1. A grande depressão do século XIV
A maior parte das pessoas — incluindo historiadores — são tentadas a pensar que o progresso econômico e cultural é contínuo: em cada século as pessoas estão em melhor situação do que no anterior. Essa suposição reconfortante teve de ser abandonada muito cedo, quando a Idade das Trevas se sucedeu após o colapso do Império Romano. Mas foi geralmente considerado que após o “renascimento” no século XI, o progresso na Europa Ocidental foi bastante linear e contínuo até os dias de hoje. Foram necessários esforços heroicos ao longo de muitas décadas para que historiadores econômicos como os professores Armando Sapori e Robert Sabatino López finalmente convencessem a profissão histórica de que havia um grave declínio secular na maior parte da Europa Ocidental, de aproximadamente 1300 para meados do século XV; Um período que pode ser chamado de Idade Média Tardia, ou Início do Renascimento. Esse declínio secular, deu um título errôneo para uma “depressão”, permeou a maior parte da Europa Ocidental, com exceção de algumas poucas cidades-estados italianas.
O declínio econômico foi marcado por uma forte queda da população. Desde o século XI, o crescimento econômico e a prosperidade haviam aumentado os números relativos à população. A população total da Europa ocidental, estimada em 24 milhões de habitantes no ano 1000 d.C., tinha saltado para 54 milhões no ano de 1340. Em pouco mais de um século, de 1340 a 1450, no entanto, a população da Europa ocidental caiu de 54 milhões para 37 milhões, uma queda de 31% em apenas um século.
O sucesso da batalha para estabelecer o fato do grande declínio, entretanto, fez muito pouco para estabelecer a causa ou as causas dessa ruína. O foco na devastação causada pelos surtos de Peste Negra em meados do século XIV é parcialmente correto, porém superficial, pois esses surtos foram causados, em parte, por um colapso econômico e uma queda do nível de vida que começou no início do século. As causas da grande depressão da Europa Ocidental podem ser resumidas numa frase dura: o recém-imposto domínio do estado. Durante a síntese medieval da alta Idade Média houve um equilíbrio entre o poder da igreja e do estado, com a Igreja sendo um pouco mais poderosa. No século XIV esse equilíbrio foi quebrado, e o estado-nação passou a dominar, quebrando o poder da Igreja, cobrando impostos, regulando, controlando e causando devastação através de guerras praticamente contínuas por mais de um século (a Guerra dos Cem Anos, de 1337 a 1453).[1]
O primeiro e mais importante passo crítico na ascensão do poder do estado em detrimento da economia foi a destruição das Feiras de Champagne. Durante a alta Idade Média, as Feiras de Champagne eram o principal mercado para o comércio internacional, e o centro do comércio local e internacional. Essas feiras tinham sido cuidadosamente alimentadas por serem feitas como zonas francas, não tributadas ou não reguladas pelos reis ou nobres franceses, enquanto a justiça era aplicada de forma rápida e eficiente por tribunais concorrentes privados e de mercadores. As Feiras de Champagne atingiram seu ápice no século XIII, e providenciaram o centro para o comércio terrestre nos Alpes do Norte da Itália, trazendo bens de longe.
Em seguida, no início do século XIV, Filipe IV, O Belo, rei da França (1285-1314), passou a tributar, saquear e efetivamente destruir as vitais e importantes feiras de Champagne. Para financiar suas guerras dinásticas perpétuas, Filipe cobrava impostos sobre as vendas nas feiras de Champagne. Ele também destruiu o capital interno e as finanças através de repetidas contribuições obrigatórias sobre determinados grupos ou organizações que tinham dinheiro. Em 1308, ele destruiu a rica Ordem dos Templários, confiscando seus fundos para o tesouro real. Filipe então tornou a impor uma série de taxas incapacitantes e confiscos sobre os judeus e italianos do norte (“lombardos”), que eram proeminentes nas feiras em 1306, 1311, 1315, 1320 e 1321. Além disso, em guerra com os flamengos, Filipe quebrou o costume de longa data de que todos os mercadores eram bem-vindos nas feiras, e decretou a exclusão dos flamengos. O resultado dessas medidas foi o declínio rápido e permanente das feiras e rotas de comércio pelos Alpes. Desesperadamente, cidades-estados italianas começaram a reconstruir rotas comerciais e a navegar em torno do Estreito de Gibraltar para Bruges, que começou a florescer mesmo que o resto de Flandres estivesse em decadência.
Era especialmente fatídico que Felipe, o Belo, inaugurasse o sistema de tributação regular na França. Antes disso, não havia impostos regulares. Na Era Medieval, enquanto o rei deveria ser todo-poderoso na sua própria esfera, essa esfera estava restringida pela santidade da propriedade privada. O rei deveria ser um armado executor e defensor da lei, e suas receitas deveriam derivar de aluguéis em terras reais, dívidas feudais e portagens. Não havia nada que poderíamos chamar de tributação regular. Em uma emergência, como uma invasão ou uma cruzada, o príncipe, além de invocar o dever feudal de lutar em seu nome, poderia pedir a seus vassalos um subsídio; mas esse auxílio seria solicitado em vez de ordenado, e seria limitado a duração do período de emergência.
As guerras perpétuas do século XIV e da primeira metade do século XV começaram na década de 1290, quando Felipe, O Belo, aproveitando-se da guerra do rei Eduardo I da Inglaterra com a Escócia e Gales, tomou a província da Gasconha da Inglaterra. Isso fomentou uma guerra contínua entre a Inglaterra e Flandres de um lado, e a França do outro, o que levou a uma desesperada necessidade de fundos, tanto para a Coroa Inglesa quanto para a Francesa.
Os mercadores e capitalistas nas feiras de Champagne poderiam ter dinheiro, mas a maior e mais tentadora fonte de saque real era a Igreja Católica. Os monarcas da Inglaterra e da França passaram a taxar a igreja, o que os trouxe em rota de colisão com o Papa. O Papa Bonifácio VIII (1294-1303) resistiu fortemente a essa nova forma de pilhagem e proibiu os monarcas de taxarem a Igreja. O rei Eduardo reagiu negando a justiça nos tribunais reais à Igreja, enquanto Filipe foi mais militante, proibindo a transferência da receita da Igreja da França para Roma. Bonifácio foi forçado a recuar e a permitir o imposto, mas sua bula Unam Sanctam (1302) insistiu que a autoridade temporal deve ser subordinada à espiritual. Isso foi o suficiente para que Felipe, que corajosamente prendeu o Papa e se preparou para julgá-lo por heresia, um julgamento que foi interceptado pela morte do idoso Bonifácio. Até então, Felipe, o Belo, tomou o próprio papado, e trouxe a sede da Igreja Católica de Roma para Avignon, onde ele passou a designar a si mesmo como o próprio Papa. Durante praticamente todo o século XIV, o Papa, em seu “Cativeiro da Babilônia”, foi uma ferramenta abjeta do rei francês, o Papa só voltou a Itália no início do século XV.
Desse modo, a outrora poderosa Igreja Católica, com poder dominante e autoridade espiritual durante a Alta Idade Média, tinha sido derrubada e feita um vassalo qualquer do saqueador real da França.
O declínio da autoridade da Igreja, portanto, foi combinado pela ascensão do poder do estado absolutista. Não contente em confiscar, saquear, tributar, destruir as feiras de Champagne, e colocar a Igreja Católica sob seu calcanhar, Filipe, o Belo, também obteve receita para suas guerras eternas através da degradação da moeda e, assim, gerou uma inflação secular.
As guerras do século XIV não causaram muita devastação direta: exércitos eram pequenos e as hostilidades eram intermitentes. A principal devastação veio dos impostos pesados e da inflação monetária, além dos empréstimos para financiar as eternas aventuras reais. O enorme incremento de impostos foi o aspecto mais incapacitante das guerras. As despesas de guerra: recrutamento do exército modestamente dimensionado; pagamentos de seus salários, suprimentos e fortificações — todos os custos dos dois — somam-se para quadruplicar as despesas ordinárias da coroa. Soma-se a isso os altos custos de ensaio e imposição de impostos e o custo dos empréstimos, a carga tributária incapacitante de guerra e tudo se torna muito claro.
Os novos impostos estavam por toda parte. Nós vimos o grave efeito dos impostos sobre a Igreja; como uma grande fazenda monástica, muitas vezes se absorviam mais de 40% do lucro líquido da fazenda. Um imposto uniforme de um xelim realizado através de censo, cobrado pela Coroa Inglesa em 1380, infligiu grandes dificuldades aos camponeses e artesãos. O imposto equivalia a um mês de salários para os trabalhadores rurais e um salário de uma semana para os trabalhadores urbanos; ademais, uma vez que muitos trabalhadores pobres e camponeses eram pagos em bens ou serviços em vez de em dinheiro, acumular o dinheiro para pagar o imposto era particularmente difícil.
Outros novos impostos cobrados foram ad valorem em todas as transações; impostos sobre bebidas por atacado e varejo; e taxas sobre sal e lã. Para combater a evasão de imposto, os governos estabeleceram mercados monopolistas para a venda de sal na França e “pontos básicos” para lã inglesa. Os impostos restringiram a oferta e elevaram os preços, incapacitando o crítico comércio de lã inglês. A produção e o comércio foram dificultados ainda mais por requisições massivas cobradas pelos reis, causando assim uma drástica queda de renda e de riqueza, bem como falências entre os produtores. Em suma, os consumidores sofreram com preços artificialmente altos e os produtores sofreram de baixos retornos, com o rei sangrando a economia dos diferenciais. Os empréstimos do governo foram um pouco mais úteis, levando a repetidas inadimplências dos reis e consequentes perdas pesadas e falências entre os banqueiros privados, que foram imprudentes o suficiente para emprestar para o governo.
Originados como uma resposta à “emergência” em tempos de guerra, os novos impostos tendiam a se tornar permanentes: não apenas porque a guerra durou mais de um século, mas porque o estado, sempre em busca de um aumento de sua renda e de seu poder, aproveitou essa oportunidade de ouro para converter os impostos em tempos de guerra em uma parte permanente da herança nacional.
De meados do século XIV, a Europa foi atingida pela devastadora epidemia de Peste Negra — a peste bubônica — que no curto espaço de 1348-50 exterminou totalmente um terço da população. A Peste Negra foi em grande parte consequência da redução dos padrões de vida das pessoas causada pela grande depressão e pela consequente perda de resistência à doença. A praga continuou a se repetir, embora não de forma tão virulenta, em cada década do século.
Tão grande são tais poderes de recuperação da raça humana, que essa enorme tragédia não causou praticamente nenhum efeito social ou psicológico catastrófico duradouro entre a população europeia. De certa forma, o efeito mais duradouro da Peste Negra foi a resposta da Coroa Inglesa na imposição de controle máximo permanente dos salários e racionamento obrigatório do trabalho na sociedade inglesa. O declínio repentino da população e a consequente duplicação das taxas salariais se deu pela severa imposição do governo no controle salarial máximo na Ordenança de 1349 e no Estatuto dos Trabalhadores de 1351. O controle salarial máximo foi estabelecido a mando das classes empregadoras: grandes, proprietários médios e pequenos, e mestres artesãos, os primeiros grupos, em particular, alarmados com o aumento das taxas salariais agrícolas. A ordenança e o estatuto desafiaram a lei econômica ao tentar impor controle máximo salarial sobre os antigos níveis pré-peste. O resultado inevitável, no entanto, foi uma grave escassez de trabalho, uma vez que no estatutário salarial máximo, a demanda por trabalho era enormemente maior do que a oferta de trabalho recém-escassa.
Toda intervenção do governo cria novos problemas no curso de tentativas vãs de resolver os problemas antigos. O governo é então confrontado com a escolha: aplicar novas intervenções para resolver os novos problemas inexplicáveis, ou revogar a intervenção original. O instinto do governo, é claro, é de maximizar sua riqueza e poder agregando novas intervenções. Assim como o Estatuto inglês dos Trabalhadores, que impôs trabalho forçado às antigas taxas salariais para todos os homens na Inglaterra com menos de 60 anos; restringiu a mobilidade do trabalho, declarando que o senhor de um determinado território tinha a primeira reivindicação sobre o trabalho de um homem; e tornou crime um empregador contratar um trabalhador que havia deixado um antigo mestre. Dessa forma, o governo inglês se engajou no racionamento de trabalho para tentar congelar os trabalhadores em suas ocupações antes da peste com o nível salarial antes da peste.
Esse racionamento forçado de trabalho contra a inclinação natural dos homens para partir para outros empregos com melhores salários, e assim o inevitável aumento dos mercados negros para trabalho, dificultou a aplicação dos estatutos. A desesperada Coroa Inglesa tentou mais uma vez, no Estatuto de Cambridge de 1388, tornar o racionamento mais rigoroso. A mobilidade laboral de qualquer tipo foi proibida sem permissão por escrito dos juízes locais, e o trabalho infantil obrigatório foi imposto na agricultura. Mas houve uma contínua evasão a esse cartel de compradores compulsórios, especialmente por grandes empregadores, que estavam particularmente ansiosos e capazes de pagar taxas salariais mais altas. A pesada máquina judicial inglesa foi totalmente ineficaz na aplicação da legislação, embora as guildas urbanas monopolistas (monopólios impostos pelo governo), fossem capazes de impor parcialmente o controle salarial nas cidades.
2. Absolutismo e nominalismo: o rompimento do Tomismo.
Junto com a ascensão do estado absoluto, teorias do absolutismo surgiram e começaram a lançar as doutrinas da lei natural na sombra. A adoção da teoria do direito natural, afinal, significava que o estado estava obrigado a limitar-se aos ditames da lei natural ou divina. Mas novos teóricos políticos surgiram, afirmando o domínio do temporal sobre o espiritual, e da lei positiva do estado sobre a ordem natural ou divina. O primeiro e mais influente dos defensores medievais do absolutismo foi Marsílio de Pádua (c.1275-1342), em seu famoso Defensor Pacis (1324). Filho de um advogado paduano, Marsílio se tornou reitor da Universidade de Paris. O estado, opinou Marsílio, é supremo e precisa ser obedecido em e por si. Essa glorificação do estado andou de mãos dadas com a negação de que a razão humana poderia vir a conhecer qualquer lei natural fora de éditos positivados do estado. Para Marsílio, a razão tinha de ser separada da justiça ou da sociedade humana. A justiça não tem fundamento racional; é puramente mística e apenas uma questão de fé. Os comandos de Deus são puramente arbitrários e misteriosos, e não são para ser compreendidos em termos de conteúdo racional ou ético.
Como corolário, a lei positiva não tem nada a ver com a reta razão; a lei é promulgada para avançar a “vida e a saúde do estado”. De acordo com Marsílio, a nação é um organismo, com o estado funcionando como sua cabeça. Como o Professor Rothkrug escreve: “Marsílio diz que o estado é um organismo vivo não sujeito a razão porque, como uma planta, ele se desenvolve de acordo com impulsos inatos”.[2]
A conclusão prática que Marsílio derivou de sua filosofia política é que o estado, seja reino ou cidade-república italiana, precisa ter poder absoluto em seu domínio, e precisa não estar sujeito a qualquer verificação temporal ou a jurisdição da Igreja. Assim, enquanto religiosamente católico, Marsílio antecipou a politiques na França e em outros lugares dois séculos depois, insistindo que a Igreja pode não ter poder temporal contra o estado. Marsílio previu e ajudou a provocar o rompimento da ordem medieval na Europa.
Também destruidora das conquistas da Alta Idade Média foi a ruptura ideológica com o Tomismo inaugurada no século XIV. Esse declínio emergiu do fideísmo franciscano, iniciado pelo grande rival inglês de São Tomás, João Duns Scotus. Costumava-se pensar que essa destruição foi trazida para uma conclusão lógica pelo franciscano do século XIV, o filósofo de Oxford Guilherme de Ockham (c. 1290-1350). O nominalismo ockhamiano, sobre tal tem se dito, negou o poder da razão humana para chegar a verdades essenciais sobre o homem e o universo, e, portanto, negou o poder da razão para chegar a uma ética sistemática para o homem. Só a vontade de Deus, perceptível pela fé na revelação, poderia produzir verdades, leis ou éticas. Deve estar claro que o nominalismo abriu o caminho para o ceticismo moderno e para o positivismo, pois, se a fé na vontade divina é abandonada, a razão não tem mais o poder de chegar à verdades científicas ou éticas. Politicamente, o nominalismo falhou em fornecer um padrão de lei natural contra o estado, e, portanto, se encaixava ao crescente absolutismo estatal da Renascença.
A recente academia, no entanto, lança sérias dúvidas sobre se Ockham e seus seguidores eram realmente nominalistas ou eram bastante essencialistas e crentes no direito natural. Assim, verifica-se que o eminente contemporâneo agostiniano de Ockham, o italiano Gregório de Rimini (d.1358) não era realmente um nominalista, mas um firme defensor do essencialismo, da razão e do direito natural. Em contraste com a visão costumeira de Ockham e seus seguidores, Gregório considerou que a lei natural vem não da vontade de Deus, mas dos ditames da reta razão, e ele foi até mais longe em direção a uma posição racionalista geralmente pensada ter sido inventada três séculos depois pelo filósofo e jurista protestante holandês Hugo Grócio. Essa posição sustenta que, mesmo que Deus não existisse, o sistema de direito natural seria dado a nós pelos ditames da reta razão, a violação da qual ainda seria um pecado. Assim, como Gregório disse: “Se, per impossibile, a razão divina, ou o próprio Deus não existir, ou tal razão estiver errada, ainda se alguém fosse agir contra a reta razão, seja angelical, humano ou qualquer outro se tal existir, ele pecaria”.
3. Utilidade e dinheiro: Buridan e Oresme
Ser franciscano e aluno de Guilherme de Ockham não impediu o grande cientista-filósofo francês Jean Buridan de Bethune (1300-58), nascido em Picardia, de tornar-se reitor da Universidade de Paris e de fazer a próxima contribuição importante para o pensamento econômico na tradição Tomista essencialista*. Em suas Quaestiones, um comentário completo a Ética de Aristóteles, Buridan continuou a análise de Tomás-Aristóteles do valor de troca dos bens sendo determinado pela necessidade ou utilidade do consumidor. Mas Buridan também insistiu em realçar que uma casa nunca seria trocada por um vestuário, visto que o construtor teria de renunciar ao valor de um ano de comida por um bem muito menos valioso. Em suma, Buridan estava indo em direção a um conceito de custo de oportunidade do custo de produção e influência sobre a oferta.
Sobretudo, Buridan avançou além da iniciativa de Ricardo de Middleton ao analisar o benefício mútuo que cada parte necessariamente obtém de uma troca. Ao discutir a troca, Buridan observa que ambas as partes se beneficiam, e que o comércio não é, como muitas pessoas acreditam, um tipo de guerra na qual uma parte se beneficia às custas da outra. Além do mais, Buridan prossegue para uma análise sofisticada na qual ele mostra dramaticamente que duas partes em uma troca de dois bens podem se beneficiar, mesmo que a troca em si seja imoral e deva ser condenada com base ética ou teológica. Desse modo, Buridan apresenta a hipótese bastante provocativa:
Porque Sócrates deu sua esposa de boa vontade e com seu consentimento à Platão para cometer adultério em troca de dez livros, qual deles teve perda e qual ganhou? […] Ambos sofreram ferimentos no que se refere à sua alma […] [mas] no que se refere ao bem externo, cada um ganhou, pois tem mais do que precisa.
Para Buridan, assim como para a maioria dos outros escolásticos, o preço justo era o preço de mercado. Buridan também forneceu uma análise sofisticada de como a necessidade e a utilidade comuns dos humanos resultaram em preços de mercado. Quanto maior a necessidade e consequentemente quanto maior a demanda, maior o valor; além disso, uma redução na oferta de um produto fará com que seu preço no mercado aumente. Ademais, um bem é mais caro onde não é produzido do que onde o é, uma vez que há uma maior demanda por ele em primeiro lugar; novamente, o conceito marginal é tudo o que é necessário para completar a análise de demanda, de oferta e de preço. Há também declarações em Buridan de diferentes valorações pelos participantes do mercado, resultando em um único preço, com variantes excedentes psíquicos do consumidor e do produtor para cada participante.
Mas o principal grande salto em economia contribuído por Jean Buridan foi sua virtuosa criação da teoria moderna do dinheiro. Aristóteles havia analisado as vantagens do dinheiro e sua superação do problema da dupla coincidência de desejos do escambo, mas sua perspectiva era obscurecida por sua hostilidade fundamental ao comércio e à produção de dinheiro. Para Aristóteles, portanto, o dinheiro não era natural, mas uma convenção artificial e, portanto, basicamente uma criação do estado ou da polis. A teoria do dinheiro de Tomás de Aquino estava basicamente atada às amarras aristotélicas. Foi Jean Buridan quem se livrou dessas amarras e fundou a teoria “metalista” do dinheiro ou teoria do dinheiro-mercadoria, isto é, que o dinheiro se origina naturalmente como uma mercadoria útil no mercado, e que o mercado escolherá o meio de troca, quase sempre um metal, se disponível, possuindo as melhores qualidades para servir como dinheiro.
O dinheiro, então, para Buridan, é uma mercadoria do mercado, e o valor desse dinheiro, assim como no caso de outras mercadorias do mercado, “deve ser medido pela necessidade humana”. Assim como os valores dos bens trocáveis “são proporcionais às necessidades humanas, então eles serão proporcionais ao dinheiro, ele mesmo proporcional à necessidade humana”. Assim, Buridan notavelmente definiu o caminho para determinar o valor ou preço do dinheiro, nos mesmos princípios de utilidade que determinam os preços de mercado dos bens: que só seria concluído seis séculos mais tarde, em 1912, pelo austríaco Ludwig von Mises, em seu Theory of Money and Credit.
Prenunciando os austríacos Menger e von Mises, Buridan insistiu que um dinheiro que funcione eficazmente precisa ser composto de um material que possui um valor independente de seu papel como dinheiro, isto é, precisa consistir em uma mercadoria originalmente útil para propósitos não monetários. Buridan então continuou listando aquelas qualidades que levam o mercado a escolher uma mercadoria como um meio de troca ou dinheiro, como portabilidade, alto valor por peso de unidade, divisibilidade e durabilidade — qualidades possuídas mais notavelmente pelos metais preciosos ouro e prata. Dessa forma, Buridan iniciou a classificação de qualidades monetárias de mercadorias as quais eram para constituir o primeiro capítulo de incontáveis registros bancários e monetários até o fim da era do padrão ouro na década de 1930.
Dessa forma, não apenas Jean Buridan encontrou a teoria do dinheiro como um fenômeno do mercado; ele, assim, tirou o dinheiro da mística de ser apenas uma criação do estado, e colocou-o em pé de igualdade com outros bens como um produto do mercado.
Um desdobramento moderno não muito feliz da teoria da volição de Buridan surgiu na década de 1930 como parte da análise da curva de indiferença. Buridan postulou um asno perfeitamente racional que se encontrava equidistante entre dois montes de feno igualmente atraentes. Indiferente entre as duas escolhas e, portanto, incapaz de escolher, o asno perfeitamente racional não poderia escolher nenhum e, portanto, morreu de fome. O que esse exemplo ignorou é que existe uma terceira escolha, que presumivelmente o asno apreciou menos: morrer de fome. Portanto, foi “perfeitamente racional” não morrer de fome, mas sim escolher um dos dois montes ainda que de forma aleatória (e, em seguida, prosseguir para o segundo monte).[3]
Até anos recentes, textos convencionais sobre a história do pensamento econômico, se eles lidassem com ao menos alguém antes dos mercantilistas ou de Adam Smith, mencionariam brevemente apenas duas pessoas: Santo Tomás de Aquino e Nicolas de Oresme (1325-82). Embora Oresme, um notável matemático, astrônomo e físico francês, tenha sido um dos intelectuais europeus mais importantes do século XIV, suas contribuições para o pensamento econômico merecem atenção exclusiva. Oresme foi aluno e seguidor de Jean Buridan, escolástico que comentava Aristóteles e que ensinava, por sua vez, na Universidade de Paris e chegou a se tornar bispo de Lisieux. Oresme escreveu seu conhecido livreto, o Tratado sobre a Origem, Natureza, Leis e Alterações do Dinheiro, na década de 1350, aplicando os ensinamentos de seu mentor, e defensor do dinheiro sólido, para a onda de depreciações monetárias indulgidas pelos reis da França na primeira metade do século XIV. Nos séculos anteriores ao papel-moeda e ao banco central, que foram fundados no final do século XVII, a única maneira pela qual os reis poderiam obter receita por meio da manipulação monetária era por depreciação — mudando a definição da unidade monetária, aliviando seu peso em termos de dinheiro básico, ouro ou prata. Se, por exemplo, a unidade monetária fosse definida como 10 onças de prata, o governo poderia usar seu monopólio da cunhagem para redefinir a unidade monetária como 9 onças de prata, e então embolsar a diferença durante a recunhagem. As onças extras seriam empregadas para cunhar novas moedas para o rei usar em guerras, para a construção de palácios e para outras causas alegadamente nobres.
A unidade monetária britânica, a libra esterlina, recebeu seu nome há séculos sendo originalmente definida como simplesmente uma libra de prata. O processo de depreciação na Grã-Bretanha avançou tanto que a “libra” agora é igual a menos de 1/4 de uma onça de prata.
Antes do advento do papel-moeda e do banco central, a depreciação foi o único processo pelo qual o governante poderia alterar a moeda corrente para criar uma maior oferta de dinheiro (em termos de unidade monetária) e, assim, causar inflação de preços. O rei foi capaz de usar seu monopólio compulsório da cunhagem para manipular repetidas depreciações para seu próprio ganho às custas do resto do povo.
A contribuição mais importante de Oresme para a teoria monetária foi enunciar claramente, pela primeira vez, o que veio a ser conhecido como “lei de Gresham”, isto é, o insight de que se duas ou mais moedas são legalmente fixadas em valor relativo pelo governo, então a moeda supervalorizada pelo governo irá direcionar a moeda subvalorizada para fora de circulação. Assim, se o governo decreta que, digamos, uma onça de ouro vale legalmente 10 onças de prata, enquanto que no mercado vale 15, as pessoas vão colocar seus credores e fornecedores com o dinheiro legalmente supervalorizado (prata — o dinheiro “ruim”) enquanto eles acumulam o subvalorizado (ouro — o dinheiro “bom”) ou exportam-no para fora do país onde pode ser vendido pelo seu valor de mercado. A lei de Gresham muitas vezes foi reduzida em linguagem comum para: “a má moeda expulsa a boa”, mas afirmada dessa forma, é paradoxal e insatisfatória. Pois isso implica que, enquanto em todos os outros produtos de mercado os bons superarão os ruins, seria alguma falha profunda no livre mercado haver algo que faça com que ele prefira a moeda boa em vez da moeda ruim. Mas, como Ludwig von Mises esclareceu no início do século XX, a lei de Gresham é o produto não do livre mercado, mas do controle monetário do governo. Sua fixação de valor monetário relativo é um caso especial da consequência geral de qualquer controle de preços, isto é, a escassez de um bem no qual preços máximos são impostos, e um “excedente” onde um preço mínimo é imposto. No caso do dinheiro, em nosso exemplo, o ouro sofre um controle de preço máximo e, portanto, uma escassez, enquanto o valor da prata é mantido artificialmente e, portanto, entra em excesso em relação ao ouro.
A primeira formulação da lei de Gresham foi a dos antigos satíricos do dramaturgo grego Aristófanes, que, em Os Sapos, afirma caracteristicamente: “Em nossa República, os maus cidadãos são preferidos aos bons, assim como o dinheiro ruim circula enquanto o bom dinheiro desaparece”.[4] Oresme, no entanto, colocou a lei em uma forma convincente e correta, enfatizando que a ruptura monetária é uma função da fixação de preços do governo: “se a proporção legal fixada das moedas difere do valor de mercado dos metais, a moeda que é subestimada desaparece inteiramente de circulação, e a moeda que é superestimada sozinha permanece vigente”.
Em seu Tratado, Nicolas de Oresme foi levado a aplicar a teoria monetária metalista de seu mentor Buridan para atacar a política de depreciação dos reis franceses. Oresme não foi tão longe a ponto de denunciar o monopólio da cunhagem pelo rei per se, mas ele realizou a façanha de apresentar a questão da mística da “soberania” dos reis, cuidadosamente proposta convertendo toda a questão da cunhagem para uma questão de conveniência prática. Uma vez que o rei não tinha direito de encobrir a cunhagem no místico privilégio real e da vontade real absoluta, ele tinha o dever de governar de acordo com os melhores interesses da comunidade. Ele é, portanto, obrigado a manter os padrões de peso e de cunhagem; alterações frequentes em tais padrões “destroem o respeito e geram ‘escândalos e reclamações entre o povo e risco de desobediência’”. A definição de unidade monetária deve, portanto, ser um decreto fixo. Alterações frequentes e depreciação, apontou Oresme, farão com que o dinheiro e moedas metálicas percam seu caráter como medidas de valor; e o comércio interno e externo será prejudicado. Os mercadores estrangeiros serão repelidos, pois não terão mais dinheiro bom e seguro com o que trabalhar, assim, os comerciantes domésticos não terão mais nenhum meio consistente de comunicação. O dinheiro não podia mais ser emprestado com segurança, e não haveria maneira de valorar corretamente as rendas em dinheiro.
Além disso, como a moeda depreciada terá um valor menor no território, o ouro ou a prata serão enviados para o exterior, onde agora terão um valor de mercado mais alto. Assim, Oresme foi talvez o primeiro a apontar que o dinheiro tenderá a fluir para as áreas e países onde seu valor é mais alto, e a deixar aqueles países onde seu valor é mais baixo.
Nicolas de Oresme não tinha ilusões sobre os motivos para as repetidas depreciações pelos reis. Como Oresme colocou: se o rei “contasse a mentira usual do tirano de que ele aplica o lucro da depreciação para vantagem pública, ele não deve ser acreditado, porque ele poderia muito bem pegar meu casaco e dizer que precisava dele para o serviço público”.
Oresme também acrescenta à análise de Buridan de como as mercadorias se transformam em dinheiro no mercado: ele destaca a facilidade de portabilidade e que deve ser de alto valor por peso de unidade. Ele também aponta que após um período de ouro ou prata sendo pesadas em quantidades precisas para cada transação, as pessoas começaram a cunhar os metais preciosos, com uma inscrição e uma face na moeda para garantir em cada moeda uma certa quantidade de ouro ou prata. O ouro, sendo um dinheiro mais valioso, geralmente será usado para transações maiores, enquanto prata e até mesmo cobre pode ser usado para compras menores.
4. O homem que não se encaixa: Heinrich von Langenstein
Um nominalista e aluno de Buridan, Heinrich von Langenstein, o Velho (também conhecido como Henrique de Hesse) (1325-97), enquanto um filósofo escolástico não influente e menor em seus próprios séculos e nos séculos posteriores, fez grandes prejuízos para interpretações modernas da história do pensamento econômico. Langenstein, que lecionou primeiro na Universidade de Paris e depois em Viena, começou em seu Tratado sobre Contratos, analisando o preço justo da maneira escolástica tradicional: preço justo é o preço de mercado, que é uma medida aproximada das necessidades humanas dos consumidores. Esse preço será o resultado dos cálculos dos indivíduos sobre seus quereres e valores, e estes, por sua vez, serão afetados pela escassez ou abundância relativa de oferta, bem como pela escassez ou abundância de compradores.
Dito isso, Langenstein começou a se contradizer completamente. Em uma contribuição altamente infeliz para a história do pensamento econômico, Langenstein pediu às autoridades governamentais locais que interviessem e fixassem os preços. A fixação de preços seria, de alguma forma, um caminho melhor para o preço justo do que a atuação do mercado. Outros escolásticos não se opuseram exatamente à fixação de preços; para eles, o preço de mercado seria justo se fosse definido pela estimativa comum do mercado ou do governo. Mas estava pelo menos implícito em seus escritos de que o livre mercado era um melhor (ou, pelo menos, igualmente bom) caminho para descobrir o preço justo. Langenstein foi único em positivamente defender a fixação de preços pelo governo.
Além do mais, Langenstein acrescentou outra heresia econômica. Ele aconselhou as autoridades a fixar o preço para que cada vendedor, seja comerciante ou artesão, pudesse manter seu status ou posição de vida na sociedade. O preço justo era o preço que mantinha a posição de todos de um modo ao qual ele se tornou acostumado — nem mais nem menos. Se um vendedor tentou cobrar um preço que avançasse além dessa posição, ele era culpado pelo pecado da avareza.
Langenstein era o homem que não se encaixava entre os escolásticos e os pensadores do da Idade Média Tardia. Ninguém que apoiasse a concepção de “posição na vida” do preço justo foi encontrado. Na verdade, o próprio Santo Tomás de Aquino demoliu efetivamente esta visão quando ele declarou incisivamente:
“Em uma troca justa, o meio não varia com a posição social das pessoas envolvidas, mas apenas no que diz respeito à quantidade de bens. Por exemplo, quem compra uma coisa deve pagar quanto a coisa vale, quer compre de um pobre ou de um rico.”
Em suma, no mercado os preços são iguais para todos, ricos ou pobres e, além disso, este é um método justo de estabelecer preços. Na visão bizarra de Langenstein, é claro, um vendedor rico do mesmo produto seria obrigado a vender por um preço muito mais alto do que um vendedor pobre, caso em que é improvável que o homem rico duraria muito no negócio.
Tanto quanto pode ser determinado, nenhum pensador medieval ou renascentista adotou a teoria da posição na vida, e apenas dois seguidores adotaram o posicionamento de fixação de preços. Um foi Mateus de Cracóvia (c.1335-1410), professor de teologia em Praga e mais tarde reitor da Universidade de Heidelberg e arcebispo de Worms, e particularmente Jean de Gerson (1363-1429), francês nominalista e místico que foi chanceler da Universidade de Paris. Gerson, no entanto, ignorou a noção de posição na vida e voltou à visão do século XIII de João Duns Scotus de que o preço justo é o custo de produção somado à compensação pelo trabalho e risco incorrido pelo ofertante. Gerson, portanto, pediu que o governo fixasse preços para forçá-los a se conformarem com o preço justo. Na verdade, Gerson era um fanático por fixação de preços, defendendo que fosse estendido de sua esfera habitual em trigo, pão, carne, vinho e cerveja, para abranger todas as mercadorias, seja qual for. Felizmente, a visão de Gerson também tinha pouca influência.
Von Langenstein quase não era importante por conta própria ou posteriormente; sua grande importância é apenas que ele foi arrancado da obscuridade bem-merecida por historiadores socialistas do final do século XIX e historiadores corporativistas de estado, que usaram sua tolice de posição na vida para evocar uma visão totalmente distorcida da Idade Média Católica. Essa era, dizia o mito, foi governada exclusivamente pela visão de que cada homem só pode cobrar o preço justo para mantê-lo em sua provavelmente divinamente designada posição na vida. Dessa forma, esses historiadores glorificaram uma sociedade inexistente de status em que cada pessoa e grupo encontrou-se em uma estrutura hierárquica harmoniosa, sem ser perturbado pelas relações de mercado ou pela ganância capitalista. Essa visão absurda da Idade Média e da doutrina escolástica foi proposta pela primeira vez pelo socialista alemão e pelos historiadores corporativistas de estado Wilhelm Roscher e Werner Sombart no final do século XIX, e foi então aproveitada por escritores influentes como o socialista anglicano Richard Henry Tawney e o estudioso corporativista católico e político Amintore Fanfani. Finalmente, essa visão, baseada apenas nas doutrinas de uma escolástica obscura e heterodoxa, foi consagrada nas histórias convencionais do pensamento econômico, onde foi destacada por Frank Knight, economista livre mercadista, mas fanaticamente anticatólico, e seus seguidores na agora altamente influente Escola de Chicago.
A correção necessária para a visão mais antiga finalmente se tornou dominante desde a Segunda Guerra Mundial, conduzida pelo enorme prestígio de Joseph Schumpeter e pela pesquisa definitiva de Raymond de Roover.
5. A usura e o câmbio internacional no século XIV
A cobrança de juros sobre um empréstimo continuou a ser totalmente condenada como usura pela corrente dominante nos escritos escolásticos: apenas uma minoria seguiu o Cardeal Henrique de Óstia e Olivi ao permitir o lucrum cessans — retorno do investimento que se absteve — e depois apenas para um empréstimo caritativo e não para emprestadores profissionais de dinheiro. As transações de câmbio internacional não tiveram melhor resultado, a maioria dos escolásticos, incluindo São Tomás, simplesmente condenando-as completamente como usurárias e enquanto estavam tentando cobrar juros sobre dinheiro estéril.
No entanto, nos séculos XIII e XIV, as letras de câmbio estavam entrando em proeminência como instrumentos de crédito, particularmente no mercado nas transações de câmbio internacional. Desenvolveram-se formas sofisticadas de transações de câmbio internacional, nas quais os negociadores podiam cobrar e pagar juros sobre o crédito, mas tais transações eram formalmente disfarçadas de compras ou de vendas de moedas estrangeiras. Mais uma vez, a maioria dos escolásticos continuou a condenar as negociações de câmbio, mas uma minoria corajosa surgiu durante o século XIV para defender essas transações agora difusas, nas quais a própria Igreja esteve envolvida durante muito tempo. Começou fracamente com o principal discípulo pessoal de Tomás, Gil de Lessines, que embora confuso sobre o mercado cambial, falou do risco enquanto justificando essas transações de crédito e também mostrou que o negociante de câmbio dá algo de “mais útil” ao seu cliente do que o que o cliente paga, dando-lhe direito a um encargo extra.
A principal defesa do mercado de câmbio internacional foi lançada pelo ilustre franciscano Alexandre Bonini, também conhecido como Alexandre de Alexandria ou Alexandre Lombardo. Bonini teve uma carreira acadêmica na Universidade de Paris, depois palestrou na corte papal sobre teologia, e finalmente serviu como provincial franciscano na sua Lombardia natal, o local dos mais notórios usurários da época. No seu Tratado sobre a Usura, uma palestra proferida em Gênova em 1307, Alexandre, embora atacando a usura da forma habitual, apresentou uma defesa exaustiva das transações cambiais com as quais estava familiarizado. Atacando os aristotélicos, Alexandre salientou que o dinheiro não pode ter apenas uma função, de servir como meio de troca estéril, uma vez que existem muitas moedas e essas moedas precisam ser trocadas. O valor das moedas assim trocadas é, além disso, devidamente determinado não por lei, mas pelo peso e pelo conteúdo das moedas metálicas. Alexandre também adaptou a percepção de Gil de Lessines de que o comerciante fornece mais utilidade ao seu cliente do que recebe nas transações monetárias. Quanto às transações de crédito em câmbio internacional, Alexandre Lombardo não as defendeu todas, mas forneceu uma defesa do lucrum cessans para as mudanças no valor de um dinheiro entre o início e o fim da transação. De fato, Alexandre foi um dos primeiros a salientar que a demanda por dinheiro pode e varia ao longo do tempo, dando origem a alterações no valor do dinheiro. O lucrum cessans forneceu a alavanca de entrada para a justificação escolástica do principal método pelo qual a proibição da usura foi evitada durante e após a Alta Idade Média.
É esclarecedor que Alexandre tenha começado a sua defesa com o ponto prático de que “a Igreja condena e persegue sempre os usurários, mas não condena e persegue os negociantes de câmbio, antes os fomenta, como é aparente na Igreja Romana.”
A defesa do mercado de câmbio internacional por Alexandre Lombardo foi repetida literalmente pelo seu discípulo e sucessor como provincial franciscano da Lombardia: Astesano (d. 1330). Astesano, tal como o seu mentor, veio da Lombardia, especificamente de Asti, um dos principais locais dos principais usurários internacionais. A sua principal obra foi a sua Summa (1317). Tal como o seu antecessor, Astesano ficou impressionado com o fato de “a Igreja Romana promover os negociantes de câmbio”. Além do mais, ele acrescenta ao raciocínio de Alexandre uma defesa franca do lucrum cessans, que ele foi um dos primeiros teólogos, por oposição aos canonistas, a incorporar.
Entre os escritores proeminentes do século XIV que já discutimos, Heinrich von Langenstein, como seria de esperar, denunciou todos os negociantes de divisas como usurários per se. Até Nicolas de Oresme repetiu simplesmente o jargão aristotélico de que a troca de dinheiro por dinheiro não é natural porque o dinheiro é estéril. Embora não declarando com precisão as transações de câmbio como sendo de uso per se, Oresme, em um ataque de ódio, denunciou o câmbio estrangeiro como “vil” como uma ocupação que mancha a alma, tal como a limpeza de esgotos mancha o corpo.
Em contraste, porém, Jean Buridan, mentor de Oresme, empenhou-se na defesa do câmbio internacional, distinguindo dois tipos de câmbio, um em que o negociante “recebe apenas tanto quanto dá” — perfeitamente digno de acordo com a tradição do Tomismo aristotélico — e outro em que o negociante “recebe mais do que dá”. Mas aqui Buridan dá outro salto ao derrubar algumas das barreiras irracionais que os escolásticos tinham elaborado contra as transações monetárias. Pois mesmo este último tipo de transação, declarou Buridan, pode ser legítimo, mesmo que não haja equivalente em troca, desde que a troca promova o “bem comum”. Embora não utilizado para a usura comum, o novo conceito de Buridan semeou as sementes para justificação total dos banqueiros de câmbio internacional.
Na virada do século XV, uma completa defesa aos contratos de câmbio foi lançada pelo sofisticado canonista florentino e leigo Lorenzo di Antonio Ridolfi (1360-1442). Ridolfi foi um orador no Ateneu de Florença e foi uma vez embaixador da República Florentina. Tal como Lombardo, não estava disposto a condenar uma prática encorajada pela Igreja, também Ridolfi declarou a sua relutância em condenar uma ocupação difundida na sua Florença natal. Desenvolvendo a visão de Lombardo, Ridolfi, no seu tratado de 1403 sobre a usura, enfatizou que o valor do dinheiro pode diferir de um lugar para outro, assim como ao longo do tempo. Essas diferenças são o resultado de alterações na demanda por dinheiro, flutuações da demanda em relação à oferta, e alterações no conteúdo metálico da cunhagem. Essas variações justificam as negociações de câmbio internacional, bem como as transações de crédito dentro delas. Assim, Ridolfi desenvolveu a teoria que mostrou que o valor do dinheiro, como qualquer outra mercadoria, é determinado pelas interações da sua oferta e da sua demanda, e que também ele pode variar de valor ao longo do tempo e do lugar.
6. O ascético mundano: São Bernadino de Siena
A grande mente, e o grande sistematizador, da economia escolástica era um paradoxo entre paradoxos: um santo franciscano rigoroso e ascético vivendo e escrevendo no meio do mundo capitalista sofisticado do início do século XV na Toscana. Enquanto São Tomás de Aquino era o sistematizador de toda a gama do esforço intelectual, os seus ensaios econômicos estavam dispersos em fragmentos ao longo dos seus escritos teológicos. São Bernadino de Sena (1380-1444) foi o primeiro teólogo depois de Olivi a escrever um trabalho inteiro sistematicamente dedicado à economia escolástica. Muito desse pensamento avançado foi contribuído pelo próprio São Bernadino, e a teoria da utilidade subjetiva altamente avançada foi escrita palavra por palavra pelo herege franciscano de dois séculos antes: Pierre de Jean Olivi.
O Livro de São Bernardino, escrito como uma coletânea de sermões latinos; foi intitulado Dos Contratos e da Usura, e foi elaborado durante os anos de 1431-33. O tratado começou, muito logicamente, com a instituição e justificação do sistema de propriedade privada, prosseguiu com o sistema e a ética do comércio, e continuou a discutir a determinação do valor e do preço no mercado. E terminou com uma longa discussão sobre a questão emaranhada da usura.
O capítulo de São Bernadino sobre propriedade privada não foi nada de notável. A propriedade era considerada artificial em vez de natural, mas, ainda assim, vital para uma ordem econômica eficiente. Uma das grandes contribuições de Bernadino, contudo, foi a discussão mais completa e convincente até agora feita sobre as funções da atividade empreendedorial. Em primeiro lugar, o mercador recebeu um aval ainda mais intenso do que o que tinha sido dado por Tomás. De forma sensata, e em contraste com as primeiras doutrinas, São Bernadino salientou que o comércio, como todas as outras ocupações, poderia ser praticado tanto de forma lícita ou quanto ilegal. Todas as vocações, incluindo a de um bispo, proporcionam ocasiões para o pecado; essas são dificilmente limitadas ao comércio. Mais especificamente, os comerciantes podem realizar vários tipos de serviços úteis: transportando mercadorias de regiões de abundância para países e regiões com alta escassez; conservação e armazenamento de mercadorias para estarem disponíveis quando os consumidores as quiserem; e, como artesãos ou empreendedores industriais, transformação de matérias-primas em produtos acabados. Em suma, o homem de negócios pode desempenhar a função social útil de transportar, distribuir, ou fabricar bens.
Na sua justificação do comércio, São Bernadino conseguiu finalmente reabilitar o humilde retalhista, que tinha sido desprezado desde a Grécia antiga. Importadores e atacadistas, salientou Bernadino, compram em grandes quantidades e depois repartem a granel, vendendo pelo fardo ou carregamento a retalhistas, que por sua vez vendem em quantidades menores aos consumidores.
Realisticamente, Bernadino não condenou os lucros; pelo contrário, os lucros eram um retorno legítimo para o empreendedor pelo seu trabalho, pelas despesas e pelos riscos que ele assume.
São Bernadino entra então na sua análise incisiva das funções do empreendedor. A capacidade de gestão, percebeu ele, é uma rara combinação de competência e eficiência, e por isso ordena um grande retorno. São Bernadino enumera quatro qualificações necessárias para o empreendedor de sucesso: eficiência ou diligência (indústria), responsabilidade (solicitudo), trabalho (labores), e exposição a riscos (pericula). Eficiência para Bernadino significava estar bem-informado sobre preços, custos e qualidades do produto, e ser “sutil” na avaliação de riscos e de oportunidades de lucro, o que, Bernadino observou sagazmente, “na verdade, muito poucos são capazes de fazer”. Responsabilidade significava estar atento aos detalhes e também manter uma boa contabilidade, um item necessário para o negócio. Problemas, labuta e mesmo dificuldades pessoais são também muitas vezes essenciais. Por todas essas razões, e pelo risco incorrido, o homem de negócios ganha propriamente o suficiente em investimentos bem-sucedidos para o manter no negócio e o compensar por todas as suas dificuldades.
Na determinação do valor, São Bernadino continuou na tradição escolástica dominante, sendo o valor e o preço justo determinados pela estimativa comum do mercado. O preço flutuará de acordo com a oferta, subindo se a oferta for escassa e descendo se for abundante. Bernadino também tem uma discussão penetrante sobre a influência dos custos. O custo do trabalho, habilidades e risco não afetam diretamente o preço, mas afetarão a oferta de uma mercadoria, e, ceteris paribus, (sendo as outras coisas iguais — uma frase usada por São Bernadino) as coisas que requerem maior esforço ou engenho para produzir serão mais caras e terão um preço mais elevado. Essa visão prefigura a análise Jevoniana/Austríaca da oferta e do custo de mais de cinco séculos depois.
Como no caso de outros escolásticos, a estimativa comum do mercado foi considerada como sendo o preço comum de mercado (mas não um preço estabelecido por livre acordo individual). O governo foi considerado capaz de fixar um preço comum de mercado por regulamentação obrigatória, mas essa possibilidade, como no caso da maioria dos outros escolásticos, foi rapidamente descartada.
Como vimos, São Bernadino assumiu palavra por palavra a notável teoria da utilidade subjetiva de valor publicada (e anteriormente negligenciada) pelo franciscano Pierre de Jean Olivi. A significativa contribuição de Bernadino para a teoria do preço-justo-como-preço-de-mercado foi a sua aplicação ao “salário justo”. Os salários são o preço dos serviços de mão-de-obra, salientou Bernadino, e, portanto, o salário justo, ou de mercado, será determinado pela demanda de mão-de-obra e pela oferta de mão-de-obra disponível no mercado. A desigualdade salarial é uma função das diferenças de qualificação, capacidade e formação. Um arquiteto é pago mais do que um escavador de valas, explicou Bernadino, porque o trabalho do primeiro requer mais inteligência, habilidade e treinamento, de modo que menos homens estarão qualificados para a tarefa. Os trabalhadores qualificados são mais escassos do que os não qualificados, de modo que os primeiros receberão um salário mais elevado.
Em uma sofisticada discussão sobre câmbio internacional, Bernadino colocou o seu imprimatur nas transações que eram a forma dominante de cobrar juros ocultos por uma transação de crédito. Aqui, Bernadino seguiu a opinião latitudinária do seu mestre Alexandre Lombardo. Geralmente, as transações de câmbio internacional eram conversões de moedas correntes e não empréstimos. Ademais, a usura era apenas um certo juro sem risco sobre um empréstimo; as taxas de câmbio flutuavam e eram, portanto, imprevisíveis. Isso era tecnicamente verdade, mas geralmente os emprestadores recebiam juros sobre as transações de câmbio, uma vez que o mercado monetário era estruturado de modo a favorecer o emprestador desse modo. Bernardino também salientou que a conversão das moedas correntes era necessária devido à grande diversidade de moedas correntes, e porque a cunhagem de um país não era aceitável em outros lugares. Os cambistas, portanto, desempenharam uma função útil ao permitir a troca internacional, “o que é essencial para o apoio da vida humana”, e ao transferir fundos de um país para outro sem exigir o envio efetivo de espécies.
São Bernadino de Siena era uma combinação fascinante e paradoxal de brilhante, versado analista e apreciador do mercado capitalista da sua época, e um raquítico santo ascético fulminando contra males mundanos e práticas de negócios. Bernadino nasceu em 1380, filho de um alto funcionário de Sena; o seu pai, Albertollo degli Albizzeschi, foi governador da cidade de Massa pela República de Sena. A mãe de Bernadino também pertencia a uma proeminente família local. Juntando-se à ordem estritamente ascética dos Franciscanos Observantes, Bernadino depressa se tornou conhecido como um orador persuasivo e muito popular itinerante, pregando em todo o norte e centro da Itália. Na década de 1430, Bernadino foi nomeado vigário geral dos Franciscanos Observantes. Três vezes em sua vida fora oferecido a São Bernadino bispados (em Sena, Urbino e Ferrara), e em cada uma das vezes ele recusou essa honra, uma vez que teria de desistir de sua pregação.
Algumas das pregações anti-mundanas de Bernadino insistiram em problemas de moralidade pessoal; assim, ele deplorou a prática de comerciantes itinerantes permanecerem longe de casa por longos períodos, e depois se contaminarem vivendo em pecado carnal ou mesmo em sodomia, a que o santo habitualmente se referia como “imundície”. De fato, em sua juventude, Bernadino deu um soco num homem que lhe havia feito propostas homossexuais.
Mas a principal contradição de Bernadino entre analista sofisticado de negócios e denunciante de práticas de negócios residia em sua fulminação contra a usura. Rodeado pelo lar da usura, na Toscana, São Bernadino, em comum com tantos escolásticos, descobriu que o realismo foi apenas até os pés da usura. Sobre a questão da usura, a análise brilhante do santo e a sua visão benigna do livre mercado falhou-lhe, e ele fulminou quase num frenesi: a usura foi uma vil infecção, permeando os negócios e a vida social. Enquanto outros escolásticos tinham levado a sério a objeção de que a Igreja e a sociedade dependiam da usura, Bernadino não se importou. Não; não podia ser. Todos aqueles que sustentavam que a usura era economicamente necessária estavam a cometer o pecado da blasfêmia, uma vez que estariam, portanto, a dizer que Deus os tinha vinculado a uma linha de ação impossível. Abolir a cobrança de juros, Bernadino opinou, e as pessoas, então, emprestariam livre e gratuitamente; e, além disso, muito está sendo emprestado agora para fins frívolos e viciosos. A usura, trovejou o santo, destrói a caridade; é uma doença contagiosa; mancha as almas de todos na sociedade; concentra todo o dinheiro da cidade em poucas mãos ou o leva para fora do país; e, ademais, traz justamente a ira de Deus sobre a cidade, e convida os Quatro Cavaleiros do Apocalipse.
Só se pode ficar fascinado com a fúria de irracionalidade na qual esse verdadeiramente grande pensador indulgiu a si mesmo à questão da usura. Vociferando sobre o usurário que ousa “vender tempo”, Bernadino foi mais longe que os seus predecessores ao insistir que só Jesus Cristo “sabe o tempo e a hora. Se, portanto, não cabe a nós saber o tempo, muito menos cabe a nós vendê-lo.” Será que manter relógios e cronômetros é, portanto, um pecado mortal? Bernadino acaba num ataque de frenesi quase histérico ao infeliz usurário:
Consequentemente, todos os santos e todos os anjos do paraíso gritam então contra ele [o usurário], dizendo “Para o inferno, para o inferno, para o inferno”. Também os céus com as suas estrelas gritam, dizendo: “Para o fogo, para o fogo, para o fogo, para o fogo”. Os planetas também clamam, “Para as profundezas, para as profundezas, para as profundezas, para as profundezas”.
E, no entanto, apesar de tudo isso, São Bernadino acrescentou o seu grande peso ao conceito que acabaria por afundar a proibição da usura: lucrum cessans. Seguindo Henrique de Óstia e uma minoria de escolásticos do século XIV, Bernadino admite o lucrum cessans: estava tudo bem cobrar juros sobre um empréstimo que seria o retorno sacrificado — a oportunidade renunciada — por um investimento legítimo. É verdade que Bernadino, tal como os seus antecessores, limitou o lucrum cessans estritamente a um empréstimo caritativo, e recusou-se a aplicá-lo a emprestadores profissionais de dinheiro. Mas ele fez um importante avanço analítico ao explicar que o lucrum cessans é legítimo porque nessa situação o dinheiro não é simplesmente dinheiro estéril, mas “capital”. Como Bernadino disse, quando um homem de negócios empresta a partir de saldos que teriam ido para o investimento no comércio, ele “dá não o dinheiro em seu caráter simples, mas também dá o seu capital”. Mais detalhadamente, ele escreve que o dinheiro “não tem apenas o caráter de mero dinheiro ou uma mera coisa, mas também, para além disso, um certo caráter seminal de algo lucrativo, a que normalmente chamamos de capital. Portanto, não só o seu simples valor deve ser devolvido, mas também um valor sobre-acrescentado”.
Em suma, quando o dinheiro funciona como capital, já não é infértil ou estéril; como capital, merece comandar um lucro.
Há algo mais. No decurso de longas discussões contra a usura oculta em várias formas de contratos, a mente brilhante de São Bernadino tropeça, por uma das primeiras vezes na história, naquilo que mais tarde seria chamado de “preferência temporal”: que as pessoas preferem os bens presentes aos bens futuros (i.e., a perspectiva atual dos bens no futuro). Mas ele falhou em reconhecer a sua importância, e rejeitou o ponto. Foi deixado ao francês Turgot do final do século XVIII e depois ao grande economista austríaco Eugen von Böhm-Bawerk para descobrir o princípio na década de 1880 e assim finalmente resolver o velho problema de explicar e justificar a existência e nível da taxa de juros.
7. O discípulo: Santo Antonino de Florença
O principal discípulo de São Bernadino foi o altamente influente e ligeiramente mais jovem Santo Antonino de Florença (1389-1459). Muita da influência de Antonino veio de seus prolíficos escritos, especialmente sua enorme Summa Moralis Theologiae (1449) de caráter tomista, o primeiro tratado na nova ciência de teologia moral. Na teologia moral, ou casuística, o teólogo pega os princípios abstratos da ética e da teologia e os aplica a detalhados dados empíricos da vida cotidiana: em suma, a teologia e a moralidade foram trazidas das abstrações do estudo e aplicados para os detalhes do dia a dia.
A pioneira Summa de teologia moral de Santo Antonino provou ser extraordinariamente influente. Foi frequentemente consultada pelos próximos 150 anos, e passou por 24 edições naquele período. Sua obra menor, Confessionais (1440), um guia para condições, foi reeditada 30 vezes no mesmo período.
Há paralelos marcantes nas vidas e personalidades de Antonino e de seu mestre Bernadino. Santo Antonino nasceu como filho de um oficial de um menor oficial, o notário de Florença, o Ser Niccolo de Pierozzo dei Forciglioni. O primeiro nome do filho era Antônio, mas ele era universalmente chamado pelo diminutivo Antonino por causa de sua baixa estatura, e o apelido é listado no calendário de santos oficiais da Igreja. Apesar de sua saúde frágil, Antonino logo cedo se juntou ao rigoroso ramo Observante da Ordem Dominicana. Seus talentos administrativos eram incomuns e rapidamente percebidos, ele rapidamente se tornou prior do convento dominicano de Cortona, e então foi transferido para cargos semelhantes em Nápoles e em Roma. Depois disso, Antonino foi apontado vigário-geral dos conventos Dominicanos da Lombardia em 1433, e quatro anos depois, também de toda Itália central e do sul. Em adição a seu posto de vigário, Antonino continuou como prior de São Marcos em Florença.
Em 1445, o Papa Eugenio IV apontou Santo Antonino para o arcebispado de Florença, possivelmente pelo conselho do grande pintor renascentista, Fra Angelico. Um homem humilde, Antonino seguiu Bernadino ao teimosamente se recusar a aceitar o posto. O Papa emitiu ordens severas para Antonino aceitar, e a história de um contemporâneo afirma que ele só aceitou o cargo sob pena de excomunhão. De qualquer maneira, Santo Antonino se recusou pelo resto de sua vida a usar as vestes episcopal e continuou a vestir o manto branco e a capa preta de um simples frade Dominicano. Ironicamente, após sua morte em 1459, Antonino foi enterrado em plena pompa e cerimônia.
Embora sua relutância, Antonino se tornou um notável administrador e juiz, diariamente tomando inúmeras decisões econômicas. Em Florença ele mergulhou no conhecimento das práticas financeiras e econômicas do centro capitalista mais avançado de sua época.
Santo Antonino é habitualmente colocado junto com Bernadino como os dois grandes pensadores e economistas escolásticos. Mas Antonino era meramente um popularizador e casuísta; em suas análises ele simplesmente repetiu as visões do verdadeiro grande e criativo pensador: São Bernadino. Ambos estavam totalmente familiarizados com as práticas econômicas de seus dias, e Antonino veio de Florença, o grande centro bancário da Europa. Ainda assim, ambos eram ascéticos humildes, e a mesma tensão e contradição do ascetismo mundano apareceu em suas vidas e obras.
De maneira geral, Antonino simplesmente repetia as análises de Bernadino. Em suas discussões sobre a teoria de valor, porém, Antonino enfatizou ainda mais o ponto crucial de Tomás de que qualquer troca no mercado é para o benefício mútuo de ambas partes, visto que cada um está em melhor situação do que antes. Uma venda voluntária é uma venda justa. Ainda assim, Antonino parece simpatizar mais com a regulação de preço governamental do que seu mentor, sendo que onde quer que ocorra essa regulação ela precisa ser moralmente vinculada. Qualquer preço de mercado negro superior ao máximo legal é um pecado.
Sobre o salário justo, Antonino ecoa Bernadino e adiciona material baseado em seu extenso conhecimento da grande indústria de lã de Florença. O salário de um trabalhador é propriamente determinado pela estimativa comum do mercado, e qualquer tentativa de formar uma união de trabalhadores seria uma interferência prejudicial. Essa visão endossava implicitamente que a prática florentina de ilegalizar as uniões de trabalhadores de lã enquanto “conspirações” ilícitas. A Guilda dos fabricantes de roupa de lã, entretanto, era lícita; não surpreendentemente, visto que ela controlava o governo de Florença. A palavra “guilda” não aparece nas obras de Antonino sobre as condições de trabalho; talvez ele sentiu que seria mais prudente ignorar esse assunto controverso.
Apesar de disciplinado, existiram definidas, porém sutis, diferenças entre os dois santos mundanos. Embora Antonino tivesse mais conhecimento sobre o mundo dos negócios, ele era, paradoxalmente, considerado mais moralista. Assim, uma de suas numerosas obras era um panfleto: Da Indumentária das Mulheres (De ornate mulierum), no qual ele fulminou em grande escala contra o uso de blush, cabelos postiços, penteados elegantes e outras frivolidades das mulheres. Seu talento para o moralismo evidentemente foi reforçado por sua obra pioneira na casuística. Do mesmo modo, ele falou mal dos artistas, condenou todas as formas de arte menos a religiosa, isentando especialmente a obra de seu amigo, Fra Angelico. Antonino estava particularmente bravo porque as pinturas de assuntos não-religiosos deram aos artistas a oportunidade de desenhar mulheres nuas, “não pelo bem da arte, mas para despertar sentimentos libidinosos”. (Antonino de fato, porém, fez uma observação inteligente de que o preço das pinturas é determinado pela habilidade do artista em vez da quantidade de trabalho envolvida). As visões censuradoras de Antonino também atingiram a música, onde ele pediu para que voltassem aos austeros cantos Gregorianos e fossem eliminadas as pecaminosas introduções do estilo de contraponto, popular e até mesmo obsceno das baladas.
Em questões mais estritamente econômicas, o extremo moralismo de Antonino era evidente. Em contraste a seu mestre, Antonino amplamente fulminou contra transações de câmbio internacional como sendo usura implícita. Como Raymond de Roover maravilhosamente notou: “esse conselho, se seguido, teria abolido totalmente a atividade bancária, uma atitude um tanto estranha por parte do arcebispo do principal centro bancário na Europa ocidental. A maioria dos teólogos foram mais lenientes, embora menos consistentes …”[5]
As reclamações de Antonino contra a usura foram totalmente exuberantes, assim como fez Bernadino, e foi ainda mais elevado pelo fato de que ele serviu como comissário Apostólico para a repressão à usura em Toscana. Antonino é o denunciador da usura, trazendo todos os argumentos possíveis com suas mais severas interpretações. Como demonstra o professor Noonan:
[…] ao ser mais sistemático, Antonino é muito mais severo que qualquer um de seus predecessores […] Antonino reúne todas as regras estritas dos ensinos iniciais sobre a usura em um firme conjunto de regras. Nenhum escritor notável posterior será tão severo, tão intransigente, tão fiel à lógica das concepções anteriores quanto ele.[6]
Além do mais, Antonino não arredou o pé de Bernadino em sua histérica reclamação contra a usura. A usura é “diabólica”; ela é a grande meretriz do Apocalipse 17, “que assentara sobre muitas águas, com a qual os reis da terra fornicaram”. Não apenas àqueles que praticam a usura, mas todos que cooperam com ela são “dignos de uma morte eterna”. A usura, para Antonino, é um pecado pior que adultério ou assassinato porque ela continua acontecendo indefinidamente, enquanto que os pecados anteriormente citados são apenas intermitentes. O usurário está em um estado de “perpétuo pecado”. Não apenas isso: a usura condena os herdeiros do usurário, visto que o pecado não é eliminado até que o usurário ou o seu patrimônio façam a restituição pela devolução dos juros cobrados. A usura, para Antonino, está em todo lugar, onipresente.
E, no entanto, Antonino também admite o lucrum cessans como uma fonte legítima de uma cobrança de juros. Ele está tão preocupado com as insinuações de usura, porém, que ele declara que, em prática, o lucrum cessans nunca deve ser aconselhado.
Tragicamente, a teoria da utilidade subjetiva, desenvolvida por Pierre de Jean Olivi no Século XIII, redescoberta por São Bernadino dois séculos depois, e amplamente difundida por seu discípulo Santo Antonino, morreu com o mundano santo florentino. Com poucas exceções, até mesmo os posteriores escolásticos espanhóis do século XVI, tanto na tradição Tomista e utilitária, não recuperaram esse nível. Sobrou para a Escola Austríaca do posterior Século XIX para independentemente replicar e ir além da teoria de valor subjetivo de Olivi, e sobrou para a década de cinquenta para que essa linha de pensamento escolástico fosse redescoberta.
8. Os liberais suábios e o ataque à proibição da usura
Quase ao mesmo tempo que São Bernadino estava desenvolvendo sua grande obra, um relativamente obscuro dominicano alemão estava independentemente estabelecendo uma análise similar. Johannes Nider (1380-1438) era um suábio que ensinava teologia na Universidade de Viena e liderou a reforma da Ordem Dominicana no sul da Alemanha. O breve tratado de Nider, Dos Contratos dos Mercadores (De Contractibus Mercantorum) foi escrito por volta de 1430 e publicado postumamente em Colônia por volta de 1468; foi reimpresso frequentemente pelo resto do século XV.
Nider começou justificando o lucro dos mercadores. Reconhecendo o papel empreendedorial do mercado, Nider enfatizou que o comércio requer conhecimento de mercado e que assegurar esse conhecimento requer industriosidade, diligência e sorte. As rendas dos negócios são justificadas pelos gastos, cuidados e riscos. Ao analisar preços de mercado, Nider enfatizou a utilidade subjetiva como o determinante. Nider, como Olivi e Bernadino, distinguiu entre a utilidade objetiva inerente em um bem e a utilidade subjetiva, o status do bem “na estimação do homem”. Nider deixou claro que apenas o último determinava decisivamente o preço justo de mercado. Antecipando Jevons quatro séculos depois, Nider sugeriu que uma mudança na oferta iria alterar o preço alterando a utilidade atribuída a ele. Que o preço comum de mercado determina o preço justo está claro em Nider: “O valor propriamente dito de uma coisa depende da maneira como os compradores ou vendedores podem pensar sobre os preços”. Ainda, onde não há mercado comum, Nider junta-se aos escolásticos anteriores em afirmar que os vendedores podem adotar uma abordagem de custo-extra para encontrar o justo preço que eles podem pedir.
Enquanto apenas a utilidade subjetiva é tratada na determinação do preço, há sinais inquietantes em Nider do argumento de “status” langensteiniano ao justificar a renda dos negócios. Pois a renda dos empreendedores, em adição a ser determinada pelos fatores econômicos mencionados acima, deve também ser decidida “em proporção à nobreza” do esforço — um prelúdio para Nider deixar claro que o trabalho do soldado é mais nobre do que o do mercador e, portanto, merece uma maior recompensa. Isso é um retrocesso não apenas a Langenstein, mas a veneração dos gregos antigos às artes marciais em oposição às artes produtivas.
Ao discutir sobre dinheiro, Nider é firme em justificar as atividades dos cambistas. Não há nenhum absurdo sobre a usura aqui. Nider aponta que a troca de moeda é um “tipo de venda e compra”, e demonstra ainda mais convincentemente que o valor do dinheiro, assim como o valor de outras mercadorias, também varia na estimação comum do mercado. Enquanto, seguindo Tomás, o valor do dinheiro normalmente muda menos radicalmente do que o valor de um bem particular, mudar isso faz, no entanto, os mercadores incorrerem em lucros e perdas legítimos com essa variação.
Nider escreve incisivamente sobre “a conversão, ou troca de dinheiro ou de outras coisas, que é, por assim dizer, um tipo de venda e compra de uma moeda corrente por outra, e apresenta, por assim dizer, o mesmo problema moral que o comércio de mercadorias […]”
Muito mais significante do que Nider era o grande escolástico do século XV e companheiro suábio Gabriel Biel (1430-95), professor de teologia na nova Universidade de Tübingen, no sudoeste da Alemanha. Biel era um distinto nominalista e ockhamista — de fato, os ockhamistas alemães do século XV eram conhecidos como Gabrielistae. E ainda, pesquisas recentes descobriram que Biel era essencialmente um tomista em sua crença em uma ética de lei natural objetiva e racional. De fato, ele ecoou a crença de seus companheiros “ockhamistas” de séculos anteriores, Gregório de Rimini, na crença altamente racionalista de que a lei natural era eterna e existiria mesmo se Deus não existisse. Além disso, o homem, através de sua razão, sem ajuda, pode discernir essa lei natural e chegar às conclusões corretas sobre sua conduta adequada.
Uma das contribuições de Biel foi entregar uma afirmação clara como água cristalina do insight escolástico de que cada parte em uma troca se envolveu na ação para benefício subjetivo mútuo. Seguindo Jean Buridan, seu companheiro nominalista de séculos anteriores, a análise de Biel era convincente e concisa: “Pois o comprador que deseja um bem não compraria, a menos que ele esperasse maior satisfação do bem do que do dinheiro que pagou; nem o vendedor venderia, a menos que ele esperasse um lucro do preço”. Não houve mais clara demonstração antes da de Biel de que toda troca envolve uma expectativa de benefício mútuo para cada parte na transação, e que a satisfação do comprador, ao menos, é puramente subjetiva, embora a do vendedor possa ser traduzida em um lucro monetário. Não haveria melhora real além de Biel até o advento da Escola Austríaca no final do século XIX.
Um seguidor de seu companheiro ockhamista Jean Buridan e de Nicolas de Oresme, Biel, em seu Tratado sobre o Poder e a Utilidade das Moedas, repetiu seu insight metalista sobre o valor da moeda e seu ataque a depreciação governamental. Biel também insistiu, com Buridan, que uma moeda sonante precisa ser composta de materiais com um uso independente de seu serviço como moeda. Biel considerou a depreciação pelo rei como equivalente a roubo: “se um príncipe rejeitar moeda válida, a fim de que ele possa comprá-la mais barata e derretê-la, e então emitir outra moeda de menor valor, anexando o valor da moeda anterior a ela, ele seria culpado de roubar dinheiro e é obrigado a fazer a restituição.”
Além disso, Biel forneceu uma mais sofisticada explicação e justificação do que as disponíveis anteriormente sobre o funcionamento do mercado de câmbio. Em seus comentários sobre as Sentenças (1484), Biel notou que um banco que aceita uma letra de câmbio permite que o sacador da letra obtenha dinheiro vivo em outra cidade e, assim, fornece o importante serviço de “transporte virtual” da moeda. O sacador da letra é aliviado do custo e do risco de ele mesmo mover a moeda. É, portanto, lícito para o banqueiro, como emprestador, lucrar sobre a compra de letras de câmbio estrangeiras. Desse modo, Biel ampliou muito a legitimidade das transações de câmbio, tanto para o emprestador quanto para o tomador, portanto, fortalecendo o insight teórico de que o valor da moeda varia da mesma forma que bens particulares.
Mas a grande significância de Gabriel Biel na história do pensamento econômico foi que ele começou o esmagamento da proibição da usura que mantivera o pensamento econômico escravizado desde os primeiros séculos da era cristã. Em adição a completar a liberação do mercado de câmbio da mácula da usura, Biel lançou a justificativa de contratos de seguro. Pois, se fosse pecaminoso e usurário ser dono de uma propriedade ou de um direito sem correr risco (tal como o concessor de um empréstimo puro), então o que dizer de um homem que comprou um contrato de seguro e, portanto, foi capaz de transferir o risco para a seguradora? A defesa do seguro Biel tomou de Angelus Carletus de Clavasio, vigário geral dos Franciscanos Observantes, que defendeu contratos de seguro sem risco em sua Summa Angelica, ao mesmo tempo que Biel estava escrevendo seu tratado.
A principal contribuição de Biel para enfraquecer a proibição da usura foi sua justificativa do contrato de census — a compra de uma anuidade — e justificá-lo em sua forma mais ampla possível. Portanto, a compra de uma anuidade era considerada lícita como um direito ao dinheiro frutífero, assim como uma anuidade segurada ou garantida. Além disso, o comprador teve permissão para resgatar a anuidade, uma concessão muito próxima de permitir que um emprestador recuperasse o capital bruto de seu empréstimo depois de receber o reembolso em prestações.
Portanto, Biel chegou bem próximo de justificar transações de crédito cobrando juros. Explicando o fato de que o vendedor de uma anuidade frequentemente está disposto a pagar uma alta taxa anual para obter dinheiro vivo prontamente disponível (i.e., pagar juros sobre um empréstimo) Biel aponta convincentemente que ambas as partes nis so, tal como em qualquer outra transação, esperam benefício: “Pois um comprador desejando mercadoria, ao menos que ele espere mais vantagem da mercadoria do que do dinheiro que ele deu, não compraria; nem o vendedor venderia, ao menos que ele espere lucro do preço”.
Mas o mais compreensivo e sistemático ataque à proibição da usura veio do estudante mais notável de Gabriel Biel e seu sucessor na cátedra de teologia na Universidade de Tübingen, Conrad Summenhart (1465-1511), que também foi um estudante na Universidade de Paris. A crítica veio no maciço Tratado sobre Contratos (Tractatus de Contractibus) (1499) de Summenhart.
A contribuição de Summenhart foi dupla: primeiro, em ampliar enormemente todas as possíveis exceções à proibição da usura, e.g., o census e o lucrum cessans; e segundo, em lançar um violento ataque direto a todos os argumentos consagrados contra qualquer contrato de usura remanescente. Na primeira, Summenhart desenvolveu o argumento para parcerias seguradas ou garantidas muito mais sutil e extensiva do que antes. Ele também ampliou as exceções do lucrum cessans muito mais do que qualquer um já tinha feito. Dinheiro é frutífero, declarou Summenhart corajosamente, é a ferramenta do mercado, que ele pode tornar frutífera através do uso de seu trabalho. Consequentemente, o mercador deveria ser compensado pela perda do uso de seu dinheiro, assim como um fazendeiro deveria ser recompensado pela perda de seus campos. Infelizmente, no entanto, o ampliamento de Summenhart do lucrum cessans ainda era limitado, como entre os primeiros escolásticos, a empréstimos feitos por caridade.
O afrouxamento mais ousado das obrigações de usura por Summenhart foi em sua defesa radical da interpretação mais ampla possível dos contratos de census. Aqui, Summenhart justificou muitas das transações de crédito então usadas na Alemanha. Juntamente com seu desenvolvimento da ideia de valor mutável da moeda, isso significou “o esvaziamento da proibição da usura de todo significante prático”.[7] O dinheiro, declarou Summenhart, pode licitamente ser direcionado com fins lucrativos. Além disso, ele afirmou que um census não é um empréstimo (pecaminoso), pois o direito ao dinheiro é um bem de outra espécie que não o dinheiro trocado. Mas nesse caso, Summenhart se perguntou, não poderia um usurário dizer a mesma coisa e simplesmente afirmar que o direito ao dinheiro que ele exigia em troca era um bem de um tipo diferente do dinheiro emprestado? Surpreendentemente, Summenhart respondeu, tudo bem, desde que o emprestador não pretendesse que isso fosse usura e estivesse ele mesmo realmente convencido de que estava comprando o direito ao dinheiro, que era um bem diferente do próprio dinheiro. Mas se a usura fosse apenas uma intenção subjetiva e não o fato objetivo de um empréstimo cobrando juros, então não havia maneira objetiva de identificar ou aplicar a proibição contra a usura! Só dessa forma, Summenhart efetivamente destruiu a proibição contra a usura.
Mas isso não foi tudo. Pois Summenhart explicitamente declarou que a compra por alguém de uma dívida descontada não é um empréstimo usurário, pois é apenas a compra de um direito a dinheiro. A compra de um débito foi lícita da mesma forma que um census, a “compra de uma dívida” poderia ser a de uma dívida recém-constituída e não simplesmente a compra de uma dívida anterior. Isso também, efetivamente acabou com a proibição da usura.
Ademais, ao aprovar contratos de “compra de dívida”, Summenhart chegou perto de entender o fato primordial da preferência temporal, a preferência de dinheiro presente sobre dinheiro futuro. Quando alguém paga $100 pelo direito de $110 em uma data futura, ambas partes estimam o dinheiro presente mais altamente do que dinheiro pagável em uma data futura. O “comprador” (emprestador), desse modo, não realmente lucra usurariamente do empréstimo, pois ele valora os $110 futuros como valendo $100 no tempo presente, de modo que “o preço e a mercadoria são iguais em fato e na estimativa do comprador”.
Então, combatendo os argumentos pela usura diretamente, Summenhart apresentou 23 argumentos padrões de lei natural contra a usura e demoliu todos eles, deixando apenas dois argumentos formais frágeis; enquanto ele também apresentou fortes objeções contra a proibição da usura. Como o Professor Noonan conclui, o exame de Summenhart “termina em uma rejeição do passado. A usura é atacada apenas nominalmente. A antiga teoria escolástica da usura é abandonada”.[8] O argumento de Summenhart pela usura é compreensível. Contrário à São Tomás, o usurário cobra não pelo uso do tomador de seu dinheiro, mas por sua própria falta de uso. Caso fosse respondido que a restauração do capital bruto pelo mutuário restitui ao emprestador o poder de uso, Summenhart responderia convincentemente, novamente sentindo a preferência temporal: “Mas ele não restitui a ele [o emprestador] o uso do tempo intermediário, de modo que ele seja capaz de usá-lo [o dinheiro] para esse tempo intermediário […]”. Portanto, juros sobre um empréstimo se tornam uma cobrança legítima pelo uso abstido durante o período de tempo de um empréstimo. É claro, pelo menos implicitamente, que Conrad Summenhart magnificamente demonstrou a justiça da “usura”, dos juros sobre um empréstimo.
Sobre o valor fixado do dinheiro como um argumento contra a usura, Summenhart repete e desenvolve o argumento de críticos anteriores de que o valor do dinheiro varia com o tempo. Além disso, sob a acusação de isenção de risco de um empréstimo de dinheiro, Summenhart origina um argumento potencialmente fatal para a proibição da usura. Ele aponta corretamente que o emprestador nunca está sem risco; ele sempre carrega o risco de o mutuário ir à falência. O mutuário também tem a oportunidade de receber mais lucros do empréstimo do que os juros que têm de pagar ao emprestador. Ademais, Summenhart nitidamente esmagou o argumento aristotélico de que dinheiro, por sua natureza, era “destinado” a ser usado apenas como meio de troca e não para gerar juros. Summenhart ousadamente declara que o argumento é simplesmente absurdo. Será que alguém comete pecado usando vinha para apagar fogo ou guardando dinheiro em um sapato? Não há nada na lei natural que demonstre que um bem material deve sempre ser usado para um propósito particular e não para outro.
Ficamos, depois de Summenhart, com apenas dois argumentos muito fracos contra a usura: o mero fato de que Aristóteles disse que não era natural (um “argumento” que Summenhart só poderia ter entendido sarcasticamente) e a proibição divina. Mas, uma vez que a usura é realmente natural, Summenhart, como vimos, está disposto a interpretar a proibição divina tão restritamente que virtualmente desaparece; após Summenhart, a proibição da usura acabou.
Infelizmente para a credibilidade da economia escolástica, no entanto, os escolásticos do século XVI, por mais excelentes que fossem em muitas áreas da economia, não aceitaram o ousado desafio de Conrad Summenhart de abolir completamente a proibição da usura.
Em alguns casos, particularmente em sua justificação do contrato de parceria garantida, Summenhart evitou a aprovação total, aconselhando prudentemente contra contratos, embora lícitos, que poderiam escandalizar a comunidade. Coube ao eminente aluno de Summenhart, Johann Eck, levar a revolução summenhartiana até a sua conclusão. Eck, professor de teologia na Universidade de Ingolstadt perto do centro financeiro de Augsburg na Baviera, logo encontraria sua maior fama ao argumentar pelo lado católico contra Martinho Lutero. Augsburg era então o principal centro financeiro da Alemanha e a casa dos grandes banqueiros, os Fuggers, que conquistaram o lucrativo negócio bancário papal da cidade de Florença. Em 1514, Eck, com 28 anos, um amigo dos Fuggers, criticou seus colegas teólogos por esconder a verdade de que o contrato de parceria garantida era totalmente lícito, com escândalo ou sem escândalo. Argumentou perante uma audiência favorável de canonistas da Universidade de Bologna, Eck apontou que os mercadores geralmente solicitam o contrato de investimento garantido e, portanto, lucram com ele. Além disso, esse contrato era de uso geral há 40 anos, de modo que se deve presumir que o contrato garantido é lícito, a menos que se prove o contrário. Também, Eck adicionou a nota sofisticada e moderna de que, afinal, a maioria dos investidores capitalistas nesse contrato são viúvas e órfãos.
Deve ser notado que o eminente teólogo nominalista escocês, John Major (1478-1548), decano da faculdade de teologia na Universidade de Paris, claramente concordou com a controversa defesa de Eck-Summenhart do contrato de investimento garantido.
9. Nominalistas e direitos naturais ativos
Os dominicanos, como vimos, triunfaram sobre os Franciscanos na questão dos direitos de propriedade com a grande bula do Papa João XXII, Quia vir reprobus (1329). Os direitos de propriedade individuais foram agora oficialmente estabelecidos como naturais, decorrentes da concessão por Deus ao homem do domínio sobre a terra. Apesar da tentativa de Guilherme de Ockham de refutar João XXII, os seus seguidores nominalistas assumiram a liderança no desenvolvimento dessa teoria dos direitos naturais ativos de propriedade. Pierre d’Ailly (1350-1420), e particularmente o seu aluno e sucessor como chanceler da Universidade de Paris, Jean Gerson (1363-1429), desenvolveram a teoria. Assim, tal como Gerson o colocou incisivamente em seu De Vita Spirituali Animae (1402):
Há um domínio natural como dom de Deus, pelo qual cada criatura tem um ius (direito) diretamente de Deus para levar coisas inferiores ao seu próprio uso para a sua própria preservação. Cada um tem este ius como resultado de uma justiça justa e irrevogável, mantida na sua pureza original, ou uma integridade natural. Dessa forma, Adão tinha domínio sobre as aves do ar e os peixes do mar. […] A este domínio pode também ser assimilado o domínio da liberdade, que é uma faculdade irrestrita dada por Deus […][9]
É estranho que esse nominalista e místico, depois de estabelecer a visão dos direitos humanos como um domínio, também venha a considerar, entre uma minoria de escolásticos, que qualquer lucro mercantil acima dos custos e riscos é imoral, e que o governo deva fixar todos os preços para assegurar um preço justo.
A teoria de direitos ativos foi defendida pelo Gersoniano Conrad Summenhart, e depois aprofundada pelo nominalista John Major. No seu comentário às Sentenças de Pedro Lombardo (1509), Major, um século depois de Gerson, extraiu a conclusão lógica de que não só o direito e o domínio do homem eram naturais, como também a propriedade privada. O estudante de Major, Jacques Almain, colocou claramente (Aurea opuscula, c.1525): “O domínio natural é, portanto, o poder de disposição ou a faculdade de utilizar coisas que as pessoas podem empregar no seu uso de objetos externos, seguindo os preceitos da lei da natureza — pela qual cada um pode cuidar do seu próprio corpo e preservar-se a si mesmo”.
Ao longo do século XV, e no século XVI, a teoria ativa de direitos naturais parecia reinar incontestada.
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Notas
[1] O declínio populacional foi mais ou menos uniforme pela Europa Ocidental, com a população italiana caindo de 10 para 7.5 milhões, a da França e dos Países Baixos de 19 para 12 milhões, a da Alemanha e da Escandinávia de 11.5 para 7.5 milhões, e a da Espanha de 9 para 7 milhões. A maior queda percentual foi na Grã-Bretanha, onde o número de habitantes caiu de 5 para 3 milhões nesse período.
[2] Lionel Rothkrug, Opposition to Louis XIV: The Political and Social Origins of the French Enlightment (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1965), p. 14.
* Nota do Tradutor: não confundir “essencialista” aqui pela vertente tomista, surgida no século XX e encabeçada por Cornelio Fabro, que é dotada de mesmo adjetivo. Rothbard aqui se refere ao essencialismo de forma digamos que mais básica, como uma posição em epistemologia que, grosseiramente definida, defende a existência de predicados abstraídos de entes individuais sem os quais eles não poderiam existir, i.e., essências.
[3] Sobre a análise de Buridan e da indiferença moderna, veja Joseph A. Schumpeter, History of Economic Analysis (Nova York: Oxford University Press, 1954), pp. 94n, 1064. Para uma crítica, veja Murray N. Rothbard, Man, Economy and State (1962, Los Angeles: Nash Publishing Co. 1970), I, pp. 267-8.
[4] E, de forma mais completa:
Muitas vezes temos nós refletido sobre um abuso similar
Na escolha dos homens para os ofícios, e de moedas para uso comum
Para vossos pedaços antigos e padrões, valorados e aprovados e tentados
Aqui, entre as nações grecianas, e em todo o mundo ao redor
Reconhecido em todo reino pela confiável estampa e pelo puro ensaio
E rejeitado e abandonado aos trastes de ontem
Por uma vil, adulterada, falsificada e obscura emissão
A qual o tráfego da cidade passa corrente em sua colocação
– Aristófanes, Os Sapos
Citado em J. Laurence Laughlin, The Principles of Money (Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1903), p. 420.
[5] Raymond de Roover, San Bernardino of Siena and Sant’Antonino of Florence (Boston: Baker Library, 1967), p. 37.
[6] John T. Noonan, Jr. The Scholastic Analysis of Usury (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1957), p. 77.
[7] Ibid., p. 233.
[8] Ibid., p. 340.
[9] Richard Tuck, Natural Rights Theories (Cambridge: Cambridge University Press, 1979), p. 27.