InícioUncategorizedCapítulo 9: Troca e Divisão do Trabalho

Capítulo 9: Troca e Divisão do Trabalho

[Reproduzido do capítulo 7 “Relações interpessoais: troca voluntária”, de A ética da liberdade (Nova York: New York University Press, 1998), pp. 35-41.]

 

É chegada a hora de trazer outros homens à nossa composição robinsoniana — para estender nossa análise a relações interpessoais. O problema para a nossa análise não consiste no simples aparecimento de mais pessoas, afinal, poderíamos apenas postular um mundo formado por um milhão de Crusoés em um milhão de ilhas isoladas e nossa análise não precisaria ser nem um pouco estendida. O problema é analisar a interação dessas pessoas. O Sexta-feira, por exemplo, poderia aportar em uma outra parte da ilha e fazer contato com Crusoé, ou poderia aportar em uma ilha separada para depois construir um barco que poderia alcançar a outra ilha. A economia revelou uma grande verdade sobre a lei natural da interação humana: que não só a produção é essencial à prosperidade e à sobrevivência do homem, como também é a troca. Em resumo: Crusoé, em sua ilha ou em parte dela, pode produzir peixes, enquanto Sexta-feira, em sua parte, pode cultivar trigo, em vez de ambos tentarem produzir as duas mercadorias. Ao trocar parte do peixe de Crusoé por certa quantidade do trigo de Sexta-feira, os dois homens podem aumentar muito o total de peixe e de trigo que podem desfrutar.[1] Este grande ganho para os dois homens só é possível devido a dois fatos primordiais da natureza — leis naturais — nos quais toda a teoria econômica é baseada: (a) a grande variedade de habilidades e de interesses peculiares a cada pessoa; e (b) a variedade de recursos naturais nas diferentes áreas geográficas. Se todas as pessoas fossem igualmente habilidosas e igualmente interessadas em todos os assuntos e, se todas as áreas do planeta fossem homogêneas, não haveria espaço para as trocas. Mas, da maneira que o mundo é, a oportunidade para especialização nas melhores funções para a terra e para as pessoas possibilita que as trocas se multipliquem vastamente e aumentem imensamente a produtividade e os padrões de vida (a satisfação dos desejos) de todos que tomam parte delas.

Se alguém deseja compreender o quanto nós devemos ao processo de troca, basta considerar o que poderia acontecer com o mundo moderno se todos os homens fossem repentinamente proibidos de trocar qualquer coisa com qualquer outro homem. Cada pessoa seria obrigada a produzir ela mesma todos os seus próprios bens e serviços. O caos total, a fome completa de grande parte da raça humana e o retorno ao estado primitivo de subsistência por parte da meia dúzia de pessoas remanescentes podem ser facilmente imaginados.

Outro fato notável da ação humana é que A e B podem se especializar e trocar em benefício mútuo mesmo se um deles for superior ao outro nas duas linhas de produção. Desta maneira, suponha que Crusoé é superior a Sexta-feira na pesca e no cultivo de trigo, ainda é melhor para Crusoé se concentrar naquilo em que ele é relativamente mais eficiente. Se, por exemplo, ele é um pescador muito melhor do que Sexta-feira, mas um fazendeiro só um pouco melhor, ele pode ganhar mais de ambos os produtos ao se concentrar na pesca e então trocar seu produto pelo trigo de Sexta-feira. Ou, para usar um exemplo de uma economia de troca desenvolvida, vale a pena um médico contratar uma secretária para digitar, arquivar, etc. mesmo se ele for melhor nestes trabalhos, a fim de liberar seu tempo para um trabalho muito mais produtivo. Esta revelação das vantagens da troca, descoberta por David Ricardo em sua Lei da Vantagem Comparativa, significa que, em um livre mercado de trocas voluntárias, o “forte” não devora ou esmaga o “fraco”, ao contrário do que diz a suposição comum sobre a natureza da economia de livre mercado. Muito pelo contrário, é precisamente no livre mercado que o “fraco” tira proveito das vantagens da produtividade porque é benéfico para o “forte” trocar com eles.

O processo de troca possibilita ao homem ascender do isolamento primitivo à civilização: ele amplia enormemente suas oportunidades e o mercado de seus produtos; possibilita ao homem investir em máquinas e em outros “bens de capital de ordem superior”; cria um padrão de trocas — o livre mercado — que o possibilita calcular economicamente os benefícios e os custos de métodos e agregados de produção altamente complexos.

Mas os economistas quase sempre se esquecem, ao contemplarem a importância crucial e as glórias do livre mercado, o que precisamente está sendo trocado, pois maçãs não estão sendo simplesmente trocadas por manteiga, ou ouro por cavalos. O que realmente está sendo trocado não são as mercadorias em si, mas os direitos de propriedade sobre elas. Quando Silvio troca um saco de maçãs por meio quilo de manteiga de João, ele está, na verdade, transferindo seus direitos de propriedade das maçãs em troca dos direitos de propriedade da manteiga, e vice-versa. Agora que Silvio, e não mais João, é o controlador absoluto da manteiga, é Silvio quem pode comê-la ou não, de acordo com sua vontade; agora João não tem nada a dizer quanto à disposição dela; ele é, em vez disso, dono absoluto das maçãs.

Voltando agora a Crusoé e Sexta-feira, suponha que mais pessoas, C, D, E… se juntam aos dois na ilha. Cada uma especializa-se em produtos diferentes; gradualmente, um produto em particular emerge — por possuir qualidades como alto valor, demanda fixa, fácil divisibilidade — como um meio de troca. É constatado que o uso de um meio amplia enormemente o escopo das trocas e dos desejos que podem ser realizados no mercado. Deste modo, um escritor ou um professor de economia achariam complicado trocar seus ensinamentos, ou escritos, por fatias de pão, partes de um rádio, uma peça de um terno, etc. Um meio de aceitação geral é indispensável para qualquer rede de troca ampla, portanto, para qualquer economia civilizada.

Um meio de troca tão geralmente aceito é definido como dinheiro. Usualmente considera-se, no livre mercado, que a melhor mercadoria para ser usada como dinheiro são os metais preciosos, o ouro e a prata. A sequência de trocas mostra-se agora da seguinte maneira: A, possuindo seu corpo e seu trabalho, encontra terra, a transforma e produz peixe que ele, por conseguinte, possui; B semelhantemente usa seu trabalho para produzir trigo, que ele, então, possui; C encontra terra com ouro, a transforma, produz o ouro que ele, por isso, possui. C então troca o ouro por outros bens, digamos que pelo peixe de A. A usa o ouro para trocar pelo trigo de B, etc. Resumindo: o ouro “entra em circulação”, i.e., sua propriedade é transferida de pessoa para pessoa enquanto ele é usado como um meio de troca geral. Em cada um dos casos, os cambistas transferem direitos de propriedade e os direitos de propriedade são adquiridos de duas maneiras, e somente destas duas maneiras: (a) encontrando e transformando recursos (“produzindo”) e (b) trocando o produto de um pelo produto de outro — incluindo o meio de troca ou mercadoria “dinheiro”. E é claro que o método (b) remete logicamente ao (a), pois a única maneira pela qual uma pessoa pode obter alguma coisa em troca é entregando seu próprio produto. Em resumo: existe apenas uma rota que leva à propriedade de bens: produção e troca. Se Silvio entrega um produto em troca de um produto de João, que João também adquiriu em uma troca prévia, então alguém, seja a pessoa de quem João comprou o produto ou alguma outra ao longo do processo, precisa ter sido o descobridor e transformador original do recurso.

Um homem pode, então, adquirir “riqueza” — um estoque de bens de capital ou de consumo proveitosos — ou “produzindo-os” ele mesmo, ou vendendo para seu produtor em troca de algum outro produto. O processo de troca pode ser logicamente rastreado até a produção original. Esta produção é um processo pelo qual o homem “mistura seu trabalho com o solo” — encontrando e transformando recursos da terra ou, naqueles casos como o do professor ou do escritor, produzindo e vendendo diretamente seus próprios serviços. Em outras palavras: já que toda produção de bens de capital provém, no final das contas, dos fatores originais terra e trabalho, toda produção se origina ou nos serviços de mão de obra, ou na descoberta de terra nova e virgem e na colocação dela em produção por meio da energia do trabalho.[2]

Um homem também pode obter riqueza voluntariamente de outra maneira: por meio de doações. Assim, Crusoé, ao encontrar Sexta-feira por acaso em outro extremo da ilha, pode dar a ele algo para seu sustento. Neste caso, o doador não recebe da outra parte mais um bem ou serviço alienável, mas a satisfação psíquica de ter feito algo pelo recebedor. No caso de uma doação, igualmente, o processo de aquisição pode ter sua origem rastreada até a produção e a troca e, mais uma vez, no final das contas, à própria produção, já que uma doação precisa ser precedida pela produção, se não diretamente como neste caso, então em alguma outra parte ao longo do processo.

Até aqui nós analisamos o processo para um grande número de trocas de bens de consumo. Nós agora temos que completar o quadro do mundo real analisando as trocas ao longo da estrutura de produção, pois as trocas em uma economia desenvolvida não são apenas “horizontais” (de bens de consumo), mas também “verticais”: elas avançam sucessivamente a partir da transformação original da terra, passando pelos vários tipos de bens de capital, até finalmente chegarem à derradeira condição do consumo.

Consideremos um simples padrão vertical como o que ocorre na economia de troca. Silvio transforma os recursos da terra e fabrica um machado; em vez de usar o machado para fazer outro produto, Silvio, por ser um especialista numa ampla economia de troca, vende seu machado em troca de ouro (dinheiro). Silvio, o produtor do machado, transfere seu direito de propriedade a João em troca de certa quantidade de ouro dele — sendo a quantia exata de ouro acertada voluntariamente entre as duas partes. Agora João pega o machado e corta madeira, então vende a madeira para José em troca de ouro; José, em seguida, vende a madeira para Roberto, um empreiteiro, em troca de ouro, e Roberto, por sua vez, constrói uma casa em troca do ouro de seu cliente, Breno.  (Deve ficar claro que esta rede de troca vertical não poderia acontecer sem o uso de um meio monetário para as trocas).

Para completar nosso quadro de uma economia de mercado, suponhamos que João cortou sua madeira, mas tem que transportá-la rio abaixo para transferi-la a José; João, então, vende a madeira para outro intermediário, Pedro, que contrata os serviços de X, Y e Z para transportarem as toras para José. O que foi que aconteceu, e porque o uso do trabalho de X, Y e Z de transformar e transportar as toras para um local mais aproveitável não concedeu a eles os direitos de propriedade das toras?

O que aconteceu é o seguinte: Pedro transferiu um pouco de ouro para X, para Y e para Z, em troca de eles lhe venderem seus serviços de mão de obra de transporte de toras. Pedro não vendeu as toras para estes homens em troca de dinheiro; ao invés disso, ele lhes “vendeu” dinheiro em troca do uso de seus serviços de mão de obra com suas toras. Resumindo, Pedro pode ter comprado as toras de João por 40 onças de ouro, e então pagado 20 onças de ouro a X, Y e Z separadamente para que transportassem as toras, para, então, vender as toras para José por 110 onças de ouro. Consequentemente, Pedro obteve um lucro líquido de 10 onças de ouro na transação toda. Se X, Y e Z assim tivessem desejado, eles mesmos poderiam ter comprado as toras de João por 40 onças, e as transportado, vendendo para José por 110 e embolsando as 10 onças extras. Por que não fizeram isso? Porque (a) não tinham o capital; resumindo, eles não guardaram o dinheiro necessário, não reduziram seus consumos anteriores suficientemente abaixo de suas rendas para que acumulassem as 40 onças; ou (b) queriam pagamento em dinheiro enquanto trabalhavam, e não queriam esperar os meses necessários para que as toras sejam transportadas e vendidas; ou (c) estavam receosos de ficarem endividados com o risco de que as toras pudessem de fato não serem vendidas a 110 onças. Portanto, a função indispensável e grandemente importante de Pedro, o capitalista em nosso exemplo de economia de mercado, é resguardar os trabalhadores da necessidade de restringir seus consumos, assim eles mesmos poupam o capital, e de esperarem seus pagamentos até que o produto fosse (esperançosamente) vendido com lucro mais à frente na cadeia de produção. Consequentemente, o capitalista, não priva de forma alguma o trabalhador de sua legítima propriedade no produto, pelo contrário, ele possibilita um pagamento ao trabalhador com uma considerável antecedência da venda do produto. Além disso, o capitalista, com sua capacidade de previsão, ou de empresário, livra o trabalhador do risco de o produto não ser vendido com lucro, ou até de ser vendido com prejuízo.

O capitalista, então, é um homem que trabalhou, juntou economias do seu trabalho (i.e., restringiu seu consumo) e, em uma série de contratos voluntários (a) comprou direitos de propriedade de bens de capital, e (b) pagou os trabalhadores pelos seus serviços de mão de obra de transformar aqueles bens de capital em bens mais próximos do estágio final em que são consumidos. Repare novamente que ninguém está impedindo os próprios trabalhadores de economizarem, comprarem os bens de capital de seus donos e então trabalharem em seus próprios bens de capital, vendendo por fim o produto e colhendo seus lucros. Na verdade, os capitalistas estão concedendo um grande benefício a estes trabalhadores, tornando possível toda a complexa rede de trocas vertical da economia moderna, pois eles economizam o dinheiro necessário para comprar os bens de capital e para pagar os trabalhadores antes de a venda se concretizar, o que os permite continuar “produzindo” também à frente.[3]

A cada etapa do caminho, então, o homem produz — ao empregar seu trabalho em bens tangíveis. Se este bem não tinha sido usado previamente nem tinha dono, então seu trabalho automaticamente coloca o bem sob seu controle, sob sua “propriedade”. Se o bem já era propriedade de outra pessoa, então o proprietário pode ou vender este bem (de capital) para nosso trabalhador em troca de dinheiro, após seu serviço de mão de obra ser executado sobre o bem; ou o proprietário anterior pode comprar o serviço de mão de obra em troca de dinheiro a fim de produzir mais o bem e então vendê-lo ao próximo comprador. Este processo também pode ser reduzido até sua origem na produção original de recursos virgens e no trabalho, já que o capitalista — o proprietário anterior em nosso exemplo — no final das contas deriva sua própria propriedade de: produção original; troca voluntária; e da economia de dinheiro. Assim, toda propriedade no livre mercado pode ter sua origem rastreada até: (a) a propriedade de cada homem de sua própria pessoa e de seu próprio trabalho; (b) a propriedade de cada homem da terra que descobre e que é transformada através de seu próprio trabalho; e (c) a troca dos produtos desta mistura de (a) e (b) com o que foi produzido de maneira similar por outras pessoas no mercado.

A mesma lei vale para toda propriedade de artigos usados como dinheiro no mercado. Como vimos, ou o dinheiro é (1) produzido pelo próprio trabalho que transforma recursos originais (e.g., minerando ouro); ou (2) obtido através da venda do próprio produto — ou da venda de bens previamente comprados com o lucro do próprio produto — em troca de ouro possuído por outra pessoa. Novamente, assim como (c) do parágrafo anterior é uma derivação lógica de (a) e (b), aqui também a produção vem antes da troca — deste modo, no final das contas, aqui (2) provém de (1).

Então, na sociedade livre que estamos descrevendo, no final das contas, toda propriedade se origina da propriedade que cada homem tem sobre si mesmo, que lhe é dada naturalmente, e dos recursos da terra que o homem transforma e converte em produtos. O livre mercado é uma sociedade de trocas voluntárias, e consequentemente mutuamente benéficas, de títulos de propriedade entre produtores especializados. Uma acusação que aparece frequentemente é a de que esta economia de mercado baseia-se na perversa doutrina de que o trabalho “é tratado como uma mercadoria”. Mas a realidade natural é que o serviço é de fato uma mercadoria, pois, como no caso de propriedades tangíveis, o serviço de uma pessoa pode ser alienado e trocado por outros bens e serviços. O trabalho de uma pessoa é alienável, mas sua vontade não é. Além disso, é melhor para a humanidade que seja assim; pois esta alienabilidade significa (1) que um professor ou um médico, ou seja quem for, pode vender seus serviços por dinheiro; e (2) que os trabalhadores podem vender aos capitalistas, por dinheiro, seus serviços de transformar bens. Se isto não pudesse ser feito, a estrutura de capital necessária para a civilização não poderia ser desenvolvida, e os serviços de importância vital de uma pessoa nunca poderia ser comprado por seus semelhantes.

A distinção entre o trabalho alienável de um homem e sua vontade inalienável pode ser explicada a seguir: um homem pode alienar seu trabalho, mas ele não pode vender o valor futuro capitalizado deste trabalho. Em resumo, ele não pode, pela própria natureza das coisas, vender-se como um escravo e ter esta venda cumprida — pois isto significaria que sua futura vontade sobre sua própria pessoa estaria sendo renunciada antecipadamente. Em suma, um homem pode naturalmente empregar seu trabalho presentemente para o benefício de outrem, mas ele não pode se colocar, mesmo se ele desejar, como bem de capital permanente de outro homem, pois ele não pode se livrar de sua própria vontade, a qual pode mudar nos anos vindouros, passando a repudiar o acordo presente. O conceito de “escravidão voluntária” é de fato um conceito contraditório, pois, contanto que um trabalhador permaneça completamente subserviente à vontade de seu mestre voluntariamente, ele continua não sendo um escravo, pelo fato de sua submissão ser voluntária; ao passo que, se ele mudar de ideia mais tarde e o mestre impuser sua escravidão por meio de violência, a escravidão então não seria voluntária. Mas falarei mais sobre coerção mais à frente.

A sociedade que estamos descrevendo nesta seção — a sociedade de trocas livres e voluntárias — pode ser denominada de “sociedade livre” ou de sociedade da “liberdade genuína”. A parte principal deste trabalho será dedicada a explicar em detalhes as implicações de tal sistema. O termo “livre mercado”, ao significar propriamente a decisivamente importante rede de trocas livres e voluntárias, é insuficiente quando ultrapassa de alguma maneira os limites econômicos ou praxeológicos. É imprescindível constatar que o livre mercado consiste em trocas de títulos de propriedade, e que, portanto, o livre mercado está necessariamente embutido em uma sociedade mais livre — com determinado padrão de títulos e de direitos de propriedade. Estamos descrevendo a sociedade livre como uma sociedade onde os títulos de propriedade fundamentam-se nas realidades naturais básicas do homem: a propriedade do ego de cada indivíduo sobre sua própria pessoa e seu próprio trabalho, e sua propriedade sobre os recursos da terra que ele encontra e transforma. A alienabilidade natural da propriedade tangível, assim como dos trabalhos do homem, torna possível a rede de livres trocas de títulos de propriedade.

O regime de liberdade genuína — a sociedade libertária — pode ser descrito como uma sociedade onde nenhum título de propriedade é “distribuído”, onde, em resumo, nenhuma propriedade do homem sobre sua pessoa ou sobre bens tangíveis é molestada, violada ou prejudicada por qualquer outro homem. Mas isto significa que a liberdade absoluta, no sentido social, pode ser desfrutada, não apenas por um Crusoé isolado, mas por todo homem em qualquer sociedade, não importa quão complexa ou desenvolvida, pois todo homem desfruta de liberdade absoluta — liberdade genuína — se, como no caso de Crusoé, sua propriedade “naturalmente” possuída (em sua pessoa e em bens tangíveis) está livre de invasões ou molestamentos de outros homens. E, obviamente, por estarem em uma sociedade de trocas voluntárias, cada homem pode desfrutar de liberdade absoluta, não como no isolamento de Crusoé, mas em um ambiente de civilização, de harmonia, de sociabilidade e enormemente mais produtivo por meio de trocas de propriedades com seus semelhantes. A liberdade absoluta, então, não precisa ser perdida como um preço a pagar pelo advento da civilização; os homens nascem livres, e nunca precisam ser acorrentados. O homem pode alcançar a liberdade e a fartura, a liberdade e a civilização.

Esta verdade será ocultada se nós continuarmos a confundir “liberdade” com poder. Nós vimos o quão absurdo é dizer que o homem não possui livre arbítrio por ele não ter o poder de violar as leis de sua natureza — porque ele não pode saltar por cima de oceanos com um simples pulo. É igualmente absurdo dizer que um homem não é “verdadeiramente” livre em uma sociedade livre porque, nesta sociedade, nenhum homem é “livre” para agredir outro homem ou para invadir sua propriedade. Aqui, novamente, o crítico não está realmente lidando com liberdade e sim com poder; em uma sociedade livre, a nenhum homem seria permitido (ou nenhum permitiria a si mesmo) invadir a propriedade de outro. Isto significaria que seu poder de ação seria limitado; porque o poder do homem sempre é limitado por sua natureza; isto não significaria qualquer restrição de sua liberdade, pois se definimos liberdade, novamente, como ausência de invasão, de qualquer propriedade ou pessoa, exercida por outro homem, a confusão fatal entre liberdade e poder é finalmente sepultada.[4] Então enxergamos claramente que uma suposta “liberdade de roubar e assaltar” — em suma, de agredir — não seria nem um pouco um estado de liberdade, porque isto permitiria que alguém, a vítima de um assalto, fosse privado de seu direito à pessoa e à propriedade — resumindo, ter sua liberdade violada.[5] O poder de cada homem, então, é necessariamente sempre limitado pela realidade da condição humana, pela natureza do homem e de seu mundo; mas uma das glórias da condição do homem é que cada pessoa pode ser absolutamente livre, mesmo em um mundo de trocas e de interações complexas. Também é verdade, além disso, que qualquer poder que o homem tem de agir, de fazer e de consumir é enormemente maior em tal mundo de interação complexa do que seria em uma sociedade primitiva ou de Crusoé.

Um ponto fundamental: se estamos tentando estabelecer uma ética para o homem (em nosso caso, o subconjunto da ética que lida com a violência), então, para que seja uma ética válida, a teoria precisa valer para todos os homens, seja qual for a sua localização no tempo ou no espaço.[6] Este é um dos notáveis atributos da lei natural — sua aplicabilidade a todos os homens, não importando o tempo e o lugar. Assim, a lei natural ética toma seu lugar ao lado das leis naturais físicas ou “científicas”. Mas a sociedade da liberdade é a única sociedade que pode aplicar a mesma regra básica para todos os homens, não importando o tempo e o lugar. Aí está uma das maneiras pela qual a razão pode selecionar uma teoria de lei natural ao invés de uma teoria rival — da mesma maneira que a razão pode escolher entre tantas teorias econômicas ou outras teorias concorrentes. Portanto, se alguém reivindica que a família Bourbon ou a Hohenzollern tem o “direito natural” de governar a todos, este tipo de doutrina pode ser facilmente refutada simplesmente ao chamar a atenção para o fato de que aí não existe uma ética uniforme para todas as pessoas: o posicionamento de alguém na ordem ética depende do acidente de ser, ou não ser, um Hohenzollern. Semelhantemente, se alguém diz que todo homem tem um “direito natural” a três refeições satisfatórias por dia, é extremamente óbvio que isto é uma lei natural ou teoria de direitos naturais falaciosa; pois existem inúmeros tempos e lugares em que é fisicamente impossível fornecer três refeições satisfatórias para todos, ou mesmo para a maioria da população. Consequentemente, isto não pode ser anunciado como algum tipo de “direito natural”. Por outro lado, considere o status universal da ética da liberdade e do direito natural à pessoa e à propriedade que se obtém sob uma ética dessas. Toda pessoa, em qualquer tempo ou lugar, pode ser incluída nas regras básicas: propriedade dela de si mesma, propriedade dos recursos não usados previamente que ela ocupou e transformou; e propriedade de todos os títulos derivados daquela propriedade básica — por meio de trocas voluntárias ou de doações voluntárias. Estas regras — que podemos chamar de “regras da propriedade natural” — podem ser evidentemente aplicadas, e esta propriedade defendida, em todos os tempos e lugares, não importando as realizações econômicas da sociedade. É impossível que qualquer outro sistema social qualifique-se como uma lei natural universal; pois se existe qualquer imposição de regras coercivas de uma pessoa ou de um grupo sobre outro (e toda regra tem alguma das características deste tipo de hegemonia), então é impossível aplicar a mesma regra para todos; somente um mundo sem regras, puramente libertário, pode satisfazer as qualificações dos direitos naturais e da lei natural, ou, mais importante, pode satisfazer as condições de uma ética universal para toda a humanidade.

 

_________________________________

Notas

[1] Sobre a análise econômica de tudo isto, veja Murray N. Rothbard, Man, Economy, and State (Princeton, N.J.: D. Van Nostrand, 1962), Cap. 2.

[2] O fato de os bens de capital terem a terra e o trabalho como seus fatores originais é uma revelação fundamental da Escola Austríaca de economia. Particularmente veja Eugen von Böhm-Bawerk, The Positive Theory of Capital, vol. 2 de Capital and Interest (South Holland, III.: Libertarian Press, 1959).

[3] Em termos técnicos de economia, os trabalhadores, ao escolherem receber o dinheiro antes da venda do produto, obtêm o produto de seu trabalho “descontado o valor marginal” — o desconto sendo o valor que os trabalhadores alcançam ao receber o dinheiro agora em vez de depois. Os capitalistas, ao antecipar o dinheiro agora e aliviar os trabalhadores do fardo de esperar até depois, obtêm o desconto pela “preferência temporal”; os mais perspicazes também obtêm a recompensa por serem melhores em prever o futuro diante de condições de incerteza, na forma de “lucro puro”. Os empreendedores menos perspicazes sofrem prejuízos quando tomam decisões desafortunadas em condições de incertezas. Veja Rothbard, Man, Economy, and State, em vários trechos.

[4] Devemos ver mais tarde que esta definição de liberdade precisa ser esclarecida para ser entendida como “ausência de molestamento da propriedade justa de um homem”, justamente implicando, mais uma vez, títulos de propriedade de si próprio, da propriedade transformada por si mesmo, e dos frutos de trocas voluntárias construídos através destes tipos de propriedade.

[5] Para uma crítica do argumento da “liberdade de roubar ou assaltar” contra a posição libertária, veja Murray N. Rothbard, Power and Market, 2nd ed. (Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1977), pág. 242

[6] Sobre a exigência de as leis éticas serem universalmente obrigatórias, veja R.M.  Hare, The Language of Morals (Oxford: Clarendon Press, 1952), pág. 162; Marcus Singer, Generalization in Ethics (New York: Knopf, 1961), págs. 13-33.

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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