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Capítulo III —  Cristianismo e socialismo

§.1
Religião e ética social

A religião, não meramente como igreja, mas também como uma filosofia, é como qualquer outro fato da vida espiritual, como produto da cooperação social dos homens. Nosso pensamento não é de nenhuma forma um fenômeno individual independente de toda relação social e tradição; tem um caráter social por causa do fato de que segue métodos de pensamento formados durante milênios de cooperação entre inúmeros grupos. E nós, novamente, somos capazes de assumir esses métodos de pensamento somente porque somos membros da sociedade. Agora, pelas exatas mesmas razões, não podemos imaginar a religião como um fenômeno isolado. Até mesmo os místicos, que esquecem de seus arredores em deleite boquiaberto enquanto experiencia a comunhão com seu Deus, não fez sua religião com seus próprios esforços. As formas de pensamento que o levaram a isso não são sua criação individual; pertencem à sociedade. Um Kaspar Hauser não pode evoluir uma religião sem ajuda de fora. A religião, como todas as outras coisas, cresceu historicamente, e é sujeita à mudança constante que afeta todos os fenômenos sociais.

Mas a religião também é um fator social no sentido de que entende relações sociais de um ângulo especial e define regras para a conduta humana na sociedade de acordo com isso. Não pode evitar afirmar seus princípios no âmbito da ética social. Nenhuma religião que se propõe a dar a seus devotos uma resposta aos problemas da vida e consolá-los onde eles mais precisam de consolação pode descansar satisfeita com a interpretação das relações do homem com a natureza, ao vir a ser e o deixar de ser. Se isso deixa de fora as relações do homem ao homem, isso não pode produzir regras para a conduta terrena e abandona o crente assim que ele começa a pensar sobre a inadequação das condições sociais. A religião precisa fornecer a ele uma resposta quando ele pergunta por que há ricos e pobres, violência e justiça, guerra e paz, ou vai forçá-lo a procurar por uma resposta em outro lugar. Isso significaria perder seu controle sobre seus adeptos e seu poder sobre os espíritos. Sem a ética social, a religião estaria morta.

Hoje em dia, as religiões islâmica e judaica estão mortas. Não oferecem nada mais do que um ritual a seus adeptos. Elas sabem como prescrever rezas e jejuns, certas comidas, circuncisão e todo o resto; mas isso é tudo. Não oferecem nada mais ao intelecto. Completamente desespiritualizados, tudo o que ensinam e pregam são as formas legais e a regra externa. Elas prendem seus seguidores em uma gaiola de usos tradicionais, na qual eles frequentemente têm dificuldades para respirar; mas para sua alma interna não têm mensagem alguma. Elas suprimem a alma, em vez de elevá-la e salvá-la. Por muitos séculos no Islã, por aproximadamente dois mil anos na judiaria, não houveram novos movimentos religiosos. Hoje em dia, a religião dos judeus é exatamente como era quando o Talmude foi elaborado. A religião do Islã não mudou desde a época das conquistas arábicas. Sua literatura, seus filósofos continuam a repetir as ideias velhas e não penetram para além do círculo da teologia. Busca-se em vão entre eles por homens e movimentos como os que o cristianismo ocidental produziu em cada século. Mantêm sua identidade somente ao rejeitar tudo o que é estrangeiro e “diferente”, através do tradicionalismo e do conservadorismo. Somente seu ódio por tudo que é estrangeiro os desperta para grandes façanhas, de tempos em tempos. Todas as novas seitas, mesmo as novas doutrinas que surgem com elas, nada mais são do que ecos dessa luta contra o estrangeiro, o novo e o infiel. A religião não tem influência sobre a vida espiritual do indivíduo, onde, em verdade, isso é capaz de desenvolver nada contra a pressão asfixiante do tradicionalismo rígido. Vemos isso mais claramente na falta de influência clerical. O respeito pelo clero é puramente superficial. Nessas religiões, não há nada que poderia ser comparado à profunda influência que o clero exerce nas igrejas ocidentais — apesar de uma ordem diferente em cada igreja; não há nada a comparar do jesuíta, com o bispo católico, e o pastor protestante. Havia a mesma inércia nas religiões politeístas da antiguidade e ainda há na igreja oriental. A igreja grega está morta há mais de mil anos.[1] Somente na segunda metade do século XIX produziu por uma vez um homem a quem a fé e a esperança chamejaram como fogo. Mas o cristianismo de Tolstói, não obstante o quanto deva aguentar a superficialidade das matrizes oriental e russa, está, desde o fundamento, alicerçada em ideias ocidentais. É particularmente característico desse grande Evangelista que, ao contrário do filho do mercador italiano, Francisco de Assis, ou do filho do minerador alemão, Martinho Lutero, ele não veio do povo, mas da nobreza, que, pela formação e educação, tinha sido completamente ocidentalizado. A igreja russa propriamente dita produziu, no máximo, homens como João de Kronstadt ou Rasputin.

A essas igrejas mortas falta qualquer ética especial. Harnack diz da igreja grega: “A real esfera da vida operária cuja moralidade é algo a ser regulado pela Fé, fica fora de sua observação direta. Isso é deixado ao estado e à nação.” Mas é diferente na igreja viva do ocidente. Aqui, onde a fé ainda não está extinta, onde a fé não é mera forma externa que não cobre nada além do ritual sem significado do padre; onde, em uma palavra, a fé agarra o homem inteiro, há contínua busca por uma ética social. Repetidamente seus membros voltam aos evangelhos para renovar suas vidas no Senhor e em Sua Mensagem.

§.2
Os Evangelhos como uma fonte da ética Cristã

Para o crente, a Sagrada Escritura é o depósito da revelação divina, a palavra de Deus à humanidade, que precisa ser para sempre a fundação inabalável de toda a religião e de toda a conduta por ela controlada. Isso é verdade não somente do Protestante, que aceita os ensinamentos do púlpito somente até o ponto em que pode ser reconciliado com a Sagrada Escritura; é verdade também sobre os Católicos que, por um lado, derivam a autoridade da Sagrada Escritura da Igreja, mas, pelo outro, atribuem à Sagrada Escritura origem divina, ao ensinar que veio a existir com a ajuda do Espírito Santo. O dualismo aqui é resolvido ao intitular apenas a Igreja para fazer o que é a interpretação finalmente autêntica  —  infalível — da Sagrada Escritura. Ambos os credos assumem a unidade lógica e sistemática do todo das Sagradas Escrituras; transpor as dificuldades que surgem dessa premissa precisa, portanto, ser uma das tarefas mais importantes da doutrina e ciência eclesiástica.

A pesquisa científica entende os escritos do velho e do novo testamento como fontes históricas a serem abordadas da mesma maneira que todos os outros documentos históricos. Ela quebra a unidade da Bíblia e tenta dar a cada seção o seu lugar na história da literatura. Agora, uma pesquisa bíblica moderna dessa ordem é incompatível com a teologia. A Igreja Católica reconheceu esse fato, mas a igreja protestante ainda tenta se iludir. Não faz sentido reconstruir o caráter de um Jesus histórico para construir uma doutrina da fé e da moral com base nos resultados. Esforços desse tipo obstruem a pesquisa documentária de um tipo de ciência ao desviá-la de seu verdadeiro objetivo e atribuir a ela tarefas que não pode completar sem introduzir escalas modernas de valor; além do mais, elas são contraditórias nelas mesmas. De um lado tentam explicar Cristo e a origem do cristianismo historicamente; do outro, tentam entender esses fenômenos históricos como a fonte eterna da qual florescem todas as regras da conduta eclesiástica, mesmo no mundo totalmente diferente de hoje. Não é senão uma contradição examinar o cristianismo com o olho de um historiador e então procurar uma dica para o presente nos resultados do estudo. A história nunca pode apresentar o cristianismo em sua “forma pura”, mas somente em sua “forma original”. Confundir os dois é fechar os olhos para os dois mil anos de desenvolvimento. O erro em que muitos teólogos protestantes caem, nessa questão, é o mesmo cometido por uma parte da escola histórica da lei, quando tentou impor os resultados de sua pesquisa na história da jurisprudência na legislação de administração da justiça de hoje em dia. Esse não é o procedimento do verdadeiro historiador, mas de alguém que nega toda a evolução e toda a possibilidade de evolução. Contrastado com o absolutismo desse ponto de vista, o absolutismo dos muito condenados racionalistas “rasos” do século XVIII, que enfatizaram precisamente esse elemento do progresso e da evolução, parecem genuinamente históricos em suas perspectivas.

A relação da ética cristã com o problema do socialismo precisa, portanto, não ser vista pelos olhos dos teólogos Protestantes cuja pesquisa é direcionada a uma “essência” imutável e imóvel do cristianismo. Ao ver o cristianismo como um fenômeno vivo, e, portanto, em mudança constante — uma visão não tão incompatível com a perspectiva da Igreja Católica como já era de se imaginar — então precisa-se negar a priori a investigar se é o socialismo ou a propriedade privada que está mais de acordo com sua ideia. O melhor que podemos fazer é revisar a história do cristianismo e considerar se já demonstrou um viés em favor desta ou daquela forma de organização social. A atenção que prestamos aos escritos do Velho e do Novo Testamento no processo é justificada por sua importância mesmo hoje em dia como fontes da doutrina eclesiástica, mas não pela suposição de que deles isolados pode-se compreender o que o cristianismo realmente é.

O fim último da pesquisa desse tipo precisar ser assegurar se, tanto agora quanto no futuro, o cristianismo precisa necessariamente rejeitar uma economia baseada na propriedade privada dos meios de produção. Essa questão não pode ser posta meramente por estabelecer o fato, já familiar, de que desde sua origem há quase dois mil anos atrás, o cristianismo encontrou suas próprias formas de estabelecer termos com a propriedade privada. Por isso, pode ser que ou o cristianismo ou a “propriedade privada” devam chegar a um ponto em sua evolução que torna a compatibilidade entrei os dois impossível — supondo que isso tenha ao menos existido.

§.3
Cristianismo primitivo e sociedade

O cristianismo primitivo não era ascético. Com uma aceitação alegre da vida, deliberadamente empurrou para os fundos os ideais ascéticos que permearam muitas seitas contemporâneas. (Até mesmo João Batista vivia como um ascético.) Somente no terceiro e quarto século o ascetismo foi introduzido no Cristianismo, e desse tempo data a reinterpretação ascética e reformação dos ensinamentos do evangelho. O Cristo dos Evangelhos desfruta da vida em meio a seus discípulos, refresca a si mesmo com comida e bebida e divide as refeições do povo. Ele está tão longe do ascetismo e de um desejo de fugir do mundo quanto o mundo está na intemperança e na devassidão.[2] Somente sua atitude sobre a relação dos sexos nos parece ascética, mas podemos explicar isso, como podemos explicar todos os ensinamentos práticos dos Evangelhos — e eles não nos oferecem regras de vida a não ser regras práticas — pela concepção básica que nos dá toda a nossa ideia de Jesus, a concepção do Messias.

“O Tempo é chegado, e o Reino de Deus está em mãos: arrependam-se, e acreditem no evangelho.” Estas são as palavras com as quais, no Evangelho segundo Marcos, o Redentor faz sua entrada.[3] Jesus entende a si mesmo como o profeta do Reino vindouro de Deus, o Reino que, de acordo com a antiga profecia deve trazer a redenção de toda a insuficiência terrena, e com isso de todos os assuntos econômicos. Seus seguidores não têm nada a fazer a não ser preparar-se para esse Dia. O tempo de se preocupar com assuntos mundanos é passado, e, por agora, em expectativa do Reino, os homens precisam se voltar a coisas mais importantes. Jesus não oferece regras para a ação e dificuldade mundana; seu Reino não é deste mundo. Tais regras de conduta como as que ele dá a seus seguidores são válidas somente pelo curto intervalo de tempo que ainda há de ser vivido enquanto se espera pela vinda das grandes coisas. No Reino de Deus não haverá assuntos econômicos. Lá, seus crentes comerão e beberão na mesa do Senhor.[4] Para esse Reino, então, todos os conselhos econômicos e políticos seriam supérfluos. Qualquer preparação feita por Jesus precisa ser entendida como meramente expedientes transicionais.[5]

É somente dessa forma que podemos entender por que, no Sermão da Montanha, Jesus recomenda a seu próprio povo que não pensem em comida, bebida ou vestimenta; por que ele exorta seu povo a não semear ou colher em galpões, a não trabalhar ou fiar. É também a única explicação do “comunismo” seu e de seus discípulos. Esse “comunismo” não é socialismo; não é produção com meios de produção pertencentes à comunidade. É nada mais do que a distribuição de bens de consumo entre os membros da comunidade — “a cada um, de acordo com sua necessidade”.[6] É um comunismo de bens de consumo, não de meios de produção, uma comunidade de consumidores, não de produtores. Os cristãos primitivos não produzem, trabalham ou acumulam nada. Os recém-convertidos percebem suas posses e as dividem com os irmãos e as irmãs. Uma tal forma de vida é insustentável a longo prazo. Pode ser entendida somente como uma ordem temporária que é o que foi de fato feita para ser. Os discípulos de Cristo viviam na expectativa diária da Salvação.

A ideia Cristã primitiva da realização iminente transforma-se gradualmente na concepção do Juízo Final que repousa na raiz de todos os movimentos eclesiásticos que tiveram qualquer existência prolongada. De mãos dadas com essa transformação se deu toda a reconstrução das regras da vida Cristã. A expectativa do Reino vindouro de Deus não poderia mais servir como uma base. Quando as congregações buscaram organizar-se para uma vida prolongada na terra, tiveram de cessar a demanda de que seus membros devem abster-se do trabalho e dedicar-se à vida contemplativa em preparação para o Reino Divino. Não somente tiveram de tolerar a participação de seus irmãos no trabalho mundano, como também tiveram de insistir sobre isso, já que de outra forma teriam destruído as condições necessárias para a existência de sua religião. E então, o cristianismo, que começou com completa indiferença a todas as condições sociais, praticamente canonizou a ordem social do Império Romano decadente, uma vez que o processo de adaptação da Igreja a essa ordem já tinha começado.

É um erro falar sobre os ensinamentos sociais do cristianismo primitivo. O Cristo histórico e seus ensinamentos, como a parte mais velha do Novo Testamento representa, são bastante indiferentes a quaisquer considerações sociais. Não que Cristo não criticasse asperamente o estado de coisas existente até então, mas não pensou que valesse a pena sequer considerar como essas questões poderiam ser melhoradas ou mesmo pensar sobre elas. Esse é um assunto de Deus. Ele estabeleceria seu próprio Reino glorioso e imaculado, e sua vinda seria breve. Ninguém sabia como esse Reino seria, mas uma coisa era certa: nele, viver-se-ia sem preocupações. Jesus omite todos os menores detalhes, e eles não eram necessários; já que os judeus de seu tempo não duvidavam do esplendor da vida no Reino de Deus. Os Profetas haviam anunciado seu Reino e suas palavras continuaram a viver nas mentes das pessoas, formando, de fato, o conteúdo essencial para seu pensamento religioso.

A expectativa da reorganização do próprio Deus quando o tempo chegar e a transferência exclusiva de toda ação e pensamento ao futuro Reino de Deus, fez dos ensinamentos de Jesus, em última análise, negativos. Ele rejeita tudo o que existe sem oferecer algo para substituir. Ele chega a dissolver todos os laços sociais existentes. O discípulo não deve ser meramente indiferente a se sustentar, não deve meramente abster-se do trabalho e se despojar de todos os bens materiais, mas deve odiar “pai, e mãe, e esposa, e filhos, e irmãos, e irmãs, e sim, sua própria vida”.[7] Jesus é capaz de tolerar as leis mundanas do Império Romano e as prescrições da Lei Judaica porque ele é indiferente a elas, desprezando-as como coisas importantes somente dentro dos limites estreitos de tempo e não porque ele reconhece seu valor. Seu entusiasmo em destruir laços sociais não conhece limites. A força motriz por trás da pureza e do poder dessa completa negação é a inspiração extática e a esperança entusiástica de um novo mundo. Daí seu ataque apaixonado contra tudo o que existe. Tudo pode ser destruído porque Deus em Sua onipotência vai reconstruir a ordem futura. Não é necessário investigar se algo pode ser levado da ordem antiga para a nova, porque essa nova ordem surgirá sem a ajuda humana. Não demanda, portanto, de seus adeptos, um sistema ético, nenhuma conduta particular em qualquer direção positiva. Fé e somente a fé, a esperança, a espera — é tudo de que ele precisa. Não precisa contribuir com nada para a reconstrução do futuro, isso o Próprio Deus providenciou. O paralelo moderno mais claro a essa atitude de completa negação do cristianismo primitivo é o bolchevismo. Os bolcheviques também querem destruir tudo o que existe porque entendem tudo como desesperançosamente ruim. Mas eles têm em mente ideias, apesar do quão indefinidas e contraditórias possam ser da futura ordem social. Demandam não somente que seus seguidores destruam tudo o que há, mas também que busquem uma linha definida de conduta que levaria ao futuro Reino do qual sonharam. O ensinamento de Jesus nessa questão é, por outro lado, meramente negação.[8]

Jesus não foi um reformista social. Seus ensinamentos não tinham aplicação para a vida na terra, e suas instruções aos discípulos só tem um significado à luz de seu fim imediato — esperar o Senhor com lombos cingidos e lâmpadas em chamas, para “que quando ele vier e bater na porta, ela possa imediatamente abrir-se para ele”.[9] É só isso que tornou o cristianismo capaz de fazer seu próprio progresso triunfante no mundo. Sendo neutro a qualquer sistema social, foi capaz de atravessar os séculos sem ser destruído pelas tremendas revoluções sociais que ocorreram. Só por essa razão pode se tornar a religião dos imperadores romanos e dos empreendedores anglo-saxões, de negros africanos e teutões europeus, lordes feudais medievais e trabalhadores industriais modernos. Cada época e cada partido foi capaz de tirar do cristianismo o que quiseram, porque esse não contém nada que o liga a uma ordem social definida.

§.4
A proibição canônica dos juros

Cada época encontrou nos Evangelhos o que lá desejou encontrar, e negligenciou o que desejou negligenciar. Isso é melhor provado por referência à importância preponderante que a ética social eclesiástica atribuiu por muitos anos à doutrina da usura.[10] A demanda feita aos discípulos de Cristo nos Evangelhos e outros escritos do Novo Testamento é algo bastante diferente da renunciação aos juros no empréstimo de capital. A proibição canônica de juros é um produto da doutrina medieval da sociedade e do comércio, e originalmente nada tem a ver com o cristianismo e seus ensinamentos. A condenação moral da usura e a proibição dos juros precedeu o cristianismo. Eles foram tomados dos escritores e legisladores da antiguidade e intensificados conforme o conflito entre os agricultores e mercadores e comerciantes em ascensão se desenvolveu. Só aí pessoas tentaram apoiá-los com citações da Sagrada Escritura. A tomada de juros não sofreu oposição porque o cristianismo assim requiria, mas, em vez, porque o público o condenava, pessoas tentaram ler nos escritos cristãos uma condenação à usura. Para esse propósito, o Novo Testamento pareceu a princípio inútil, e, por conseguinte, o Velho Testamento foi utilizado. Por séculos, ninguém pensou em citar nenhuma passagem do Novo Testamento em apoio à proibição. Foi algum tempo antes de a arte escolástica de interpretação ter sucesso em ler o que procurou naquela muito citada passagem de Lucas, e assim encontrando apoio nos Evangelhos à supressão da usura.[11] Isso não foi até o começo do século XII. Somente depois do decreto de Urbano III essa passagem foi citada como prova da proibição.[12] A construção então posta nas palavras de Lucas foi, no entanto, bastante insustentável. A passagem certamente não está preocupada com a tomada de juros. É possível que, no contexto da passagem, Mηδεν απελπιζοντες (miden apelpizontes) signifique “não conte com a restituição do que é emprestado”. Ou, mais provavelmente, “deves emprestar não somente aos abastados, que também podem emprestá-lo em algum tempo, mas também àquele de quem não há perspectiva disso, aos pobres”.

A grande importância atribuída a essa passagem contrasta fortemente com o descaso dado a outros comandos e proibições do Evangelho. A Igreja medieval tinha a intenção de levar a ordem contra a usura à sua conclusão lógica, mas deliberadamente omitiu a aplicação de muitos comandos claros e inequívocos dos Evangelhos com uma fração da energia depreendida em pegar no pé dessa prática particular. No exato mesmo capítulo de Lucas, outras coisas são ordenadas ou proibidas em palavras precisas. A Igreja nunca, por exemplo, esforçou-se seriamente para proibir um homem que foi roubado de exigir de volta o que era seu, nem depreciou a resistência ao ladrão, e nem tentou marcar um julgamento como um ato anticristão. Outras injunções do Sermão da Montanha, como a indiferença à comida e à bebida, similarmente nunca foram aplicadas com total comprometimento.

§.5
O cristianismo e a propriedade

Desde o terceiro século, o cristianismo sempre serviu simultaneamente aqueles que apoiaram a ordem social e aqueles que a quiseram depor. Ambos os lados sempre tomaram o mesmo falso passo de apelar aos Evangelhos e de encontrar passagens bíblicas para se sustentar. É o mesmo hoje: o cristianismo luta tanto contra quanto a favor do socialismo.

Mas todos os esforços para encontrar apoio para a instituição da propriedade privada de forma geral e para a propriedade privada dos meios de produção em particular nos ensinamentos de Cristo são em vão. Nenhuma arte de interpretação pode encontrar uma única passagem no Novo Testamento que poderia ser lida como apoiando a propriedade privada. Aqueles que buscam por uma ukase bíblica precisam voltar ao Velho Testamento, ou contentar-se em disputar a afirmação de que o comunismo prevaleceu na congregação dos primeiros cristãos.[13] Ninguém nunca negou que a comunidade judaica era familiar à propriedade privada, mas isso não nos leva além na definição da atitude em relação a isso do cristianismo primitivo. Há tão pouca prova de que Jesus aprovava as ideias políticas e econômicas da Lei Judaica quanto as de que não aprovava. Cristo diz, em verdade, que ele não veio para destruir a Lei, mas para cumpri-la.[14] Mas precisamos tentar entender isso do ponto de partida que, sozinho, faz da obra de Jesus inteligível. As palavras dificilmente podem se referir às regras da Lei Mosaica, feita para a vida mundana antes da vinda do Reino de Deus, já que vários de seus comandos estão em forte contraste com essa Lei. Precisamos admitir que a referência ao “comunismo” dos primeiros cristãos não prova nada em favor do “comunismo coletivista de acordo com as noções modernas”,[15] e ainda não se deduz disso que Cristo aprovava a propriedade.[16]

Uma coisa é evidentemente clara, e nenhuma interpretação habilidosa pode escurecê-la. As palavras de Jesus estão cheias de ressentimento contra os ricos, e os Apóstolos não são mais mansos quanto a isso. O Homem Rico é condenado porque é rico, o Pedinte é aplaudido porque é pobre. A única razão pela qual Jesus não declarou guerra contra os ricos e pregou vingança contra eles foi porque Deus disse: “A vingança é minha.” No Reino de Deus os pobres serão ricos, mas os ricos deverão sofrer. Revisores tardios tentaram suavizar as palavras de Cristo contra os ricos, das quais a versão mais completa e poderosa é encontrada no Evangelho de Lucas, mas ainda há o suficiente para apoiar aqueles que induzem o mundo a odiar os ricos, à vingança, ao assassinato e à fogueira. Se atualizado ao tempo do socialismo moderno, nenhum movimento contra a propriedade privada que insurgiu no mundo cristão falhou em buscar autoridade em Jesus, nos apóstolos e nos Padres Cristãos, para não mencionar aqueles que, como Tolstói, fizeram do ressentimento do Evangelho contra os ricos o próprio coração e alma de seus ensinamentos. Isso é um caso em que as palavras do Redentor plantaram sementes do mal. Mais dano tem sido causado, e mais sangue derramado, na conta deles do que pela perseguição de hereges e a queima de bruxas. Eles têm sempre tornado a Igreja indefesa contra todos os movimentos que pretendem destruir a sociedade humana. A Igreja como uma organização tem certamente ficado do lado daqueles que tentaram afastar o ataque comunista. Mas não pôde alcançar muito nesse esforço, porque foi continuamente desarmada pelas palavras: “abençoados sejam vós, os pobres: pois é vosso o Reino de Deus.”

Nada, portanto, é menos sustentável do que a constantemente repetida afirmação de que a religião, isto é, que a confissão da fé cristã, forma uma defesa contra as doutrinas hostis à propriedade, e que isso faz as massas serem não-receptivas ao veneno do incitamento social. Cada igreja que cresce em uma sociedade construída na propriedade privada precisa, de alguma forma, estabelecer termos com a propriedade privada. Mas, considerando a atitude de Jesus no que concerne as questões da vida social, nenhuma Igreja Cristã poderia algum dia fazer qualquer coisa a mais do que um compromisso aqui, um compromisso que é efetivo somente até o ponto em que ninguém insiste em uma interpretação literal das palavras das Escrituras. Seria tolo sustentar que o Iluminismo, ao minar o sentimento religioso das massas, abriu o caminho para o socialismo. Pelo contrário, é a resistência que a Igreja ofereceu à propagação de ideias liberais que preparou o terreno para o ressentimento destrutivo pertencente ao pensamento socialista moderno. A Igreja não somente fez nada para extinguir esse fogo, mas também alimentou suas chamas. O socialismo cristão cresceu nos países católicos e protestantes, enquanto a Igreja Russa testemunhou o nascimento dos ensinamentos de Tolstói, que são inigualáveis na amargura de seu antagonismo à sociedade. É verdade, a Igreja oficial primeiro tentou resistir a esses movimentos, mas teve de se submeter a eles no final, só porque não tinha defesas contra as palavras das Escrituras.

Os Evangelhos não são socialistas e não são comunistas. Eles são, como vimos, indiferentes a todas as questões sociais por um lado, e, por outro lado, são cheios de ressentimento contra toda a propriedade e contra todos os proprietários. Tão isso é, que a doutrina cristã, uma vez separada do contexto em que Cristo a pregou — a expectativa do iminente Reino de Deus —, pode ser extremamente destrutiva. Nunca e em nenhum lugar pôde um sistema de ética social, aceitando toda a cooperação social, ser construído sobre uma doutrina que proíbe qualquer preocupação pela sustentação e pelo trabalho, enquanto expressa feroz ressentimento contra os ricos, prega o ódio contra a família, e advoga castração voluntária.

As conquistas culturais da Igreja em seus séculos de desenvolvimento são o trabalho da Igreja, e não do cristianismo. É uma questão aberta quanto desse trabalho é devido à civilização herdada do estado romano e quanto à ideia do amor cristão completamente transformada sob a influência dos estoicos e outros filósofos antigos. As éticas sociais de Jesus não tem participação nesse desenvolvimento cultural. A conquista da Igreja nesse caso foi torná-las não prejudiciais, mas sempre somente por um período limitado de tempo. Uma vez que a Igreja é obrigada a manter os Evangelhos como sua fundação, deve sempre estar preparada para uma revolta da parte daqueles dentre seus membros que põem nas palavras de Cristo uma interpretação diferente do que aquela ordenada pela Igreja.

As éticas sociais aplicáveis à vida mundana nunca podem ser derivadas das palavras dos Evangelhos. Pouco importa se são verdadeiras e se apenas reportam o que, como uma questão de história, Jesus ensinou, pois, para toda igreja cristã, esses, junto com outros livros do Novo Testamento, precisam representar a fundação sem a qual seu caráter essencial é destruído. Mesmo se a pesquisa histórica mostrasse, com um alto grau de probabilidade, que o Jesus histórico pensava e falava sobre a sociedade humana de outro modo que não aquele feito no Novo Testamento, suas doutrinas ainda permaneceriam inalteradas para a Igreja, pois, para a Igreja, aquilo que está escrito no Novo Testamento deve para sempre permanecer sendo a Palavra de Deus. Aqui, aparentemente, somente duas coisas são possíveis. Ou a Igreja pode renunciar, ao modo da Igreja Oriental, à responsabilidade de tomar qualquer atitude em relação aos problemas da ética social, no ponto em que deixa de ser uma força moral e se limita a uma ação puramente decorativa na vida. Ou então pode seguir o outro caminho tomado pela Igreja Ocidental, que tem sempre incorporado em seus ensinamentos aquelas éticas sociais que melhor serviram a seus interesses no momento e na sua posição no Estado e na sociedade. Aliou-se com os lordes feudais contra os servos, apoiou a economia escravagista das plantações americanas, mas também — no caso do protestantismo e especialmente no calvinismo — fez da moral do racionalismo crescente a sua própria. Promoveu o esforço dos locatários irlandeses contra os aristocratas ingleses, lutou com os sindicatos católicos contra os empreendedores, e com os governos conservadores contra a democracia social. E em cada caso foi capaz de justificar sua atitude com citações da Bíblia. Isso também se soma de fato à abdicação pelo cristianismo no campo da ética social, já que a Igreja se torna, portanto, uma ferramenta sem volição, nas mãos do tempo e da moda. Mas, o que é pior: tenta basear cada fase do partidarismo nos ensinamentos dos Evangelhos e, dessa forma, encoraja cada movimento a procurar justificação para seus fins nas Escrituras. Considerando o caráter das passagens das escrituras tão exploradas, é claro que as doutrinas mais destrutivas estão fadadas a vencer.

Mas mesmo se for desesperançosa a tentativa de construir uma ética social cristã independente nos Evangelhos, não deve ser possível trazer as doutrinas cristãs à harmonia com uma ética social que promova a ética social, em vez de destruí-la, e, portanto, utilizar as grandes forças do cristianismo em favor da civilização? Uma tal transformação não seria sem precedentes na história. A Igreja é agora conciliada com o fato de que a pesquisa moderna explodiu as falácias do Velho e do Novo Testamentos com seu entendimento da ciência natural. Ela não mais queima na fogueira os hereges que sustentam que o mundo se move no espaço, ou institui procedimentos inquisitoriais contra o homem que ouse duvidar do despertar de Lázaro e da ressurreição corporal dos mortos. Até mesmo padres da Igreja de Roma hoje são permitidos a estudar astronomia e a história da evolução. Não deve então o mesmo ser possível na sociologia? Não deve a Igreja reconciliar-se com o princípio social da livre cooperação pela divisão do trabalho? Não deve o próprio princípio de amor cristão ser interpretado a esse fim?

Essas são questões que interessam não somente a igreja. O destino da civilização está envolvido, já que não é como se a resistência da Igreja às ideias liberais fosse inofensiva. A Igreja é de um tão enorme poder que sua inimizade às forças que sustentam a existência da sociedade seria o suficiente para quebrar toda a nossa cultura em fragmentos. Nas últimas décadas, testemunhamos com horror sua terrível transformação em uma inimiga da sociedade, já que a Igreja, tanto católica quanto protestante, não é o menor dos fatores responsáveis pela prevalência de ideais destrutivos no mundo hoje; o socialismo cristão tem feito muito menos do que o socialismo ateísta pela realização do presente estado de confusão.

§.6
Socialismo cristão

Historicamente é fácil entender o desgosto que a Igreja mostrou pela liberdade econômica e liberalismo político sob qualquer forma. O liberalismo é a flor do iluminismo racional que deu um golpe mortal no regime da velha Igreja e da qual o criticismo histórico moderno nasceu. Foi o liberalismo que minou o poder das classes que foram por séculos intimamente atadas à igreja. Transformou o mundo mais do que o cristianismo jamais fez. Restaurou a humanidade para o mundo e para a vida. Despertou forças que chocaram as fundações do tradicionalismo inerte no qual a Igreja e o credo se residiam. A nova perspectiva causou na Igreja grande inquietação, e ela ainda não se ajustou nem mesmo às exterioridades da época moderna. É verdade, os padres em países católicos jogam água benta em ferrovias recém-construídas e em dínamos de novas centrais elétricas, mas os cristãos professados ainda estremecem interiormente aos trabalhos de uma civilização que sua fé não pode compreender. A Igreja tem forte ressentimento da modernidade e do espírito moderno. Não é surpresa, portanto, que tenha se aliado com aqueles cujo ressentimento os levou a desejar a destruição desse maravilhoso novo mundo, e febrilmente exploraram esse arsenal repleto em busca dos meios para denunciar o esforço mundano por trabalho e riqueza. A religião que se denominou religião do amor se tornou uma religião do ódio, em um mundo que parecia propício à felicidade. Quaisquer aspirantes a destruidores da ordem social moderna poderiam contar em encontrar no cristianismo um suporte.

É trágico que precisariam ter sido justamente as maiores mentes da Igreja, aqueles que entenderam a significância do amor cristão e agiram de acordo com ele, os participantes dessa obra destrutiva. Padres e monges que praticaram a verdadeira caridade cristã, ministraram e ensinaram em hospitais e prisões e souberam tudo o que há a saber sobre o a humanidade sofredora e pecadora — esses foram os primeiros a serem ludibriados pelo novo evangelho da destruição social. Apenas uma apreensão firme da filosofia liberal poderia tê-los inoculado contra o ressentimento infeccioso que ardia entre seus protegidos e foi justificado pelos Evangelhos. Do jeito que foi, tornaram-se perigosos inimigos da sociedade. Do trabalho de caridade nasceu o ódio à sociedade.

Alguns desses oponentes emocionais das ordens econômicas liberais se detiveram na oposição aberta. Outros, no entanto, tornaram-se socialistas — obviamente não se tornaram socialistas ateus como os social-democratas proletários, mas socialistas cristãos. Mas o socialismo cristão não é menos socialista.

Não foi menos um equívoco para o socialismo buscar um paralelo consigo mesmo nos primeiros séculos da era cristã como na primeira congregação. Até mesmo o “comunismo de consumidores” daquela congregação inicial desapareceu quando a expectativa do Reino vindouro começou a escapar para o segundo plano. Os métodos socialistas de produção, no entanto, não a substituíram na comunidade. O que os cristãos produziram foi produzido pelo indivíduo em sua própria fazenda ou loja. As receitas que proveram para os necessitados e cobriram o custo de atividades conjuntas vieram de contribuições, voluntárias ou compulsórias, de membros da congregação, que produziram por conta própria com seus próprios meios de produção. Algumas poucas instâncias isoladas da produção socialista podem ter ocorrido nas congregações cristãs dos primeiros séculos, mas não há evidência documentada disso. Nunca houve um professor do cristianismo cujos ensinamentos e escritos nos sejam conhecidos  recomendaram ela. Nós frequentemente encontramos os Padres Apostólicos e os Pais da Igreja exortando seus seguidores a retornar para o comunismo da primeira congregação, mas esse é sempre um comunismo de consumo. Eles nunca recomendaram a organização socialista da produção.[17]

A mais conhecida dessas exortações em favor do comunismo é a de João Crisóstomo. Na décima primeira de suas homilias sobre os Atos dos Apóstolos, o Santo aplaude o comunismo de consumo da primeira congregação cristã, e com toda a sua ardente eloquência advoga por seu reavivamento. Ele não apenas recomenda essa forma de comunismo por referência ao exemplo dos Apóstolos e seus contemporâneos, mas tenta pontuar racionalmente as vantagens do comunismo como o concebe. Se todos os cristãos de Constantinopla entregassem suas posses para uma posse comum, então tanto seria reunido que todos os cristãos pobres poderiam ser alimentados e ninguém passaria vontade, já que os custos da vida conjunta são muito menores do que o de se manter vivendo sozinho. Aqui, São João Crisóstomo apresenta argumentos similares àqueles usados hoje em dia por pessoas que advogam por casas de cozinha compartilhada ou cozinhas comunais e tentam provar aritmeticamente as economias que uma concentração da cozinha e de serviço doméstico alcançaria. Os custos, diz esse Padre da Igreja, não seriam grandes, e o fundo enorme que seria reunido pela união dos bens de indivíduos seria inesgotável, especialmente já que as bênçãos de Deus seriam então ainda mais prodigiosamente derramadas sobre os fiéis. Além disso, todo novo integrante teria de adicionar algo ao fundo geral. Essas exposições sóbrias, fatuais, nos mostram que o que Crisóstomo tinha em mente era meramente o consumo conjunto. Seus comentários nas vantagens econômicas da unificação, culminando na afirmação de que a divisão em fragmentos leva à diminuição, enquanto a unidade e a cooperação levam ao aumento do bem-estar creditam a seu autor uma percepção econômica. No todo, no entanto, suas propostas revelam uma completa falta de entendimento do problema da produção. Seus pensamentos são direcionados exclusivamente ao consumo. Que a produção vem antes do consumo, isso nunca ocorreu a ele. Todos os bens deveriam ser transferidos para a comunidade (São Crisóstomo presumivelmente pensa em sua venda, seguindo o exemplo dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos), depois do qual a comunidade deveria começar a consumir em comum. Ele não tinha percebido que isso não poderia continuar para sempre. Ele acreditava que os milhões que seriam reunidos — ele estima o tesouro entre um e três milhões de libras de peso em ouro — nunca poderiam ser usados completamente. Percebe-se que os insights econômicos do santo acabam justamente onde a sabedoria de nossos políticos sociais também tendem a acabar, onde eles tentam reorganizar toda a economia nacional à luz da experiência ganha no trabalho caridoso no campo do consumo.

São João Crisóstomo explica que as pessoas temem arriscar a mudança para o comunismo, que ele recomenda, mais do que um mergulho no oceano. E assim também a Igreja deixou a ideia do comunismo logo cair.

Pois a economia monástica não pode ser considerada como socialismo. Monastérios que não podem subsistir na base de doações privadas geralmente viveram dos dízimos e das cotas dos camponeses pagadores de aluguel e dos rendimentos das fazendas e de outras propriedades. Muito ocasionalmente os próprios monges trabalhavam, em uma espécie de base cooperativa dos produtores. Toda a existência monástica é um ideal de vida acessível somente a poucos, e a produção monástica nunca pode ser levada como um padrão para toda a riqueza comum. O socialismo, por outro lado, é um sistema econômico geral.

As raízes do socialismo cristão não são encontradas nem na Igreja primitiva e nem na medieval. Foi o cristianismo que emergiu revitalizado dos tremendos problemas de fé no século XVI que o adotou primeiro, embora apenas gradualmente e contra forte oposição.

A Igreja moderna difere da Igreja medieval no que tem lutado continuamente por sua existência. A Igreja medieval governava sem desafios; tudo o que os homens pensavam, ensinavam ou escreviam emanavam dela e eventualmente retornavam a ela. A herança espiritual da antiguidade clássica não pode fazer seu domínio estremecer, já que seu significado último estava além do entendimento de uma geração limitada por conceitos e ideias feudais. Mas em proporção conforme a evolução social progrediu em direção ao pensamento e à ação racional, os esforços dos homens em chacoalhar as limitações do pensamento tradicional no que diz respeito às verdades últimas se tornaram mais bem-sucedidos. A renascença ataca na raiz do cristianismo. Baseado na razão e arte clássicas, sua influência inevitavelmente tendeu a levar para fora da Igreja, ou ao menos deixá-la de fora da conta. Longe de tentar apertar o nó, os homens da igreja se tornaram os mais zelosos protagonistas do novo espírito. No começo do século XVI, ninguém foi mais removido do cristianismo do que a própria Igreja. A última hora da antiga fé parecia ter chegado.

E então veio a grande resposta, a contra revolta cristã. Não veio de cima, dos príncipes da Igreja ou dos monastérios, na verdade não veio nem da Igreja. Foi forçada sobre a Igreja por fora, nascendo das profundezas dos povos onde o cristianismo ainda vivia como uma força interna. O combate à Igreja moribunda com uma visão para sua reforma veio, portanto, de fora e de baixo. A reforma e a contrarreforma são duas grandes expressões desse renascimento eclesiástico. Elas diferem em origem e método, nas suas formas de culto e doutrinas prescritas, acima de tudo em suas pressuposições e conquistas em assuntos políticos; mas elas são uma em seu objetivo final: basear a ordem do mundo uma vez mais nos Evangelhos, reinstalar a fé como um poder a controlar as mentes e os corações dos homens. É a grande revolta da fé contra o pensamento, da tradição contra a filosofia conhecida pela história. Seu sucesso foi enorme, e isso criou o cristianismo como o conhecemos hoje, a religião que tem seu lugar no coração do indivíduo, que controla a consciência e conforta a alma. Mas a completa vitória não ocorreu. Embora tenha afastado a derrota — a queda do cristianismo — não pôde destruir o inimigo. Desde o século XVI, essa luta de ideias tem sido buscada quase sem intermissão.

A Igreja sabe que não pode vencer a não ser selando a fonte da qual esses oponentes continuam a retirar inspiração. Desde que o racionalismo e a liberdade espiritual do indivíduo são mantidos na vida econômica, a Igreja nunca conseguirá direcionar o pensamento e pastorear o intelecto a uma direção desejada. Para fazer isso, teria primeiro de obter a supremacia sobre toda a atividade humana. Portanto, não pode deixar de ficar satisfeita somente em viver como uma Igreja livre em um Estado livre; precisa procurar dominar esse Estado. O Papado de Roma e as igrejas protestantes nacionais ambas lutam por um  domínio que os tornaria capazes de ordenar todas as coisas temporais de acordo com seus ideais. A Igreja não pode tolerar outro poder espiritual. Todo poder espiritual independente é uma ameaça a ela, uma ameaça que aumenta de força conforme a racionalização da vida progride.

Agora, a produção independente não tolera nenhum super senhorio espiritual. Nos nossos dias, o domínio sobre a mente só pode ser obtido através do controle da produção. Todas as Igrejas são vagamente cientes disso há tempos, mas foi primeiro tornado claro a elas quando a ideia socialista, advinda de uma fonte independente, fez-se sentir como uma força poderosa e crescente com velocidade. As Igrejas então se convenceram de que a teocracia só é possível em uma comunidade socialista.

Em uma ocasião, essa ideia foi de fato concebida. Isso foi quando a Sociedade de Jesus criou aquele estado memorável no Paraguai, não era tão diferente de uma encarnação do ideal da República de Platão. Esse estado único floresceu por mais de um século, quando foi destruído por forças externas. É certo que os jesuítas não fundaram essa sociedade com a ideia de fazer um experimento social ou de estabelecer um exemplo para outras comunidades no mundo. Mas, em última análise, estavam buscando no Paraguai não mais do que tentaram conquistar em todos os outros lugares, mas sem sucesso, por causa da grande resistência que encontraram. Tentaram trazer leigos — como crianças precisando da guarda da Igreja — para dentro do governo beneficente da Igreja e de sua própria Ordem. Nem a ordem jesuíta nem qualquer outro corpo eclesiástico tentaram algo como o experimento paraguaio desde então. Mas é evidente que todas as Igrejas ocidentais, como a Igreja Católica Romana, buscam o mesmo objetivo. Remova todos os obstáculos que obstruem a Igreja hoje, e nada vai prevenir que ela repita a conquista paraguaia em todos os lugares.

Que a Igreja, geralmente falando, toma uma atitude negativa a ideias socialistas não refuta a verdade desses argumentos. Opõe qualquer socialismo que efetivar-se-ia em qualquer base que não a sua própria. É contra o socialismo como concebido pelos ateus, já que isso atacaria suas próprias raízes; mas não tem hesitação em abordar ideais socialistas uma vez que essa ameaça é removida. A Igreja prussiana está à frente do Socialismo de Estado Prussiano e a Igreja Católica Romana busca em todos os lugares seu ideal social cristão.

Na face de todas essas evidências, pareceria que somente uma resposta negativa pode ser feita à questão feita acima: se é ou não possível reconciliar o cristianismo com uma ordem social livre baseada na propriedade privada dos meios de produção. Um cristianismo vivo não pode, parece, existir ao lado do capitalismo. Como no caso das religiões orientais, o cristianismo precisa ou superar o capitalismo ou aguentá-lo. Ainda assim, na luta contra o capitalismo hoje em dia, não há grito de guerra mais efetivo do que o socialismo, agora que a sugestão de um retorno à ordem social medieval encontra poucos apoiadores.

Mas pode haver uma alternativa. Ninguém pode prever com certeza como a Igreja e o cristianismo vão mudar no futuro. O Papado e o Catolicismo agora enfrentam problemas incomparavelmente mais difíceis do que todos os que tiveram de resolver por mais de mil anos. A Igreja Universal global está ameaçada em sua própria essência pelo nacionalismo chauvinista. Pelo refinamento da arte política, ela conseguiu manter o princípio do catolicismo com todo o alvoroço das guerras nacionais, mas precisa entender mais claramente a cada dia que sua continuação é incompatível com ideias nacionalistas. A não ser que esteja preparada para sucumbir e dar lugar a igrejas nacionais, precisa expulsar o nacionalismo por uma ideologia que faça possível que as nações vivam e trabalhem juntas em paz. Mas, fazendo isso, a Igreja encontrar-se-ia inevitavelmente comprometida com o liberalismo. Nenhuma outra doutrina serviria.

Se a Igreja Romana for achar qualquer saída para essa crise que o nacionalismo trouxe, então ela precisa ser completamente transformada. Pode ser que essa transformação e reformação leve à aceitação incondicional da indispensabilidade da propriedade privada dos meios de produção. No presente, ainda está longe disso, como testemunha da encíclica recente Quadragesimo anno.

 

______________________________________

Notas

[1]              Compare a caracterização da igreja oriental dada por Harnack (Das Mönchtum, 7th Edition, Giessen 1907, p. 32 et seq.)

[2]              Harnack, Das Wesen des Christentums, 55th thousand, Leipzig 1907, p. 50 et seq.

[3]              Marcos, 1, 15.

[4]              Lucas, 22, 30.

[5]              Harnack, Aus Wissenschaft und Leben, Vol. II, Giessen 1911, p. 257 et seq.; Troeltsch, Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen, p. 31 et seq.

[6]              Atos dos Apóstolos, 4, 35.

[7]              Lucas, 14, 26.

[8]              Pfleiderer, Das Urchristentum, Vol. I, p. 649 et seq.

[9]              Lucas, 12, 35-36.

[10]             A doutrina da lei medieval do comércio é enraizada no dogma canônico da esterilidade do dinheiro e na soma dos corolários que precisam ser entendidos sob o nome da Lei da Usura. A história da lei do comércio daqueles tempos não pode ser senão a história da regra da doutrina da usura na doutrina legal. (Endemann, Studien in der romanisch-katolistischen Wirtschafts und Rechtslehre bis gegen Ende des siebzehnten Jahrhunderts, Berlim 1874-83, Vol. I, p. 2).

[11]             Lucas, 6, 35.

[12]             C. 10. X. De usuris (III, 19). — Ver Schaub, Der Kampf gegen den Zinswucher, ungerechtum Preis und unlautern Handel im Mittelalter, Freiburg 1905, p. 61 et seq.

[13]             Pesch, Lehrbuch der Nationalökonomie, p. 212 et seq.

[14]             Mateus, 5:17.

[15]             Pesch, op. cit., p. 212.

[16]             Pfleiderer (Das Urchristentum, Vol. I, p. 651) explica o julgamento pessimista de Jesus das possessões mundanas pela expectativa apocalíptica da catástrofe próxima do mundo. “em vez de tentar reinterpretar e adaptar Suas rigorosas expressões nesse respeito no sentido de nossa ética social moderna, deve-se fazer-se familiar, de uma vez por todas, com a ideia de que Jesus não apareceu como um moralista racional, mas como um profeta entusiasmado do iminente Reino de Deus e só então se tornou a fonte da religião da salvação. Aquele que quer fazer o entusiasmo escatológico do profeta a autoridade direta e permanente para a ética social o faz tão sabiamente quanto aquele que gostaria de aquecer seu coração e cozinhar sua sopa com as chamas de um vulcão.” Em 25 de Maio de 1525, Lutero Escreveu ao Conselho de Danzig: “O Evangelho é uma lei espiritual pela qual não se pode governar bem”. Ver Neumann, Geschichte des Wuchers in Deutschland, Halle 1865, p.618. E também Traub, Ethik und Kapitalismus, 2nd Edition, Heilbronn 1909, p. 71.

[17]             Seipel, Die wirtschaftsethischen Lehren der Kirchenväter, Viena 1907, p. 84 et seq.

Ludwig von Mises
Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.
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