1. O mistério de Adam Smith
Adam Smith (1723-90) é um mistério em um quebra-cabeça embalado em um enigma. O mistério é o enorme e sem precedentes abismo entre sua exaltada reputação e a realidade de suas contribuições dúbias ao pensamento econômico.
A reputação de Smith quase ofusca o sol. Desde pouco depois de sua própria época até bastante recentemente, pensava-se que ele havia criado a ciência econômica praticamente de novo. Ele foi universalmente louvado como o Pai Fundador. Livros sobre a história do pensamento econômico, depois de algum escárnio merecido aos mercantilistas e um aceno para os fisiocratas, invariavelmente começariam com Smith como o criador da disciplina da economia. Quaisquer erros que ele tenha feito foram compreensivelmente perdoados como as falhas inevitáveis de qualquer grande pioneiro. Inumeráveis palavras foram escritas sobre ele. No bicentenário de sua magnum opus, Uma Investigação da Natureza e das Causas da Riqueza das Nações (1776), uma verdadeira enchente de livros, ensaios e memorandos foi derramada sobre o quieto professor escocês. Seu perfil esculpido por Tassie em um medalhão é conhecido em todo o mundo. Até mesmo um filme hagiográfico foi feito sobre Smith durante o bicentenário por uma fundação de livre mercado, e homens de negócios e defensores do livre mercado por muito tempo louvaram Adam Smith como o seu santo padroeiro. “Gravatas de Adam Smith” foram vestidas como uma medalha de honra nos altos escalões da administração de Reagan. Por outro lado, os marxistas, de certa forma mais justamente, louvam Smith como a inspiração máxima para seu próprio Pai Fundador, Karl Marx. De fato, caso se pedisse à pessoa média para nomear dois economistas na história de quem houvesse ouvido falar, Smith e Marx provavelmente seriam, de longe, os campeões em citação.
Como nós já vimos, Smith dificilmente fui fundador da ciência econômica, uma ciência que existia desde os escolásticos medievais e, em sua forma moderna, desde Richard Cantillon. Mas o que os economistas alemães costumavam chamar, em uma conexão mais estreita, de Das AdamSmithProblem,[1] é muito mais severo que isso. O problema não é simplesmente que Smith não foi o fundador da economia. O problema é que ele não originou nada que fosse verdade, e que tudo o que ele originou foi erro; que, mesmo em uma época que tinha menos citações ou notas de rodapé do que a nossa, Adam Smith foi um copiador sem-vergonha, reconhecendo pouco ou nada como sendo de seus reais criadores e roubando grandes partes, por exemplo, de Cantillon. Muito pior foi a completa falha de Smith em citar ou reconhecer seu amado mentor, Francis Hutcheson, de quem ele tirou a maior parte de suas ideias, bem como a organização de suas aulas de filosofia moral e economia. Smith de fato escreveu uma carta privada à Universidade de Glasgow sobre o “nunca a ser esquecido Dr. Hutcheson”, mas aparentemente uma amnésia convenientemente caiu sobre Adam Smith quando ele escreveu o Riqueza das Nações para o público geral.[2]
Mesmo sendo um plagiador inveterado, Smith tinha um complexo de Colombo, acusando incorretamente amigos próximos de plagiarem ele. E mesmo sendo um plagiador, ele plagiava mal, adicionando novas falácias às verdades que ele roubava. Ao castigar Adam Smith por seus erros, portanto, nós não estamos sendo anacrônicos, absurdamente punindo pensadores do passado por não serem tão sábios como nós, que viemos depois. Smith não só não contribuiu com nada de valor para o pensamento econômico; sua economia foi uma grave deterioração da economia de seus predecessores; de Cantillon, de Turgot, de seu professor Hutcheson, dos escolásticos espanhóis, e até mesmo — estranhamente — de suas próprias obras prévias, como as Lições sobre a Jurisprudência (não publicado, 1762-63, 1766) e a Teoria dos Sentimentos Morais (1759).
O mistério de Adam Smith, então, é o imenso abismo entre uma reputação monstruosamente superinflada e a triste realidade. Mas o problema é pior do que isso; não é só que o Riqueza das Nações de Smith tenha tido uma reputação terrivelmente superestimada de seu tempo até o nosso. O problema é que o Riqueza das Nações foi, de alguma forma, capaz de cegar todos os homens, economistas e leigos igualmente, ao conhecimento de que outros economistas, ainda mais os melhores, existiram e escreveram antes de 1776. O Riqueza das Nações exerceu um impacto tão colossal no mundo que todo o conhecimento de economistas prévios foi apagado, daí a reputação de Smith de Pai Fundador. O problema histórico é este: como poderia esse fenômeno acontecer com um livro tão derivativo, tão cheio de falhas, tão menos valioso que seus predecessores?
A resposta certamente não está em qualquer lucidez ou clareza de estilo ou de pensamento. O muito reverenciado Riqueza das Nações é um livro enorme, extenso, incipiente, confuso, repleto de imprecisão, ambiguidade e contradições internas profundas. Há, é claro, uma vantagem, na história do pensamento social, em uma obra ser enorme, extensa, ambivalente e confusa. Há uma vantagem sociológica na imprecisão e obscuridade. O confuso smithiano alemão, Christian J. Kraus, uma vez se referiu ao Riqueza das Nações como a “Bíblia” da economia política. Em certo sentido, Professor Kraus falou algo mais sábio do que ele mesmo sabia. Porque, de certa forma, o Riqueza das Nações é como a Bíblia; é possível derivar interpretações variáveis e contraditórias de várias — ou até das mesmas — partes do livro. Ademais, a própria imprecisão e obscuridade de uma obra pode prover uma feliz caça ao tesouro para intelectuais, estudantes e seguidores. Fazer seu próprio caminho em um tratado obscuro e difícil, tecer fios vagamente percebidos de um livro em um padrão coerente — estas são tarefas recompensadoras em si mesmas para intelectuais. E um tal livro também provê um processo de exclusão embutido que é muito bem-vindo, de forma que somente um número relativamente pequeno de adeptos pode se gabar de sua expertise sobre uma obra ou um sistema de pensamento. Dessa forma, eles aumentam sua renda e seu prestígio relativos, e deixam outros admiradores para trás para formar uma equipe de torcida para os principais discípulos do Mestre.
Adam Smith não fundou a ciência econômica, mas ele de fato criou o paradigma da escola clássica britânica, e é frequentemente útil para o criador de um paradigma que ele seja incipiente e confuso, então abrindo espaço para discípulos que tentarão esclarecer e sistematizar as contribuições do Mestre. Até a década de 1950, economistas, ao menos aqueles na tradição anglo-americana, reverenciavam Smith como o fundador, deviam o posterior desenvolvimento da economia como um movimento linear e ascendente para a luz, com Smith sendo sucedido por Ricardo e por Mill, e, depois de um pouco de desvio criado pelos austríacos na década de 1870, Alfred Marshall estabelecendo a economia neoclássica como uma disciplina neo-ricardiana e, portanto, neo-smithiana. Em certo sentido, John Maynard Keynes, estudante de Marshall em Cambridge, pensou que ele era o único preenchendo as lacunas na herança ricardiana-marshalliana.
Dentro deste miasma complacente de louvor a Smith, o History of Economic Analysis (1954) de Joseph A. Schumpeter veio como um verdadeiro blockbuster. Vindo das tradições continentais walrasiana e austríaca, ao invés do classicismo britânico, Schumpeter foi capaz, praticamente pela primeira vez, de lançar uma visão fria e realista sobre o celebrado escocês. Escrevendo com desprezo que mal escondia, Schumpeter denegria a contribuição de Smith, essencialmente defendeu que Smith havia desviado a economia para um caminho errado, um caminho infelizmente diferente daquele de seus ancestrais continentais.[3]
Desde Schumpeter, muitos historiadores do pensamento econômico recuaram em suas posições. Smith, é concedido, não criou nada, mas ele foi o grande sintetizador e sistematizador, o primeiro a juntar todos os fios de seus predecessores e os tecer juntos em um quadro coerente e sistemático. Mas a obra de Smith é o oposto de coerente e sistemático, e Ricardo e Say, seus dois maiores discípulos, se propuseram cada um a si mesmo à tarefa de construir esse tal sistema coerente a partir da lama smithiana. E, ademais, enquanto é verdade que os escritos pré-smithianos foram incisivos, mas esparsos (Turgot), ou incrustados em filosofia moral (Hutcheson), também é verdade que havia dois tratados sobre a economia per se antes de Riqueza das Nações. Um foi Essai de Cantillon, que, depois de Smith, caiu em negligência grave, para ser resgatado um século depois por Jevons; o outro, e o primeiro livro a usar economia política em seu título, foi a antiquada obra de dois volumes de Sir James Steuart (1712-80), Princípios de Economia Política (1767). Steuart, um jacobita que havia se envolvido da rebelião do Bonnie Prince Charlie, esteve por boa parte de sua vida em exílio na Alemanha, onde se familiarizou com a metodologia e os ideais do “cameralismo” alemão. O cameralismo era uma forma virulenta de mercantilismo absolutista que floresceu na Alemanha nos séculos XVII e XVIII. Os cameralistas, ainda mais do que os mercantilistas da Europa ocidental, não eram economistas de fato — isto é, eles não analisaram os processos do mercado — mas eram conselheiros técnicos para os governantes sobre como e de que forma alimentar o poder do estado sobre a economia. O Princípios de Steuart pertencia a essa tradição, mal podendo ser considerada economia, mas como clamor por intervenção governamental em massa e planejamento totalitário, de regulação detalhada das negociações até um sistema de cartéis compulsórios e política monetária inflacionária. Sua única “contribuição” foi refinar e expandir noções fugazes e incipientes de uma teoria do valor-trabalho, e elaborar uma teoria proto-marxiana do conflito inerente de classes na sociedade. Ademais, Steuart havia escrito um tomo ultra-mercantilista justo no tempo em que o pensamento liberal clássico e de laissez-faire estavam crescendo e se tornando dominante ao menos na Grã-Bretanha e na França.
Apesar do Princípio de Steuart estar descompasso com o Zeitgeist liberal clássico emergente, não foi uma conclusão precipitada que a obra teria pouca ou nenhuma influência. O livro foi bem recebido, altamente respeitado, e vendeu muito bem, e depois de 5 anos de sua publicação, em 1772, Steuart venceu Adam Smith em adquirir um posto como consultor monetário da Companhia das Índias Orientais.
Uma razão pela qual a perspectiva de Schumpeter sobre Smith chocou a profissão da economia é que os historiadores do pensamento econômico, assim como os historiadores de outras disciplinas, habitualmente trataram o desenvolvimento da ciência como uma marcha linear e ascendente até a verdade. Cada cientista pacientemente formula, testa e descarta hipóteses, e, portanto, cada um que se sai bem-sucedido sobe nos ombros daquele que veio antes. Isto, que pode ser chamado de “teoria Whig da história da ciência”, já foi atualmente amplamente descartado em favor da teoria Kuhniana dos paradigmas. Para os nossos propósitos, o ponto importante da teoria de Kuhn é que um número bastante pequeno de pessoas pacientemente teste alguma coisa, particularmente as suposições fundamentais, ou o “paradigma” básico de suas teorias: e mudanças de paradigma podem acontecer até mesmo quando a nova teoria é pior do que a antiga. Resumidamente, o conhecimento é e pode ser perdido tanto quanto ganho, e a ciência frequentemente procede em ziguezagues, ao invés de linearmente. Nós poderíamos adicionar que isso é ainda mais verdadeiro nas ciências sociais ou humanas. Como resultado, paradigmas e verdades básicas se perdem, economistas (bem como pessoas de outras disciplinas) podem piorar, e não melhorar, ao longo do tempo. Os anos podem tanto trazer retrocesso quanto progresso. Schumpeter lançou uma bomba no templo dos historiadores Whig do pensamento econômico, especificamente dos partidários da tradição Smith-Ricardo-Marshalliana.[4]
Nós, então, colocamos nossa versão do Das AdamSmithProblem: como uma obra tão terrivelmente falha como o Riqueza das Nações se tornou rapidamente dominante ao ponto de apagar todas as outras alternativas? Mas, antes de considerar essa questão, nós devemos examinar os vários aspectos do pensamento smithiano mais detalhadamente.
2. A vida de Smith
Adam Smith nasceu em 1723 na pequena cidade de Kirkcaldy, perto de Edimburgo. Seu pai, também chamado Adam Smith (1679-1723), que morreu pouco antes de ele nascer, foi um distinto juiz advogado pela Escócia, e posteriormente controlador de alfândega em Kirkcaldy, e se casou com uma mulher de uma família abastada de proprietários de terras locais. O jovem Smith foi, portanto, criado por sua mãe. A cidade de Kirkcaldy era militantemente presbiteriana, e na Burgh School da cidade ele conheceu muitos jovens presbiterianos escoceses, um dos quais, John Drysdale, viria a se tornar por duas vezes um moderador da assembleia geral da Igreja da Escócia.
Smith, de fato, veio de uma família oficial da alfândega. Além de seu pai, seu primo Hercules Scott Smith, serviu como coletor de alfândega em Kirkcaldy, e seu guardião, novamente chamado Adam Smith, viria a se tornar coletor de alfândega em Kirkcaldy, bem como inspetor de alfândega nos outports escoceses. Finalmente, ainda outro primo chamado Adam Smith posteriormente serviu como coletor de alfândega em Alloa.
De 1737 até 1740, Adam Smith estudou na Universidade de Glasgow, onde ele caiu sob o feitiço de Francis Hutcheson, e absorveu o entusiasmo das ideias do liberalismo clássico, da lei natural e da economia política. Em 1740, Smith ganhou um mestrado com grande distinção na Universidade de Glasgow. Sua mãe havia batizado Adam na fé episcopal, e ela estava ansiosa para que seu filho em breve se tornasse um ministro episcopaliano. Smith foi enviado para a Universidade de Balliol, em Oxford, em um intercâmbio designado para incentivar futuros clérigos episcopalianos, mas ele estava infeliz com a instrução miserável da Oxford de seu tempo, e retornou depois de seis anos, com 23 anos de idade, sem fazer os votos sagrados. Apesar de seu batismo e da pressão de sua mãe, Smith se manteve presbiteriano ardente e, retornando para Edimburgo em 1746, ele permaneceu desempregado por dois anos.
Finalmente, em 1748, Henry Home, o Lorde Kames, um juiz e o líder do iluminismo liberal escocês e um primo de David Hume, decidiu promover uma série de palestras públicas em Edimburgo para educar advogados. Junto com o amigo de infância de Smith, James Oswald de Dunnikier, Kames conseguiu que a Sociedade Filosófica de Edimburgo patrocinasse Smith por vários anos de aulas sobre a lei natural, literatura, liberdade e libertação comercial. Em 1750, Adam Smith obteve a cátedra em lógica em sua alma mater, a Universidade de Glasgow, e não encontrou dificuldades na assinatura necessária da Confissão de Westminster antes do Presbitério de Glasgow. Finalmente, em 1752, Smith teve a satisfação de ascender até a cátedra de filosofia moral de seu amado professor em Glasgow, onde ele permaneceu por 12 anos.
As palestras de Smith em Edimburgo e em Glasgow eram muito populares, e sua maior ênfase estava no “sistema de liberdade natural”, no sistema de lei natural e laissez-faire que ele estava então defendendo com muito menos qualificações do que posteriormente, em seu mais cauteloso Riqueza das Nações. Ele também conseguiu converter muitos dos principais mercadores de Glasgow a seu animador novo credo. Smith também mergulhou nas associações sociais e educacionais que estavam começando a ser formadas pelo clero presbiteriano moderado, incluindo professores, homens de letras, e advogados, tanto em Glasgow quanto em Edimburgo. É provável que David Hume tenha atendido às palestras de Smith em Edimburgo em 1752, já que os dois rapidamente viraram amigos pouco tempo depois.
Smith foi um membro fundador da Sociedade Literária de Glasgow no ano seguinte; a sociedade engajava em discussões e debates de alto nível, e fazia reuniões diligentemente toda quinta-feira de novembro até maio. Hume e Smith foram ambos membros, e, em uma das primeiras seções, Smith leu notas de alguns dos recentemente impressos Discursos Políticos de Hume. Estranhamente, os dois amigos, claramente as mentes mais brilhantes da Sociedade, eram estranhamente tímidos, e nunca diziam uma palavra em qualquer uma das discussões.
Apesar de sua timidez, Smith era um ocupado e inveterado homem de clubes, tornando-se um membro-chefe da Sociedade Filosófica de Edimburgo e da Sociedade Seleta (Edimburgo), que floresceu na década de 1750, e fazia reuniões semanalmente, juntando a elite do poder moderado do clero, homens universitários, e advogados. Smith também foi um membro ativo do Clube da Economia Política de Glasgow, do Oyster Club (Edimburgo); Simson’s Club of Glasgow; e do Clube de Poker (Edimburgo), fundado por seu amigo Adam Ferguson, professor de filosofia moral na Universidade de Edimburgo, especificamente para promover o “espírito marcial”. Como se isso não fosse o suficiente, Adam Smith foi um dos principais contribuidores e editores da abortada e sem frutos Edinburgh Review (1755-56), dedicada amplamente à defesa de seus amigos Hume e Kames contra o clero calvinista evangélico radical da Escócia. A Edinburgh Review foi fundada pelo brilhante jovem advogado, Alexander Wedderburn (1733-1805), que estava para se tornar um juiz, um membro do parlamento na Inglaterra, e finalmente Lorde Chanceler (1793-1801). Wedderburn era latitudinário ao ponto de favorecer o licenciamento de bordéis. Outros astros no Edinburgh Review eram líderes moderados de alto nível: o político John Jardine (1715-60), cuja filha casou-se com o filho de Lord Kames; o poderoso reverendo William Robertson, e o reverendo Hugh Blair (1718-1800), professor de retórica na Universidade de Edimburgo.
A intensidade do presbiterianismo de Adam Smith, apesar de não fundamentalista, pode ser vista no seu relacionamento com Hugh Blair. Blair, o ministro na Alta Igreja, Greyfriars, estava constantemente em hostilidade com o clero calvinista ortodoxo, que repetidamente o denunciava aos presbitérios de Glasgow e de Edimburgo. No Riqueza das Nações, Adam Smith entregou o seguinte encômio ao clero presbiteriano: “É raro, talvez, encontrar em qualquer lugar na Europa, um grupo de homens mais eruditos, decentes, independentes e respeitáveis do que a maior parte do clero presbiteriano da Holanda, Genebra, Suíça e Escócia”. Ao que seu velho amigo, Blair, embora ele mesmo um líder do clero presbiteriano, mesmo em apuros, comentou em uma carta a Smith: “Você, penso eu, é, de longe, favorável demais ao Presbitério”.
Depois que Smith publicou sua filosofia moral em seu Teoria dos Sentimentos Morais (1759), sua fama crescente rendeu para ele uma posição altamente lucrativa como tutor do jovem duque de Buccleuch, em 1764. Por três anos de tutela, que ele gastou com o jovem duque na França, Smith ganhou um salário anual vitalício de £300, o dobro de seu salário anual em Glasgow. Em três prazerosos anos na França, ele se aproximou de Turgot e dos fisiocratas. Com sua tarefa como tutor completa, Smith voltou para a sua cidade natal, Kirkcaldy, onde, seguro com seu salário vitalício, ele trabalhou por 10 anos para completar o Riqueza das Nações, que ele havia começado no começo de sua estadia na França. A fama do Riqueza das Nações levou o seu orgulhoso ex-aluno, o Duque de Buccleuch, a ajudar a garantir a Smith, em 1778, o posto muito bem pago de comissário da alfândega escocesa em Edimburgo. Com um pagamento de £600 por ano por seu posto no governo, que ele manteve até o dia de sua morte em 1790, adicionado a essa bela pensão vitalícia, Adam Smith estava ganhando quase £1000 por ano, uma “receita principesca”, como um de seus biógrafos descreveu. Até mesmo o próprio Smith escreveu nessa época que ele estava “tão rico quanto poderia desejar”. Ele se arrependeu somente de ter de atender a seu posto na alfândega, que tomou tempo de suas “buscas literárias”.
E ainda assim, seus arrependimentos não foram profundos. Em contraste com a maioria dos historiadores, que trataram o posto alfandegário de Smith envergonhadamente como uma sinecura como recompensa por realizações intelectuais, pesquisas recentes mostraram que Smith trabalhava o período inteiro em seu posto, frequentemente liderando as reuniões diárias da mesa de comissário de alfândega. Ademais, Smith buscou a nomeação e aparentemente achou a posição agradável e relaxante. É verdade que Smith gastou pouco tempo e energia com estudo e escrita depois de sua nomeação; mas havia licenças disponíveis em que Smith não mostrou interesse. Além disso, a base para a busca de Smith pela nomeação não foi tanto baseada em suas conquistas intelectuais como foi uma recompensa por seu conselho como consultor de impostos e do orçamento ao governo britânico desde meados da década de 1760.[5]
3. A divisão do trabalho
É apropriado começar uma discussão do Riqueza das Nações de Smith com a divisão do trabalho, visto que o próprio Smith começa assim e visto que, para Smith, essa divisão tinha importância crucial e decisiva. Seu professor, Hutcheson, também tinha analisado a importância da divisão do trabalho na economia em desenvolvimento, do mesmo modo que Hume, Turgot, Mandeville, James Harris e outros economistas. Mas, para Smith, a divisão do trabalho assumiu uma importância volumosa e gigantesca, pondo à sombra assuntos tão cruciais como acumulação de capital e o crescimento de conhecimento tecnológico. Como Schumpeter apontou, nunca, para nenhum economista de antes ou de desde então a divisão do trabalho assumiu tamanha posição de importância liderante.
Mas há mais problemas na divisão smithiana do trabalho do que em seu exagero em sua importância. A mais antiga e mais verdadeira percepção da potência motiva para a especialização e trocas era simplesmente que cada parte para uma troca (que é necessariamente uma de duas-partes e duas-mercadorias) beneficia (ou ao menos espera beneficiar) da troca; caso contrário as trocas não ocorreriam. Mas Smith infelizmente mudou o foco principal do benefício mútuo para uma alegada irracional e inata “propensidade para permutar, barganhar e trocar”, como se os seres humanos fossem ratos de laboratório determinados por forças externas a seus próprios propósitos escolhidos. Como Edwin Cannan apontou, Smith tomou essa tática porque ele rejeitou a ideia de diferenças inatas em talentos e habilidades naturais, que iriam naturalmente buscar diferentes profissões especializadas. Smith, em vez disso, tomou a posição igualitária-ambientalista, ainda dominante hoje na economia neoclássica, de que todos trabalhadores são iguais, e, portanto, que diferenças entre eles podem apenas ser os resultados em vez de uma causa do sistema da divisão do trabalho.
Em adição, Smith falhou em aplicar sua análise da divisão do trabalho para as negociações internacionais, onde ela teria providenciado munição poderosa para suas próprias políticas de livres negociações. Era para ser deixado a James Mill para fazer tal aplicação em sua teoria excelente de vantagem comparativa. Ademais, domesticamente, Smith pôs importância demais sobre a divisão do trabalho dentro de uma fábrica ou indústria, enquanto negligencia a mais significante divisão do trabalho entre indústrias.
Mas, se Smith tivesse uma apreciação indevida da importância da divisão do trabalho, ele paradoxalmente semeou grandes problemas para o futuro ao introduzir a sociologicamente moderna e crônica queixa sobre a especialização que foi apanhada rapidamente por Karl Marx e tem sido avançada para uma alta arte por resmungos socialistas sobre a “alienação”. Não há contradição no fato de Smith ter totalmente contradito a si mesmo entre o Livro I e Livro V do Riqueza das Nações; no primeiro, a divisão do trabalho sozinha é responsável pela afluência da sociedade civilizada, e certamente a divisão do trabalho é repetida equalizada com “civilização” ao longo do livro. E ainda assim, enquanto no livro I a divisão do trabalho é saudada como expandindo a alertidade e a inteligência da população, no Livro V ela é condenada como levando a sua degeneração moral, bem como intelectual, para a perda de suas “virtudes intelectuais, sociais e marciais”. Não há modo algum pelo qual essa contradição possa ser plausivelmente reconciliada.[6]
Adam Smith, embora ele mesmo um plagiador de consideráveis dimensões, também tinha um complexo de Colombo, frequentemente acusando outras pessoas injustamente de plagiá-lo. Em 1755, ele realmente pôs uma reivindicação de ter inventado o conceito de laissez-faire, ou o sistema de liberdade natural, afirmando que ele ensinou esses princípios desde suas aulas de Edimburgo em 1749. Isso pode ser: mas a reivindicação ignora tais expressões prévias por seus próprios professores bem como por Grócio e Pufendorf, para não mencionar Boisguilbert e os outros pensadores franceses do laissez-faire do final do século XVII.
Em 1769, o contencioso Smith levantou uma acusação de plágio contra o Diretor William Robertson, sob a ocasião da publicação do História do Reino de Carlos V do último. Não é sabido o que o tópico do roubo literário era suposto a ser, e é difícil adivinhar, considerando o caráter remoto da obra de Smith do tema do livro de Robertson.
A mais famosa acusação de plágio lançada por Smith foi contra seu amigo Adam Ferguson sobre a questão da divisão do trabalho. O Professor Hamowy mostrou que Smith não rompeu com seu antigo amigo, como foi previamente pensado, por causa o uso de Ferguson do conceito de divisão do trabalho em seu Ensaio sobre a História da Sociedade Civil em 1767. Em vista de todos os escritores que empregaram o conceito anteriormente, esse comportamento teria sido lúdico, mesmo para Adam Smith. As conjecturas de Hamowy de que a ruptura veio no início da década de 1780, porque a discussão de Ferguson, em seu clube, do que seria posteriormente publicado como parte de seu Princípios de Moral e Ciência Política em 1792. Pois no Princípios, Ferguson sumarizou o que seria o exemplo, que constituiu a única passagem de fama do Riqueza das Nações, da fábrica de alfinetes, onde dez trabalhadores, cada um especializando em um diferente aspecto do trabalho, poderia produzir cerca de 48.000 alfinetes por dia, ao passo que se cada um desses dez tivesse feito todo alfinete por conta própria, eles não teriam feito sequer um alfinete por dia, e certamente não mais de 20. Naquele modo a divisão do trabalho multiplicou enormemente a produtividade de cada trabalhador. Em seu Princípios, Ferguson escreveu: “Um conjunto adequado de pessoas, das quais cada uma performa senão uma parte da manufatura de um alfinete, pode produzir muito mais em um dado tempo, do que talvez dobrar o número, do qual cada um era para produzir todo, ou para performar todas as partes na construção daquele diminuto artigo”.
Quando Smith repreendeu Ferguson por não reconhecer a precedência de Smith no exemplo da fábrica de alfinetes, Ferguson respondeu que ele pegou nada emprestado de Smith, mas, em verdade, que ambos tomaram o exemplo de uma fonte francesa “onde Smith esteve antes dele”. Há forte evidência de que a “fonte francesa” para ambos os escritores era o artigo Epingles (alfinetes) na Encyclopédie (1735), visto que aquele artigo menciona 18 operações distintas para fazer um alfinete, o mesmo número repetido por Smith no Riqueza das Nações, embora, em fábricas de alfinetes inglesas, 25 fosse o número mais comum de operações.
Assim, Adam Smith rompeu com uma amizade de longa data por injustamente acusar Adam Ferguson de plagiar um exemplo que, em verdade, ambos homens pegaram sem reconhecer da Encyclopédie francesa. Os comentários do Reverendo Carlyle, do qual Smith teve “um pouco de inveja em seu temperamento” parece um grande eufemismo, e somos informados por seu registro de obituário no Monthly Review de 1790 que “Smith viveu em apreensão tão constante de ser roubado de suas ideias que, se ele visse qualquer um de seus estudantes fazendo anotações de suas aulas, ele iria instantaneamente pará-lo e dizer, ‘eu odeio rabiscadores’”.[7] Enquanto há também evidência de que Smith permitia que os estudantes fizessem anotações, o ponto sobre seu temperamento desagradável e complexo de Colombo é bem feito.
O uso de Smith de um exemplo de uma pequena fábrica de alfinetes francesa em vez de uma britânica, maior, destaca um curioso fato de seu celebrado Riqueza das Nações: o renomado economista parecia ter nenhum pressentimento da Revolução Industrial acontecendo a todo o seu redor. Embora ele fosse amigo do Dr. John Roebuck, o dono das siderúrgicas Canon, cuja inauguração, em 1760, marcou o começo da Revolução Industrial na Escócia, Smith mostrou nenhuma indicação de que ele sabia de sua existência. Embora ele fosse ao menos um conhecido do grande inventor James Watt, Smith demonstrou nenhum conhecimento sequer das invenções pioneiras de Watt. Ele não fez menção em seu famoso livro ao boom de canais que havia começado no início da década de 1760, da própria existência da crescente indústria têxtil de algodão, ou de cerâmica, ou dos novos métodos de fazer cerveja. Não há referência ao enorme barateamento dos custos de viagem que as novas rodovias estavam trazendo à tona.
Em contraste, então, àqueles historiadores que louvam Smith por sua apreensão empírica das questões industriais e econômicas contemporâneas, Adam Smith foi desatento aos importantes eventos econômicos ao redor dele. Muito de sua análise estava errada, e muitos dos fatos que ele incluiu no Riqueza das Nações eram obsoletos e foram tirados de livros já datados de 30 anos.
4. Trabalho produtivo vs trabalho improdutivo
Uma das contribuições mais dúbias dos fisiocratas para o pensamento econômico foi a opinião de que só a agricultura era produtiva, que só a agricultura contribuía com um excedente, uma produit net, para a economia. Smith, fortemente influenciado pelos fisiocratas, reteve o infeliz conceito de trabalho “produtivo”, mas o expandiu da agricultura para bens materiais em geral. Para Smith, então, o trabalho sobre objetos materiais era “produtivo”; mas o trabalho sobre, digamos, serviços ao consumidor, sobre produção imaterial, era “improdutivo”.
O enviesamento de Smith a favor de objetos materiais equivalia a um enviesamento a favor do investimento em bens de capital, uma vez que um estoque de bens de capital, por definição, tem de ser incorporado em objetos materiais. Os bens de consumo, por outro lado, ou consistem em serviços imateriais, ou são usados — consumidos — no processo de consumo. O imprimatur de Smith sobre a produção material foi, portanto, uma forma indireta de defender o investimento numa acumulação de bens de capital contra o próprio objetivo da produção de bens de capital: o aumento do consumo. Ao discutir exportações e importações, Smith percebeu muito bem que não valia a pena acumular objetos intermediários, exceto os que acabassem por ser consumidos — que o único objetivo da produção é o consumo. Mas como o Professor Roger Garrison salientou, e como veremos mais adiante sobre a questão das leis da usura, a consciência presbiteriana de Adam Smith o levou a valorizar a despesa de trabalho per se, para seu próprio bem, e o levou a balbuciar sobre as preferências temporais do livre mercado entre consumo e poupança. Claramente, Smith queria muito mais investimento para a produção futura e menos consumo presente do que o mercado estava disposto a escolher. Uma das contradições dessa posição, evidentemente, é que a acumulação de mais bens de capital às custas do consumo presente acabará por resultar num padrão de vida mais elevado — a não ser que Smith esteja preparado para aconselhar uma mudança perpétua e rumo a mais e mais meios de produção para nunca consumir.
No Livro II do Riqueza das Nações, Smith opina que o trabalho sobre objetos materiais é produtivo, enquanto outro trabalho não o é porque não “se fixa ou se realiza em qualquer assunto em particular […] a qual perdura depois desse trabalho ter passado e para o qual uma quantidade igual de trabalho poderia depois ser comprado”. Incluídos no trabalho imaterial e, portanto, improdutivo estão os servos, “religiosos, advogados, médicos, eruditos de todos os tipos; tocadores, palhaços, músicos, cantores de óperas, dançarinos de óperas, etc.”. Para Smith, o ponto importante era que o “trabalho de todos” os trabalhadores improdutivos “perece no próprio instante da sua produção”. Ou, como ele disse, “como a declamação do ator, a arenga do orador, ou a melodia do músico, o trabalho de todos eles perece no próprio instante da sua produção”. Smith também escreve que o trabalho “produtivo”, “acrescenta o valor do sujeito ao qual é conferido”, enquanto que “o trabalho improdutivo não” — outra forma de colocar o fato de que o trabalho nos serviços não é incorporado em “qualquer sujeito em particular”. Além disso, o trabalho “produtivo” cria, alegadamente, um “excedente” de lucro na produção. O viés fisiocrático persistente de Adam Smith foi também demonstrado na sua afirmação absurda de que a agricultura é uma indústria muito mais produtiva do que a manufatura, porque na agricultura a natureza trabalha ao lado do homem e fornece renda extra aos senhorios, bem como lucro aos capitalistas. Para além de outras falácias, Smith aqui não se apercebeu de que a natureza sob a forma de terra colabora em todas as atividades do homem, e não apenas na agricultura, e que todas as atividades, incluindo a manufatura, irão, portanto, render aluguel de terra aos proprietários de terras.
Na sua crítica minuciosa e penetrante a Adam Smith, Edwin Cannan especulou que Smith, se pressionado, “provavelmente teria admitido […] que a declamação, arengues, e melodias, têm um valor”. Smith identificou de forma estranha a acumulação de bens de capital materiais com produção anual. Sobre esta última, como Cannan salienta, “a durabilidade das coisas produzidas pelo trabalho é, em realidade, sem significado. As declamações, arengues, e melodias são igualmente uma grande parte dos produtos anuais como champanhe ou botas”. No entanto, Smith, em seu Livro II, exclui toda a produção de serviços imateriais da produção anual, que é alegadamente produzido inteiramente pelos “trabalhadores produtivos”, que, por sua vez, “sustentam” não só a si mesmos, bem como todas as classes improdutivas de trabalho também.
Numa passagem espirituosa e encantadora, Cannan comenta em seguida:
“As pessoas sempre foram bastante aptas a imaginar que a classe que por acaso pensam ser a mais importante ‘sustenta’ todas as outras classes com as quais troca mercadorias. O proprietário de terras, por exemplo, considera, ou costumava considerar, os seus inquilinos como seus ‘dependentes’. Todos os consumidores caem facilmente na ideia de que estão fazendo um ato de caridade ao sustentar uma multidão de lojistas. Empregadores de todos os tipos em todo o lado acreditam que os empregados devem ser gratos pelos seus salários, enquanto os empregados mantêm firmemente que o empregador é sustentado inteiramente às suas custas. Assim, os fisiocratas alegaram que o lavrador sustentou a si mesmo e a todas as outras classes; e Adam Smith alegou que o lavrador, o fabricante, e o comerciante sustentaram a si mesmos e a todas as outras classes. Os fisiocratas não viram que o lavrador era sustentado pelas indústrias manufatureiras de sova, moagem e confeitaria, tanto quanto os moleiros ou os alfaiates são sustentados pelas indústrias agrícolas de lavoura e colheita. Adam Smith não viu que o fabricante e mercador são sustentados pelos serviços subalternos de cozinha e lavagem, tanto quanto os cozinheiros e lavadeiras são sustentados pelo fabricante de gorros e pela importação de chá.”[8]
Não são apenas os objetos duráveis, entretanto, nos quais Adam Smith estava interessado; eram bens de capital duráveis. Bens de consumo duráveis, como casas, eram novamente, para Smith, “improdutivos”, embora ele tenha admitido com rancor que uma casa “é sem dúvida extremamente útil” para a pessoa que nela vive. Mas não é “produtiva”, escreveu Smith, porque “para ser arrendada a um inquilino, uma vez que a casa em si não pode produzir nada, o inquilino tem sempre de pagar um aluguel a partir de alguma outra receita que ele obtenha quer do trabalho, quer do estoque [capital], quer da terra”. Mais uma vez, Cannan fornece uma riposta adequada: “Não ocorreu a Adam Smith refletir que se uma charrua é arrendada, uma vez que uma charrua em si não pode produzir nada, o inquilino deve sempre pagar o aluguel a partir de alguma outra receita”.[9]
O viés de Adam Smith contra o consumo e a favor da poupança e do investimento é resumido na análise do Professor Rima:
“Está claro no seu terceiro capítulo do Livro II, ‘Sobre a Acumulação de Capital ou do Trabalho produtivo e improdutivo’, que ele se preocupa com o efeito de usar a poupança para satisfazer o desejo de luxos por parte daqueles que são pródigos, em vez de a canalizar para usos que irão aumentar a oferta de capital fixo ou circulante. Com efeito, ele defende que a poupança deve ser utilizada de forma a criar um fluxo de renda e novos equipamentos, e que o não uso da poupança desta forma é um impedimento ao crescimento econômico.”[10]
Talvez — mas isso também significa que Smith não se contentou em respeitar as escolhas do livre mercado entre o crescimento, por um lado, e o consumo, por outro.
O Professor Edwin West, um moderno admirador de Smith que geralmente retrata o escocês como um defensor do laissez-faire, admite o viés de Smith: “No entanto, Smith, como um prudente administrador da propriedade de um aristocrata escocês, dificilmente poderia disfarçar uma forte preferência pessoal por tamanha frugalidade privada, e, portanto, por ‘trabalho produtivo’, no interesse da acumulação futura da nação”. Depois, ele prossegue admitindo implicitamente a percepção do Professor Garrison, que Smith nos exortou a uma preferência negativa ou, pelo menos, a uma preferência temporal zero. Citando a Teoria dos Sentimentos Morais de Smith, West observa que a virtude da frugalidade “comanda a estima” do alter ego de Smith, o sentido moral inato do homem, o “espectador imparcial”. Citando de Smith: “O espectador não sente as solicitações dos nossos apetites atuais. Para ele, o prazer que temos de desfrutar daqui a uma semana, ou um ano, é tão interessante como o que temos de desfrutar neste momento”.[11]
Podemos notar que a elevada recusa em descontar futuras satisfações em favor do presente, ou seja, a rejeição de uma preferência temporal positiva, é demasiado fácil de qualquer “espectador imparcial”. Mas o espectador imparcial é verdadeiramente humano, ou é simplesmente um espectro flutuante, que não participa da condição humana e, portanto, cujos insights possam ser bruscamente descartados?
O escárnio calvinístico de Smith pelo consumo pode ser visto em seu ataque sobre a dança enquanto “primitiva e rude”. Bem como podemos ver, em seu “paradoxo do valor”, Smith dispensou diamantes de uma maneira excessiva enquanto tendo “dificilmente qualquer valor no uso”. Ele também, puritanicamente, denunciou o luxo enquanto sendo biologicamente prejudicial, reduzindo a taxa de natalidade das classes mais altas: “O luxo no sexo belo, enquanto inflama talvez a paixão pelo prazer, parece sempre enfraquecer, e frequentemente destruir de uma vez só as potências de geração”.
Smith, além do mais, favoreceu os lucros baixos e criticou os lucros elevados, porque os lucros induzem os capitalistas ao consumo excessivo. E uma vez que os grandes capitalistas dão um exemplo influente para os outros na sociedade, é ainda mais importante para eles se manterem no caminho da parcimónia e da industriosidade. Assim:
“[…] para além de todos os efeitos negativos para o país em geral, que já foram mencionados como resultando necessariamente de uma elevada taxa de lucro; há um efeito fatal, talvez, mais do que todos esses juntos, mas que, se pudermos julgar pela experiência, está inseparavelmente ligado a ele. A elevada taxa de lucro parece destruir em todo o lado aquela parcimônia que, noutras circunstâncias, é natural para o carácter do mercador. Quando os lucros são elevados, essa virtude sóbria parece ser supérflua, e um luxo caro para melhor se adequar à afluência de sua situação”.
Devido à influência do exemplo das ordens superiores, Smith acrescenta:
“Se o seu empregador for atento e parcimonioso, é muito provável que o operário o seja também; mas se o mestre é dissoluto e desordenado, o servo que molda a sua obra de acordo com o padrão que o seu mestre lhe prescreve, irá moldar a sua vida de acordo com o exemplo que ele lhe dá. A acumulação é assim impedida em as mãos de todos aqueles que são naturalmente os mais dispostos a acumular. […] O capital do país, em vez de aumentar, esvai gradualmente. […]”[12]
Mas se Adam Smith era excessivamente a favor do investimento de capital enquanto contra o consumo, pelo menos, foi sólido em perceber que o investimento de capital era importante para o desenvolvimento econômico e que a poupança era a condição necessária e suficiente para tal investimento. A única forma de aumentar capital, então, é por poupança privada ou parcimônia. Assim, escreveu Smith, “Quem quer que poupe dinheiro, como a frase é, acrescenta proporcionalmente à massa geral de capital. […] O mundo só pode aumentar o seu capital de uma forma, por parcimônia”. A poupança, e não o trabalho, é a causa da acumulação de capital, e tal poupança rapidamente “põe em movimento uma quantidade adicional de indústria [trabalho]”. O poupador, então, gasta tão prontamente como o gastador, exceto que ele o faz para aumentar o capital e eventualmente beneficiar o consumo de todos; daí que “todo o homem frugal é um benfeitor público”. Tudo isso foi uma pálida sombra da obra cintilante e criativa da Turgot, com a sua ênfase no tempo, na estrutura de produção, e na preferência temporal. E ainda por cima, provavelmente, plagiou de Turgot. Mas, pelo menos, era sólido, e carimbou a sua impressão indelevelmente sobre a economia clássica. Como Schumpeter disse, ao discutir o que ele chama de “a teoria Turgot-Smith da poupança e do investimento”: “Turgot, então, deve ser considerado responsável pela primeira análise séria desses assuntos, de modo que A. Smith deve (pelo menos) ter inculcado isso na mente dos economistas”.[13]
Finalmente, à parte dos marxistas, até mesmo os abjetos smithianos de hoje rejeitam ou, pelo menos, descartam a distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo do Mestre. Caracteristicamente, porém, Smith não era sequer claro e consistente na sua falácia. A sua apresentação no Livro I da Riqueza das Nações contradiz o Livro II. No Livro I, ele afirma apropriadamente que “Todo o homem é rico ou pobre de acordo com o grau em que se pode dar ao luxo de usufruir dos necessários, conveniências, e diversões da vida humana”, uma frase quase diretamente roubada de Cantillon. Mas nesse caso, claro, não há diferença na produtividade entre objetos materiais e serviços imateriais, todos os quais contribuem para tais “necessidades, conveniências e diversões”, e, na verdade, a discussão de Smith sobre salários procede no Livro I como se não houvesse distinção entre trabalho produtivo e improdutivo.
5. A teoria do valor
A doutrina de Adam Smith sobre o valor foi um desastre absoluto e aprofunda o mistério de explicar Smith. Pois, neste caso, não apenas foi a teoria de Smith do valor uma degeneração de seu professor Hutcheson e, na verdade, de séculos de pensamento de desenvolvimento econômico, mas também era uma degeneração similar das próprias lições anteriores não publicadas de Smith. Em Hutcheson e durante séculos, a partir dos últimos escolásticos, o valor e o preço de um produto era determinado primeiramente por sua utilidade subjetiva na mente dos consumidores, e, em segundo lugar, pela escassez relativa ou abundância do bem que está sendo valorado. Quanto mais abundante for qualquer dado bem, menor é seu valor; quanto mais escasso, maior é seu valor. Tudo que essa tradição precisou para completar sua explanação foi o princípio marginal da década de 1870, um foco em uma dada unidade do bem, a unidade de fato escolhida ou não escolhida no mercado. Mas o resto da explanação estava no lugar.
Em suas lições, além do mais, Smith havia resolvido o paradoxo do valor organizadamente, da mesma forma que Hutcheson e outros economistas por séculos. Por que a água é tão útil e ainda assim tão barata, enquanto extravagâncias como diamantes são tão caras? A diferença, diz Smith em suas lições, era sua escassez relativa: “É apenas por conta da abundância de água que ela é tão barata a ponto de ser levada em conta no levantamento, e é por conta da escassez dos diamantes […] que eles são tão caros”. Ademais, com diferentes condições de oferta, o valor e o preço de um produto difeririam drasticamente. Assim, Smith aponta em suas palestras que um mercador rico perdido em um deserto da Arábia valorizaria a água muito altamente, e então seu preço seria muito alto. Similarmente, se a quantidade de diamantes pudesse “pela industriosidade […] ser multiplicada”, o preço dos diamantes no mercado iria rapidamente cair.
Mas no Riqueza das Nações, por alguma razão bizarra, tudo isso desaparece e se dissipa. De repente, apenas dez ou doze anos após as lições, Smith se encontra incapaz de resolver o paradoxo do valor. Em uma famosa passagem no Livro I, Capítulo IV do Riqueza. Smith de forma nítida e hermética separa e mantém separada a utilidade do valor e preço, e nunca os dois vão ao encontro:
“A palavra valor […] possui dois significados diferentes, e às vezes expressa a utilidade de algum objeto particular, e às vezes o poder de comprar outros bens que a posse desse objeto transmite. O primeiro pode ser chamado ‘valor em uso’: o outro, ‘valor em troca’. As coisas que possuem um maior valor em uso têm frequentemente pouco ou nenhum valor em troca; e ao contrário, aquelas que possuem um maior valor em troca possuem frequentemente pouco ou nenhum valor em uso. Nada é mais útil que água; mas ela não comprará quase coisa alguma; quase nada pode ser recebido em uma troca com ela. Um diamante, pelo contrário, possui quase nenhum valor em uso; mas uma grande quantia de outros bens pode frequentemente ser obtida em uma troca por ele.”
E é isto. Nenhuma menção à solução do paradoxo do valor enfatizando a escassez relativa. De fato, “escassez” — esse conceito tão fundamental e crucial para a teoria econômica — praticamente não desempenha papel algum no Riqueza das Nações. E com a escassez como solução para o paradoxo do valor, a utilidade subjetiva praticamente sai da economia, bem como do consumo e da demanda do consumidor. A utilidade não pode mais explicar o valor e o preço, e os dois conceitos separados reaparecem nas próximas gerações à medida que esquerdistas e socialistas tagarelam alegremente sobre a diferença crucial entre “produção para lucro” e “produção para uso”, os herdeiros da ênfase Smithiana sobre o suposto abismo entre “valor em uso” e “valor em troca”.[14]
E uma vez que a ciência econômica renasceu após Adam Smith, uma vez que todos os economistas anteriores foram jogados ao limbo pelas formas dominantes de pensamento, a tradição inteira de utilidade subjetiva — escassez como determinante do valor e do preço, uma tradição dominante desde Aristóteles e os escolásticos medievais e espanhóis, uma tradição que continuou por escritores na França e Itália do século XVIII — essa grande tradição é abandonada do Orwelliano buraco da memória inteiro pela fatídica decisão de Adam Smith de descartar até mesmo seus próprios conceitos anteriores. Embora Samuel Bailey quase a restaurou, a grande tradição não foi completamente ressuscitada até sua independente redescoberta pelos Austríacos e outros marginalistas na década de 1870. Adam Smith tem muito a responder no tribunal da história.
Paul Douglas colocou isso eloquentemente em um volume comemorativo para o sesquicentenário de Adam Smith: “Smith ajudou a desviar os escritores da Escola Inglesa Clássica para um beco-sem-saída do qual eles não emergiram, no que diz respeito à sua teoria do valor, por quase um século […]”.[15] E nós podemos entender a angústia do Professor Emil Kauder quando, após lamentar o afundamento no esquecimento dos grandes economistas franceses e italianos do século XVIII, ele escreveu:
“No entanto, foi a tragédia desses escritores que escreveram em vão, eles logo foram esquecidos. Nenhum estudioso apareceu para transformar seus pensamentos na nova ciência da política econômica. Ao invés disso, o pai da nossa ciência econômica escreveu que água possui uma grande utilidade e um pequeno valor. Com essas poucas palavras Adam Smith havia jogado fora um pensamento de 2000 anos. A chance de iniciar em 1776 ao invés de 1870 com um conhecimento mais correto dos princípios do valor fora perdida.”[16]
Como pôde Smith ter cometido um erro tão colossal? Na verdade, ele se afastou de sua ênfase quase exclusiva de explicar o preço de mercado em suas lições para outro conceito que, para ele, assumiu uma importância primordial: o “preço natural”, ou o que pode ser chamado de preço “normal de longo-prazo”. Esse conceito, similar ao “valor intrínseco” de Cantillon ou o “valor fundamental” de Hutcheson, apareceu em suas lições, mas ocupou um papel menor do que na obra desses outros economistas. Mas, de repente, o “preço natural” e seus supostos determinantes agora tornaram-se mais importantes, mais verdadeiramente “reais” que o preço de mercado do mundo real que tem sido sempre o foco primordial dos economistas. A teoria de valor e preço mudou, por conta da infeliz e drástica mudança de Adam Smith de foco no Riqueza das Nações, de preços no mundo real para um preço místico não-existente na terra do nunca de “equilíbrio” de logo-prazo.
Mas esse suposto preço natural não é mais real que ou igualmente real ao atual preço de mercado. Na verdade, não é real de forma alguma. Apenas o preço de mercado é o preço real. Na melhor das hipóteses, o preço de longo-prazo é útil para fornecer uma pista vital à direção das mudanças de preço e produção no mundo real. Mas o preço de longo-prazo nunca é alcançado, e nunca pode ser alcançado, pois continua mudando conforme as forças subjacentes de oferta e de demanda continuamente se alteram. O preço normal de longo-prazo é importante, mas apenas para explicar as tendências direcionais e a estrutura arquitetônica subjacente desta economia, e também para a análise de como a incerteza afeta a renda e a atividade econômica do mundo real. A praticamente exclusiva absorção clássica e neoclássica no “longo-prazo” irreal, em detrimento e em negligência de analisar os preços e atividade econômica do mundo real, desviou o pensamento econômico para um longo, falacioso e até mesmo trágico desvio, do qual ela ainda não se recuperou totalmente.
Outra terrível perda sofrida pelo pensamento econômico por Adam Smith foi seu abandono do conceito do empreendedor, tão importante para as contribuições de Cantillon e Turgot. O empreendedor desapareceu do pensamento britânico clássico, e não foi ressuscitado até alguns dos pensadores continentais e, especialmente, até os austríacos. Mas o ponto é que não há espaço para o empreendedor, se o foco deve ser no imutável e certeiro mundo do equilíbrio de longo-prazo.
Antes do Riqueza das Nações, os economistas tinham sempre se concentrado no preço de mercado, e tinham visto prontamente que ela era determinada pelas forças de oferta e de demanda, e, portanto, da utilidade e da escassez. Na verdade, enquanto David Hume não sabia nada sobre utilidade e falou do trabalho como a fonte do valor, ele foi muito mais sólido na teoria do valor que seu amigo próximo, Adam Smith. Quando recebeu uma cópia do recém-publicado Riqueza das Nações, Hume, em seu leito de morte, foi capaz de escrever para seu amigo em uma importante crítica: “Eu não posso pensar que o aluguel das fazendas faz qualquer parte do preço da produção, mas que o preço é determinado completamente pela quantidade e pela demanda”. Em resumo, comparado à Smith, Hume estava na tradição continental e era quase um proto-austríaco.
Mas se Smith enfatizou o longo prazo, o que determinaria o conceito não-real de um preço “natural” ou “normal de longo prazo”? Seguindo dicas infelizes de seus predecessores do século XVIII, Smith concluiu que o preço natural é igual aos custos de produção e determinado por eles, um conceito que tinha ocupado apenas um lugar subordinado e incerto no pensamento econômico desde os escolásticos medievais.
Não que o preço normal de longo-prazo, ou o que nós agora chamamos de “preço de equilíbrio”, seja sem sentido. O preço de equilíbrio é a tendência de longo-prazo do preço de mercado. Como Adam Smith de fato disse, se o preço do mercado é maior que o equilíbrio de longo-prazo, então ganhos extras serão feitos e recursos irão fluir para essa indústria particular, até o preço de mercado cair para atingir o equilíbrio. Por outro lado, se o preço de mercado é menor que o de equilíbrio, as perdas resultantes irão dirigir os recursos para fora da indústria até o preço subir para atingir o equilíbrio. O conceito de equilíbrio é altamente útil em apontar a direção na qual o mercado se moverá. Mas o equilíbrio apenas será alcançado na realidade se os “dados” do mercado estivessem magicamente congelados: isso é, se os valores, recursos, e conhecimento tecnológico no mercado continuassem a ser precisamente os mesmos. Neste caso, o equilíbrio seria atingido depois de uma certa quantia de tempo. Mas, uma vez que os dados estão sempre mudando no mundo real, o equilíbrio nunca é atingido.
“Custo de produção” é definido por Adam Smith como as despesas totais pagas para os fatores de produção, isto é, salários, lucros e aluguéis. Mais especificamente, no que se tornou a famosa e clássica tríade, Smith raciocinou que havia três tipos de fatores de produção: trabalho, terra e capital. Trabalho recebe salários, terra ganha aluguel e o capital ganha “lucros” — na verdade taxas de longo prazo ao invés de taxas de curto prazo, ou o que pode ser chamada de taxa “natural” de interesses. No equilíbrio, que Smith pareceu ter acreditado ser mais real, e, portanto, muito mais importante que o preço atual de mercado, a taxa de salário é igual à taxa “média” ou “natural”: e os outros retornos similarmente iguais à renda “natural” e à média de taxa de lucro de longo-prazo.
Há uma falácia marcante em sua análise de custo que Adam Smith compartilhou, embora de uma forma agravada, com escritores anteriores. Considerando que o preço de mercado é mutável e efêmero, “custo” é algo determinado objetiva e exogenamente, ou seja, de fora do mundo da atividade econômica de mercado. Mas o custo não é intrínseco ou dado; pelo contrário, ele mesmo é determinado, como os austríacos apontaram mais tarde, pelo valor abstido no uso de recursos na produção. Esse valor, por sua vez, é determinado pelas valorações subjetivas que os consumidores colocam naqueles produtos. Em resumo, ao invés do custo em algum sentido “fundamental” determinando o valor, o custo em qualquer e todo tempo é ele mesmo determinado pelo valor subjetivo, ou valor esperado, que os consumidores colocam nos vários produtos. Então, mesmo que nós pudéssemos dizer que os preços irão igualar-se aos custos de produção em um equilíbrio de longo-prazo, não há razão para assumir que tal custo determina o preço de longo-prazo; pelo contrário, a valoração esperada do consumidor determina qual o valor dos custos que estarão no mercado. O custo é estritamente dependente da utilidade, em curtos e longos prazos, e nunca o contrário.
Outro grave problema com toda a teoria de custo-de-produção é que ela necessariamente abandona qualquer tentativa de explicar o preço dos bens e serviços que não possuem custo por conta de não terem sido produzidos, bens que estão simplesmente lá, ou foram produzidos no passado, mas são únicos e irreproduzíveis, como obras de arte, joias, descobertas arqueológicas, etc. Similarmente, serviços imateriais do consumidor tais como os preços de entretenimento, consertos, médicos, serventes domésticos, etc., dificilmente podem ser contabilizados pelos custos incorporados em um produto. Em todos esses casos, apenas a demanda subjetiva pode explicar a precificação ou a flutuação nesses preços.
Mas essa análise dificilmente esgota os pecados de Smith na discussão dos conceitos centrais na economia — a teoria do valor. Ao lado da análise de custo de produção padrão como igualando salários + rendas + lucros, outra teoria nova e muito mais bizarra foi apresentada. Nessa visão alternativa, o custo de produção relevante que determina o preço de equilíbrio é simplesmente a quantidade de trabalho empregada em sua produção. Foi, de fato, Adam Smith quem foi quase o único responsável pela injeção na economia da teoria do valor-trabalho.[17] E, portanto, foi Smith quem pode plausivelmente ser considerado responsável pelo surgimento e pelas consequências do marxismo.
Ao lado e não integrada com a teoria de custo-de-produção de Smith do preço natural estava sua nova teoria da quantidade-de-dor-de-trabalho. Assim:
“O real preço de toda coisa, o que toda coisa realmente custa para o homem que deseja adquiri-la, é o trabalho e dificuldade de adquiri-la. Cada coisa realmente vale para o homem que a adquiriu, e para quem deseja dispor ou trocá-la por alguma outra coisa, é o trabalho e dificuldade que pode salvar para si mesmo, e que pode impor para outras pessoas. O que é comprado com dinheiro ou outros bens é comprado por trabalho, tanto quanto adquirimos pelo trabalho de nosso próprio corpo […] Eles contém o valor de uma certa quantia de trabalho a qual nós trocamos pelo que é suposto no momento a conter o valor em uma igual quantia.”
Assim, trocas de bens no mercado por quantidades iguais de horas de trabalho as quais eles “contém”, ao menos em seus preços “reais”, de longo-prazo.
Imediatamente, Smith reconheceu que ele se deparou com uma profunda dificuldade. Se a quantidade de trabalho é a fonte de mensuração para todo valor, como pode a mera quantidade de horas de trabalho ser igualada à quantidade de dores de trabalho ou dificuldades de trabalho? Claramente elas não são automaticamente iguais. Como o próprio Smith admitiu, em adição ao tempo de trabalho, “os diferentes graus de dificuldades sofridas ou de engenhosidade exercida devem também ser levados em conta”. Ainda que tal equalização “não seja fácil”, pois realmente “pode haver mais trabalho em uma hora intensa do que em duas horas de trabalho fácil: ou na aplicação de uma hora em um ofício que custou dez anos de trabalho para aprender, do que em um mês de trabalho em um emprego óbvio e ordinário”.
Como ocorre essa equalização crucial? De acordo com Smith, “pelas pechinchas e barganhas do mercado” trazendo-os para “uma rudimentar espécie de igualdade”. No entanto, aqui, Smith caiu na armadilha de ferro do raciocínio circular. Pois, como Ricardo e Marx após ele, ele atentou-se a explicar os preços e valores pela quantidade de trabalho, e então apelou para o estabelecimento de valores no mercado para determinar qual é a “quantidade de trabalho”, ponderando-a por graus de diferença na dificuldade do trabalho e labuta.[18]
Smith tentou escapar de tal circularidade por sua suposição igualitária — ainda mantida na economia ortodoxa neoclássica — que todos os trabalhadores são iguais, e que, assim, os salários, ao menos no longo prazo natural, serão iguais, ou ainda serão iguais por quantidades iguais de dificuldade de trabalho entre todos os trabalhadores. De acordo com Smith, a competição no mercado tenderá a equalizar os salários por unidade de sacrifício ou labuta. Como Douglas apontou, “Smith acreditou que tinha estabelecido o fato que unidades iguais de trabalho no senso de desutilidade foram em todo momento compensadas por quantias iguais de salários em dinheiro”.
Assim, Smith opinou igualitariamente à moda do século XVIII que “a diferença entre as mais diferentes personalidades, entre um filósofo e um porteiro de rua comum, parece surgir, não tanto da natureza, mas sim do hábito, costume e educação”. Não há diferenças únicas e irredutíveis entre as pessoas; nessa visão reducionista agora novamente ativa no século XX, a mente de um ser humano é meramente uma tábula rasa a qual os eventos externos preenchem o conteúdo. Portanto, de acordo com Smith, a mão-de-obra qualificada ganha mais do que a desqualificada meramente para compensar os anos de aprendizado e treinamento quando os ganhos eram muito mais baixos: então aquelas suas horas de labuta e dificuldade e, portanto, os salários, seriam igualados ao longo da vida. Os salários em ocupações que são ativas apenas em uma parte do ano deveriam ser maiores para compensar por menos dias de trabalho — de modo que a renda anual seria igual. Outras coisas sendo iguais, além disso, trabalhadores em ocupações desagradáveis ou perigosas receberiam salários mais altos para compensá-los pelo maior sacrifício de trabalho, enquanto ocupações de prestígio receberiam menores salários uma vez que seu sacrifício ou desprazer é menor.
Embora todas essas distinções façam algum sentido e devam ser levadas em conta em qualquer teoria dos salários, elas se fundam em uma suposição a priori que a mente de toda pessoa é uma tábula rasa e uniforme. Depois de entrarmos na suposição realista das diferenças inatas de talento, o nivelamento igualitário de taxas de salário para equalizar unidades de sacrifício (assumindo, é claro, que essas podem ser mensuradas) caem por terra.
Dessa maneira, Smith entrou em consideráveis dificuldades na explicação do porquê ocupações prestigiosas, longe de ganhar baixos salários no mundo real, na verdade ganham salários mais altos que a média. Quando discutia a renda alta do médico ou do advogado, por exemplo, ele lamentavelmente caiu na implicação que elas eram posições de grande confiança, e, portanto, presumivelmente enfrentam responsabilidades onerosas e dolorosas para seus clientes e foram compensadas com isso. Sua outra tentativa de racionalizar os altos salários dos advogados foi fazer as suposições duvidosas que a renda média em tais ocupações era menor que em outras, uma vez que uma enxurrada de pessoas é atraída pelos prêmios brilhantes das rendas muito altas acumuladas pelas poucas pessoas importantes na profissão.
Adam Smith, além disso, turvou ainda mais as águas ao apresentar, ao lado da teoria do valor do custo-trabalho, a muito diferente teoria de “ordem-trabalho”. A teoria de ordem-trabalho afirma que o valor de um bem é determinado não pela quantidade de unidades de trabalho contidas nele (a teoria do valor do trabalho), mas pela quantidade de trabalho que pode ser comprada com o bem. Assim: “O valor de qualquer bem para a pessoa que o possui […] é igual à quantidade de trabalho que ele permite com que ela compre ou ordene”.
Se, no mundo real, o preço de toda mercadoria é exatamente igualado à quantidade de unidades de trabalho “contidas” em sua produção, então as duas quantidades — o custo de trabalho e a ordem de trabalho de um bem — seriam, na verdade, idênticas. Mas, se as alugueis e lucros (i.e., interesses) estão incluídas no custo, então o preço, ou o poder de compra relativo de cada bem não seria igual ao custo de trabalho. O custo de trabalho e a ordem de trabalho para cada bem seria diferente.
Em seu jeito tipicamente cego, Adam Smith não percebeu a contradição entre essas duas teorias do trabalho em um mundo onde alugueis e lucros existem (e na verdade ele não pareceu ver a diferença entre o trabalho e as teorias de custo-de-produção de valor). Ricardo veria o problema e o combateria em vão, enquanto Marx tentou resolvê-lo com sua teoria da “mais-valia” indo para os não-trabalhadores na forma de alugueis e lucros, uma teoria que fundou-se na tentativa de Marx de reconciliar duas proposições contraditórias: a teoria do valor do custo-trabalho (ou quantidade de trabalho) e a reconhecida tendência para uma equalização das taxas de lucro no mercado. Pois, como nós veremos mais adiante na abordagem de Marx (Capítulos 9-13 no Volume II), a “mais-valia” dos lucros do trabalho devem ser maiores em indústrias intensivas em trabalho do que em indústrias intensivas em capital, e ainda assim os lucros tendem a se igualar em todos os lugares. Paul Douglas propriamente e com uma rara visão notou que Marx era, nesse assunto, simplesmente um Smithiano-Ricardiano tentando resolver a teoria de seus mestres:
“Marx foi repreendido por duas gerações de economistas ortodoxos por sua teoria do valor. A mais caridosa das críticas o chamou de tolo e a mais severa o chamou um patife pelo que consideram contradições transparentes em sua teoria. Curiosamente, esses mesmos críticos geralmente elogiam grandemente Ricardo e Adam Smith. No entanto, os fatos sólidos são que Marx viu mais claramente que qualquer economista inglês as diferenças entre as teorias de custo-de-trabalho e da demanda de trabalho e tentou mais seriamente que qualquer outro resolver as contradições nas quais a adoção de uma teoria do trabalho-custo inevitavelmente cai. Ele falhou, é claro: mas, com ele, Ricardo e Smith falharam também […] A falha foi uma falha não de um homem, mas de uma filosofia do valor, e as bases das contradições supremas, que se fazem manifestas no terceiro volume do Das Kapital, estão fundadas no primeiro volume do Riqueza das Nações.”[19]
Adam Smith também deu bases à emergência futura do socialismo por sua visão repetidamente declarada que alugueis e lucros são deduções da produção do trabalho. No mundo primitivo, ele opinou, “toda a produção do trabalho pertence ao trabalhador”. Mas logo que o “estoque” (capital) é acumulado, alguns irão empregar pessoas industriosas para fazer lucro com a venda de materiais. Smith indica que o capitalista (o “empreendedor”) colhe lucros em retorno pelo risco, e pelos interesses para o sustento dos trabalhadores até a venda do produto — para que o capitalista ganhe lucro para funções importantes. Ele adiciona, contudo, que “nesse estado de coisas a produção inteira de trabalho não pertence sempre ao trabalhador. Ele deve, na maioria dos casos, compartilhá-la com o dono do estoque que o empregou”. Pelo uso de tais frases, e não deixando claro o motivo pelo qual os trabalhadores podem estar felizes em pagar os capitalistas por seus serviços, Smith deixou a porta aberta para posteriores socialistas que iriam clamar por instituições de reestruturação para permitir que os trabalhadores obtenham seu “produto inteiro”. Essas bases para o socialismo foram agravadas pelo fato que Smith, diferente da posterior Escola Austríaca, não demonstrou logicamente e passo por passo como pessoas industriosas e parcimoniosas acumulam capital com suas poupanças. Ele estava contente simplesmente por começar com a alegada realidade de uma minoria de ricos capitalistas na sociedade, uma realidade a qual mais tarde os socialistas, é claro, não estavam prontos para endossar.
Smith foi ainda menos gentil com o papel dos proprietários de terra, onde ele não reconheceu função econômica para o que quer que eles pudessem fazer. Em passagens pungentes, ele escreveu que “Tão logo a terra de qualquer país tenha se tornado inteiramente propriedade privada, os proprietários de terra gostarão de colher onde eles nunca plantaram e de demandar aluguel até mesmo por produtos naturais da terra”. E novamente: “Tão logo a terra se torne propriedade privada, o proprietário exigirá um compartilhamento de quase toda a produção a qual o trabalhador pode aumentar ou coletar dela”. Não há indício de reconhecimento aqui que o proprietário cumpre a função vital de alocar a terra para o seu uso mais produtivo. Ao invés disso, essas passagens se tornaram presa fácil para os socialistas e para Henry georgista nos clamores pela nacionalização da terra.
Como nós veremos logo abaixo, a teoria do valor-trabalho de Smith inspirou um número de socialistas ingleses antes de Marx, geralmente chamados socialistas “Ricardianos” mas na verdade “smithianos”, que decidiram que se o trabalho produziu o produto inteiro, e a aluguel e lucro são deduções da produção de trabalho, então o valor inteiro do produto deveria corretamente ir para seus criadores, os trabalhadores. Douglas concluiu com razão que:
“É então das páginas de tendência Whig do Riqueza das Nações que surgem as doutrinas dos socialistas ingleses, assim como a exposição teórica de Karl Marx. A história do pensamento social fornece muitos casos em que as teorias elaboradas por outro escritor foram utilizadas por outros para justificar doutrinas sociais antagônicas àquelas as quais o promulgador da teoria deu adesão. Mas se o dom da previsão tivesse sido concedido a esses homens, poucos teriam ficado mais assustados que Adam Smith ao ver ele mesmo como o fundador teórico das doutrinas do socialismo do século XIX.”[20]
Escritores modernos tentaram salvar a inviável teoria do valor-trabalho de Adam Smith dizendo que, em certo sentido, ele não quis realmente dizer o que estava dizendo, mas, ao invés disso, estava procurando um padrão invariável pelo qual pudesse mensurar o valor e riqueza ao longo do tempo. Mas, na medida em que essa busca fosse verdadeira, Smith simplesmente adicionou outra falácia em cima de todas as outras. Pois, dado que o valor é subjetivo para cada indivíduo, não há medida ou padrão invariante de valor, e qualquer tentativa de descobri-la pode, no máximo, distorcer o empreendimento da teoria econômica e mandá-la perseguir uma impossível quimera. Na pior das hipóteses, toda a estrutura da teoria econômica é permeada com falácias e erros. O Professor Robertson e Taylor, de fato, chegam ao ponto de chamar o fracasso admitido de Adam Smith de grande e nobre fracasso, e afirmam ser muito mais inspirador em sua falha essencial do que se Adam Smith tivesse continuado na tradição do valor subjetivo de seus ancestrais. Em uma passagem bizarra, Robertson e Taylor reconhecem a correção da crítica angustiada do Professor Kauder a Smith como uma teoria econômica que conduz a um beco sem saída de um século. Mas eles ainda elogiam Smith por seu próprio fracasso:
“Se uma verdadeira explicação é dada aqui das razões de Adam Smith passar de uma teoria do valor da ‘escassez e utilidade’ para uma teoria do valor do trabalho, ele não fez, de fato, mais pelo progresso da economia por uma grande falha em uma impossível, mas fundamental, tarefa, do que ele teria feito se ele tivesse se contentado em adicionar um sétimo degrau ou até fortificar alguns dos degraus existentes na vacilante escada da teoria do valor subjetivo como, de acordo com Dr. Kauder, apareceu em 1776?”[21]
É desesperançosamente banal contrariar que a verdade é sempre superior ao erro fundamental no avanço de uma disciplina científica?
Há uma mais fundamental e convincente razão para Adam Smith, após séculos de desenvolvimento sólido de análise econômica, ter abandonado a utilidade e escassez, e ter voltado-se para a errônea e perniciosa teoria do valor-trabalho. Esse é o mesmo motivo pelo qual Smith adotou a doutrina falaciosa do trabalho produtivo versus improdutivo. É a explicação enfatizada por Emil Kauder, e parcialmente por Paul Douglas: O calvinismo severo de Adam Smith. É o Calvinismo que despreza o consumo e o prazer, e enfatiza a importância do trabalho praticamente por si só. É o Calvinista severo que faz a afirmação que os diamantes possuem “pouco valor de uso”. E talvez é também o Calvinista severo que fez escárnio, nas palavras de Robertson e Taylor, “valores de mercado que dependiam de caprichos e modas monetárias no mercado” do mundo real, e voltou sua atenção, ao invés disso, para o preço de longo-prazo no qual tais frivolidades desempenhavam nenhum papel, e as sombrias verdades eternas do trabalho árduo aparentemente desempenhavam o papel econômico decisivo. Claramente essa é uma visão muito mais realista de Adam Smith do que a visão romântica Quixotesca de Smith em busca de um impossível sonho de uma medida invariável de valor. E embora o mais famoso seguidor de Smith, David Ricardo, não fosse um Calvinista, seu principal discípulo imediato, Dugald Stewart, era um Presbiteriano Escocês, e os líderes ricardianos — John R. McCulloch e James Mill — eram ambos escoceses e educados na Universidade de Dugald Stewart em Edimburgo. A conexão calvinista continuou a dominar a economia britânica — e, portanto, a economia clássica.
6. A teoria da distribuição
A teoria da distribuição de Adam Smith foi totalmente tão desastrosa como a sua teoria de valor. Embora estivesse consciente das funções desempenhadas pelos capitalistas, a sua única empreitada para explicar a taxa de lucro a longo prazo foi a de opinar que quanto maior a “quantidade de estoque”, menor a taxa de lucro. Ele chegou a essa conclusão altamente duvidosa da sua observação perfeitamente válida de que os capitalistas tendem a sair de indústrias de baixo lucro e a entrar em indústrias de alto lucro, os seus concorrentes que tendendo a equalizar as taxas de lucro em toda a economia. Mas, mais produção, baixando o preço de venda e aumentando os custos em uma determinada indústria, é dificilmente a mesma reivindicação causal de que mais capital em toda economia baixa as taxas de lucro. De fato, a taxa de interesse, ou taxa de lucro de longo prazo, está relacionado, não com a quantidade de capital acumulado, mas com a quantidade de poupança anual, e, além disso, a queda das taxas de lucro não é causada pelo aumento das poupanças. Pelo contrário, como os austríacos salientam, ambos são resultados de taxas mais baixas de preferência temporal na sociedade. É perfeitamente possível que uma economia altamente capitalizada experimente taxas crescentes de preferência temporal, o que, por sua vez, acarretaria taxas de juros mais elevadas.
Smith viu corretamente que aumentar o capital significa um aumento da demanda por trabalho e, portanto, salários mais elevados, de modo que uma sociedade em avanço significa necessariamente um aumento secular das taxas salariais. Infelizmente, a visão mecanicista de Smith da taxa de lucro como sendo inversamente proporcional à quantidade total de capital o levou a acreditar que os salários e os lucros estão sempre se movendo inversamente contra o outro — um esboço de uma suposta inerente luta de classes que Ricardo faria muito para agravar.
Ademais, se a oferta de trabalho aumentar para absorver o aumento da demanda, as taxas salariais irão então diminuir. Nessa altura, Adam Smith forneceu o gancho malthusiano, pois, como veremos mais adiante, o Rev. Malthus era um seguidor dedicado de Adam Smith. Smith, de fato, estava tocando num tema comum no século XVIII: que a população de uma espécie tende a pressionar os meios de sua subsistência. Como Smith o disse: “Cada espécie de animais multiplica-se naturalmente em proporção aos meios da sua subsistência”. De modo que Smith viu a tendência secular da economia como o capital aumentando, os salários aumentando e o aumento dos salários provocando um aumento da população:
“A recompensa liberal do trabalho, ao permitir-lhes proporcionar melhor aos seus filhos, e, consequentemente, para aumentar o seu número, tende naturalmente a alargar e a estender esses limites [os meios de subsistência] […] Se a demanda [por trabalho] aumenta continuamente, a recompensa do trabalho deve necessariamente encorajar de tal forma o casamento e as multiplicações de trabalhadores que lhes possam permitir fornecer aumento contínuo da demanda por parte de uma população em constante aumento.”
Desse modo, os salários tendem a se estabelecer no nível mínimo de subsistência para a população existente. Uma queda nos salários abaixo do nível de subsistência reduzirá forçosamente a população e, consequentemente, a oferta de trabalho, aumentando os salários para o nível de subsistência; e se os salários aumentarem acima do nível de subsistência, a “multiplicação excessiva” de trabalhadores “em breve a reduziria para essa taxa necessária”.
Um dos muitos problemas dessa abordagem “malthusiana” é que ela assume que os seres humanos não serão capazes de agir por si mesmos para limitar o crescimento populacional, a fim de preservar um padrão de vida recentemente alcançado.[22]
Para além da visão Malthusiana errada de Smith de que as taxas salariais a longo prazo estão nos meios de subsistência, ele introduziu também na economia a infeliz falácia de que os salários, pelo menos a curto prazo, são determinados pelo relativo “poder de negociação” de empregadores e trabalhadores. Foi um simples salto desde essa posição até ao ponto de vista de que os empregadores têm maior poder de negociação do que os trabalhadores, preparando, assim, o terreno para posteriores propagandistas pró-sindicatos que afirmam erroneamente que os sindicatos podem aumentar as taxas salariais globais em toda a economia.
Em sua visão sobre o aluguel, Smith tinha, caracteristicamente, muitos pontos de vistas não integrados que corriam lado a lado. Por um lado, como já vimos, o aluguel é exigido pelos proprietários de terra que “colhem onde nunca semearam”. Por que é que conseguem cobrar tal aluguel? Porque, agora que o terreno se tornou propriedade privada, o trabalhador “deve pagar a licença” para cultivar a terra e “deve dar ao proprietário de terra uma parte do que o seu trabalho recolhe ou produz”. Smith conclui que “os alugueis de terra, portanto. […] são naturalmente um preço de monopólio”, uma vez que considera a propriedade privada em terrenos da mesma categoria que a monopolização. Certamente, socialistas e Henry georgista, que clamam pela nacionalização da terra encontraram aqui a sua inspiração fundamental. Smith também sensatamente salienta que o aluguel variará de acordo com a fertilidade superior e a localização da terra. Além disso, como já indicamos, atribui os alugueis aos “poderes de natureza”, que supostamente ganham um retorno extra na agricultura, em comparação com outras ocupações.
Smith também é inconsistente quanto à inclusão do aluguel de terra no custo. Em vários pontos ele inclui o aluguel do terreno no custo e, portanto, como um alegado determinante do preço a longo prazo. Por outro lado, ele também afirma que elevados ou baixos alugueis são o efeito de preços elevados ou baixos do produto e que, uma vez que a oferta de terras é fixa, a incidência total de impostos sobre o aluguel recairá mais sobre terra em vez de ser repassado. Todas essas inconsistências podem ser esclarecidas se tivermos em conta todos custos determinados pelos esperado preço de venda futuro, e custos individuais como sendo a oportunidade abstida de contribuir para uma esperada produtiva receita noutro lugar. Mais especificamente, enquanto os custos não determinam diretamente o preço, limitam a oferta e, nesse sentido, toda despesa, seja em alugueis ou em todo o mais, é definitivamente parte do custo.
Mas, como vimos, o maior dos muitos defeitos da teoria de Smith foi a sua totalmente descartada análise brilhante do empreendedor feita por Cantillon e por Turgot. Era como se estes grandes franceses do século XVIII nunca tivessem escrito. A análise de Smith baseava-se unicamente no capitalista que investia “estoque” e no seu trabalho de gestão e inspeção; a própria ideia do empreendedor como tomador de risco e de previsão foi jogada fora e, mais uma vez, a economia clássica foi lançada para outro longo beco sem saída. Se, evidentemente, persistir-se em fixar a própria visão na terra do nunca do equilíbrio de longo prazo, onde todos os lucros são baixos e iguais e não há perdas, não vale nem a pena falar de empreendedorismo.
As implicações políticas dessa omissão também não se perderam nos socialistas do século XIX. Pois, se não há um papel para os lucros empreendedoriais numa economia de mercado, então quaisquer lucros existentes devem ser “exploradores”, muito mais do que a taxa baixa e uniforme existente em equilíbrio de longo prazo
O perspicaz historiador escocês da economia, Alexander Gray, escreveu sobre A teoria dos salários de Smith, que ele apresentou várias teorias “não totalmente coerentes entre si, [que] se encontram juntas numa justaposição algo desconfortável”. Gray acrescentou então sorrateiramente que se trata de um “tributo à grandeza de Smith que todas as escolas de pensamento podem traçar a ele a sua origem e inspiração”. Outras palavras para uma tal incipiente confusão, para o que Gray referiu aptamente como um “vasto caos”, vem mais prontamente à mente.
7. A teoria monetária
Nós temos visto que a famosa elucidação de David Hume do mecanismo de fluxo preço-espécie nas relações monetárias internacionais, embora atrativamente escrita, ela era ela mesma uma deterioração da pioneira e sofisticada análise de Richard Cantillon. Ela era, entretanto, melhor que nada. Mesmo assim, como Jacob Viner colocou, “Um dos mistérios da história do pensamento econômico” é que Adam Smith, embora um amigo próximo de Hume por muitos anos, incluiu nenhuma das análises humeanas em seu Riqueza das Nações.[23] Em vez isso, Smith propôs a primitiva e errônea visão que todo país terá o tanto de espécie o quanto alegadamente necessitar para circular as negociações, o excedente transbordando “canais e circulação […] para buscar aquele emprego lucrativo o qual não pode encontrar domesticamente”. Foi-se qualquer referência ao nexo causal entre a quantidade de dinheiro, níveis de preço, e balanças de negociações. O mistério se aprofunda quando nós percebemos que A Riqueza das Nações é uma grave deterioração até das próprias lições de Smith durante uma dúzia de anos antes. Pois, nessas aulas, não publicadas na própria época de Smith, vemos uma clara apresentação e sumário da análise humeana.
Assim, em suas lições, Smith escreveu que Hume prova
“que sempre quando o dinheiro é acumulado além da proporção das mercadorias em qualquer país, o preço dos bens irá necessariamente aumentar; que esse país será desvalorizado no mercado estrangeiro, e, consequentemente, o dinheiro precisa partir para outras nações; mas, no contrário, sempre que a quantidade de dinheiro cair para abaixo da proporção dos bens, o preço dos bens diminui, o país desvaloriza outros nos mercados estrangeiros, e, consequentemente, o dinheiro retorna em grande quantidade. Assim, o dinheiro e os bens irão se manter perto de um certo nível em todo país.”[24]
Mesmo os admiradores modernos de Smith se desesperam de sua confusa e dispersa, bem como desesperançosamente inadequada, teoria monetária e teoria de relações monetárias internacionais.[25] O professor Petrella tenta explicar a rejeição tardia de Smith do mecanismo fluxo de preço-espécie de Hume como uma reação a Hume cedendo espaço para os alegados benefícios de emprego dos mercantilísticos aumentos na quantidade de dinheiro, benefícios os quais Smith estava ansioso para negar. Petrella cita, em apoio, uma sentença crítica a Hume seguindo a passagem da lição supracitada: “o raciocínio do Sr. Hume é excessivamente ingênuo. Ele parece, entretanto, ter ido um pouco adentro da noção de que a opulência pública consiste em dinheiro […]”. Mas aqui, Petrella tenta provar coisas demais, pois, por que não poderia Smith simplesmente continuar a adotar o mecanismo fluxo de preço-espécie e então repetir ou elaborar suas críticas a posição de Hume, demonstrando a inconsistência desse último?[26]
Parece claro, em contraste, que o mistério do abandono de Smith do mecanismo de fluxo preço-espécie pode ser resolvido se percebermos que essa particular deterioração de sua análise econômica não era única. De fato, nós notamos uma deterioração fatal similar em sua teoria do valor da época das Lições até o Riqueza das Nações. Parece plausível que a causa da decadência, em cada caso, era a mesma: a mudança de concentração de Smith no mundo real dos preços de mercado para a visão exclusiva de equilíbrio “natural” de longo prazo. A mudança do mundo real de processos de mercado para focar em estados de equilíbrio fez Smith impaciente com a análise de processo que era o distintivo e o mérito da abordagem fluxo do preço-espécie. Em vez disso, Smith trata somente de um mundo de puro dinheiro em espécie, e assume que todos os países estão sempre em equilíbrio. Ademais, alterações de equilíbrio monetário mundial são erradicadas rapidamente, deixando o mundo em um praticamente perpétuo estado de equilíbrio.[27]
O foco de Smith no longo prazo, de fato, levou-o a aplicar sua teoria do valor-trabalho-e-custo-de-produção para o valor do dinheiro. O valor do dinheiro, i.e., o valor da mercadoria metálica do ouro ou da prata se torna, então, a incorporação do custo de produção em trabalho. Dessa maneira, Smith tentou integrar os valores do dinheiro e de outros bens ao assimilar todos eles em uma teoria de trabalho-custo. Assim, Smith escreveu, no A Riqueza das Nações:
“Ouro e prata, entretanto, tal como qualquer outra mercadoria, varia em seus valores, são às vezes mais baratos e às vezes mais aprazíveis […] A quantidade de trabalho que qualquer particular quantidade deles possa comprar ou ordenar, ou a quantidade de outros bens pela qual ela irá ser trocada, depende sempre da fertilidade ou esterilidade das minas […] A descoberta das abundantes minas da América reduziu, no século XVI, o valor do ouro e da prata na Europa para cerca de um terço do que era antes. Na medida em que custa menos trabalho para trazer tais metais da mina para o mercado, assim, quando eles foram trazidos ali eles poderiam comprar ou ordenar menos trabalho […]”
Mesmo aqueles poucos economistas que louvam Adam Smith como realmente adotando o mecanismo de fluxo preço-espécie concedem que ele deixou essa abordagem quando considerou um sistema bancário mistos incluindo notas bancárias ou papel-moeda.[28] De fato, mesmo Smith tendo ocasionalmente aderido à teoria quantitativa do dinheiro em espécie em seus efeitos sobre os preços, ele aqui joga tudo pra cima, e afirma que notas bancárias conversíveis são sempre iguais em valor ao ouro e, portanto, sua quantidade irá sempre permanecer a mesma. Qualquer aumento de notas bancárias além do total em espécie irá “transbordar” o “canal de circulação” e, portanto, retornar aos bancos no que era posteriormente chamado de um “refluxo”, em troca por espécie a qual imediatamente flui para fora do país. Smith, portanto, explicitamente nega que um aumento em notas bancárias possa aumentar os preços de mercadorias. Mas por que Smith abandonou a teoria quantitativa completamente aqui, em troca de tal nonsense? Plausivelmente, por causa da necessidade de Smith de integrar todas as teorias do valor sobre a base do custo de produção em trabalho. Se ele sequer concedesse que um aumento na quantidade de papel moeda pudesse afetar valores, então Smith teria de admitir um enorme buraco em sua teoria do custo-trabalho. Pois o “custo em trabalho” envolvido em imprimir papel moeda obviamente carrega nenhuma relação sequer com o valor de troca desse dinheiro. Portanto, o papel moeda, incluindo o papel bancário, tinha de ser assimilado firmemente ao valor de espécie.
Smith escreveu numa Grã-Bretanha do século XVIII onde praticamente todos os seus predecessores tinham denunciado a nova instituição dos serviços bancários de reserva fracionária como inflacionários e ilegítimos. Seu amigo, David Hume (1752), clamou pelo radical repúdio a essa instituição em nome dos serviços bancários com 100% de reserva em espécie. Outros importantes escritores tomaram a mesma posição, incluindo Jacob Vanderlint (d. 1740) em seu O Dinheiro Responde a Todas as Coisas (1734) e Joseph Harris (1702-58), mestre da Cunhagem Real, em seu Um Ensaio Sobre Dinheiro e Moedas (1757-58). Harris afirmara que bancos eram “convenientes” na medida em que eles “não emitissem notas sem um equivalente no tesouro real”, mas que seus aumentos de crédito além daquele limite são inflacionários e irão eventualmente pôr em perigo o próprio crédito dos bancos.
Se Smith tivesse continuado nos passos de seus predecessores, sua autoridade liderante e prestígio poderiam ter sido hábeis para trazer à tona a reforma fundamental do sistema bancário de reserva fracionária. Mas, infelizmente, Smith, em sua necessidade de amontoar todas as teorias monetárias em uma teoria de longo prazo em uma abordagem valor-trabalho-custo-de-produção, abandonou a teoria quantitativa e o mecanismo fluxo de preço-espécie em sua discussão do papel-moeda. Ele, assim, pôs a teoria econômica mais uma vez uma estrada errônea e fatal ao incorporar a instituição do crédito de reserva fracionária. Não mais mantendo tal crédito como inflacionário, Smith foi além para adumbrar uma das maiores defesas do papel-moeda, ainda sustentada nos dias atuais: que o ouro e a prata são meros “estoques mortos”, conquistando nada. Os bancos, ao substituir suas notas de papel por espécie, “permitem o país a converter uma grande quantia desses estoques mortos em estoques ativos e produtivos […]”.
É claro, na medida em que Adam Smith teceu elogios sobre o papel-moeda que ele apreciou, de suas conquistas, a de providenciar um tipo de “estrada nos céus”:
“O dinheiro em ouro e em prata, o qual circula em qualquer país, pode muito bem ser comparado a uma estrada, a qual, enquanto circula e carrega ao mercado toda a grama e milho do país, produz para si mesma nenhuma pilha de ambos. As judiciosas operações de serviços bancários, ao providenciar […] um tipo de caminho de carroça pelos ares, permitindo o país a converter, como se fosse, uma grande parte de suas estradas em bons pastos e campos de milho, e, desse modo, aumentar consideravelmente o produto anual de sua terra e trabalho.”
Adam Smith falhou em perceber que o estoque de ouro e de prata estava longe de ser “morto”; pelo contrário, ele performou a vital função de ser uma mercadoria de dinheiro, entre outras funções providenciando para todo membro da sociedade uma garantia contra a inflação do papel moeda, seja ele lançado pelo governo ou por bancos. O estoque de ouro, em resumo, performa um serviço de “reserva de valor” o qual Smith ignora totalmente. A crítica de Smith ao dinheiro em espécie como “estoque morto” também se origina de sua crença de que o dinheiro não é uma mercadoria servindo como um meio de troca, mas uma reivindicação, um sinal, um “vale compras”. O economista francês Charles Rist é, com justiça, altamente crítico à abordagem de estoque morto e à sua influência sobre gerações futuras:
“Essa ideia foi tomada com extraordinária alacridade e encontrou muito apoio […] ela dominou o pensamento dos pensadores ingleses do século XIX. Essa crença que o uso do dinheiro metálico é sistema retrógrado e custoso, a ser desencorajado por todos os meios possíveis, é firmemente fixado no pensamento britânico sobre moeda e serviços bancários. O uso do cheque e da nota de banco foi por muito tempo considerada apenas desse ponto de vista. Estes dois instrumentos eram considerados meramente como meios de economizar dinheiro; a ideia foi tomada com a guia para a política monetária do país, e as mais desastrosas conclusões foram tiradas dela.”[29]
8. O mito do laissez-faire
Se então, Adam Smith contribuiu com nada de valor ao pensamento econômico; se, com efeito, ele introduziu numerosas falácias, incluindo a teoria do valor-trabalho, e, portanto, causou uma significante deterioração do pensamento econômico dos economistas franceses e britânicos anteriores do século XVIII; teria ele feito alguma contribuição positiva para a economia? Uma resposta comum é a de que a significância do Riqueza das Nações era política em vez de analítica: que sua grande conquista foi iniciar e tomar a liderança na defesa das livres negociações, livres mercados, e laissez-faire. É verdade que Smith articulou os sentimentos econômicos-políticos de seus dias. Como Joseph Schumpeter escreveu: “Aqueles que enalteceram a obra de A. Smith como marcante de uma época, conquista original, estavam, é claro, pensando primeiramente nas políticas que ele defendeu […]” As visões de Smith, adicionou Schumpeter, “não eram impopulares. Elas estavam na moda.” Em adição, Schumpeter astutamente notou que Smith era muito um rousseauniano “judiciosamente diluído” em seu igualitarismo do século XVIII: “Seres humanos pareciam para ele muito semelhantes por natureza, todos reagindo da mesma simples maneira a estímulos muito simples, as diferenças sendo devido principalmente à diferente treinamento e a diferentes ambientes.”[30]
Mas, enquanto a explicação de Schumpeter da vasta popularidade de Smith[31] — de que ele era um fleumático em sintonia com o Zeitgeist — mantém parte da verdade, isso ainda dificilmente leva em conta a maneira pela qual Smith varreu a prancha, passando a borracha no conhecimento geral de todos os economistas contemporâneos prévios. Esse quebra-cabeça será examinado posteriormente no próximo capítulo. Pois o mistério do triunfo total de Smith se aprofunda quando percebemos que ele dificilmente originou o pensamento do laissez-faire: como temos visto, ele estava meramente em uma tradição do século XVIII florescendo na Escócia e especialmente na França. Por que foram então esses economistas prévios, analiticamente muito superiores a Smith e, também no framework laissez-faire, tão prontamente esquecidos?[32]
A maior conquista de Smith foi geralmente sendo assumida como sendo a enunciação do modo pelo qual o livre mercado guia seus participantes para perseguir o bem dos consumidores ao seguir seu interesse por si mesmo. Como Smith escreveu em talvez sua mais famosa passagem:
“Um homem será mais tendente a prevalecer se ele pode interessar seu amor-próprio em seu favor, e mostrar que é por sua própria vantagem fazer por ele o que ele requer deles […] Não é pela benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do confeiteiro que nós esperamos nosso jantar, mas pela consideração deles de seus interesses por si mesmos. Nós visamos nós mesmos, não para a humanidade deles, mas para o amor-próprio deles, e nunca falamos a eles de nossas próprias necessidades, mas de suas vantagens.”
E em uma passagem igualmente famosa trazendo à tona os princípios gerais desse ponto:
“Na medida em que todo indivíduo, portanto, anseia tanto o quanto ele pode empregar seu capital em apoio a […] indústria, e então direcionar aquela indústria cujo produto pode ser do maior valor; todo indivíduo necessariamente trabalha para colher a receita anual da sociedade o tanto quanto ele puder. Ele geralmente, é claro, nem intenciona promover o interesse público, nem conhece o quanto ele está o promovendo […] [Ao] direcionar essa indústria em tal maneira que sua produção pode ser do maior valor, ele intenciona apenas seu próprio ganho, e ele está nisso, como em vários outros casos, liderado por uma mão invisível para promover um fim que não era parte de sua intenção.”
Smith prossegue para advertir sabiamente contra alegadas metas para promover o “bem público” diretamente:
“Nem é sempre o pior para a sociedade que isso não fosse parte dela. Ao perseguir seu próprio interesse ele frequentemente promove aquele da sociedade mais efetivamente do que quando ele realmente busca promovê-lo. Eu nunca soube de muito bem sendo feito por aqueles que afeiçoaram negociar pelo bem público”.
Críticas hostis do laissez-faire marcaram a terminologia da “mão invisível” de Smith para acusá-lo de ostensivamente começar sua análise com uma mística, e, portanto, flagrantemente não-científica suposição a priori de que a Providência manipula as pessoas para o bem de todos “por uma mão invisível”. Em verdade, Smith estava simplesmente engajando em uma conclusão a posteriori de sua análise científica, e da análise geral do livre mercado, que a perseguição do interesse por si mesmo no mercado leva a avançar o interesse de todos. Perseguições similares no governo de nenhum modo levam ao mesmo feliz e harmonioso resultado, Smith estando vivo para as perniciosas consequências da criação de monopólios do governo e de suas concessões de privilégios sobre grupos de interesses especiais. Smith, um homem religioso, estava simplesmente expressando sua contemplação bem justificada da harmoniosa influência do livre mercado, e o seu “por uma mão invisível” era uma metáfora que tinha um “como se” implícito antes do uso da frase.
Apesar da importância indubitável dessas passagens, entretanto, Adam Smith defendendo o laissez-faire era dificilmente consistente. Em primeiro lugar, Smith recuou da posição absolutista da lei natural que ele havia desenvolvido em sua obra de ética, A Teoria dos Sentimentos Morais (1757). Nesse livro, a livre interação entre indivíduos cria uma ordem natural harmoniosa na qual a interferência do governo pode apenas prejudicar e distorcer. No Riqueza das Nações, por outro lado, o laissez-faire se torna apenas uma presunção qualificada em vez de uma regra rígida-e-rápida, e a ordem natural se torna imperfeita e a ser seguida apenas “na maioria dos casos”. Em verdade, é essa deterioração do caso pelo laissez-faire que os estudiosos alemães estavam para rotular Das AdamSmithProblem.
Certamente, a lista das exceções que Smith faz para o laissez-faire é surpreendentemente longa. Sua devoção ao militarismo do estado-nação, por exemplo, o induziu a tomar liderança na perniciosa visão moderna de escusar qualquer intervenção do governo que pode plausivelmente ser rotulada como pela “defesa nacional”. Naquela base, Smith apoiou os atos de navegação, o baluarte do mercantilismo britânico e do subsídio sistêmico para a frota britânica. Uma das reservas de Smith sobre a divisão do trabalho, certamente, é a de que ela leva a uma decadência do “espírito marcial”, e Smith prossegue muito sobre a decadência do espírito marcial nos tempos modernos, e sobre a grande importância de restaurar e sustentar isso. “[A] segurança de toda sociedade precisa sempre depender, mais ou menos, sobre o espírito marcial do grande corpo do povo.” Era uma ansiedade de ver o governo promover tal espírito que levou Smith a outro importante desvio do princípio de laissez-faire: seu clamor pela educação dirigida pelo governo. É também importante, opinou Smith, ter uma educação governamental para inculcar a obediência a ele entre a população — dificilmente uma doutrina libertária ou laissez-faire. Escreveu Smith:
“Um povo instruído e inteligente, ademais, é sempre mais decente e ordenado do que um povo ignorante e estúpido. Eles se sentem, cada um individualmente, mais respeitáveis, e mais tendentes a obter o respeito por seus legítimos superiores, e eles são, portanto, mais dispostos a respeitar aqueles superiores. Eles são […] menos aptos a serem enganados a qualquer lascívia ou oposição não-necessária às medidas do governo.”
Em adição aos atos de navegação e à educação pública, Adam Smith defendeu as seguintes formas de intervenção do governo na economia:
- Regulação de papéis bancários, incluindo criminalizar notas de menor denominação — depois de permitir os serviços bancários de reserva-fracionária.
- Obras públicas — incluindo autoestradas, pontes e portos, sob a justificativa de que os empreendimentos privados não “teriam o incentivo” para os manter apropriadamente(!?)
- Cunhagem governamental.
- Os Correios, sob um simples fundamento — que arrancará um pouco de risada dos leitores modernos — o de que ele é lucrativo!
- Construção compulsória de paredes resistentes ao fogo
- Registros compulsórios de hipotecas.
- Algumas restrições sobre a exportação de “milho” (trigo).
- A criminalização da prática de pagar empregados em espécie, forçando todos os pagamentos a serem em dinheiro.
Há também a particularmente extensa lista de impostos defendidas por Adam Smith, cada qual interfere no livre mercado. Por uma coisa, Smith pavimentou o caminho para Henry, o georgismo e o “imposto único” ao clamar por mais impostos sob terras não-cultivadas, mostrando seu ânimo contra o proprietário de terras. Ele também favoreceu impostos moderados sobre a importação de manufaturas estrangeiras, e impostos sobre a exportação de lã bruta — enfraquecendo gravemente, assim, sua alegada devoção à liberdade de negociações internacionais.
A repugnância calvinista de Adam Smith ao luxo é também vista em suas propostas em cobrar altas taxas sobre consumos luxuosos. Assim, ele clamou por altas cobranças de pedágios sobre carruagens luxuosas do que sobre carroças de carga, especialmente para tributar a “indolência e avareza dos ricos”. Sua hostilidade puritânica ao álcool também emerge em seu clamor por um imposto pesado sobre destilarias, para prejudicar as vendas de bebidas alcoólicas pesadas e induzir as pessoas a beber, em vez, de apreciarem o “saudável e revigorante licor de cerveja escura e amarga”. Sua devoção à cerveja escura, entretanto, era mínima, pois Smith também defende um imposto sobre a venda de varejo de todos os licores para desencorajar a multiplicação de pequenas cervejarias.
E, finalmente, Adam Smith defendeu a política de “encharcar-os-ricos” com o imposto de renda progressivo.
Talvez, a violação mais flagrante de Smith ao laissez-faire foi sua forte defesa de rígidas leis de usura, um afiado contraste à oposição a tais leis por Cantillon e por Turgot. Smith não queria de fato aderir à proibição medieval de todo o crédito. Em vez disso, ele ansiou por um teto de interesses de 5 por cento, suavemente acima da taxa cobrada por tomadores primários de empréstimo: um “preço que é comumente pago pelo uso do dinheiro por aqueles que podem dar a mais indubitável segurança”. Seu raciocínio seguiu sua predileção, como nós já notamos, pela hostilidade às preferências-temporais do livre mercado entre consumo e poupança. Movido pela hostilidade calvinista ao consumo luxuoso, Smith tentou enviesar a economia em favor de mais “trabalho produtivo” em investimento de capital e menos em consumo. Ao forçar taxas de juros abaixo do nível do livre mercado, Smith esperou por um crédito canalizado às mãos sóbrias dos tomadores primários de empréstimo, e fora do crédito para as mãos dos especuladores e de consumidores “esbanjadores”. Como o Professor West admite, Adam Smith condenou a demanda por empréstimos por “esbanjadores e especuladores”, nos quais o esbanjador “dissipa na manutenção dos ociosos, o que era destinado ao suporte dos industriosos”. Desse modo, o teto sobre taxas de juros, como nota West, “iria realocar o crédito para as mãos mais produtivas”.
Ainda assim, West, um adepto do livre mercado que é geralmente um admirador acrítico de Smith, então sustenta que Smith era curiosamente inconsistente em não perceber, nesse caso específico, que controles de preço criariam uma maior escassez de crédito, West ecoa o brilhante ensaio A Defesa da Usura pelo Smithiano Jeremy Bentham ao acusar o mestre de inconsistência em sua usual defesa do livre mercado. Mas, como o Professor Garrison indica em seu comentário sobre West, Smith conhecia apenas muito bem o que ele estava fazendo. Em ansiar uma realocação de crédito pelo governo “para as mãos mais produtivas”, Adam Smith estava precisamente tentando criar uma escassez de crédito para os consumidores e especuladores, e, portanto, canalizar o crédito para as mãos dos homens de negócios sóbrios e de baixo risco. Como Garrison apontou,
“Smith não estava interessado em reduzir o custo de tomar emprestado com seus controles de crédito. Ele estava tentando reduzir a quantidade de fundos emprestados para certas categorias de empréstimos. E seu esquema anti-usura era bem cabível para isso. Smith nota que o dinheiro é emprestado ao governo a três por cento, e para sólidos homens de negócios a quatro, e a quatro e meio. Apenas ‘esbanjadores e especuladores’, pessoas que são mais tendentes a ‘desperdiçar e destruir’ capital, gostariam de emprestar a oito ou dez por cento. Smith, portanto, recomendou um teto de interesses a cinco por cento. Essa política não visava permitir os esbanjadores e especuladores obter fundos de forma mais barata, mas em preveni-los de obter quaisquer fundos no final das contas. Esses fundos seriam divergidos, então, para as mãos daqueles que são mais orientados ao futuro.”
Em suma, Smith conhecia muito bem que um baixo teto de interesses não beneficiaria emprestadores marginais ao providenciá-los crédito barato. Ele sabia que leis de usura drenariam o crédito todo junto para emprestadores marginais e ele viu precisamente esse resultado. Pois Smith praticamente abraçou a ideia de zero preferência-temporal como o ideal — a não-preferência-temporal de seu mítico “espectador imparcial” — e, conclui Garrison, “não é difícil ver como o padrão de Smith de preferência-temporal zero, junto com sua consciência de afiadas preferências temporais positivas poderia levá-lo a fazer as próprias recomendações de política que West achou ser surpreendente. Ele visava realocar os recursos para longe do presente e rumo ao futuro […]”[33]
Talvez o mais importante de tudo, como podemos enquadrar o alegado papel de Smith como defensor das livres negociações e do laissez-faire, tendo ele gastado 12 anos de sua vida como um comissário de alfândegas escocesas, reprimindo contrabandistas violando as extensivas leis mercantilistas britânicas e sonegando impostos de importação? Teria ele tratado o trabalho como uma sinecura? Não: estudos recentes mostram que seu papel como um aplicador principal de leis e tarifas mercantilistas era ativo e trabalhoso. Teria ele sido movido pela penúria? Dificilmente, visto que, com sua grande reputação, ele provavelmente poderia ter ordenado uma soma equivalente em um posto acadêmico principal.[34] Ele sofria de escrúpulos de consciência? Aparentemente não, já que ele não apenas abordou seu trabalho com entusiasmo, mas também foi particularmente vigilante e obstinado em tentar aplicar as onerosas restrições e tarifas ao máximo.
Edwin West, um admirador inveterado de Smith como um suposto devoto do laissez-faire, especula que ele entrou na alta burocracia alfandegária como um livre negociante prático, tentando remover ou aliviar a carga alfandegária sobre a economia escocesa. Mas como Anderson et al., responde, “Se Smith estivesse profundamente preocupado em reduzir o custo para a economia resultante das alfândegas, a estratégia mais eficaz no nível de suas responsabilidades teria sido reduzir a eficiência do aparato de aplicação. Mas Smith não fez isso”.[35] Ao contrário, Smith não demonstrou nenhuma apreciação do valor social e econômico da economia clandestina ou da grande tradição britânica de contrabando. Em vez disso, ele fez o possível para tornar a aplicação das leis e encargos mercantilistas o mais eficiente possível. Tampouco usou seu alto cargo para promover reformas na direção das livres negociações. Ao contrário, sua principal proposta de “reforma” como comissário era para o armazenamento automático obrigatório de todas as importações, o que teria tornado a inspeção e fiscalização muito mais fácil para os funcionários da alfândega, às custas dos contrabandistas, das negociações internacionais e da economia do país. Como Anderson et al., nota, “Smith estava propondo uma reforma que era provável que aumentasse os custos da economia para deveres de alfândega”. E, finalmente, a correspondência de Smith como um comissário mostra nenhum desejo particular de cortar tarifas ou restrições. Em contraste, sua emoção dominante parece ter sido o orgulho em aplicar duras medidas sobre contrabandistas e, por meio disso, aumentando a receita do governo. Em dezembro de 1785, ele escreve para alguns colegas oficiais alfandegários que
“[…] pode, talvez, dar aos Cavalheiros o prazer de ser informado de que a receita líquida proveniente da Alfândega na Escócia é pelo menos quatro vezes maior do que era há sete ou oito anos. Ela tem aumentado rapidamente nos últimos quatro ou cinco anos; e a receita deste ano superou em pelo menos a metade da receita maior do ano anterior. Acho que é provável que aumente ainda mais.”[36]
Bem, cá estamos! Isso vindo de um alegado defensor do laissez-faire!?
9. Sobre a taxação
Ao longo dos séculos, os economistas contribuíram com pouco interesse ou valor em matéria de tributação. Além de descrever formas de tributação, eles geralmente abordam o assunto do ponto de vista do estado como um déspota bondoso ou nem tão bondoso, buscando maximizar sua receita ao mesmo tempo em que causa o mínimo de dano à economia. Existem variações entre as diferentes escolas, mas o impulso geral é o mesmo. Assim, os cameralistas (ver Capítulo 17) estavam francamente interessados apenas em maximizar a receita do estado, assim como os absolutistas franceses; os economistas mais liberais admoestaram o governo a manter as taxas de impostos mais baixas do que o costume.
Os economistas mais liberais têm tentado demarcar estritamente as funções que o governo deve e não deve desempenhar. Ao descartar vários tipos de intervenção governamental, o objetivo, em igualdade de condições, é reduzir a tributação e os gastos totais do governo. Mas eles nos ofereceram pouquíssimas diretrizes além disso. Se, por exemplo, como no caso de Smith, o governo deve ofertar obras públicas, o quanto deve fornecer e quanto deve ser gasto? Quase não houve critérios preferenciais, então, para o gasto total ou para os níveis gerais de tributação.
Tem havido mais discussão sobre a distribuição de impostos. Isto é, dado, a partir de algum arbitrário édito externo, que o nível total de tributação deveria ser uma certa quantia, T, tem havido considerável discussão sobre como T deveria ser distribuído. Resumindo, os dois principais problemas da tributação são: quanto deve ser cobrado e quem deve pagar? E tem havido muito mais pensamento dedicado para a última questão.
Mas, nada disso foi muito satisfatório. Novamente, o ponto de vista básico parece ser o de um ladrão de estrada ou mestre de escravos, interessado em extrair o máximo de seus encargos, mantendo suas queixas o mínimo possível. Na discussão na França do século XVIII, havia duas propostas tributárias favoritas: imposto de renda proporcional ou imposto sobre a propriedade ou, como no caso de Marshall Vauban e mais tarde dos fisiocratas, um imposto único sobre a terra, receita para uma fonte de renda fixa e visível: isso parece fixo, imutável e, portanto, fácil de ser alcançado pelo estado.
A discussão de Adam Smith sobre a tributação no Riqueza das Nações tornou-se, como o resto de sua obra, um estabelecimento clássico do foco central para o pensamento econômico daquele ponto em diante. E, como o resto da obra, era uma mistura confusa do banal e do falacioso.[37] Assim, Smith estabeleceu quatro “cânones” de “justiça e utilidade evidentes” na tributação, que se tornariam famosos a partir de então. Dos quatro, três são banais: que o pagamento do imposto seja feito da forma mais conveniente possível para o pagador; que o custo da arrecadação seja reduzido ao mínimo, já que o estado nem mesmo se beneficia desses tributos sobre o contribuinte; e que o imposto seja determinado em vez de arbitrário.[38]
O cânone substancial foi o primeiro de Smith na lista: que o imposto seja proporcional à renda. Assim:
“Os súditos de cada estado devem contribuir para o sustento do governo, tanto quanto possível, na proporção de suas respectivas capacidades; isto é, na proporção da receita de que gozam, respectivamente, sob a proteção do estado. A despesa do governo para os indivíduos de uma grande nação é como às custas de um grande patrimônio, que são todos obrigados na proporção aos respectivos interesses para o patrimônio.”
Em primeiro lugar, essa passagem é desesperançosamente confusa ao apresentar como se fossem idênticos dois critérios muito diferentes para justiça ou propriedade na tributação: os princípios da “capacidade-de-pagar” e dos “benefícios”. Smith afirma que a capacidade das pessoas de pagar impostos é proporcional à renda: e que os benefícios derivados do estado são proporcionais da mesma forma. No entanto, ele não oferece nenhuma justificativa para nenhuma dessas proposições duvidosas.
Sobre a capacidade, não está de forma alguma claro que a capacidade de pagamento das pessoas — qualquer que seja a definição — é proporcional à renda. O que dizer, por exemplo, da influência da riqueza relativa de uma pessoa (em contraste com a renda), suas despesas médicas ou outras, etc.? E uma coisa é certa; Adam Smith não apresentou argumentos para essa afirmação furada.
A ideia de que o benefício derivado do estado é proporcional à renda é ainda mais instável. Como exatamente os ricos, em virtude dessa riqueza, beneficiam-se proporcionalmente do estado em comparação com os pobres? Isso só seria verdade se o governo fosse o responsável pela riqueza, por meio de subsídio, concessão de monopólio ou alguma forma de privilégio especial. Senão por privilégio especial, como os ricos se beneficiam proporcionalmente à sua renda? Certamente não de medidas redistributivas, pelas quais o estado tira dinheiro dos ricos e os dá aos burocratas ou aos pobres; nesse caso, é o último grupo que se beneficia e os ricos que sofrem com essa redistribuição. Então, quem deve pagar por tais benefícios? Os burocratas e os pobres? E benefícios da proteção policial ou das escolas públicas? Mas certamente os ricos poderiam pagar muito mais pela provisão privada desses serviços e, portanto, os ricos se beneficiam menos do que a classe média ou certamente menos do que os pobres com esses gastos.
Tampouco salvaria a teoria dizer que, uma vez que A, por exemplo, faz cinco vezes mais dinheiro que B, aquele A, portanto, beneficia-se cinco vezes mais da “sociedade” e, portanto, deveria pagar cinco vezes mais em impostos. O fato de A fazer cinco vezes mais que B mostra que os serviços de A valem individualmente cinco vezes mais que B para seus colegas no mercado. Portanto, uma vez que A e B na verdade se beneficiam da mesma forma da existência da sociedade, o argumento inverso seria muito mais plausível: que o diferencial entre as rendas de A e B é devido à produtividade superior de A, e que a “sociedade”, se de fato pode ser considerada responsável por qualquer coisa específica, pode ser considerada responsável por suas rendas básicas iguais, abaixo desse diferencial. A implicação desse ponto seria que ambas as pessoas, e, portanto, todas as pessoas, deveriam pagar um imposto igual, isto é, um imposto igual em números absolutos.
Finalmente, qualquer que seja a reivindicação da sociedade por parte da renda das pessoas, a sociedade — a divisão do trabalho, o corpo de conhecimento e cultura, etc. — não é de forma alguma o estado. O estado não contribui com nenhuma divisão de trabalho para o processo de produção e não transmite conhecimento ou leva a civilização adiante. Portanto, seja o que for que cada um de nós deva à “sociedade”, o estado dificilmente pode reivindicar, mais do que qualquer outro grupo na sociedade, o título de substituto de todas as relações sociais no país.
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Notas
[1] Das AdamSmithProblem referiu-se apenas a uma das numerosas contradições e quebra cabeças na saga de Adam Smith: o grande abismo entre as visões de direito natural-laissez-faire de sua Teoria dos Sentimentos Morais, e as muito mais qualificadas visões de seu tardio e decisivamente influente Riqueza das Nações.
[2] É um artigo iluminador sobre os “reconhecimentos de Adam Smith”, o Professor Salim Rashid escreve: “É afirmado por Schumpeter que isso [não reconhecer as fontes] era a prática da época. Isso está incorreto. Se nos voltarmos a algumas das obras citadas no Riqueza das Nações, tais como os Tratos de Charles Smith sobre as negociações de milho, ou as Memoirs de John Smith sobre a lã, devemos achá-las escrupulosas em reconhecer seu débito intelectual. Entre os contemporâneos de Smith, Gibbon é bem conhecido pelo cuidado com o qual ele providenciou referências e o mesmo é verdade do famoso escritor agrário da época de Smith, Arthur Young”. Salim Rashid. “Adam Smith’s Acknowledgement: Neo-Plagiarism and the Wealth of Nations”. Journal of Libertarian Studies, 9 (Outono de 1990), p. 11.
[3] A primeira e mais consistente peça do revisionismo moderno de Smith veio um ano mais cedo em dois excelentes e esclarecedores artigos feitos por Emil Kauder: “Genesis of the Marginal Utility Theory: From Aristotle to the End of the Eighteenth Century” em Essays in Economic Thought, editado por J. Spengler e W. Allen (Chicago: Rand Mcnally and Co., 1960), pp. 277-87.
[4] Infelizmente, desde a comemoração do bicentenário de Smith em meados da década de 1970, uma tendência contra-revisionista tem sido estabelecida para tentar restaurar a atitude hagiográfica dominante antes da década de 1950. Veja o nosso ensaio bibliográfico abaixo.
[5] Para uma nova visão sobre o mandato de Smith na casa alfandegária baseada em investigações originais dos manuscritos da tábula dos comissários de alfândega, 1778-90, bem como sobre as numerosas cartas a coletores alfandegários nos outports, veja o importante artigo de Gary M. Anderson, William F. Shughart II e Robert D. Tollison, “Adam Smith in the Customhouse”, Journal of Political Economy, 93 (Agosto de 1985), pp. 740-59.
[6] As queixas sobre a alienação começaram com o influente Ensaio sobre a História da Sociedade Civil (1767), escrito pelo amigo de Smith, Adam Ferguson. Um tema similar, entretanto, apareceu nas não publicadas lições de Glasgow de 1763 de Smith. Sobre a influência de Ferguson, veja M. H. Abrams, Natural Supernaturalism (Nova York: W.W. Norton, 1971), pp. 220-21, 508.
[7] Citado em Ronald Hamowy, “Adam Smith, Adam Ferguson, and the Division of Labour”, Economica (Agosto de 1968), p. 253.
[8] Edwin Cannan, A History of the Theories of Production and Distribution in English Political Economy From 1776 to 1848 (2ª ed., Londres: P.S. King & Son, 1903), pp. 23-4.
[9] Cannan, op. cit., nota 8, p. 24.
[10] Ingrid Hahne Rima, Development of Economic Analysis (3ª ed., Homewood, III.: Richard D. Irwin, 1978), p. 79.
[11] Edwin G. West, Adam Smith (New Rochelle, NY: Arlington House, 1969), p. 173.
[12] Veja também Nathan Rosenberg, “Adam Smith on Profits — Paradox Lost and Regained”, Journal of Political Economy, 82 (Nov./Dec. 1974), pp. 1187-9.
[13] J. A. Schumpeter, History of Economic Analysis (Nova York: Oxford University Press, 1954), pp. 324-5.
[14] Não podemos usar a desculpa de que Smith desenvolveu uma análise de utilidade-escassez em suas aulas e, portanto, não viu necessidade alguma de repeti-la no Riqueza das Nações. Pois as aulas não foram publicadas e permaneceram assim até quase o século XX.
[15] Paul H. Douglas, “Smith’s Theory of Value and Distribution”, em J.M. Clark et al., Adam Smith, 1776-1926 (Chicago: University of Chicago Press, 1928), p. 80.
[16] Emil Kauder, “Genesis of the Marginal Utility Theory from Aristotle to the End of the Eighteenth Century”, em Spengler e Allen, op. cit., nota 3, p. 282. Veja também H.M. Robertson e W.L. Taylor, “Adam Smith’s Approach to the Theory of Value”, em ibid., pp. 293-4.
[17] John Locke (1632-1704), o grande teórico político libertário do final do século XVII, é frequentemente erroneamente sustentado a ter originado a teoria do valor-trabalho. Em verdade, Locke estava discutindo um problema muito mais diferente da determinação do preço. Em primeiro lugar, ele defendeu a ideia da propriedade privada na terra aos homesteaders originais, que tomavam a terra não-usada dos comuns ao “misturar seu trabalho” com o solo. Isso é uma teoria do trabalho da origem propriamente dita da propriedade privada do que uma teoria do valor-trabalho. Em segundo lugar, Locke está tentando demonstrar a não-importância da terra — supostamente originalmente comunal — enquanto comparada com a importância da energia humana e a produção em determinar o valor dos produtos ou recursos. Locke nos pede para comparar um pedaço de terra comunal não-usado com a diferença feita pelo trabalho ao preparar o solo e transformando-o em um bem de consumo. Aqui, Locke está certamente correto em valorar altamente a contribuição da energia humana, a qual aqui inclui a criação e a colaboração de bens de capital bem como a estrita definição moderna de “trabalho”. A energia humana, ou “trabalho” em sentido amplo, tem certamente feito a diferença crucial na marcha progressiva da penúria e barbarismo para a civilização moderna. Mas essa não é nenhuma “teoria do valor-trabalho” no sentido de determinante do preço.
[18] Assim, Ricardo, seguindo e clarificando Smith, afirmou que “a estimação na qual diferentes qualidades de trabalho são mantidas chegam a ser ajustadas logo no mercado com suficiente precisão para todas os propósitos práticos”. E Marx declarou que “as diferentes proporções nas quais diferentes tipos de trabalho são reduzidos a trabalho inábil como sendo seu padrão, são estabelecidos por um processo social que resulta em um fardo sobre as costas dos produtores”. Citado em Douglas, op. cit., nota 15, p. 82n.
[19] Douglas, op. cit., nota 15, p. 82n. Similarmente, o astuto Alexander Gray escreveu que “através de Ricardo, sua [de Smith] teoria de custo-de-produção e sua ênfase no trabalho como a fonte de todo o valor, tornou-se uma das pedras angulares da estrutura marxiana. De fato, esse é um lugar-comum no qual o Socialismo Científico chegou ao levar a economia política inglesa clássica a suas conclusões lógicas”. Alexander Gray, Adam Smith (Londres: The Historical Association, 1948), p. 24.
[20] Douglas, op. cit., nota 15, pp. 102-3.
[21] H. M. Robertson e W.L. Taylor, “Adam Smith’s Approach to the Theory of Value”, em Spengler e Allen, op. cit., nota 15, p 301.
[22] Para uma crítica mais elaborada, veja nossa discussão sobre Malthus e o malthusianismo abaixo (Capítulo 17).
[23] Jacob Viner, Studies in the Theory of International Trade (Nova York: Kelley & Millman, 1956), p. 197.
[24] Adam Smith, Lectures on Justice, Police, Revenue and Arms (1896, Nova York: Kelley & Millman, 1956), p. 197.
[25] Assim, Douglas Vickers escreve, em um volume geralmente devotado à apologética smithiana: “[…] em matéria de teoria monetária, o Riqueza das Nações não merece muito louvor. No Riqueza das Nações a teoria monetária reside em um relativo nadir nos meneios de seu longo desenvolvimento histórico. Uma análise mais profunda e um argumento mais estendido ocorreu em ambos os lados na divisa de 1776”. Douglas Vickers, “Adam Smith and the Status of the Theory of Money” em Essays on Adam Smith, editado por A. Skinner e T. Wilson (Oxford: The Clarendon Press, 1975), p. 484. Veja também W.L. Taylor, Francis Hutcheson and David Hume as Predecessors of Adam Smith (Durham, NC: Duke University Press, 1965), p. 132.
[26] Veja Frank Petrella, “Adam Smith’s Rejection of Hume’s Price-Specie-Flow Mechanism: A Minor Mystery Revealed”, Southern Economic Journal, 34 (Jan. 1968), pp. 365-74.
[27] De forma estranha o suficiente, o professor Eagly, em seu artigo alegadamente reabilitando Smith como um adepto à teoria humeana do fluxo de preço-espécie, demonstra somente o oposto: “Para começar, Smith assumiu a existência de uma paridade internacional de poder de compra para os metais monetários […] Sempre e onde quer que o preço local de espécie em termos de mercadorias divirja da paridade internacional de poder de compra, movimentos de espécie ocorrem imediatamente. A demanda mundial por espécie, assim, aparece a uma nação individual como infinitamente elástica no que diz respeito a seu preço em termos de mercadorias. Qualquer pequeno desvio no preço doméstico de mercadoria em espécie da paridade internacional resulta em imediata exportação da espécie (ou importação)”. Em suma, Smith foca completamente no equilíbrio de longo prazo com o processo ocorrendo de uma vez só. Robert V. Eagly, “Adam Smith and the Specie-Flow Doctrine”. The Scottish Journal of Political Economy, 17 (Fevereiro de 1970), p. 64. A apologia e Bloomfield para Smith segue Eagly, adicionando encômios para a alegada modernização de Smith ao antecipar a economia de equilíbrio neo-monetarista mundelliana.Arthur L. Bloomfield, “Adam Smith and the Theory of International Trade”, em Skinner e Wilson, op. cit., nota 25, pp. 478-80. J.T. Salerno, “The Doctrinal Antecedents of the Monetary Approach to the Balance of Payments” (dissertação de doutorado, Rutgers University 1980), pp. 196-208, também segue Eagly, mas admite, no percurso de sua discussão sobre as inconsistências de Smith, bem como de sua ênfase no equilíbrio de longo prazo. Wu, em sua em geral excelente obra, admite que “Smith não disse nada sobre o mecanismo intermediário”, mas então estranhamente proclama que, desde que Smith tinha aprovado a análise de Hume nas lições, “ele poderia dificilmente ter omitido completamente a doutrina de Hume de seu celebrado ensaio”. Um infeliz exemplo de excessiva reverência pelo sujeito, levando um autor a “a priorizar a história”, Chi-Yuen Wu, An Outline of International Price Theories (Londres: George Routledge & Sons, 1939), pp. 82-3.
[28] Veja Eagly, op.cit., nota 27, pp. 62-66-8; Salerno, op. cit., nota 27, pp. 208-211.
[29] Charles Rist, History of Monetary and Credit Theory: From John law to the Present Day (1940, Nova York: A.M. Kelly, 1966), p. 85.
[30] Schumpeter, op. cit., nota 13, pp. 184-6.
[31] Ibid., p. 181.
[32] Como nota Schumpeter: o princípio de livre mercado e a visão de lei natural de que a “livre interação de indivíduos produz não o caos, mas um padrão ordenado que é logicamente determinado […] tem sido bem claramente enunciado antes, por exemplo, por Grócio e por Pufendorf”. Ibid., p. 185.
[33] Em sua crítica a Smith, Garrison nota que “O próprio esquema de Smith para aumentar a riqueza era […] auto-destrutivo, embora não houvesse evidência de que isso sequer foi reconhecido por Smith […] Na realidade, controles de crédito servem apenas para reduzir os ganhos de trocas intertemporais. Indivíduos podem preferir, digamos, uma unidade de um bem de consumo agora a duas ou até mesmo cinco unidades do bem no próximo ano. Se essa preferência não é permitida a ser expressa o mercado, então a riqueza da nação, avaliada em termos de valor presente, i.e., descontada a uma taxa correspondente à verdadeira preferência temporal dos indivíduos, irá na verdade diminuir”. Roger W. Garrison “West’s ‘Cantillon and Adam Smith’: A comment”, The Journal of Libertarian Studies, 7 (Outono 1985), pp. 291-2. Veja também Edwin G. West, “Richard Cantillon and Adam Smith: A Reappraisal” (unpublished MS), pp. 22-3.
[34] Veja G.M. Anerson et al., “Adam Smith in the Custom House”, Journal of Political Economy, 93 (Agosto 1985), p. 751n.
[35]Anderson et al., op. cit., nota 34, pp. 752-3.
[36] Smith para George Chalmers, 22 de Dezembro de 1785, em The Correspondence of Adam Smith, editado por Ernest C. Mossner e Ian S. Ross (Oxford: The Clarendon Press, 1977), letter 251, pp. 289-90; citado em Anderson et al., op. cit., nota 34, p. 754.
[37] Em seus cânones da taxação, Smith foi influenciado por seu professor Hutcheson, e por seu amigo Henry Home, Lord Kames. Smith pode muito bem ter sido influenciado pelo Tratto de’ tributti … (1743) de Carlo Antonio Broggia (1683-1763) e pelo Meditazione sull’ economia politica (1771) do Conde Pietro Vern (1728-97). Broggia era um napolitano, possivelmente um homem de negócios aposentado; Verri era um milanês que serviu como um oficial na administração austríaca e também francesa em Milão.
[38] Embora esses cânones possam ser banais, eles não são de modo algum evidentes em si mesmos. Assim, veja a crítica de Murray N. Rothbard, Power and Market: Government and the Economy (Menlo Park, Calif.: Institute for Humane Studies, 1970), pp. 102-3.
Muito revelador, obrigado!