Friday, November 22, 2024
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Capítulo 2 – A Idade Média Cristã

1. O direito romano: direitos de propriedade e laissez-faire

 

Uma das influências mais poderosas no pensamento jurídico e político e nas instituições do Ocidente cristão durante a Idade Média foi o Direito Romano, derivado da República e do Império da Roma antiga. O Direito Romano desenvolveu-se classicamente no primeiro ao terceiro século d.C. O direito privado desenvolveu a teoria do direito absoluto à propriedade privada e à livres trocas e contratos. Enquanto o direito público romano teoricamente permitisse a interferência do estado na vida do cidadão, houve pouca interferência no final da República e no início do Império. Os direitos de propriedade privada e o laissez-faire foram, portanto, a herança fundamental do direito romano para os séculos posteriores, e muitos deles foram adotados por países do Ocidente cristão. Embora o Império Romano tenha entrado em colapso nos séculos IV e V, sua herança jurídica continuou, como incorporada em duas grandes coleções do direito romano: influente no Ocidente, o Código de Teodósio, promulgado pelo Imperador Teodósio em 438 d.C. e no Oriente o grande Corpus Juris Civilis de quatro volumes, promulgado pelo Imperador Cristão Bizantino Justiniano nos anos 530.

Ambas as coleções enfatizaram fortemente que o preço “justo” (justum pretium) era simplesmente qualquer preço obtido por meio de negociação livre e voluntária entre comprador e vendedor. Cada homem tem o direito de fazer o que quiser com sua propriedade e, portanto, tem o direito de fazer contratos para doar, comprar ou vender tais propriedades; por isso qualquer preço a que se chegue livremente é “justo”. Assim, no Corpus, vários juristas romanos importantes do século III citaram o jurista Pomponius do início do século II em uma expressão clássica da moralidade do laissez-faire: “Ao comprar e vender, a lei natural permite que uma parte compre por menos e a outra venda por mais do que o valor da coisa; assim, cada parte tem permissão para lograr a outra”; e “é naturalmente permitido às partes contornar umas às outras no preço de compra e de venda”. O único problema aqui é a frase estranha, “o valor da coisa”, que assume que há algum valor além do da livre negociação, que expressa algum “verdadeiro valor”, uma frase que se provaria uma precursora infeliz do futuro.

Mais especificamente, o Código de Teodósio era bastante claro: qualquer preço estabelecido por barganha livre e voluntária é justo e legítimo, sendo a única exceção um contrato feito por crianças. Força ou fraude, como violação dos direitos de propriedade, eram obviamente consideradas ilegais. O código assegurava explicitamente que a ignorância do valor de um bem por parte do comprador ou do vendedor era uma base insuficiente para que as autoridades intervissem e rescindissem o contrato voluntariamente acordado. O Código de Teodósio foi levado adiante na Europa Ocidental, e.g., a lei visigótica estabelecida nos séculos VI e VII, e a lei bávara do início do século VIII. A lei bávara acrescentou a cláusula explícita de que um comprador não pode rescindir uma venda porque mais tarde ele decide que o preço acordado era muito alto. Esse aspecto laissez-faire do Código de Teodósio mais tarde foi incorporado ao direito canônico cristão ao ser incluído na coleção de “capitulares” (decretos) de São Benedictus Diaconus no século IX d.C.

Embora o Corpus Justiniano, promulgado no Oriente, fosse igualmente dedicado ao laissezfaire, incluía um elemento menor que mais tarde cresceria e justificaria ataques à livre barganha. Como parte da discussão de Justiniano sobre como os tribunais podem avaliar bens para o pagamento de danos, o código mencionou que se um vendedor vendeu sua propriedade por menos da metade do “preço justo”, então ele sofre “grande perda” (laesio enormis), e o vendedor tem, então, o direito de receber de volta a diferença entre o preço original e o preço justo do comprador, ou então obter sua propriedade de volta pelo preço original. Essa cláusula era aparentemente destinada apenas a ser aplicada a imóveis e a indenizações por danos, onde as autoridades devem, de alguma forma, avaliar o preço “verdadeiro”, não tendo influência nas leis dos próximos séculos. Mas isso estava para produzir efeitos infelizes no futuro.

 

2. Atitudes dos cristãos primitivos em relação aos comerciantes

 

A lei romana não foi a única influência nas ideias econômicas na Idade Média. Atitudes ambivalentes na tradição cristã primitiva também se mostraram muito importantes.

É claro que as questões econômicas não eram centrais para o Antigo ou o Novo Testamento, e pronunciamentos econômicos dispersos são contraditórios ou sujeitos a interpretações ambivalentes. Fulminações contra o amor excessivo ao dinheiro não implicam necessariamente em hostilidade ao comércio ou à riqueza. Um aspecto notável do Antigo Testamento, entretanto, é a sua exaltação repetida, quase pré-calvinista, do trabalho por si mesmo. Em contraste com a atitude desdenhosa dos filósofos gregos em relação ao trabalho, o Antigo Testamento está repleto de exortações a favor do trabalho: desde o “seja fecundo e multiplique” em Gênesis até o “Aproveite a vida em seu trabalho árduo pelo qual você trabalha arduamente sob o sol” de Eclesiastes. Estranhamente, essas chamadas para o trabalho costumam ser acompanhadas de admoestações contra o acúmulo de riqueza. Mais tarde, no século II a.C., o escriba hebreu que escreveu o livro deuterocanônico Eclesiástico chega ao ponto de exaltar o trabalho como uma vocação sagrada. Os trabalhadores manuais, escreve ele, “mantém estável o tecido do mundo, e sua oração está na prática de seu ofício”. No entanto, a busca por dinheiro é condenada e os mercadores são habitualmente tratados com profunda suspeita: “Um mercador dificilmente pode evitar os erros e um comerciante não será declarado inocente do pecado”. E ainda, no mesmo livro de Eclesiástico, o leitor é instruído a não ter vergonha de lucro ou sucesso nos negócios.

A atitude dos primeiros cristãos, incluindo Jesus e os apóstolos, em relação ao trabalho e ao comércio foi colorida por sua intensa expectativa do fim iminente do mundo e da vinda do Reino de Deus. Obviamente, se alguém espera o fim iminente do mundo, tende a ter pouca paciência para atividades como: investir ou acumular riqueza; antes, a tendência é agir como os lírios do campo, seguir Jesus e esquecer os assuntos mundanos. E era nesse contexto que precisamos entender a famosa frase de São Paulo “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males.”

Por volta de 100 d.C., no entanto, os livros do Novo Testamento escritos por São João deixam claro que a Igreja Cristã havia abandonado a ideia do fim iminente do mundo. Mas a herança helenística e evangélica fundiu-se para conduzir os primeiros Pais da Igreja a uma visão retratista do mundo e de suas atividades econômicas, combinada com fulminações contra a riqueza e os mercadores que tendem a acumular tal riqueza. Os Padres da Igreja protestaram contra as atividades mercantis como necessariamente marcadas com o pecado da ganância e quase sempre acompanhadas de engano e fraude. Liderando o desfile estava o místico e apocalíptico Tertuliano (160-240), um proeminente advogado cartaginês que se converteu ao cristianismo tarde na vida e acabou formando sua própria seita herética. Para Tertuliano, o ataque aos mercadores e ao ganho de dinheiro era parte integrante de uma filípica geral contra o mundo secular, que ele esperava que a qualquer momento naufragasse na superpopulação, de modo que a terra logo sofreria de “epidemias, fomes, guerras e a abertura da terra para engolir cidades inteiras” como uma solução terrível para o problema da superpopulação.

Dois séculos depois, o impetuoso São Jerônimo (c.340-420), educado em Roma, mas também influenciado pelos Padres orientais, retomou o tema, proclamando a falácia de que no comércio, o ganho de um homem só pode ser alcançado por meio da perda de outro homem: “Todas as riquezas vêm da iniquidade e, a menos que um perca, outro não pode ganhar”. Portanto, essa opinião comum me parece muito verdadeira, “o homem rico é injusto, ou herdeiro de um injusto”. E ainda havia outra linha, contraditória, mesmo em Jerônimo, que também declarou que “Um homem sábio com riquezas tem maior glória do que aquele que só é sábio”, pois ele pode realizar mais coisas boas; “a riqueza não é um obstáculo para o homem rico que a usa bem.”

Provavelmente, a atitude mais inteligente em relação à riqueza e ao ganho de dinheiro entre os primeiros Padres da Igreja foi a do padre Clemente de Alexandria, nascido em Atenas, oriental (c.150-215). Enquanto Clemente aconselhava que a propriedade fosse usada para o bem da comunidade, ele endossava a propriedade privada e o acúmulo de riqueza. Ele atacou como tolo o ideal ascético de se despojar de suas posses. Como Clemente disse sabiamente, empregando um tema da lei natural:

“Não devemos jogar fora as riquezas que podem beneficiar nosso próximo. As posses foram feitas para serem possuídas; os bens são chamados bens porque fazem o bem, e foram fornecidos por Deus para o bem dos homens: estão disponíveis e servem de material, de instrumentos para um bom uso nas mãos de quem sabe usá-los.”

Clemente também adotou uma atitude obstinada em relação aos pobres sem raízes. Se viver sem posses era tão desejável, ele apontou,

“[…] então todo aquele enxame de proletários, desamparados e mendigos que vivem da mão à boca, todos os miseráveis lançados nas ruas, embora vivam na ignorância de Deus e de sua justiça, seriam os mais abençoados e os mais religiosos e os únicos candidatos à vida eterna simplesmente porque não têm um tostão […]”

Os primeiros Padres da Igreja culminaram no grande Santo Agostinho (354-430) que, vivendo na época do saque de Roma em 410 e do colapso do Império Romano, teve de vislumbrar um mundo pós-antigo que ele tinha muito para influenciar. Nascido na Numídia, na África, Aurelius Augustinus foi educado em Cartago e tornou-se professor de retórica em Milão. Batizado como cristão aos 32 anos, Santo Agostinho tornou-se bispo de Hipona, no norte da África, sua terra natal. O Império Romano sob Constantino havia adotado o Cristianismo um século antes, e Agostinho escreveu sua grande obra, A Cidade de Deus, como uma refutação à acusação de que o acolhimento do Cristianismo resultou na queda de Roma.

As visões econômicas de Agostinho estavam espalhadas por toda a Cidade de Deus e seus outros escritos altamente influentes. Mas ele definitivamente, e presumivelmente independentemente de Aristóteles, chegou ao ponto de vista de que os pagamentos das pessoas pelos bens, a valoração que lhes atribuíam, era determinada por suas próprias necessidades e não por qualquer critério mais objetivo ou por sua classificação na ordem da natureza. Essa foi pelo menos a base da posterior teoria austríaca do valor subjetivo. Ele também destacou que era o desejo comum de todos os homens comprar barato e vender caro.

Além disso, Agostinho foi o primeiro Padre da Igreja a ter uma atitude positiva em relação ao papel do mercador. Rebatendo as acusações patrísticas comuns contra os mercadores, Agostinho assinalou que eles prestam um serviço benéfico ao transportar mercadorias a grandes distâncias e ao vendê-las ao consumidor. Visto que, de acordo com o princípio cristão, “o trabalhador é digno de seu salário”, então o comerciante também merecia compensação por suas atividades e por seu trabalho.

À acusação comum de fraude e engano endêmico nos negócios mercantis, Agostinho convincentemente respondeu que tais mentiras e perjúrios não eram culpa do comércio, mas do próprio comerciante. Esses pecados originaram-se da iniquidade da pessoa, não de sua ocupação. Afinal, apontou Agostinho, sapateiros e fazendeiros também são capazes de mentiras e perjúrios, mas os Padres da Igreja não condenaram suas ocupações como sendo más per se.

Limpar os mercadores da mancha do mal inerente provou ser extremamente influente nos séculos seguintes e foi citado repetidas vezes no florescimento do pensamento cristão nos séculos XII e XIII.

Uma contribuição menos tangível, mas ainda importante para o pensamento social, foi a reformulação de Santo Agostinho da visão do mundo antigo acerca da personalidade humana. Para os filósofos gregos, a personalidade individual deveria ser moldada para se conformar às necessidades e desejos da polis. O que era ditado pela polis significava necessariamente uma sociedade estática, com desencorajamento direcionado a qualquer empreendedor inovador que tentasse romper os moldes contemporâneos. Mas a ênfase de Santo Agostinho estava na personalidade do indivíduo revelando o seu si-mesmo e, portanto, progredindo ao longo do tempo. Consequentemente, a profunda ênfase de Agostinho no indivíduo pelo menos preparou o cenário indiretamente para uma atitude favorável à inovação, ao crescimento econômico e ao desenvolvimento. Esse aspecto do pensamento de Agostinho, entretanto, não foi realmente enfatizado pelos teólogos e filósofos cristãos do século XIII que se basearam no pensamento de Agostinho. É irônico que o homem que preparou o terreno para o otimismo e uma teoria do progresso humano, em seu leito de morte, encontre as hordas de bárbaros sitiando sua amada cidade de Hipona.

Se Santo Agostinho olhava com benevolência para o papel do comerciante, também era favorável, embora não tão calorosamente, ao papel social dos governantes do estado. Por um lado, Agostinho pegou e expandiu a parábola de Cícero demonstrando que Alexandre, o Grande, era simplesmente um pirata em letras maiúsculas e que o estado nada mais é do que um bando de ladrões estabelecido em grande escala. Em seu famoso Cidade de Deus, Agostinho pergunta:

E então, se a justiça for deixada de fora, que são os reinos, senão grandes bandos de ladrões? Pois, que são bandos de ladrões, senão pequenos reinos? O bando também é um grupo de homens regidos por ordens de um líder, vinculados a um compacto social, e seu espólio é dividido de acordo com uma lei acordada. Se, ao adicionar repetidamente homens desesperados, esta praga cresce a ponto de deter território e estabelecer um assento fixo, apreende cidades e subjuga pessoas, então ela assume mais claramente o nome de reino, e este nome é agora abertamente concedido a ele, não para qualquer subtração de cupidez, mas por adição de impunidade. Pois foi uma resposta elegante e verdadeira que foi dada a Alexandre o Grande por um certo pirata que ele havia capturado. Quando o rei lhe perguntou o que ele estava pensando, que deveria molestar o mar, ele disse com uma independência desafiadora: “O mesmo que você quando molesta o mundo! Como faço isso com um pequeno navio, sou chamado de pirata. Você faz isso com uma grande frota e é chamado de imperador.”[1]

No entanto, Agostinho termina aprovando o papel do estado, embora seja um bando de ladrões em grande escala. Enquanto ele enfatizava o indivíduo ao invés da polis, no estilo pré-calvinista, Agostinho enfatizou a perversidade e depravação do homem. Neste mundo caído, perverso e pecaminoso, o governo do estado, embora desagradável e coercitivo, torna-se necessário. Consequentemente, Agostinho apoiou o esmagamento forçado pela Igreja Cristã no Norte da África da heresia donatista, que de fato acreditava, em contraste com Agostinho, que todos os reis eram necessariamente maus.

A comparação do chefe de estado a um bandido em grande escala, no entanto, foi ressuscitada em seu contexto antiestado original pelo grande Papa Gregório VII, no curso de sua luta com os reis da Europa sobre suas reformas gregorianas no final século XI. Esse tipo de antiestatismo amargo, então, surge de tempos em tempos no início da era cristã e na Idade Média.

 

 

3. Os carolíngios e o direito canônico

 

A “lei canônica” era a lei que governava a Igreja e, durante o início da era cristã e da Idade Média, o entrelaçamento da Igreja e do estado muitas vezes significava que a lei canônica e a lei estatal eram a mesma coisa. O direito canônico primitivo consistia em decretos papais, decretos de concílios da igreja e os escritos dos Padres da Igreja. Vimos que o direito canônico posterior também incorporou muito do direito romano. Mas o direito canônico também incluía outra coisa basicamente perniciosa: os decretos e regulações (“capitulares”) do Império Carolíngio nos últimos séculos VIII e IX.

Do quinto ao décimo século, o caos econômico e político da Idade das Trevas prevaleceu em toda a Europa e, consequentemente, havia pouco ou nenhum espaço para o desenvolvimento do pensamento político, jurídico ou econômico. A única exceção foram as atividades do Império Carolíngio, que floresceu na Europa Ocidental. O mais importante imperador carolíngio foi Carlos Magno (742-814) e seu governo foi transferido para seus sucessores durante o restante do século IX. Capitular após capitular, Carlos Magno e seus sucessores estabeleceram regulações detalhadas para cada aspecto da vida econômica, política e religiosa em todo o império. Muitas dessas regulações foram incorporadas à lei canônica dos séculos posteriores, permanecendo, assim, influentes muito depois do colapso do próprio Império Carolíngio.

Carlos Magno construiu sua despótica rede de regulações sobre uma base instável. Assim, o importante concílio da Igreja, o de Nicéia (325), proibiu qualquer clérigo de se envolver em qualquer atividade econômica que levasse a “ganho vergonhoso” (turpe lucrum). Em seu sínodo em Nijmegen (806), Carlos Magno reviveu, ampliou e impôs a velha doutrina do turpe lucrum. Mas agora a proibição foi estendida do clero a todos, e a definição de fraude foi ampliada para toda ganância e avareza, e incluiu qualquer desobediência às extensas regulações de preços de Carlos Magno. Quaisquer desvios de mercado em relação a esses preços fixos foram acusados de lucro por compradores ou vendedores e, portanto, de turpe lucrum. Como corolário, toda compra e venda especulativa de alimentos foi proibida. Além disso, num prenúncio da proibição da Common Law ao “forestalling”,* era proibida qualquer venda de bens no exterior e a preços mais elevados do que aqueles dos mercados regulares. Uma vez que a Common Law inglesa foi motivada, não por uma tentativa equivocada de ajudar os pobres, mas pela conferência de privilégios monopolísticos aos proprietários locais de sítios de mercado, é altamente provável que Carlos Magno também estivesse tentando cartelizar mercados e conferir privilégios para proprietários de mercado.

Todo decreto de preço arbitrário por parte dos oficiais carolíngios era, é claro, reverenciado pelos carolíngios como o “preço justo”. Provavelmente, esse preço coagido estava frequentemente próximo do que era um preço habitual ou corrente na vizinhança; do contrário, seria difícil conceber como os funcionários carolíngios descobririam qual preço deveria ser justo. Mas isso significava uma tentativa fútil e antieconômica de congelar todos os preços com base em algum status quo anterior do mercado.

O problema, então, é que o direito canônico posterior incorporou a ideia do preço justo como sendo o preço decretado pelo estado. A proibição de qualquer preço superior ao preço de mercado atual foi reimposta pelo falecido imperador carolíngio Carlomano em 884 e incorporada à coleção de direito canônico de Regino de Prüm em 900 e, mais de um século depois, à de Bucardo de Worms.

Notavelmente, as duas tensões jurídicas contraditórias: o tema laissez-faire do Código de Teodósio e o motivo carolíngio estatista encontraram seu caminho para a grande coleção na base da disciplina medieval do direito canônico: a do bispo Ivo de Chartres, na virada do século XII. Lá, na mesma coleção, encontramos a visão de que o preço justo é qualquer preço voluntariamente acordado pelo comprador e pelo vendedor, e também a visão contraditória de que o preço justo é aquele decretado pelo estado, especialmente se for o preço comum em mercados gerais.

 

4. Canonistas e romanistas da Universidade de Bolonha

 

A Alta Idade Média foi estabelecida pela revolução comercial do século XI ao XIII, nos quais o comércio, a produção e as finanças floresceram, os padrões de vida aumentaram acentuadamente e as instituições do capitalismo comercial se desenvolveram na Europa Ocidental. Com o advento do crescimento econômico e prosperidade, o direito canônico e romano, o aprendizado e o pensamento social, também começaram a florescer mais uma vez.

A principal fonte e o maior centro dos estudos canônicos e do direito romano durante a Alta Idade Média foi a Universidade de Bolonha, na Itália, florescendo desde o início do século XII até a última parte do século XIII. Durante esses dois séculos, tanto o direito canônico quanto o romano, incluindo o Código Justiniano, foram revividos em Bolonha, influenciaram-se mutuamente e penetraram no resto da Europa ocidental.

A grande e definitiva coleção de direito canônico, o Decretum, foi publicada por volta do ano 1140 pelo monge italiano, Johannes Gratianus, que fundou estudos de direito canônico na Universidade de Bolonha. O Decretum foi a obra definitiva de direito canônico a partir desse ponto, bem como para o restante dos estudiosos Bolonheses do século XII, conhecidos como os decretistas, que elaboraram, discutiram e escreveram comentários à obra de Graciano.

O próprio Graciano e seus primeiros comentadores assumiram uma posição tradicionalmente zelosa e anti-mercantil. Especulação, comprar barato para vender caro — atividades puramente mercantis — eram turpe lucrum e inevitavelmente envolviam fraude.

O primeiro decretista a começar a se posicionar de maneira inteligente sobre as atividades do mercador foi Rufino, um professor de Bolonha que mais tarde se tornou bispo de Assis e depois arcebispo de Sorrento. Em sua Summa (1157-59) ao Decretum, Rufino afirmou que artesãos e construtores podiam comprar materiais baratos, trabalhá-los e transformá-los, e então vender os produtos por um preço mais alto. Essa forma de comprar barato e vender caro era justificada pelas despesas e mão de obra dos artesãos, e é permitida até mesmo para o clero e aos leigos.* Porém, outra atividade, praticada pelo puramente comerciante ou especulador, que compra barato e vende caro sem transformar o produto é, segundo Rufino, absolutamente proibida ao clero. O comerciante leigo, no entanto, poderia honradamente se envolver nessas transações, desde que tivesse feito grandes despesas ou estivesse fatigado pelo trabalho duro. Mas uma compra barata feita pelo puro empreendedor seguida por uma venda quando os preços de mercado estavam mais altos foi condenada incondicionalmente por Rufino.

Essa reabilitação parcial do mercador pelos decretistas foi incluída na importante Summa de 1188 de Huguccio, professor em Bolonha, mais tarde escolhido bispo de Ferrara. Huguccio repetiu a opinião de Rufino, mas mudou a justificativa do comerciante de mão de obra ou despesas para ações que visavam atender às necessidades da família do comerciante. A ênfase de Huguccio, então, não era nos custos objetivos, mas nas intenções subjetivas do comerciante, supondo que eles pudessem ser descobertos: era mera ganância ou era um desejo para atender às necessidades de sua família? Claramente, Huguccio permitiu um espaço considerável para atividades mercantis.

Além disso, Huguccio iniciou uma reconstrução radical dos ensinamentos Patrísticos sobre a propriedade privada. Desde a época de Huguccio, a propriedade privada era para ser considerada um direito sacrossanto derivado da lei natural. A propriedade de indivíduos e comunidades deveriam, pelo menos em princípio, ser livres da invasão arbitrária por parte do estado. Como “moderador e árbitro” de seus próprios bens, um dono individual poderia usar e dispor deles como ele bem entendesse, desde que não tivesse violado as normas legais gerais. Um governante só poderia expropriar a propriedade de um sujeito inocente se a “necessidade pública” exigisse. Isso, é claro, era um buraco no sistema de direitos, uma vez que a “necessidade pública” poderia ser, e era, um conceito elástico. Mas esse conceito de propriedade privada foi um enorme avanço sobre os ensinamentos Patrísticos.

Após o final do século XII, o movimento decretista no direito canônico deu caminho para os decretalistas, que se basearam numa série de éditos ou decretos papais, do final do século XII ao século XIII. Uma vez que o papa é supremo na Igreja Católica, os decretos proferidos por ele e sua cúria do Vaticano foram automaticamente incorporados ao corpo da lei canônica. Dessa forma, o direito canônico passou a ser diferente daquele de Graciano e dos decretistas, que construíram a lei principalmente em fontes antigas. Mas os novos decretos dificilmente eram arbitrários; eles basearam e elaboraram o direito canônico anterior. A continuidade do processo de construção foi muito auxiliada pelo fato de que vários desses papas eram ex-bolonheses. Assim, o papa Alexandre III (Rolando Bandinelli); que iniciou o novo processo decretal e desfrutou de um longo reinado papal, de 1159 a 1181, estudou direito e teologia em Bolonha, provavelmente foi professor lá, e teve contato direto com o grande Graciano. Um ilustre estudioso do direito, que escreveu uma das primeiras Summa ao Decretum de Graciano, Alexandre tornou-se cardeal e chanceler antes de ser eleito para o papado. Outro significativo decretalista papal, o Papa Inocêncio III (Lottario di Segni), que reinou de 1198 a 1216, estudou direito canônico com Huguccio em Bolonha. Finalmente, o Papa Gregório IX (Ugolino di Segni), pontífice de 1227 a 1241, comissionou e publicou os importantes Decretos em 1234, incorporando o Decretum de Graciano de um século antes, além de vários decretos papais. O Decretos de Gregório IX tornou-se a obra de referência em direito canônico daquele ponto em diante.

Os decretalistas tinham uma atitude muito mais favorável em relação aos comerciantes e ao livre mercado do que os primeiros decretistas. Em primeiro lugar, em vez da atitude patrística negativa em relação aos mercadores e ao comércio, os decretalistas, começando com o papa Alexandre III e continuando até Gregório IX, incorporaram a atitude de livre mercado do direito romano. Infelizmente, não foi a atitude do puro laissez-faire do direito de Teodósio ou mesmo de Justiniano. Assim, quando o Código Justiniano chegou à Bolonha e à Europa ocidental no início do século XII, o autor francês do Brachylogus assumiu o princípio laesio enormis do Código Justiniano e mudou muito seu significado. Em vez de aplicar o conceito de “preço justo” diferente do preço real à valoração de danos conforme o Código Justiniano, o Brachylogus expandiu o conceito de imóveis (real estate) para todos os bens, da valoração de danos às vendas actuais. Nas mãos do Brachylogus, se qualquer venda, até mesmo uma voluntária, fosse feita por menos da metade do “preço justo”, o vendedor poderia apresentar ao comprador a escolha: paga-me a diferença entre o preço de venda e o preço justo, ou então rescindir o contrato, com o comprador devolvendo a mercadoria e o vendedor devolvendo o pagamento. Foi afirmado que não se tratava de um dispositivo de cartelização, uma vez que nem terceiros nem o estado poderiam intervir para impor laesio enormis; a execução tinha de ser feita por conta do próprio vendedor.

O desenvolvimento do direito romano durante os séculos XII e XIII foi em grande parte o produto da Universidade de Bolonha, onde estudos do direito Romano foram fundados por Irnério no final do século XI. Em meados do século XII, os juristas Romanos Bolonheses começaram a incorporar o conceito mais amplo de laesio enormis do Brachylogus. Por volta de 1150, o Lo Codi provençal, uma adaptação popular de uma recente Summa Bolonhesa, acrescentou outra expansão fatídica da laesio enormis. Pela primeira vez, essa obra provençal incluiu compradores, bem como vendedores, como acometidos pela laesio enormis, quando o preço de venda estava significativamente mais alto do que o preço justo. No Lo Codi, se um comprador pagou mais do que o dobro do valor real, ou apenas o preço de um produto, então o vendedor tinha a opção de pagar ao comprador a diferença entre os preços justo e de venda, ou então rescindir o contrato. Notavelmente, quando o Lo Codi foi traduzido de volta para o latim, essa nova restrição estendida ao laissez-faire foi adicionada ao direito romano, particularmente por Albericus, professor de Direito Romano em Bolonha, em sua coleção de direito canônico no final do século XII.

O florescente princípio da laesio enormis alcançou sua extensão na obra do final século XII de Petrus Placentinus, educado em Bolonha. Placentinus reduziu o preço máximo permitido para 1.5 vezes o preço justo, além do qual o princípio de laesio enormis entrou em vigor. Essa expansão final foi incorporada às obras dos três grandes professores bolonheses de direito romano do século XIII: Azão (c.1210); o aluno altamente influenciado e seguidor de Azão, Accursius (c.1228-60), natural de Florença; e o auge da Escola Bolonhesa com Odofredus, em meados do século XIII.

Embora seja verdade que os romanistas dos séculos XII e XIII tomaram o conceito trivial de laesio enormis e o tornaram uma significante restrição aos livres acordos e ao laissez-faire, pelo menos no final do século XII eles também deixaram claro que deveria haver plena liberdade de negociação e libertação para persuadir o outro dentro da matriz da laesio enormis. Os decretalistas, começando com o Papa Alexandre III, incorporaram muito desse desenvolvimento do Direito Romano. Isso significa que a lei da Igreja agora inclui não apenas as fulminações patrísticas contra os mercadores em si, mas também a contrastante tradição Romanista de plena livridade de acordos dentro da matriz da laesio enormis. Os decretalistas alcançaram seu ponto culminante depois de embasar e comentar os Decretos de Gregório IX, nas obras do cardeal Henrique de Óstia de Susa, primeiro no final de 1250 e finalmente em 1271, o ano de sua morte. Henrique de Óstia estudou direito canônico e romano em Bolonha, lecionou na Inglaterra e na França e foi cardeal-arcebispo de Ostia.

Os decretalistas justificavam a compra e venda especulativa, libertando-a do pecado da turpe lucrum, ao adotar e expandir a linha hugucciana que a especulação era permitida se o especulador estivesse agindo para atender às necessidades de sua família. No Comentário do canonista dominicano francês Guilherme de Rennes (c.1250), essa área de livridade foi ampliada ainda mais. As ações de um mercador ou especulador não eram consideradas pecaminosas, a menos que ele fosse conduzido por “um desejo desenfreado de ter riquezas temporais, não por utilidade ou para uso necessário, mas por curiosidade, de modo que o sofisticado seja transformado por tal, como uma pomba ou um corvo é seduzido por moedas, que eles descobrem e escondem”. Certamente esse tipo de restrição, que só pode ser aplicada a algumas pessoas no mundo real, veio muito longe das denúncias patrísticas de mercadores e comerciantes per se.

Outro afrouxamento das restrições veio com Alanus Anglicus, um professor inglês de direito canônico em Bolonha, escrevendo nas primeiras duas décadas do século XIII. Alanus declarou que nenhum turpe lucrum (ou usura, nessa questão) poderia existir se o preço futuro de um bem fosse incerto na mente do comerciante. Não só a incerteza está sempre presente no mercado, mas também é impossível para tribunais ou autoridades externas provar que um comerciante não sentiu incerteza quando comprou ou vendeu. Com efeito, todas as restrições do turpe lucrum sobre comércio ou especulação haviam sido removidas.

Ao analisar os lucros das empresas, os últimos canonistas do século XIII acrescentaram à antiga justificativa de lucro como modo de cobrir trabalho mais despesas. Esse foi o elemento de risco, presente em todas as situações de negócios. O aumento de preço como uma consequência do risco foi justificado pela primeira vez nos proeminentes comentários da lei canônica do Papa Inocêncio IV (Sinibaldo Fieschi), publicados entre 1246 e 1253. Antes de se tornar Papa, Inocêncio era natural de Gênova e um estudante de direito romano e canônico em Bolonha, professor de direito romano naquela universidade, e, finalmente, um cardeal e um estadista famoso.

Se as transações fossem pecaminosas e ilegais além de uma certa zona acima ou abaixo do preço justo, então a Igreja e as autoridades teriam de encontrar uma maneira de descobrir qual deveria ser o preço justo. Isso não tinha sido um problema antes dos séculos XII e XIII, já que a doutrina da laesio enormis não havia sido realmente aplicada antes. A solução romanista e canonista, uma reminiscência da doutrina carolíngia, era que o preço justo era o preço corrente de um mercado comum (a communis astimatio). Isso significava ou o preço geral competitivo de mercado em comparação com o preço de transações únicas e isoladas, ou poderia se referir a preços fixados por governos ou guildas privilegiadas pelo governo, uma vez que tais controles, por estrita legalidade, seriam os preços de jure. Talvez estivesse abaixo da dignidade desses juristas sancionar ou mesmo reconhecer quaisquer preços do mercado negro que violassem tais regulações.

Placentinus usou esse critério na jurisprudência romana do final do século XII, como fez em particular, Azão, no início do século XIII. Azão foi liberal o suficiente para se referir ao preço de uma venda igual ao de qualquer outra venda comparável como sendo um “preço justo”, mas Accursius, e depois dele Odofredus, referiu-se explicitamente ao preço geral ou de mercado comum como sendo o padrão de justiça. Como Accursius afirmou, “uma coisa foi valorada por aquilo pelo qual poderia ser comumente vendida.”

Os canonistas adotaram o mesmo critério para o preço justo. Influenciado pela prática carolíngia e por sugestões da Regra de São Bento, o canonista do final do século XII e aluno de Graciano, Simão de Bosignano, primeiro descreveu o verdadeiro valor das mercadorias como o preço pelo qual são comumente vendidas. A mesma posição foi então assumida pelos decretalistas no século XIII. Canonistas e romanistas estavam agora de acordo sobre o preço comum de um bem como o justo.

Mesmo assim, os canonistas mais maduros do século XIII tinham um problema. Por um lado, eles adotaram a visão do direito romano de que todo livre acordo era legítimo, exceto para uma faixa mais do que um certo grau acima ou além do “preço justo”, que eles consideravam ser o corrente preço comum de mercado. Mas por outro lado, eles herdaram dos Padres da Igreja e os dos primeiros decretistas uma hostilidade em relação às transações mercantis, especialmente as especulativas. Como eles poderiam resolver essa contradição?

Em parte, como vimos, eles foram capazes de enfraquecer a extensão da especulação vergonhosa. Além disso, a partir do século

XIII, a Igreja e seus canonistas em grande parte resolveram o problema por meio da doutrina altamente sensata dos “dois fóruns” sobre os quais a Igreja exercia jurisdição. O “fórum externo” — o jus fori — julgava as atividades sociais dos cristãos em tribunais escolásticos públicos. Lá, os tribunais julgaram ofensas contra a Igreja e sua lei comum praticamente segundo os mesmos procedimentos dos tribunais seculares. Por outro lado, o “fórum interno” — a jus poli — era o confessionário, onde o padre julgava os cristãos individuais com base em suas relações pessoais com Deus. Os dois fóruns eram separados e distintos, os respectivos julgamentos em dois níveis diferentes. Enquanto a Igreja presumia governar ambos, um era externo e social, o outro privado e pessoal.

A doutrina dos dois fóruns capacitou os canonistas a resolver a aparente contradição no direito canônico. Os livres acordos, a laesio enormis, o princípio de mercado comum era o campo do direito externo e o tribunal aberto, onde, em outras palavras, um mercado praticamente livre poderia prevalecer. Porém, as restrições contra os lucros mercantis que vão além do trabalho, contra os custos e os riscos, foram uma questão não para o estado e para o direito externo, mas para a consciência no confessionário. Ainda mais obviamente, apenas para o confessionário, foram as injunções contra o comércio ou especulação baseados na avareza que vão além da honorável necessidade de sustentar a família. Claramente, apenas o próprio homem, internamente em sua consciência, poderia saber suas intenções; e elas eram dificilmente observáveis pela lei externa.

 

5. A proibição canonista da usura

 

O grande aliviamento das restrições morais e legais e das proibições do comércio que permearam os canonistas e romanistas na Idade Média, infelizmente não se aplicou às severas proibições levantadas contra a usura. As pessoas modernas pensam da “usura” como sendo taxas de juros muito altas cobradas sobre um empréstimo, mas esse não era de forma alguma o significado até tempos recentes. Classicamente, a “usura” significa absolutamente qualquer taxa que fosse cobrada sobre um empréstimo, não importa o quão baixa. A proibição da usura foi uma proibição contra quaisquer juros cobrados sobre um empréstimo.

Com uma exceção, ninguém no mundo antigo — seja na Grécia, China, Índia ou na Mesopotâmia — proibiu os juros. Essa exceção eram os Hebreus que, em uma expressão de estrita moralidade tribal, permitiram cobrar juros a não-judeus, mas proibiram isso entre judeus.

O feroz ataque cristão medieval à usura é decididamente estranho. Por um lado, não há nada nos Evangelhos ou nos primeiros Padres, apesar de sua hostilidade ao comércio, que possa ser interpretado como um incentivo à proibição da usura. Na verdade, a parábola dos talentos em Mateus (25:14-30) pode ser facilmente tomada enquanto aprovação para o ganho de juros em empréstimos comerciais. A campanha contra a usura começa com o primeiro concílio da Igreja, em Nicéia, em 325, que proibia apenas o clero de cobrar juros sobre um empréstimo. Mas o Concílio de Nicéia agarrou-se a uma frase do Salmo 14 no Antigo Testamento, “Senhor, quem habitará vosso tabernáculo? […] Aquele que não dá o seu dinheiro com usura”,* e esse estava para se tornar o favorito — e praticamente o único — texto bíblico contra a usura durante a Idade Média. As injunções de Nicéia foram repetidas nos concílios do final do século IV em Elvira, na Espanha, e em Cartago, e então, no século V, o Papa Leão I estendeu a proibição aos leigos também, condenando leigos usurários enquanto indulgentes no turpe lucrum. Diversos concílios locais na Gália do século VII repetiram a denúncia de Leão, assim como o Papa Adriano e vários sínodos da Igreja inglesa no século VIII.

Mas a proibição de toda usura entrou na legislação secular pela primeira vez no regime totalitário unificador do imperador Carlos Magno. No fatídico sínodo imperial de Aachen em 789, Carlos Magno proibiu a usura para todos em seu reino, leigos e clérigos. A proibição foi renovada e elaborada no último sínodo de Nijmegen em 806, onde a usura é definida pela primeira vez como uma troca em que “mais é demandado de volta do que é dado”. De modo que, desde o tempo de Carlos Magno, a usura foi intensamente considerada como uma forma especial e particularmente malévola de turpe lucrum, e tentativas de relaxar esse banimento eram ferozmente resistidas. A abrangente definição, “mais é demandado do que é dado”, foi integralmente repetida por canonistas do século X, de Regino de Prüm para Ivo de Chartres e até Graciano.

Mas, estranhamente, embora a hostilidade à usura continuasse e fosse de fato muito fortalecida entre os canonistas, a base explícita para o antagonismo mudou consideravelmente. Durante os primeiros séculos da era cristã, a usura era vergonhosa como uma forma de avareza ou falta de caridade; ela ainda não era considerada um pecado vicioso contra a justiça. Conforme o comércio começou a reviver e florescer na Europa do século XI, de fato, denunciar a cobrança de juros como uma forma de falta de caridade passou a ser considerado como errôneo, uma vez que a caridade tinha pouco a ver com empréstimos comerciais. Foi o monge italiano Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109) quem primeiro mudou as bases do ataque para protestar contra a usura enquanto “roubo”. Essa nova doutrina foi desenvolvida por Anselmo de Lucca, discípulo de Santo Anselmo, um colega italiano e nativo de uma cidade com uma indústria têxtil em ascensão. Em sua coleção de cânones, feitos por volta de 1066, Anselmo de Lucca explicitamente condenou a usura como roubo e como um pecado contra o Sétimo Mandamento, e demandou restituição das usuras aos mutuários enquanto “bens roubados”. Essa expansão do “roubo” para um contrato voluntário, onde nenhuma coerção fora usada, era certamente bizarra, e ainda esse novo conceito ultrajante se manteve e foi repetido por Hugo de São Vítor (1096-1141) e pelas coleções de Ivo de Chartres.

Em 1139, o segundo concílio eclesiástico de Latrão explicitamente proibiu a usura para todos os homens, tanto para leigos quanto para clérigos, e considerou todos usurários infames. O concílio vagamente declarou que o Antigo e o Novo Testamento obrigavam tal proibição, mas não forneceu referência explícita alguma. Nove anos depois, o Papa Eugênio III agiu contra a prática comum de monastérios cobrarem juros sobre hipotecas.

Finalmente, a lei canônica chegou à forma madura com o Decretum de Graciano. Graciano avança com veemência contra a usura com quaisquer armas que consegue encontrar, desde o Salmo 14 até a nova visão de que usura é roubo e, portanto, exige restituição. Expondo a estrita proibição da usura, Graciano estendeu isso tanto para o empréstimo de bens quanto ao de dinheiro, desde que qualquer coisa seja demandada além do capital bruto, e ele expressamente declarou que, em tal caso, o “preço justo” não era o preço comum de mercado, mas zero, i.e., o exato equivalente dos bens ou dinheiro emprestado.

O grande decretalista Papa Alexandre III pode ter se inclinado a um livre mercado em outras áreas, mas na questão da usura ele meramente aprofundou e estendeu a proibição, aplicando a condenação à cobrança de preços mais altos por crédito do que por vendas em dinheiro vivo. Essa prática foi denunciada como usura implícita, embora não se tratasse explicitamente de juros de um empréstimo. O terceiro concílio de Latrão, presidido pelo Papa Alexandre III em 1179, condenou a usura, e excomungou e negou o enterro cristão para todos os usurários manifestos. O próximo papa, Urbano III (1185-87), em seu decretal Consoluit, desenterrou uma citação de Jesus, anteriormente não utilizada, “Emprestai livremente, sem esperar por coisa alguma” (Lucas 6:35), que a partir de então se tornou a peça central da condenação teológica da usura como um pecado mortal; e não apenas isso: até a própria esperança de obter usura era considerada um pecado praticamente equivalente.

Tão difundida era a obsessão canonista com a usura que Graciano, seus predecessores e sucessores, em grande parte elaboraram suas teorias de venda, lucro ou preço justo em termos de se qualquer transação em particular caía ou não sob a terrível rubrica da “usura”. Assim, decretistas do final do século XII, como Simão de Bosignano em 1179 e o grande Huguccio em 1188, mantinham a proibição estrita de quaisquer juros cobrados sobre um empréstimo como usura, embora permitissem o aluguel de um bem ou a compra barata para vender caro como não sendo casos de usura. A distinção moral distorcida de Huguccio sustentava que um commodatum — um contrato de aluguel que transferia apenas o uso de um bem — era de alguma forma moralmente muito diferente de um mutuum — um empréstimo puro onde a donidade era transferida por um tempo. Cobrar por um arrendamento, um commodatum estava certo porque o dono mantém a donidade e cobra pelo uso de seu próprio bem; mas de alguma forma, se torna pecaminoso quando um credor cobra pelo uso de um bem que não mais (temporariamente) é seu. Os lucros no comércio também podiam ser legítimos e lícitos como uma recompensa pelo risco, mas os juros de um empréstimo — onde o risco é suportado pelo tomador e não pelo credor — sempre foram usura.

Os decretalistas subsequentes, na tentativa de combater práticas dos comerciantes em disfarçar a usura em vários contratos, pressionaram a condenar tais contratos como “usura implícita”, desde que, como vimos no tratamento dos contratos de venda, não houvesse incerteza sobre o preço futuro nas mentes do comprador e do vendedor. O canonista do início do século XIII Alano Ânglico declarou que, se houvesse incerteza em tal contrato, e o comprador e o vendedor tivessem a mesma chance de ganhar ou perder, a usura não existia. Fornecendo a primeira brecha real, embora pequena, na proibição abrangente contra a usura, Ânglico explicou que essa forma de usura implícita poderia existir apenas na mente e não poderia estar sujeita à aplicação legal. Essa lacuna de incerteza foi ampliada ligeiramente nos Decretais de Gregório IX.

Por outro lado, os canonistas persistiram em derrubar as evasões da proibição da usura que o mercado continuou criativamente inventando. Os contratos que estipulavam o pagamento diferido em uma venda foram tratados com suspeita, e preços muito altos em tais contratos foram vistos pelos canonistas como prova da intenção de cometer usura acima de qualquer dúvida razoável. Os Decretais também foram tão longe a ponto de condenar emprestadores que cobravam juros por empréstimos aos comerciantes viajantes, independente de os canonistas perceberem que os juros eram uma compensação direta pelos riscos. Apesar de que os canonistas depois de Inocêncio IV começaram a falar de riscos justificarem lucros de modo que lucros sobre investimentos de risco eram considerados perfeitamente justificados e quaisquer juros sobre um empréstimo puro (ou mutuum) eram condenados como usura independente de circunstâncias razoavelmente mitigadoras.

A proibição da usura era a falha trágica das visões econômicas dos juristas e teólogos medievais. A proibição era economicamente irracional, privando mutuários marginais e créditos de altos riscos de qualquer mutuário de capital. Não tinha base na lei natural e praticamente nenhuma nos ensinamentos do Antigo ou do Novo Testamento. E, no entanto, foi fortemente mantida ao longo da Idade Média, de modo que juristas e teólogos tiveram de se engajar em reviravoltas engenhosas e astutas no raciocínio a fim de fazer exceções à proibição e acomodar a prática crescente de emprestar dinheiro e cobrar juros sobre um empréstimo. E ainda, os medievais, especialmente os filósofos e teólogos posteriores, tinham um ponto fascinante e importante: qual era a justificativa moral ou econômica para os juros sobre um empréstimo puro? Como veremos, os escolásticos medievais chegaram a entender muito bem as justificações econômicas e morais para quase todos os aspectos de cobranças de juros: como um risco implícito sobre o risco, como uma oportunidade renunciada de fazer lucros sobre investimentos, e muitas outras. Mas por que ainda existem juros sendo cobrados em um empréstimo simples, sem risco e sem oportunidade renunciada? Essa resposta não viria completamente até a Escola Austríaca do final do século XIX. Onde os escolásticos estavam gravemente carentes, era em não perceber que se os juros eram pagos, bem como cobrados, voluntariamente, isso em si mesmo é uma justificação moral suficiente. E, além disso, que precisaria ter tido uma explicação econômica, mesmo que a ciência economia ainda não tivesse descoberto isso.

A primeira brecha sistemática na proibição da usura veio com o último canonista do século XIII, o Cardeal Henrique de Óstia. Além de ter sido um distinto professor de direito, Henrique de Óstia era um cosmopolita experiente, tendo sido o embaixador de Henrique III para seu amigo Papa Inocêncio IV. Primeiro, Henrique de Óstia voltou à velha tradição mais branda de que a usura é não caridosa, mas não um pecado contra a justiça. Então, ele listou não menos que 13 instâncias nas quais a proibição da usura poderia ser quebrada e os juros cobrados sobre um empréstimo. Uma era como garantia exigida pelo fiador de um empréstimo; outra que um vendedor poderia cobrar um preço maior por um bem vendido no crédito do que no dinheiro, desde que houvesse incerteza (como de fato sempre há) sobre o preço futuro da mercadoria. Outra exceção importante permitia a um credor escrever uma cláusula de penalidade em um empréstimo de modo que o devedor teria de pagar uma penalidade acima do capital acordado se ele não pagasse até a data de vencimento. Isso, é claro, construiu o caminho para acordos secretos entre ambos os lados para adiar o pagamento de modo a permitir a “penalidade”. Outra exceção era que o credor poderia cobrar pelo trabalho que ele assumiu ao fazer determinado empréstimo.

Todas essas eram alguma forma de penalidade ou pagamento especial. Mas, além disso, Henrique de Óstia forneceu o primeiro argumento inovador para cobrar uma taxa de juros sobre um empréstimo desde o início, uma cobrança que não envolvia atrasos ou garantias. Esse é o lucrum cessans (lucro cessante), uma cobrança de juros legítima pelo credor para compensá-lo pelo lucro renunciado ao investir o dinheiro propriamente dito. Em suma, lucrum cessans antecipou o conceito austríaco de custo de oportunidade, de receita renunciada, e o aplicou à cobrança de juros. Infelizmente, porém, o uso do lucrum cessans pelo cardeal Henrique foi limitado a credores não habituais que emprestavam dinheiro por caridade a um devedor. Assim, os credores não poderiam estar no ramo de cobrar dinheiro sobre um empréstimo, mesmo com base no lucrum cessans.

Outra exceção feita por Henrique também fornecia um canal aberto para a cobrança de juros em empréstimos. Ele permitiu que os devedores dessem um presente aos credores, desde que os “presentes” não fossem requisitados pelos credores. Mas nesse caso os devedores, em particular os banqueiros florentinos que recebiam depósitos, sentiam-se obrigados a dar “presentes” aos seus depositadores, de outra forma os depositadores iriam mudar seus fundos para competidores que habitualmente davam tais “presentes”. A criação de uma presenteação falsa tornou-se um mecanismo importante para permitir a cobrança de juros de facto.

 

 

6. Teólogos na Universidade de Paris

 

A teologia, na Idade Média, era a rainha das “ciências”: i.e., as disciplinas intelectuais que oferecem verdade e conhecimento. Mas a teologia estava em maus lençóis durante a Idade das Trevas, e os romanistas e canonistas ficaram responsáveis por aplicar sistemas éticos para a lei e para assuntos humanos. A teologia começou a florescer de novo no início do século XII na Universidade de Paris, sob o famoso Pedro Abelardo. Daí em diante, Paris foi o centro de teologia durante a Alta Idade Média equivalente ao que Bologna foi para os romanistas e para o direito canônico. Mas durante o restante do século XII, os teólogos estavam contentes ao ponderar e meditar sobre questões da metafísica e da ontologia e deixaram as éticas sociais aos juristas. Isso era típico dos teólogos do século XII quando Pedro de Poitiers, ao se tornar posteriormente o Regente dominante de teologia na escola da Catedral de Notre Dame em Paris, declarou que tais questões duvidosas como usura deveriam ser deixadas para os canonistas.

Depois da virada do século XIII, entretanto, quando as teorias de lei canônica e romana já estavam muito avançadas, os novos teólogos-filósofos eruditos da universidade se voltaram para os problemas das éticas sociais com vontade. Até mesmo antes da virada do século XIII, tais teólogos influentes da Universidade de Paris como Radulfo Ardens e o inglês — depois Cardeal — Stephen Langton, começaram a escrever sobre problemas de justiça. Infelizmente, ao lidarem com o conceito de “preço justo”, os teólogos não seguiram os romanistas e os canonistas na sensata visão que a livre barganha ou preço de mercado é legítimo na medida em que ele permanece dentro de uma ampla zona do “preço justo”. Para os teólogos de Paris, isso era imoral, pecaminoso e ilícito para o preço de mercado ser qualquer coisa além do preço justo. Isso com certeza significou que o preço justo se tornou uma arma de compulsão em vez de um padrão amplamente sustentado. Ardens incluiu um preço justo como critério crucial de uma “venda justa”. Mais enfaticamente, seu colega e autor da primeira constituição da universidade de Paris, o inglês e posterior Cardeal Robert de Courçon (d. 1219), escrevendo por volta de 1204, denominou a venda de bens acima do preço justo uma prática ilícita, e o eminente Stephen Langton severamente chamou qualquer vendedor que aceitasse mais que o preço justo culpado de um pecado mortal.

Os teólogos estavam muito cientes de suas profundas discordâncias com os juristas, mas se apegaram a suas novas e extremas visões. Portanto, Guilherme de Auxerre (1160-1229), professor de teologia em Paris, em 1220 escreveu que a lei divina, a que comandou que nenhuma venda fosse maior que o preço justo, precisa substituir a lei humana, que seguiu a laesio enormis. E seu colega, o inglês Thomas Chabham, escrevendo também por volta de 1220, fanaticamente insistiu que a lei divina demandava restituição do vendedor mesmo se o vendedor apenas tivesse se enganado, e esse engano fosse somente de um tostão.

Se os teólogos insistiram que o preço justo necessita ser estritamente obedecido, então o que diabos era isso? Embora poucos teólogos tenham abordado esse assunto crítico diretamente, é claro que o que eles tinham em mente era o mesmo preço justo que os canonistas e romanistas, a saber, o preço atual em um lugar particular, seja o preço comum do mercado ou o preço fixado pelo governo, se tal regulamento existisse. O teólogo Pedro Cantor (d. 1197) do final do século XII, ao tratar da função dos assessores da coroa, afirmou que o valor justo dos bens são seus preços atuais. Mais sucintamente, o grande teólogo franciscano em Paris na primeira metade do século XIII, o inglês Alexandre de Hales (1168-1245) declarou concisamente que uma “estimativa justa dos bens” é “como ele é comumente vendido naquela cidade ou lugar na qual a venda ocorre”. Ainda mais claramente, o renomado professor alemão-dominicano, do Século XIII em Paris, Santo Alberto Magno (1193-1280) disse, portanto: “Um preço é justo se o mesmo pode se igualar ao valor dos bens vendidos de acordo com a estimativa do local de mercado naquele tempo.”

Embora os teólogos, ao desejarem fazer valer o preço comum corrente, fossem mais restritivos que os juristas canônicos e romanistas, eles obraram construtivamente ao resgatar a imagem dos mercadores do fundo do poço no qual eles haviam afundado nas escrituras dos Padres da Igreja.

Tão tardio quanto Pedro Lombardo (d. 1160), professor italiano de teologia em Paris e posteriormente bispo de Paris, os teólogos mantiveram a visão mais antiga de que um mercador não poderia realizar suas obrigações sem pecar. O início da total reabilitação do mercador veio na forma de comentários sobre as Sentenças de Pedro Lombardo (estritamente, a Sententiarum quator libri, 1150-51). Os comentaristas, particularmente depois da virada do século XIII, se engajaram em uma justificação sistemática do mercador e da obtenção de lucro mercantil. Em primeiro lugar, os principais comentaristas das Sentenças, incluindo os professores dominicanos em Paris, Santo Alberto Magno (Comentário, 1244-49), Pedro de Tarentaise (último Papa Inocêncio V, d. 1276) (Comentário, 1253-57), como também o teólogo italiano em Paris, São Boaventura (1221-74) um estudante de Alexandre de Hales, ministro-geral da Ordem Franciscana e posteriormente Cardeal (Comentário, 1250-51), todos declararam que os mercadores eram essenciais para a sociedade. Essa concepção foi reforçada pela redescoberta das obras de Aristóteles no início do Século XIII, e a incorporação de uma filosofia aristotélica na teologia — primeiro por Alberto Magno e mais especificamente por seu grande estudante Tomás de Aquino. Para esses novos aristotélicos, e também para o franciscano inglês Alexandre de Hales, a divisão de trabalho foi necessária para a sociedade assim como foi a troca mútua concomitante de bens e de serviços. Esse foi o caminho da lei natural na história.

Mais especificamente, Thomas Chabham, apesar de sua insistência em cada centavo do preço justo, corretamente observou que os comerciantes cumpriam a função de levar os bens de áreas de abundância e distribui-los para áreas de carência. Alberto Magno repetiu esse insight posteriormente no século XIII.

Se a troca é útil e até mesmo uma atividade necessária, segue-se que os lucros por manter tais atividades são justos. Portanto, os teólogos reiteraram a doutrina do século XII de que o comerciante está permitido a ganhar seu lucro para prover para si mesmo e para sua família. Para a justificação das necessidades, os teólogos do Século XII adicionaram a natureza lícita de obter lucro para fazer caridade. O franciscano Alexandre de Hales foi, talvez, o primeiro a denominar isso um motivo justo e piedoso para trocar a fim de realizar trabalhos de caridade e de misericórdia. Era indigno, entretanto — ecoando a doutrina Hugucciana — ganhar lucro para fins de avareza ou de infinita e insaciável cupidez.

Se o trabalhador na tradição Cristã era “digno de seu salário” (Lucas 10:7), então o lucro das atividades úteis dos mercadores poderia ser justificado como cobrindo seu “trabalho”, ou melhor, de seu trabalho e despesas, como os juristas já haviam declarado. Tomás de Aquino considerou os ganhos dos comerciantes um estipêndio pelo trabalho. Para os teólogos, “trabalho” consistia em diversos tipos: transporte de bens; armazenamento e manutenção; e — como herança dos canonistas do século XIII — a suposição do risco. Portanto, os lucros mercantis foram um pagamento ou recompensa pelo trabalho do comerciante ou pelo transporte e armazenamento, por sua suposição do risco. O fator risco foi destacado principalmente por Alexandre de Hales e por São Tomás de Aquino. Deveria ser notado que, em contraste para muitos historiadores posteriores, o propósito das discussões dos juristas e teólogos sobre trabalho, custo e risco não era o de usar esses fatores na determinação do preço justo (o qual simplesmente era o preço comum corrente) mas para justificar os lucros obtidos pelo mercador.

Robert de Courçon foi o primeiro teólogo do século XIII a adicionar um ponto de vista de lei natural ao pensamento tradicional, fragilmente fundamentado, da denúncia teológica da usura. Courçon simplesmente se apropriou da distinção moral sofisticada do canonista Huguccio entre um arrendamento e um empréstimo, sendo o primeiro lícito, e o último ilícito porque a donidade do dinheiro tinha temporariamente sido mudada para o emprestador. Mais influente ainda foi o prezado teólogo parisiense Guilherme de Auxerre, quem adicionou uma série de novas falácias à intensidade crescente do ataque da Igreja à usura. Guilherme declarou que a usura era intrinsicamente má e monstruosa, sem realmente explicar o porquê; ele ainda fez melhor sobre a comparação padrão da usura com o roubo, comparando a usura ao assassinato, para o detrimento da usura. Algumas vezes matar pode ser lícito, ele disse, já que somente certas formas de matar são pecaminosas, mas a usura é um pecado em todo lugar e nunca pode ser lícita. Visto que a usura, segundo Guilherme de Auxerre, é pecaminosa pela sua própria natureza, isso a tornava uma violação da lei natural, além de suas outras alegadas iniquidades.

Guilherme nunca foi claro no porquê de a usura ser um pecado contra a lei natural; um de seus argumentos inovadores na marcha anti-usura foi que um homem que cobra juros sobre um empréstimo está tentando “vender tempo”, que é, propriamente, a propriedade comum de todas as criaturas. Visto que o tempo supostamente é comum e grátis, Guilherme de Auxerre e os teólogos posteriores, portanto, poderiam usar esse argumento para condenar como “usura” não apenas um empréstimo, mas também a cobrança de um preço maior pelo crédito do que pelas vendas em dinheiro vivo. Ao adicionar o argumento do “tempo grátis”, Guilherme sem querer tocou em uma posterior solução Austríaca para o problema de juros puro sobre um empréstimo sem riscos; a venda, não de “tempo”, para ser claro, mas de “preferência temporal”, onde o credor está vendendo dinheiro ao devedor, um bem presente (um bem útil agora), em troca de um título de dívida para o futuro, o qual é um “bem futuro” (um bem disponível apenas em algum ponto no futuro). Mas, visto que todo mundo prefere um bem presente por um bem futuro equivalente (o fato universal da preferência temporal), o credor cobrará, e o mutuário estará disposto a pagar, os juros de um empréstimo. Os juros são, então, o preço da preferência temporal. A falha dos escolásticos em entender ou chegar no conceito de preferência temporal teve mais a ver do que qualquer outra coisa para descreditar a economia escolástica, devido a sua hostilidade implacável para e pela condenação da prática universal da “usura”.

Guilherme de Auxerre também tentou lidar com o argumento voluntarista: como poderia a cobrança de usura ser má e injusta se paga voluntariamente pelo mutuário? Em certamente um dos argumentos mais bobos na história do pensamento econômico, Guilherme de Auxerre concedeu que o pagamento dos juros por parte do mutuário foi voluntário, mas adicionou que o mesmo teria preferido mais ainda um empréstimo grátis, de modo que, em sentido “absoluto” e não “condicional”, a cobrança de juros não foi voluntária. Guilherme, de alguma forma, falhou em ver que o mesmo poderia ser dito do comprador de qualquer produto; visto que qualquer comprador preferiria um bem grátis à cobrança de qualquer preço, poderíamos então concluir que todas as trocas livres são involuntárias e pecaminosas em um sentido “absoluto”.

Apesar da absurdidade manifesta nesse argumento, o “condicional” voluntário, assim como os outros novos argumentos de Guilherme de Auxerre, foram altamente influentes e imediatamente incorporados em um argumento teológico padrão contra a usura.

O alemão-dominicano Santo Alberto Magno realizou um enorme serviço à filosofia ao trazer Aristóteles e o Aristotelismo de volta para o pensamento ocidental. Nascido na Bavária em uma família aristocrata, Alberto foi, por um tempo, provincial alemão da Ordem Dominicana e bispo de Ratisbona, mas durante a maior parte de sua longa vida lecionou nas universidades de Paris e de Colônia.

Infelizmente, Alberto não foi nem de perto um bom economista como ele era como filósofo, e de várias maneiras ele levou a economia escolástica ao caminho errado. É verdade que ele prestou o serviço de ensinar seu grande pupilo, São Tomás de Aquino, que o preço justo é o preço comum de mercado, e que o mercador está desemprenhando um papel social legítimo. Por outro lado, Alberto infelizmente acrescentou o ataque aristotélico à usura enquanto reprodução artificial de um “metal estéril” ao amontoado de todos os outros argumentos contra os juros. Santo Alberto não percebeu que o ataque de Aristóteles à usura foi apenas o pacote e parte da última denúncia a todo comércio varejista, uma vez que a tradução para o latim de Aristóteles que estava disponível para Alberto trocou o termo grego para comércio varejista com uma palavra do latim que significa “câmbio monetário”. Portanto, Alberto adotou esse argumento por engano, uma vez que ele certamente não teria ido junto com a ideia aristotélica de que todo o comércio varejista era artificial e pecaminoso.

Alberto também fez grande estrago ao futuro pensamento em outras das suas interpretações errôneas sobre a Ética a Nicômaco de Aristóteles. De alguma forma ele interpretou o determinante de valor aristotélico não como necessidades ou utilidades do consumidor, mas sim como “trabalho e despesas”, portanto, pelo menos parcialmente prefigurou a posterior teoria do valor-trabalho.

 

7. O filósofo teólogo: São Tomás de Aquino

 

São Tomás de Aquino (1225-74) foi o intelecto imponente da Alta Idade Média, o homem que se apoiou sobre o sistema filosófico de Aristóteles, sobre o conceito de lei natural e sobre a teologia cristã para forjar o “Tomismo”, uma poderosa síntese da filosofia, da teologia e das ciências do homem. Esse jovem italiano nasceu um aristocrata, filho de Landulfo, conde de Aquino, em Roccasecca, no reino de Nápoles. Tomás estudou muito cedo com os beneditinos, e mais tarde na Universidade de Nápoles. Aos 15 anos de idade tentou entrar na nova Ordem Dominicana, um lugar para intelectuais e estudiosos da Igreja, mas foi fisicamente impedido de fazer isso pelos seus pais, que o mantiveram confinado durante dois anos. Finalmente, São Tomás escapou, juntou-se aos dominicanos, e depois estudou em Colônia e finalmente em Paris sob o seu venerado professor, Alberto Magno. Tomás de Aquino fez seu doutorado na Universidade de Paris e ensinou lá, bem como em outros centros universitários na Europa. Tomás de Aquino era tão imensamente corpulento que era dito que uma grande parte tinha de ser esvaziada na mesa de jantar redonda para que ele pudesse sentar-se nela. Tomás de Aquino escreveu inúmeras obras, começando com o seu Comentário sobre as Sentenças de Pedro Lombardo na década de 1250, e terminando com a sua magistral e enorme influente Suma Teológica em três partes, escrita entre 1265 e 1273. Foi a Suma, mais do que qualquer outra obra, que estabeleceu o Tomismo como a corrente dominante da teologia escolástica católica nos séculos vindouros.

Até recentemente, estudos históricos do preço justo tipicamente começaram com São Tomás, como se toda a discussão tivesse, de repente, saltado para o ser na ampliada personalidade de Tomás de Aquino no século XIII. Temos visto, no entanto, que Tomás de Aquino trabalhou numa longa e rica tradição canônica, romanista e teológica. Não é surpreendente que Tomás de Aquino tenha seguido o seu venerado professor, Santo Alberto, e os outros teólogos do século anterior ao insistir no preço justo para todas as trocas e, não se contentado com o credo legista mais liberal do livre acordo até ao alegado ponto da laesio enormis, ao afirmar que a lei divina, que deve prevalecer sobre a lei humana, exige uma virtude completa, ou o preço justo preciso.

Infelizmente, ao discutir o preço justo, São Tomás armazenou grandes problemas para o futuro ao ser vago sobre qual deve ser precisamente o preço justo. Como fundador de um sistema baseado sobre o grande Aristóteles, Tomás de Aquino, seguindo Santo Alberto antes dele, sentiu-se obrigado a incorporar a análise aristotélica das trocas em sua teoria, como todas as ambiguidades e obscuridades que isso implicava. São Tomás foi claramente um Aristotélico ao adaptar a visão incisiva deste último de que o determinante do valor de troca era a necessidade, ou utilidade, dos consumidores, tal como expressa em sua demanda por produtos. E assim, esse aspecto proto-austríaco de valor baseado na demanda e na utilidade foi reintegrado no pensamento econômico. Por outro lado, a visão errada de Aristóteles sobre a troca como valores “equacionáveis” foi redescoberta, juntamente com a relação sapateiro-construtor indecifrável. Infelizmente, no decurso do Comentário à Ética (a Nicômaco), Tomás seguiu Santo Alberto parecendo acrescentar à utilidade, como determinante do valor de troca, trabalho mais despesas. Isso deu abrigo à ideia posterior de que São Tomás tinha acrescentado à teoria do valor da utilidade de Aristóteles uma teoria do custo de produção (trabalho mais despesas), ou mesmo substituindo a utilidade por uma teoria de custo. Alguns comentadores declararam mesmo que Tomás de Aquino tinha adaptado uma teoria do valor trabalho, limitada pela notória e triunfante frase do historiador socialista anglicano do século XX Richard Henry Tawney: “a verdadeira descendente das doutrinas de Tomás de Aquino é a teoria do valor-trabalho. O último dos alunos da Escola é Karl Marx.”[2]

Os historiadores levaram várias décadas para se recuperarem da desastrosa má interpretação de Tawney. De fato, os escolásticos eram pensadores sofisticados e economistas sociais que favoreciam o comércio e o capitalismo, e defendiam o preço comum de mercado como o preço justo, com exceção do problema da usura. Mesmo na teoria de valor, a discussão do trabalho mais despesas em Tomás de Aquino é uma anomalia. Pois, trabalho mais despesas (nunca apenas trabalho) aparece apenas no Comentário de Tomás de Aquino e não na Summa, sua magnum opus.[3] Além disso, vimos que trabalho mais despesas era uma fórmula comumente utilizada no tempo de Tomás de Aquino para justificar os lucros dos mercadores e não como um meio de determinar o valor econômico. É provável, portanto, que Tomás de Aquino estava usando o conceito nesse sentido, trazendo o ponto sensato de que um mercador que falhou a longo prazo em cobrir os seus custos, e não fizer lucros, iria à falência.

Além disso, há muitos indícios de que Tomás de Aquino aderiu à visão comum dos clérigos de seu tempo, e de tempos anteriores, de que o preço justo era o preço comum de mercado. Se assim for, então ele dificilmente poderia também sustentar que o preço justo é igual ao custo de produção, uma vez que os dois podem diferir, e diferem. Assim, a sua conclusão na Summa foi que “o valor dos bens econômicos é aquele que vem ao uso do homem e é medido por um preço monetário, propósito pelo qual o dinheiro foi inventado”. Particularmente reveladora foi uma resposta que Tomás de Aquino deu já em 1262 em uma carta a Jacopo da Viterbo (d. 1308) um orador do mosteiro dominicano em Florença e mais tarde arcebispo de Nápoles. Em sua carta, Tomás de Aquino referiu-se ao preço comum de mercado como o preço normativo e justo com o qual comparar outros contratos. Além disso, na Summa, Tomás de Aquino percebe a influência da oferta e da demanda sobre os preços. Uma oferta mais abundante num lugar tenderá a baixar o preço nesse lugar, e vice-versa. Ademais, São Tomás descreveu sem condenar de forma alguma as atividades dos mercadores em fazer lucros ao comprar bens onde eles eram abundantes e baratos e então transportá-los e vendê-los em locais onde são desejados. Nada disso se assemelha ao ponto de vista de custo-de-produção do preço justo.

Finalmente, e de forma encantadora e crucial, Tomás, em sua grande Summa, levantou uma questão que tinha sido discutida por Cícero. Um mercador transporta cereais para uma zona acometida pela fome, ele sabe que logo outros mercadores também o seguirão com muito mais ofertas de grãos. É o comerciante obrigado a informar os cidadãos famintos das ofertas que se aproximam e, assim, arcar um preço mais baixo, ou é correto que ele se mantenha em silêncio e colha as recompensas de um preço elevado? Para Cícero, o mercador tinha o dever de divulgar as suas informações e vender a um preço mais baixo. Mas São Tomás argumentou de forma diferente, uma vez que a chegada dos últimos mercadores era um acontecimento futuro e, portanto, incerto, Tomás declarou que a justiça não o obrigava a contar aos seus clientes sobre a chegada iminente de seus concorrentes. Poderia vender os seus próprios cereais ao preço prevalecente no mercado para essa área, mesmo que fosse extremamente elevado. Naturalmente, Tomás de Aquino continuou amigavelmente, se o comerciante desejasse contar aos seus clientes de qualquer maneira, isso seria especialmente virtuoso, mas a justiça não o obrigou a fazê-lo. Não há nenhum exemplo mais claro de Tomás de Aquino ter optado pelo preço justo como o preço corrente, determinado pela demanda e pela oferta, em vez do custo de produção (que obviamente não mudou muito da área de abundância para a área acometida pela fome).

Uma parte de evidência indireta é que Gil de Lessines (d.c.1304), um estudante de Alberto e Tomás de Aquino e professor dominicano de teologia em Paris, analisou o preço justo de forma semelhante e declarou categoricamente que era o preço comum de mercado. Gil salientou, além disso, que um bem vale propriamente o tanto quanto pode ser vendido sem coerção ou fraude.

Não deve ser surpresa que Tomás de Aquino, ao contrário de Aristóteles, fosse altamente favorável às atividades do mercador. O lucro mercantil, declarou, era uma recompensa pelo trabalho do mercador, e uma recompensa por suportar os riscos do transporte. Num comentário à Política de Aristóteles (1272), Tomás de Aquino observou sagazmente que maiores riscos no transporte marítimo resultaram em maiores lucros para os mercadores. Em seu Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, escrito na década de 1250, Tomás de Aquino seguiu os teólogos anteriores, argumentando que os mercadores poderiam exercer a sua profissão sem cometer pecado. Mas em sua obra posterior, foi muito mais positivo, salientando que os comerciantes desempenham a importante função de trazer mercadorias de onde elas são abundantes para onde são escassas.

Particularmente importante foi o breve esboço de Tomás de Aquino sobre o benefício mútuo que cada pessoa colhe das trocas. Como ele colocou na Summa: “a compra e a venda parecem ter sido instituídas para benefício mútuo de ambas as partes, uma vez que uma precisa de algo que pertence à outra, e vice-versa”.

Com base na teoria do dinheiro de Aristóteles, Tomás de Aquino apontou a sua indispensabilidade enquanto meio de troca, uma “medida” de expressão de valores, e uma unidade de conta. Em contraste com Aristóteles, Tomás de Aquino não se assustou com a ideia de o valor do dinheiro flutuar no mercado. Pelo contrário, Tomás de Aquino reconheceu que o poder de compra do dinheiro estava fadado a flutuações, e se contentava se ele flutuasse, como habitualmente fazia, de forma mais estável do que determinados preços.

Foi o destino peculiar da proibição da usura na Idade Média que, cada vez que ela parecesse enfraquecer frente a realidade, os teóricos reforçassem a proibição. Numa época em que o Cardeal Henrique de Óstia, altamente sofisticado e conhecedor, procurava suavizar a proibição, São Tomás de Aquino, infelizmente, a endureceu mais uma vez. Tal como o seu professor Santo Alberto, Tomás de Aquino acrescentou a objeção aristotélica à proibição medieval da usura, exceto que Tomás de Aquino inseriu algo novo. Na tradição medieval de começar com a conclusão — o esmagamento da usura — e a apreensão de qualquer argumento estranho que pudesse levar a ela, Tomás acrescentou uma reviravolta à doutrina aristotélica. Em vez de enfatizar a esterilidade do dinheiro como principal argumento contra a usura, Tomás se concentrou no termo “medida”, e enfatizou que, uma vez que o dinheiro, em termos de dinheiro, é claro, tem um valor legal fixo estampado, isso significa que a natureza formal do dinheiro precisa permanecer fixa. O poder de compra do dinheiro pode flutuar devido a alterações na oferta de bens; isso é legítimo e natural. Mas quando o detentor do dinheiro se propõe a produzir variações no seu valor cobrando juros, viola a natureza do dinheiro e é, portanto, pecador e negligente à lei natural.

Que tal disparate arriscado assumiria rapidamente um lugar central em todas as proibições escolásticas posteriores da usura é testemunho de como a irracionalidade pode tomar o pensamento de um defensor da razão tão grande como Tomás (e seus seguidores). Porque é que o valor legal fixo estampado de uma moeda deve significar que o seu valor em troca — pelo menos do lado do dinheiro — não deve mudar; ou porque é que a cobrança de juros deve ser confundida com uma mudança no poder de compra do dinheiro, simplesmente atesta a propensão humana para a falácia, especialmente quando a proibição da usura já tinha-se tornado o objetivo primordial.

Mas o argumento de Tomás contra a usura envolveu outra invenção sua. O dinheiro, para ele, é totalmente “consumido”; “desaparece” na troca. Por conseguinte, a utilização do dinheiro é equivalente à sua donidade. Assim, quando se cobram juros sobre um empréstimo, cobra-se duas vezes, pelo próprio dinheiro e pela sua utilização, embora sejam uma e a mesma coisa. O destaque dessa estranha tese foi a discussão de Tomás sobre a razão pela qual era legítimo para um dono de dinheiro cobrar aluguel a alguém para exibir uma moeda. Nesse caso, há uma fiança, uma taxa para manter o dinheiro de alguém em confiança. Mas a razão pela qual essa cobrança é lícita, para Tomás, é que a exibição do dinheiro é apenas um uso “secundário”, um uso separado de sua donidade, uma vez que o dinheiro não é “consumido” ou não desaparece no processo. O uso primário do dinheiro é desaparecer na compra de bens.

Há vários problemas graves com essa nova arma inventada por Tomás com a qual se combate a usura. Primeiro, o que há de errado em cobrar “duas vezes”, pela donidade e pelo uso? Segundo, mesmo que de algum modo seja errado, esse ato dificilmente suporta o peso do pecado e da excomunhão que a Igreja Católica carregou durante séculos sobre o infeliz usurário. E terceiro, se Tomás tivesse olhado para além do formalismo legal do dinheiro, e para os bens que o mutuário comprou com o empréstimo, poderia ter visto que esses bens comprados eram, num sentido importante, “frutíferos”, de modo que, enquanto o dinheiro “desapareceu” nas compras, num sentindo econômico, os bens-equivalentes do dinheiro foram retidos pelo mutuário.

A enfatização de São Tomás sobre o consumo de dinheiro levou a uma curiosa mudança sobre a questão da usura. Ao contrário de todos os teóricos desde Graciano, o pecado tornou-se agora não cobrar juros sobre um empréstimo per se, mas apenas sobre um bem — dinheiro — que desaparece. Portanto, para Tomás, cobrar juros sobre um empréstimo de bens em espécie não seria condenado como “usura”.

Mas se a proibição de usura sobre o dinheiro fosse reforçada com novos argumentos, Tomás continuou e reforçou a tradição anterior de justificar investimentos numa parceria (societas). Uma societas era lícita porque cada parceiro mantinha a donidade de seu dinheiro, e corria o risco de prejuízo; daí que o lucro em tais investimentos de risco era legítimo. No final do século XI, Ivo de Chartres já tinha distinguido brevemente uma societas de um empréstimo usurário, e a distinção foi elaborada no início do século XIII pelo teólogo Robert de Courçon (c.1204), e nos Comentários sobre Graciano de Johannes Teutonicus (1215). Courçon tinha deixado claro que até mesmo um sócio inativo arriscou o seu capital em um empreendimento. Isso, claro, significava que tipos de parcerias inativas, tais como empréstimos para viagens marítimas específicas, passavam a ser empréstimos reais, e os limiares eram frequentemente confusos. Além disso, e este era um problema que ninguém na época enfrentaria, não estaria qualquer emprestador necessariamente arriscando o seu capital, uma vez que um mutuário poderia sempre revelar-se incapaz de reembolsar até mesmo a quantia bruta de um empréstimo?

Tomás emprestou agora a sua enorme autoridade à opinião de que as societas eram perfeitamente lícitas e não usurárias. Ele declarou sucintamente que o investidor de dinheiro não transfere a donidade para um parceiro de trabalho; que a donidade é retida pelo investidor; para que ele arrisque o seu dinheiro e possa legitimamente ganhar um lucro sobre o investimento. O problema com isso, porém, é que Tomás abandona aqui a sua própria tese de que a donidade do dinheiro é a mesma coisa que seu uso. Pois o uso do dinheiro foi transferido para o parceiro de trabalho, e, por conseguinte, com base no próprio fundamento de São Tomás, deveria ter condenado todas as parcerias, bem como as societas, como ilícitas e usurárias. Confrontando um mundo do século XIII, no qual as societas floresceram e foram cruciais para vida comercial e econômica, era impensável para Tomás lançar a economia ao caos, condenando este consolidado instrumento de comércio e finanças.

Em vez de a donidade acompanhar o uso de um artigo consumível, então, Tomás avançou agora a ideia da donidade acompanhar a incidência de risco. O investidor arrisca o seu capital; por conseguinte, mantém a donidade de seu investimento. Uma saída aparentemente sensata, mas frágil; não só Tomás contradizia assim a sua própria teoria bizarra da donidade, como também não se apercebeu de que, afinal, nem toda a donidade precisa ser particularmente arriscada. Outro problema é que o tomador de risco está lucrando com o investimento de dinheiro, que é supostamente estéril. Em vez de afirmar que todo o lucro deve ir para o parceiro de trabalho, São Tomás diz explicitamente que o capitalista recebe, com razão, o “ganho que daí advém”, ou seja, do uso de seu dinheiro, “como da sua própria propriedade”. Parece muito como se São Tomás estivesse aqui tratando o dinheiro como fértil e produtivo, proporcionando uma recompensa independente ao capitalista.

No entanto, apesar das contradições internas que se verificam no tratamento da usura por parte de São Tomás e as societas, toda a sua doutrina continuou a ser dominante durante 200 anos.

Finalmente, Tomás acreditava firmemente na superioridade da propriedade privada à propriedade comunal e a superioridade da donidade dos recursos. A propriedade privada torna-se uma característica necessária do estado terreno do homem. É a melhor garantia de uma sociedade pacífica e ordeira, e proporciona o máximo incentivo para o cuidado e uso eficiente da propriedade. Assim, na Summa, São Tomás escreve com entusiasmo: “Todo homem é mais solícito em obter o que é somente para ele mesmo do que aquilo que é comum a muitos ou a todos. Pois cada um fugiria do trabalho e deixaria a outrem aquilo que concerne à comunidade, como acontece quando há uma quantidade de criados”.

Além disso, desenvolvendo a teoria de apropriação no Direito romano, Tomás, antecipando a famosa teoria de John Locke, fundamentou o direito de aquisição original da propriedade sobre dois fatores básicos: trabalho e ocupação. O direito inicial de cada pessoa é o de donidade sobre seu próprio si-mesmo, na opinião de Tomás, num “direito de proprietário sobre si mesmo”. Essa donidade individual de seu si-mesmo baseia-se na capacidade do homem como um ser racional.

Em seguida, o cultivo e uso de terras anteriormente não utilizadas estabelece um justo título de propriedade na terra num homem em vez de em outros. A teoria de aquisição de São Tomás foi mais esclarecida e desenvolvida pelo seu estudante e discípulo amigo, João de Paris (Jean Quidort, c.1250-1306), membro da mesma comunidade dominicana que Tomás, a de São Tiago em Paris. Defendendo o direito absoluto de propriedade privada, Quidort declarou que a propriedade laica:

é adquirida por pessoas individuais através de sua própria habilidade, trabalho e diligência, e os indivíduos, enquanto indivíduos, têm direito e poder sobre ela e senhorio válido; cada pessoa pode ordenar a sua e dispor, administrar, mantê-la ou aliená-la como desejar, desde que não cause danos a mais ninguém; uma vez que é senhor.

Essa teoria de “homesteading” da propriedade tem sido sustentada por muitos historiadores como sendo o ancestral da teoria do valor-trabalho marxiana. Mas essa acusação confunde duas coisas muito diferentes: determinação do valor econômico ou preço de um bem, e uma decisão sobre a forma pela qual os recursos não utilizados devem passar para mãos privadas. A visão Tomás-Paris-Locke é a “teoria do trabalho” (definindo “trabalho” como o dispêndio de energia humana, em vez de trabalhar por um salário) da origem da propriedade, e não uma teoria de valor-trabalho.

Em contraste com o seu precursor, Aristóteles, o trabalho para Tomás era dificilmente dispensável. Pelo contrário, o trabalho é um ditame da lei positiva, natural e divina. Tomás era muito consciente de que Deus na Bíblia deu ao homem o domínio sobre toda a terra para o seu uso. A função do homem é tomar os materiais fornecidos pela natureza e, através do discernimento da lei natural, moldar essa realidade para alcançar os seus propósitos. Embora Tomás não tenha praticamente nenhuma concepção de crescimento econômico ou de acúmulo de capital, ele coloca claramente o homem como um moldador ativo de sua vida. Desapareceu o ideal grego passivo de conformidade com determinadas condições ou com as exigências da polis.

Talvez a contribuição mais importante de São Tomás tenha sido à base subjacente ou a estrutura da economia do que às questões estritamente econômicas. Pois ao reavivar e se basear sobre Aristóteles, São Tomás introduziu e estabeleceu no mundo cristão uma filosofia de lei natural, uma filosofia em que a razão humana é capaz de dominar as verdades básicas do universo. Nas mãos tanto de Tomás quanto de Aristóteles, a filosofia, com a razão como instrumento de conhecimento, tornou-se mais uma vez a rainha das ciências. A razão humana demonstrou a realidade do universo, e da lei natural das classes de entes que podem ser descobertas. A razão humana poderia conhecer a natureza do mundo, e poderia, portanto, conhecer a ética adequada para a humanidade. A ética, então, tornou-se decifrável pela razão. Essa tradição racionalista contraria o “fideísmo” da antiga Igreja Cristã, a ideia debilitante de que só a fé e a revelação sobrenatural podem fornecer uma ética para a humanidade. Debilitante porque se a fé é perdida, então a ética também é perdida. O tomismo, pelo contrário, demonstrou que as leis da natureza, incluindo a natureza da humanidade, forneceram os meios para a razão do homem descobrir uma ética racional. Para ser claro, Deus criou as leis naturais do universo, mas a apreensão dessas leis naturais era possível quer se acreditasse ou não em Deus como criador. Desse modo, uma ética racional para o homem foi fornecida sobre uma base verdadeiramente científica em vez de sobrenatural.

No subconjunto da teoria do direito natural que trata dos direitos, São Tomás de Aquino conduziu a uma reviravolta ao conceito do século XII de um direito enquanto reivindicação sobre outros em vez de ser uma área inviolável de direito de propriedade, de domínio de um indivíduo, a ser defendido de todos os outros. Numa obra brilhante, o Professor Richard Tuck[4] salienta que o Direito Romano primitivo foi marcado por um direito “ativo” de propriedade/uma visão de domínio do direito, enquanto os romanistas do final do século XII em Bolonha converteram o conceito de “direito” à listagem passiva de reivindicações sobre outros homens. Esse conceito de direitos “passivos” em oposição ao conceito de direitos “ativos” afetava a rede de reivindicações entrelaçadas, consuetudinárias e de status que marcou a Idade Média. Este é, num sentido importante, o antepassado da afirmação moderna de tais “direitos-reivindicações” como “direito ao emprego”, o “direito a três refeições completas por dia”, etc., tudo isso só pode ser cumprido coagindo outros para obtê-los.

No entanto, no século XIII, em Bolonha, Acúrsio começou uma reviravolta para uma teoria ativa dos direitos de propriedade, com a propriedade de cada indivíduo tendo um domínio que precisa ser defendido contra todos os outros. Tomás adaptou a ideia de um domínio natural sem, no entanto, ir até uma verdadeira teoria de direitos naturais, que afirma que a propriedade privada é natural e não uma convenção criada pela sociedade ou pelo governo. Tomás foi levado a adaptar a teoria do domínio devido às poderosas batalhas ideológicas do final do século XIII entre as ordens dominicana e franciscana. Os Franciscanos, empenhados na pobreza total, afirmaram que o seu uso de recursos para a subsistência não era realmente propriedade privada; tal agradável ficção permitiu aos Franciscanos afirmar que, em seu estado de pobreza voluntária, tinham ascendido acima da donidade ou posse de propriedade. Sustentaram estranhamente que o puro uso para consumo de recursos, tais como aqueles para os quais eles se dedicavam, não implicava a posse de propriedade. Supostamente, a venda ou doação de um recurso era necessária para o qualificar como propriedade. A autossuficiência ou isolamento não permitia, segundo a visão franciscana, a existência de propriedade. Os dominicanos rivais, incluindo Tomás, compreensivelmente perturbados por essa alegação, começaram a insistir que todo uso implicava necessariamente domínio, posse e controle de recursos e, portanto, propriedade.

 

8. Escolásticos do final do século XIII: Os franciscanos e a teoria da utilidade

 

A primeira vitória na luta sobre os conceitos de direito de propriedade foi conquistada pelos Franciscanos, cuja teoria foi defendida por seu protetor, o Papa Nicolau III, em sua bula Exiit, emitida em 1279. Essa teoria dominante foi elaborada pelo primeiro grande crítico do Tomismo, o escolástico Franciscano Britânico João Duns Scotus (1265-1308), professor de teologia em Oxford e depois em Paris. Tomás sustentava que nem a propriedade privada nem a propriedade comunal eram características necessárias do estado da natureza, de modo que uma condição não era mais natural que a outra. Scotus, pelo contrário, sustentou ousadamente que em estado de inocência natural tanto a lei natural quanto a divina decretam que todos os recursos sejam mantidos em comum, de modo que não possa existir propriedade privada ou domínio. Nesse supostamente idílico comunismo primitivo, cada pessoa pode retirar o que precisa do estoque comum.

A teoria dos direitos dificilmente foi o único desvio Franciscano em relação ao Tomismo de linha principal. Como fideístas, os Franciscanos se remontam à tradição Cristã anterior, antes de ser substituída pelo racionalismo de São Tomás. Eles começaram, portanto, a depreciar a ideia de uma ética racional e, portanto, de uma lei natural.

Em matéria de teoria dos direitos, pelo menos, os franciscanos logo foram esmagados. Reagindo contra os Franciscanos, o Papa João XXII emitiu sua famosa bula Quia vir reprobus (1329). Quia afirmou com veemência que o domínio de Deus sobre a terra se refletia na propriedade ou domínio do homem sobre seus bens materiais. Os direitos de propriedade, portanto, não eram, como até mesmo Tomás acreditava, um produto de lei positiva ou convenção social; eles estavam enraizados na natureza do homem, criados pela lei divina. Os direitos de propriedade eram, portanto, naturais e coincidem com as ações do homem no mundo material. Os Franciscanos foram efetivamente derrotados nesse ponto; foi agora estabelecido, como diz Richard Tuck, que a propriedade “era um fato básico sobre os seres humanos, no qual seus conceitos sociais e políticos tinham de ser postulados”.[5]

Em questões mais estritamente econômicas, os Franciscanos poderiam aderir ou desviar-se do conceito Tomista de linha principal de preço justo. O próprio Scotus apresentou uma visão divergente. Em seu comentário sobre o livro Sentenças de Pedro Lombardo, Scotus elaborou uma visão minoritária que muitos historiadores atribuíram erroneamente ao escolasticismo como um todo: que o preço justo era o custo de produção do mercador mais a compensação pela indústria, trabalho e risco envolvidos na introdução de seu produto no mercado. A compensação, além disso, era para dar apoio adequado à família do mercador. Dessa forma, o trabalho mais despesas mais risco, anteriormente empregado para justificar quaisquer lucros que o comerciante pudesse obter, foi agora transformado no determinante do preço justo. Scotus fez desse custo de produção uma teoria de preço justo, em contraste com a visão escolástica tradicional de longa data de que o preço justo era o preço comum no mercado.

Embora um Franciscano, o escolástico Britânico da Universidade de Paris, Ricardo de Middleton (c. 1249-1306), seguiu a doutrina econômica de Tomás e enfatizou a necessidade e a utilidade como os determinantes do valor econômico. O preço justo, seguindo a linha escolástica principal, era equivalente ao preço comum de mercado determinado por essas necessidades. Middleton também sublinhou o conceito de vital importância de Tomás, segundo o qual ambas as partes se beneficiam de uma troca. Tornando-se mais preciso do que Tomás, Middleton apontou que, digamos, quando um cavalo é vendido por dinheiro, tanto o comprador quanto o vendedor ganham com a transação, já que o comprador demonstra que precisa mais do cavalo do que do dinheiro enquanto o vendedor prefere o dinheiro ao cavalo.

Além de desenvolver esse conceito crucial de benefício mútuo, Ricardo de Middleton foi o primeiro a aplicar esse conceito ao comércio internacional. O comércio internacional, assim como a troca individual, traz benefícios mútuos. Middleton ilustrou essa ideia postulando dois países: o país A, que tem uma superabundância de grãos, mas uma escassez de vinho, e o país B, que tem uma abundância de vinho, mas poucos grãos. Ambos os países se beneficiarão, então, trocando seus respectivos excedentes. Os mercadores também lucrarão transportando grãos do país A, onde é abundante e seu preço é, portanto, barato, para o país B, onde é escasso e demanda um alto preço. Os comerciantes também lucrarão com o tráfego reverso: enviando vinho do país B, onde seu preço é baixo, para A, onde seu preço é alto. Ao comprar e vender a preços de mercado atuais, os comerciantes estão negociando a preço justo e lucram sem explorar ninguém. Os comerciantes são justamente compensados pela execução de um serviço útil e por assumir problemas e riscos. O único ponto perdido por Middleton nessa análise sofisticada é que as ações dos vários comerciantes se moverão em direção à equalização de preços nos dois países.

Uma contribuição ainda mais deslumbrante ao pensamento econômico foi feita por um frade Franciscano Provençal, durante muitos anos orador em Florença, Pierre de Jean Olivi (1248-98), em dois tratados sobre contratos, um sobre usura e outro sobre compras e vendas, assinalou que o valor econômico era determinado por três fatores: escassez (raritas); utilidade (virtuositas); e desejabilidade ou desejo (complacibilitas). O efeito da escassez, ou o que agora chamamos de “oferta”, é claro: quanto mais escasso for um produto, mais valioso ele é e, portanto, mais alto o preço. Quanto mais abundante o produto (maior a oferta), por outro lado, menor o valor e o preço.

A notável contribuição de Olivi foi investigar o anteriormente vago conceito de necessidade ou utilidade. O estudante e discípulo de Tomás, o Dominicano Gil de Lessines, professor da Universidade de Paris, tinha levado o conceito de utilidade um passo adiante ao afirmar que os bens são mais ou menos valiosos no mercado de acordo com o grau de sua utilidade. Mas agora Olivi separou a utilidade em duas partes. Uma era a virtuositas, ou a utilidade objetiva de um bem, o poder objetivo que ele tem de satisfazer os desejos humanos. Mas, como explica Olivi, o fator importante na determinação do preço é a complacibilitas, ou utilidade subjetiva, o desejo subjetivo de um produto para os consumidores individuais.

Além disso, Olivi confrontou diretamente o “paradoxo do valor” que mais tarde confundiria Adam Smith e os economistas clássicos, e se saiu muito melhor do que eles em resolvê-lo. O “paradoxo do valor” é que um bem como a água ou o pão, essencial à vida e, portanto, de acordo com os economistas clássicos, tendo um alto “valor de uso”, deve ser muito barato e ter um baixo valor no mercado. Ao mesmo tempo, em contraste, ouro ou diamantes, luxos não essenciais e, portanto, de muito menor valor de uso, têm valores de troca muito mais altos no mercado. Os economistas clássicos dos séculos XVIII e XIX simplesmente cruzaram os braços a respeito desse paradoxo e insatisfatoriamente colocaram uma dicotomia acentuada entre o valor de uso e o valor de troca. Olivi, por outro lado, apontou a solução: a água, embora necessária à vida humana, é tão abundante e facilmente disponível que demanda um preço muito baixo no mercado, enquanto o ouro é muito mais escasso e, portanto, mais valioso. A utilidade, na determinação do preço, é relativa à oferta e não absoluta. A solução completa para o paradoxo do valor teve de esperar pela Escola Austríaca do final do século XIX: a “utilidade marginal” — o valor de cada unidade de um bem — diminui na medida em que sua oferta aumenta. Assim, um bem superabundante como o pão ou a água terá uma utilidade marginal baixa, enquanto um bem raro como o ouro terá uma utilidade marginal alta. O valor de um bem no mercado, e, portanto, seu preço, é determinado por sua utilidade marginal, não pela utilidade filosófica do bem como um todo ou em abstrato. Mas, é claro, antes dos Austríacos, faltava o conceito marginal.

O mercado para Olivi, então, era uma arena na qual os preços das mercadorias são formados a partir da interação de indivíduos com diferentes utilidades e valorações subjetivas do bem. Somente os preços de mercado, portanto, não são determinados por referência às qualidades objetivas do bem, mas pela interação de preferências subjetivas no mercado.

Além de sua monumental realização em ser o primeiro a descobrir a teoria da utilidade subjetiva, Olivi foi o primeiro a trazer para o pensamento econômico o conceito de capital (capitale) como um fundo de dinheiro investido em um empreendimento comercial. O termo “capital” apareceu em numerosos registros comerciais desde meados do século XII, mas essa foi a primeira vez que foi conceitualizado. O conceito de capital foi utilizado por Olivi para mostrar que era possível usar o dinheiro de uma maneira frutífera, para obter lucro. Olivi manteve a proibição da usura onde o capital foi investido sem ser alterado de alguma forma pelo trabalho e pela industriosidade do investidor. Entretanto, Olivi foi uma das minorias dos escolásticos a adotar a permissibilidade de Henrique de Óstia ao lucrum cessans — permitindo uma cobrança de juros sobre um empréstimo onde quer que o lucro sobre um investimento tenha sido perdido no processo. Infelizmente, Olivi continuou a cuidadosa limitação de Henrique de Óstia de confinar o lucrum cessans a empréstimos concedidos por caridade, de modo que as atividades de um emprestador profissional de dinheiro ainda não poderiam de forma alguma ser justificadas.

É uma ironia notável na história do pensamento econômico que o descobridor da teoria da utilidade subjetiva, um analista altamente sofisticado de como a economia de mercado funcionava, um crente no preço justo como o preço de mercado comum, o iniciador do conceito de capital, e um defensor, pelo menos, do uso parcial do lucrum cessans como forma de justificar os juros: que esse grande pensador de mercado deveria ter sido o líder da ala rigorosa da ordem Franciscana que acreditava em viver em extrema pobreza. Talvez uma explicação seja que Olivi nasceu na importantíssima cidade mercantil de Narbonne. Ele foi o principal líder intelectual dos Franciscanos Espirituais, que acreditavam devotamente em seguir fielmente a regra da pobreza total estabelecida pelo fundador da ordem, São Francisco de Assis (1182-1226). É mais uma ironia que os opositores de Olivi, os Franciscanos Conventuais, que acreditavam em uma interpretação muito mais frouxa da regra, lançaram anátemas em Olivi e outros Espirituais e conseguiram destruir muitos traços físicos e intelectuais da obra de Olivi. Em 1304, seis anos após sua morte, um capitular geral da Ordem Franciscana ordenou a destruição de todas as obras de Olivi, e 14 anos depois, o corpo do desafortunado Olivi foi desenterrado e seus ossos espalhados.

Não apenas muitas cópias físicas dos escritos de Olivi foram destruídas, mas tornou-se insalubre para os Franciscanos, pelo menos, referir-se às suas obras. Como resultado, quando, quase um século e meio depois, a obra esquecida de Olivi foi redescoberta pelo grande santo Franciscano São Bernadino de Siena, Bernadino achou prudente não se referir sequer ao herege Olivi, embora ele usasse a teoria da utilidade deste último praticamente palavra por palavra em sua própria obra. Esta reticência era necessária porque Bernadino pertencia à rigorosa ala Observadora dos Franciscanos, de certa forma descendentes dos Espirituais de Olivi. De fato, só a partir dos anos 1950 é que os esclarecedores escritos econômicos de Olivi, e sua apropriação por San Bernadino, vieram à luz.

Talvez outra razão para a histeria com que os principais Franciscanos saudaram as opiniões religiosas de Pierre Olivi tenha sido seu contínuo flerte com a heresia Joaquimita. Um dos fundadores do messianismo Cristão místico foi o eremita Calabriano e Abade Joaquim de Fiore (1145-1202). No início dos anos 1190, Joaquim adotou a tese de que havia na história não apenas duas eras (pré-Cristã e pós-Cristã), mas uma terceira era, da qual ele mesmo era o profeta. A época pré-Cristã era a era do Pai, do Antigo Testamento; a era cristã, a era do Filho, do Novo Testamento. E agora vinha o cumprimento, a nova terceira era, a era apocalíptica do Espírito Santo, na qual a história logo terminaria. A terceira era, que para Joaquim deveria ser inaugurada durante o próximo meio século, no início ou meados do século XIII, deveria ser uma era de puro amor e livridade. O conhecimento de Deus seria revelado diretamente a todos os homens e não haveria trabalho ou propriedade, pois os seres humanos possuiriam apenas corpos espirituais, tendo seus corpos materiais desaparecido. Não haveria Igreja ou Bíblia ou estado, mas apenas uma comunidade livre de seres espirituais perfeitos que passariam todo o seu tempo em êxtase místico louvando a Deus até esse milenar Reino dos Santos inaugurar nos Últimos Dias, os dias do Juízo Final.

As divergências aparentemente minúsculas nas premissas têm muitas vezes graves consequências sociais e políticas, e isso se aplicava às divergências entre os Cristãos sobre a questão aparentemente recôndita da escatologia, da ciência ou da disciplina dos Últimos Dias. Desde Santo Agostinho, a visão Cristã ortodoxa tem sido amilenarista, ou seja, que não existe nenhum milênio especial ou Reino de Deus na história humana, exceto a vida de Jesus e o estabelecimento da Igreja Cristã. Essa é a opinião dos católicos, dos Luteranos, e provavelmente do próprio Calvino. A conclusão ideológica ou social é que Jesus voltará a inaugurar o Juízo Final e o fim da história em Seu próprio tempo, de modo que não há nada que os seres humanos possam fazer para acelerar os Últimos Dias. Uma variante dessa doutrina é que após o retorno de Jesus, Ele inaugurará mil anos do Reino de Deus na Terra antes do Juízo Final; em termos práticos, porém, há pouca diferença significativa aqui, uma vez que o Cristianismo permanece em vigor, e ainda não há nada que o homem possa fazer para guiar ao milênio.

A diferença crucial vem com as ideias quiliásticas, como as de Joaquim de Fiore, onde não só o mundo estava terminando em breve, mas o homem deve fazer certas coisas para inaugurar os Últimos Dias, para preparar o caminho para o Juízo Final. Todas estas são doutrinas pós-milenares, ou seja, que o homem deve primeiro estabelecer um Reino de Deus na Terra como condição necessária para o retorno de Jesus ou para o Juízo Final. Geralmente, como veremos mais adiante na Reforma Protestante, visões pós-milenares levam a alguma forma de coerção teocrática da sociedade para pavimentar o caminho para a culminação da história.

Para Joaquim de Fiore o caminho para os Últimos Dias seria aberto por uma nova ordem de monges altamente espirituais, dos quais viriam 12 patriarcas encabeçados por um professor supremo, que converteria os Judeus ao cristianismo, como predito nas Revelações, e conduziria toda a humanidade para longe do material e em direção ao amor das coisas do espírito. Então, por um breve período de três anos e meio, um rei secular, o Anticristo, iria castigar e destruir a corrupta Igreja Cristã. A rápida derrubada do Anticristo guiaria então para a total era do Espírito.

Tendo em vista a natureza radical e potencialmente explosiva da heresia de Joaquim, é notável que nada menos que três papas contemporâneos expressaram grande interesse em sua doutrina. Em meados do século XIII, porém, o Joaquimismo foi negligenciado e pouco conhecido. É uma pequena maravilha que a heresia Joaquimita tenha sido reavivada pelos Franciscanos Espirituais, que foram tentados a ver em sua própria e próspera nova ordem, e em sua devoção à pobreza, a própria ordem monástica que tinha sido predita por Joaquim para realizar os Últimos Dias.

 

______________________

Notas

[1]     Saint Augustine, The City of God (Cambridge, Mass.: Loeb Classical Library/Harvard University Press, 1963), Vol. II, Book IV, IV, p. 17.

*     *Nota do tradutor: Forestalling, traduzido como “antecipação”, é um termo jurídico obsoleto. Ele descreve os métodos “inaceitáveis” de influenciar o mercado ao dissuadir pessoas a trazer seus bens ou provisões ao mercado, ou ao persuadi-los a aumentar o preço, quando estão a caminho do mercado. Tipicamente, referia-se a prática de interceptar comerciantes a caminho de um mercado através da compra de seu estoque para vendê-lo no mercado a um preço maior.

*     *Nota do tradutor: “Leigo”, aqui, refere-se à pessoa que não exerce serviço clerical, que não faz parte do sacerdócio.

*     Nota do tradutor: Em edições mais recentes da Bíblia, tal trecho corresponde ao Salmo 15.

[2]     Richard Henry Tawney, Religion and the Rise of Capitalism (Nova York: Harcourt, Brace and World, 1937, orig. 1926), p. 36.

[3]     Há controvérsia entre os historiadores sobre quando o Comentário foi escrito. A visão mais antiga, que foi escrita em 1266 ou mesmo antes, implicaria a simples explicação de que as opiniões de Tomás tinham amadurecido a partir da sua prévia adesão ao seu professor, Santo Alberto. A opinião mais recente, de que o Comentário foi escrito ao mesmo tempo que a Summa, deixa a anomalia intacta.

[4]     Richard Tuck, Natural Rights Theories: Their Origin and Development (Cambridge: Cambridge University Press, 1979).

[5]     Ibid., p. 24.

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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