será fundamentalmente o mesmo que em um sistema econômico livre — o de um facilitador geral da troca. Mas a importância desse papel será bem diferente. Em uma sociedade baseada na propriedade coletiva dos meios de produção, a importância do papel do dinheiro será incomparavelmente mais estreita do que em uma sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção. Pois na comunidade socialista, a própria troca tem um significado muito mais restrito, uma vez que se limita apenas aos bens de consumo. Não pode haver preços monetários para bens de produção, uma vez que estes não entram em troca. A função contábil que o dinheiro exerce na produção em uma ordem econômica livre não mais existirá em uma comunidade socialista. Cálculos de valor em dinheiro serão impossíveis.

No entanto, a administração central de produção e distribuição não pode deixar fora de consideração as relações de troca que surgem neste tipo de tráfego. É claro que teria de levá-los em consideração se desejasse tornar diferentes mercadorias mutuamente substituíveis ao avaliar a distribuição do dividendo social.

Assim, se no processo de troca a relação de um charuto para cinco cigarros foi estabelecida, a administração não poderia arbitrariamente dizer que um charuto seria igual a três cigarros, para que pudesse ser capaz, com base nisso, de dar a um indivíduo apenas charutos e a outro apenas cigarros. Se o subsídio de tabaco não foi igualmente distribuído, em parte como charutos e parte em cigarros, ou seja, se alguém — seja de acordo com os seus desejos ou por ordem do governo — recebeu apenas charutos e outros apenas cigarros, as relações de troca já estabelecidas não poderiam ser ignoradas. Caso contrário, todos os que receberam cigarros seriam tratados de forma injusta, em comparação com os que receberam charutos, uma vez que a pessoa que recebeu um charuto poderia trocá-lo por cinco cigarros enquanto o obteve no equivalente a três cigarros.

Alterações nas relações de troca neste tráfego entre os cidadãos, consequentemente, obrigariam a administração a fazer mudanças correspondentes nas taxas de substituição das várias commodities. Cada uma dessas mudanças indicará que as relações entre as várias necessidades dos cidadãos e sua satisfação se alteraram, que as pessoas agora querem algumas mercadorias mais do que antes, outras menos. A administração econômica provavelmente se esforçaria para ajustar a produção a essa mudança. Ela se esforçaria para produzir mais das mercadorias mais desejadas e menos das menos desejadas. Mas uma coisa, no entanto, não seria capaz de fazer: não seria capaz de permitir que os cidadãos individuais resgatassem seus tíquetes de tabaco arbitrariamente em charutos ou cigarros. Se os indivíduos pudessem escolher livremente entre charutos ou cigarros, eles poderiam demandar mais charutos ou mais cigarros do que os que foram produzidos, ou, por outro lado, charutos ou cigarros poderiam ser deixados nos centros de distribuição porque ninguém os demandava.

A teoria do valor-trabalho parece oferecer uma solução simples para esse problema. Por uma hora de trabalho, o cidadão recebe uma ficha que lhe dá direito ao produto de uma hora de trabalho, com uma dedução para custear as obrigações gerais da comunidade, e. g. apoio aos deficientes, despesas com fins culturais. Permitindo que esta dedução cubra as despesas suportadas pela comunidade como um todo, todo trabalhador que trabalhou uma hora terá o direito de obter produtos nos quais uma hora de trabalho foi gasta. Quem estiver disposto a pagar entregando à comunidade o seu tempo de trabalho correspondente ao tempo de trabalho utilizado para os produzir, pode sacar dos centros de abastecimento os bens e serviços de consumo e aplicá-los ao seu próprio uso.

Mas tal princípio de distribuição não funcionaria, uma vez que o trabalho não é uniforme ou homogêneo. Existem diferenças qualitativas entre as diferentes formas de trabalho que, tomadas em conjunto com as variações na oferta e na demanda dos produtos resultantes, conduzem a valores diferentes. Ceteris paribus, a oferta de imagens não pode ser aumentada sem que a qualidade do trabalho sofra. O trabalhador que forneceu uma hora de trabalho simples não pode ter o direito de consumir o produto de uma hora de trabalho de qualidade superior e seria impossível em uma comunidade socialista estabelecer qualquer conexão entre a importância do trabalho feito para a comunidade e a participação no rendimento da produção comunal dada pelo trabalho. O pagamento pelo trabalho seria bastante arbitrário. Os métodos de cálculo do valor utilizado em uma sociedade de livre comércio baseado na propriedade privada dos meios de produção seriam inacessíveis a ele uma vez que, como vimos, essa imputação é impossível em uma sociedade socialista. Os fatos econômicos claramente limitariam o poder da sociedade de recompensar o trabalhador arbitrariamente; no longo prazo, o total de salários não pode, em nenhuma circunstância, exceder a renda da sociedade. Dentro desse limite, entretanto, a comunidade é livre para agir. Ela pode decidir pagar todo o trabalho igualmente, independentemente da qualidade; pode facilmente fazer uma distinção entre as várias horas de trabalho, de acordo com a qualidade do trabalho prestado. Mas, em ambos os casos, deve reservar-se o direito de decidir a distribuição particular dos produtos.

Mesmo se abstrairmos das diferenças na qualidade do trabalho e seu produto e aceitarmos a possibilidade de determinar quanto trabalho inere de qualquer produto, a comunidade nunca permitiria que o indivíduo que prestou uma hora de trabalho consumisse o produto de uma hora de trabalho. Pois todos os bens econômicos implicam custos materiais além do trabalho. Um produto para o qual é necessário mais matéria-prima não precisa ser feito equivalente a um produto que exige menos matéria-prima.

§5
Os Custos de Distribuição

A crítica socialista ao sistema capitalista dedica muito espaço às reclamações sobre os altos custos do que pode ser chamado de aparelho de distribuição. Incluem sob este os custos de todas as instituições nacionais e políticas, incluindo despesas com fins militares e guerra. Eles também incluem as despesas para as sociedades decorrentes da livre concorrência. Todas as despesas com publicidade e atividades de pessoas envolvidas na luta competitiva, como agentes, viajantes comerciais, etc., e os custos decorrentes dos esforços das empresas para se manterem independentes, em vez de se amalgamarem em unidades maiores ou ingressarem em cartéis que possibilitem a especialização e, assim, o barateamento da produção, são devidos ao processo distributivo do sistema capitalista. A sociedade socialista, segundo pensam os críticos, economizaria enormemente ao dar um fim nesse desperdício.

A expectativa de que a comunidade socialista economizaria o gasto que poderia ser apropriadamente denominado despesa estatal deriva da doutrina, peculiar a muitos anarquistas e socialistas marxistas, de que a compulsão estatal seria supérflua em uma sociedade não baseada na propriedade privada dos meios de produção. Eles argumentam que, na comunidade socialista, “a obediência às regras fundamentais simples que governam qualquer forma de vida social logo se tornará necessariamente um hábito”, mas isso é apoiado por uma sugestão de que “evasão de regulamentação e controle imposta por todo o povo será, sem dúvida, enormemente difícil”, e incorrerá em “punição rápida e severa”, pois “os trabalhadores armados” não seriam “intelectuais sentimentais” nem “se deixariam zombar”.[4] Tudo isso é apenas um jogo de palavras. Controle, armas, punição, não são esses “uma autoridade repressiva especial” e, portanto, de acordo com as próprias palavras de Engels, um “Estado”?[5] Quer a compulsão seja exercida por trabalhadores armados — que não podem trabalhar enquanto portam armas — ou pelos filhos dos trabalhadores vestidos com uniformes da polícia, não fará diferença para os custos que a compulsão acarreta.

Mas o Estado é um aparato coercitivo não apenas para seus próprios habitantes: aplica coerção externamente. Apenas um estado abrangendo todo o universo não precisaria exercer nenhuma coerção externa, e somente porque, nesse caso, não haveria terra estrangeira, nem estrangeiros, nem estados estrangeiros. Se isso pode ser alcançado, é inconcebível sem um aparato coercitivo. Se todos os exércitos dos Estados locais fossem abolidos, não poderíamos dispensar um aparato mundial de coerção, uma polícia mundial para garantir a paz mundial. Quer o socialismo reúna todos os Estados em um só, quer os deixe independentes uns dos outros, em todo caso também não poderá prescindir de um aparato coercitivo.

O aparelho socialista de coerção também implicará em algumas despesas. Se isso será maior ou menor do que a despesa do aparelho de Estado da sociedade capitalista, naturalmente, não podemos dizer. Basta ver se o dividendo social será reduzido no valor envolvido.

Quanto aos desperdícios da distribuição sob o capitalismo, pouco precisa ser dito. Uma vez que, na sociedade capitalista, não há distribuição no sentido real da palavra, não há custos de distribuição. Despesas comerciais e custos semelhantes não podem ser chamados de custos de distribuição, não só porque não são os custos de uma distribuição, que é um processo especial em si, mas também porque os efeitos dos serviços destinados a esses fins vão muito além da mera distribuição de bens. A competição não se limita à distribuição: isso é apenas uma parte de seu serviço. Não é suficiente, portanto, comparar esses custos com os custos incorridos pelo aparelho de distribuição e gestão em uma comunidade socialista. Se os métodos socialistas de produção reduzem a produtividade — e falaremos disso mais tarde — pouco importa que economizem o trabalho dos viajantes comerciais, corretores e anunciantes.

 

_______________________________

Notas

[1]              Cannan, A History of the Theories of Production and Distribution in English Political Economy from 1776 to 1848, 3rd Edition, Londres 1917, p. 183 et seq. Também p. 330 desta edição.

[2]              Atos dos Apóstolos, ii. 45

[3]              Veja a crítica de Pecqueur a esta fórmula de distribuição (Théorie nouvelle d’Économie sociale et politique, Paris 1842, p. 613 et seq.). Pecqueur mostra-se superior a Marx, que sem hesitar se ilude de que numa fase superior da sociedade comunista poderia escrever em suas bandeiras: De cada qual suas habilidades, a cada qual segundo suas necessidades! Marx, Zur Kritik des sozialdemokratischen Parteiprogramms von Gotha, p. 17.

[4]              Lenin, Staat und Revolution, p. 96.

[5]              Engels, Herrn Eugen Dührings Umwälzung der Wissenschaft, p. 302.

Ludwig von Mises
Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.
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