Friday, November 22, 2024
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Capítulo 12 – O Sistema Marxiano I: O Materialismo Histórico e a Luta de Classes

12.1 A Estratégia Marxiana

Marx desesperadamente buscou uma dialética materialista da história, uma dialética que explicaria toda mudança histórica básica e que levaria inevitavelmente à revolução comunista. Na falta de um “nisus” boehmeiano ou de um impulso interior místico para servir como motor da dialética, Marx teve de voltar ao conflito de classes embutido no materialismo histórico.

Mas foi característico de Marx que essa área crucial do sistema marxiano, junto com outras discussões importantes, não fosse apresentada sistematicamente, mas no curso de parágrafos esparsos ou até de passagens aqui e ali ao longo dos escritos de Marx e Engels.

O sistema teve de ser construído fora dessas passagens amplamente separadas. Como resultado, ou talvez em virtude da inerente e grave fraqueza do argumento, a terminologia de Marx é invariavelmente vaga e confusa, e as ligações dialéticas alegadamente semelhantes a leis são praticamente inexistentes. Geralmente, são meras afirmações sem suporte.

Como resultado, o sistema marxista não é apenas um compilado de falácias, mas também de falácias e ligações fracas.

Nenhuma teoria econômica ou social é obrigada a apresentar previsões corretas, no sentido de previsões do futuro. Mas a doutrina marxista é diferente. Como pietistas pré-milenaristas que estão sempre prevendo um Armageddon iminente, Marx diz apresentar “leis da história” que, de acordo com ele, são “científicas” ao invés de místicas.

Bom, se ele conhece as leis da história, então seria melhor que Marx apresentasse previsões corretas de tais leis supostamente determinadas. No entanto, todas as suas previsões se mostraram completamente erradas.

Nesse ponto, os marxistas invariavelmente voltam a alterar a previsão, ou apontam para algum fator de compensação (visto apenas em retrospectiva) que temporariamente atrasou a previsão de se mostrar verdadeira. Portanto, como nós veremos logo abaixo, uma das previsões de Marx, crucial ao inevitável funcionamento do caminho ao socialismo, foi que a classe trabalhadora sofreria cada vez mais pobreza e desgraça.

Quando a classe trabalhadora, em contraste, obviamente continuou a aumentar espetacularmente em padrão de vida no mundo ocidental, os apologistas marxistas voltaram à asserção que Marx referia-se apenas a pobreza “relativa à” classe capitalista.

É duvidoso, contudo, se uma revolução sanguinária seria travada pelo proletariado por cada um poder ter apenas um iate, enquanto os capitalistas têm uma dúzia cada. Miséria “relativa” é uma questão bem diferente.

Os marxistas então vieram com a visão que o padrão de vida dos trabalhadores ocidentais estava aumentado por conta de um atraso “temporário” trazido pelo imperialismo ocidental, permitindo aos trabalhadores ocidentais serem “capitalistas” em relação ao Terceiro Mundo explorado.

O fato de Marx e Engels terem sido eles mesmos favoráveis ao imperialismo ocidental, particularmente Alemão, enquanto uma força progressiva, é usualmente deixado em silêncio pelos escritores marxistas.

Em matérias teóricas, a estratégia dos marxistas é similar. Cada vez mais, à medida em que doutrinas marxistas cruciais tornam-se evidentemente muito absurdas para serem levadas a sério, e.g., determinismo tecnológico de toda a vida, ou a teoria de valor-trabalho, elas são abandonadas pelo marxista, que então passa a sustentar teimosamente que ele é ainda um “marxista”, e que o marxismo essencialmente ainda se mantém verdadeiro. Mas isso é a atitude de um adepto de uma religião mística ao invés de um cientista ou até mesmo de um pensador racional.

Uma arma crucial usada geralmente por marxistas e pelo próprio Marx foi “a dialética”. Uma vez que a dialética supostamente significa que o mundo e a sociedade humana consistem em tendências conflitantes ou “contraditórias” lado a lado ou mesmo dentro do mesmo conjunto de circunstâncias, qualquer previsão pode ser justificada como o resultado de um profundo insight em qualquer parte da dialética contraditória que possa estar prevalecendo em um dado momento.[1]

Em suma, uma vez que A ou não-A pode ocorrer, os marxianos podem seguramente proteger suas apostas para que nenhuma previsão deles possa ser em algum momento falsificada. Foi dito que Gerry Healy, o líder absoluto do movimento trotskista britânico de esquerda até o escândalo o derrubar nos últimos anos, foi capaz de manter seu poder reivindicando o poder da visão exclusiva sobre o funcionamento misterioso da dialética.

E um exemplo maravilhoso de proteção dessas apostas realizada pelo próprio Marx foi descrito em uma carta ao Engels. Marx escreve a Engels que ele tinha acabado de prever algo em sua coluna para o New York Tribune. Ele adiciona cinicamente e de forma reveladora:

É possível que eu possa ser desacreditado. Mas neste caso será ainda possível sobreviver com a ajuda de um pouco de dialética. Nem é preciso dizer que eu formulei minhas previsões de tal modo que eu provaria estarem corretas até mesmo no caso oposto.[2]

12.2 Materialismo histórico

Não há lugar em seu sistema onde Marx é mais confuso ou instável do que em sua base: o conceito de materialismo histórico, a chave para a inevitável dialética da história.

Na base do materialismo histórico e da visão de Marx da história está o conceito de “forças produtivas materiais”. Essas “forças” são a força motriz que cria todos os eventos históricos e mudanças. Então o que são essas “forças produtivas materiais?

O melhor que pode ser dito é que as forças materiais produtivas significam “métodos tecnológicos”. Por outro lado, nós também nos deparamos com o termo “modo de produção”, o qual parece ser a mesma coisa que as forças materiais produtivas, ou a soma de, ou sistemas de, métodos tecnológicos.

De qualquer modo, essas forças materiais produtivas, essas tecnologias e “modos de produção”, única e singularmente criam todas as “relações de produção” ou “relações sociais de produção” independentemente da vontade das pessoas.

Essas “relações de produção”, também definidas de maneira extremamente vaga, parecem ser essencialmente relações legais e de propriedade. A soma dessas relações de produção de algum modo faz a “estrutura econômica da sociedade”.

Essa estrutura econômica é a “base” que determina de forma causal a “superestrutura”, a qual inclui a ciência natural, doutrinas legais, religião, filosofias, e todas as outras formas de “consciência”. Em suma, no início da base está a tecnologia que, por sua vez, constitui ou determina os modos de produção, esses que, por sua vez, determinam relações de produção, ou instituições de lei ou propriedade, as quais finalmente, por sua vez, determinam ideias, valores religiosos, arte, etc.

Como, então, as mudanças históricas tomam lugar no esquema marxista? Elas podem apenas vir a ser sob a forma de métodos tecnológicos, uma vez que todo o mais na sociedade é determinado pelo estado da tecnologia em qualquer momento. Em suma, se o estado da tecnologia é T e todo o mais é superestrutura determinada, S, então para Marx,

Tn → Sn

Onde n é qualquer momento do tempo. Mas então, a única maneira na qual a mudança social pode tomar lugar é por meio da mudança na tecnologia, neste caso

Tn+1 → Sn+1

Como Marx coloca em sua mais clara e severa declaração de sua visão determinista tecnológica da história, em seu A Miséria da Filosofia:

Ao adquirir novas forças produtivas os homens mudam seu modo de produção, e mudando seu modo de produção, eles mudam seus meios de ganhar a vida, e, [mudando seus meios de mudar a vida][3], eles mudam todas as suas relações sociais. O moinho de mão oferece-lhe a sociedade com o senhor feudal; o moinho a vapor a sociedade com o capitalista industrial.

A primeira grave falácia nesta mistura confusa acontece bem no início: De onde esta tecnologia vem? E como essas tecnologias mudam ou se aprimoram? Quem as coloca em uso? Uma chave para o compilado de falácias que constitui o sistema marxista é que Marx nunca se esforçou para prover uma resposta.

Na verdade, ele não pode, uma vez que se ele atribui o estado da tecnologia ou mudança tecnológica às ações do homem, ou homens individuais, o seu sistema inteiro desaba. Pois a consciência humana, e ainda consciência individual, estariam então determinando forças produtivas materiais ao invés do contrário. Como von Mises aponta:

Nós podemos sumarizar a doutrina marxista desta maneira: No começo havia as “forças materiais produtivas”, i.e., o equipamento tecnológico aos esforços produtivos humanos, as ferramentas e máquinas. Nenhuma questão relativa à sua origem é permitida; elas existem, isso é tudo; nós devemos assumir que elas caíram do céu.[4]

E, nós podemos adicionar, qualquer mudança nesta tecnologia precisa, portanto, cair do céu também.

Ademais, como von Mises também demonstrou, a consciência, ao invés da matéria, é predominante na tecnologia:

uma invenção tecnológica não é algo material. É o produto de um processo mental, de raciocínio e concepção de novas ideias.

As ferramentas e máquinas podem ser chamadas materiais, mas a operação da mente que as cria é certamente espiritual.

O materialismo marxista não remonta os fenômenos “superestruturais” e “ideológicos” às raízes “materiais”. Explica esses fenômenos como causados por um processo essencialmente mental, a saber, invenção.[5]

Máquinas são ideias materializadas. Em adição, processos tecnológicos não requerem apenas invenções. Eles devem ser trazidos do estágio de invenção e ser incorporados em máquinas e processos concretos. Mas isso requer poupança e investimento de capital, além da invenção.

Mas, admitindo esse fato, então as “relações de produção”, o sistema legal e de direitos de propriedade em uma sociedade, ajuda a determinar se a poupança ou investimento serão encorajados ou desencorajados. Mais uma vez, o caminho causal próprio é das ideias, princípios e da “superestrutura” legal e de direitos de propriedades para a suposta “base”.

Similarmente, as máquinas não receberão investimento, a menos que haja uma divisão de trabalho de suficiente extensão na sociedade. Mais uma vez, as relações sociais, a divisão cooperativa de trabalho e de trocas na sociedade, determinam a extensão e desenvolvimento da tecnologia, e não o contrário.[6]

Em adição a essas falhas lógicas, a doutrina materialista é factualmente absurda. Obviamente, o moinho de mão, que imperou na antiga Suméria, não “trouxe a vocês” uma sociedade feudal por lá: ademais, havia relações capitalistas muito antes do moinho a vapor.

Seu determinismo tecnológico guiou Marx a saudar cada nova invenção importante como a mágica “força produtiva material” que iria inevitavelmente trazer a revolução socialista. Wilhelm Liebknecht, um líder marxista germânico e amigo de Marx, relatou que Marx uma vez participou de uma exibição de locomotivas elétricas em Londres, e deliberadamente concluiu que a eletricidade daria origem à inevitável revolução comunista.[7]

Engels levou o determinismo tecnológico tão longe que declarou que foi a invenção do fogo que separou o homem dos animais. Presumivelmente o grupo de animais ao qual o fogo chegou de algum modo estava determinado a evoluir; a emergência do próprio homem era simplesmente uma parte da superestrutura.

Mesmo concedendo a tese de Marx momentaneamente em nome da argumentação, sua teoria da mudança histórica ainda se depara com dificuldades insuperáveis. Pois por que não pode a tecnologia, a qual de algum modo desenvolve-se como um dado automático, não pode mudar simples e suavemente as “relações de produção” e a “superestrutura” acima dela?

Na verdade, se a base em cada momento do tempo determina o resto da superestrutura, como pode uma mudança na base não determinar suavemente uma mudança apropriada no resto da estrutura? Mas, novamente, um elemento misterioso entra no sistema marxista.

Periodicamente, conforme a tecnologia e os modos de produção avançam, eles entram em conflito, ou, no peculiar jargão hegeliano-marxista, em “contradição” às relações de produção, a qual continua nas condições apropriadas ao período de tempo passado e à antiga tecnologia.

Essas relações, portanto, tornam-se “grilhões” impedindo o desenvolvimento tecnológico. Uma vez que se tornam grilhões ao crescimento, a nova tecnologia avança para uma inevitável revolução social que derruba as antigas relações de produção e a superestrutura e cria novas que estavam sendo bloqueadas ou acorrentadas. Desta maneira, o feudalismo dá origem ao capitalismo, o qual, por sua vez, dará lugar ao socialismo.

Mas se a tecnologia determina as relações de produção sociais, o que é a misteriosa força que atrasa a mudança nessas relações? Não pode ser a teimosia, hábito ou cultura do homem, uma vez que nós já fomos informados por Marx que os modos de produção impelem os homens a entrarem em relações sociais à parte de suas meras vontades.

Como o Professor Plamenatz aponta, nós somos meramente informados que as relações de produção se tornam grilhões às forças produtivas. Marx meramente afirma esse ponto, e nunca nem mesmo tenta oferecer uma causa, material ou outra coisa. Como Plamenatz põe inteiramente o problema:

Então, de repente, sem aviso e sem explicação, ele [Marx] conta-nos que, no entanto, surge inevitavelmente de tempos em tempos uma incompatibilidade entre elas [as forças produtivas e as relações de produção] que apenas a revolução social é capaz de resolver.

Essa incompatibilidade aparentemente surge pois a variável dependente [as relações] começam a impedir a operação livre da variável da qual depende. [As forças materiais produtivas.]

Esta é uma declaração surpreendente, e, contudo, Marx pode fazê-la sem mesmo estar ciente que ela exige explicação.[8]

O Professor Plamenatz mostrou que parte da profunda confusão é gerada e camuflada pelo fracasso de Marx em definir “relações de produção” de forma adequada. Esse conceito aparentemente inclui relações legais de propriedade. Mas se relações legais de propriedade estivessem em falta neste atraso dialético no ajuste, estabelecendo, assim, os “grilhões”, Marx estaria concedendo que o problema é realmente legal ou político, ao invés de econômico.

Mas ele queria que a base determinante fosse puramente econômica; o político e o ideológico tiveram que ser meramente parte da superestrutura determinada. Então “relações sociais de produção”, supostamente econômicas, eram os grilhões; mas isso só pode fazer sentido se significar os direitos de propriedade ou o sistema legal.

E então Marx sai desse dilema sendo tão confuso e ambivalente sobre as “relações de produção” que essas relações podem ser tomadas como incluindo a estrutura de propriedade, como idênticas com essa estrutura, ou até mesmo que os dois possam ser entidades totalmente separadas.

Em particular, Marx acompanhou seu propósito obscurantista afirmando que o sistema de direitos de propriedade era parte da “expressão legal das” “relações de produção” — portanto, de algum modo, sendo capazes de ser parte da superestrutura e ainda das “relações de produção” econômicas ao mesmo tempo. “Expressão legal”, é desnecessário dizer, também não foi definida.

Como Plamenatz resumiu, o conceito inteiro de “relações de produção”, tão necessário à tese marxista do determinismo econômico ou material, serve para Marx como um “batalhão fantasma fechando uma lacuna na frente da teoria marxiana”.[9]

Contudo, em tudo isso não há maneira alguma pela qual o conceito de “relações de produção” pode tornar o determinismo econômico inteligível, e não há meio pelo qual essas relações possam ser determinadas pelos modos de produção ou podem em si mesmas determinar o sistema de direitos de propriedade.

A única cadeia de causalidade possível e coerente, em contraste, é o contrário: das ideias para os sistemas de direitos de propriedade para o fomento ou prejuízo do crescimento da poupança e investimento, e então para o desenvolvimento tecnológico.

Os marxistas do século XX, desde Lukács até Genovese, geralmente tentaram salvar o dia do constrangimento do determinismo tecnológico de Marx e de seus seguidores imediatos. Eles sustentam que todos os marxistas sofisticados sabem que a causação não é unilinear, que a base e a superestrutura realmente influenciam uma à outra. Às vezes, eles tentam torturar os dados para alegar que o próprio Marx assumia tal posição sofisticada.

De qualquer modo, eles estão caracteristicamente ofuscando o fato que eles, na verdade, abandonaram o marxismo. O marxismo é determinismo tecnológico monocausal, junto com todo o resto das falácias que descrevemos, ou não é nada e não demonstrou qualquer mecanismo dialético inevitável ou até mesmo provável.[10]

12.3 A luta de classes

Mesmo assumindo que a incompatibilidade inexplicada entre as forças produtivas e as relações de produção existe, por que essa incompatibilidade não deveria continuar para sempre? Por que a economia não simplesmente cai em uma estagnação permanente de forças tecnológicas? Essa “contradição”, por assim dizer, dificilmente bastava para gerar o objetivo de Marx da inevitável revolução proletária comunista.

A resposta que Marx fornece, o motor das inevitáveis revoluções na história, é o conflito inerente de classes, lutas inerentes entre classes econômicas. Pois, em adição ao sistema de direitos de propriedade, uma das consequências das relações de produção, como determinadas pelas forças produtivas, é a “estrutura de classe” da sociedade.

Para Marx, os grilhões eram inevitavelmente aplicados pela privilegiada “classe dominante”, que de alguma maneira serve como substituta, ou encarnação viva, das relações sociais de produção e do sistema legal de propriedade. Em contraste, outra classe inevitavelmente “em ascensão”, de alguma forma, incorpora as tecnologias e modos de produção oprimidos ou acorrentados.

A “contradição” entre as forças materiais produtivas acorrentadas e as relações sociais de produção restritivas, assim, incorporam-se em uma determinada luta de classes entre a classe “em ascensão” e a “dominante”, que é obrigada, por uma inevitável dialética (material) da história a resultar em uma triunfante revolução por parte da classe em ascensão.

A revolução bem-sucedida ao menos traz as relações de produção e as forças materiais produtivas, ou sistema tecnológico, à harmonia. Tudo é, então, pacífico e harmonioso até posteriormente, quando outro desenvolvimento tecnológico dá origem às novas “contradições”, novos grilhões, e uma nova luta de classes para ser vencida pela classe econômica em ascensão.

Desta maneira, o feudalismo, determinado pelo moinho à mão, dá origem às classes médias quando o moinho a vapor se desenvolve, e as classes médias ascendentes, os substitutos vivos do moinho a vapor, derrubam os grilhões impostos pela classe de senhores feudais.

Portanto, a dialética material pega um sistema socioeconômico, como o feudalismo, e afirma que ele “dá origem” ao seu oposto, ou “negação”, e sua inevitável substituição pelo “capitalismo”, o qual assim “nega” e transcende o feudalismo. E, da mesma maneira, a eletricidade (ou seja o que for) irá inevitavelmente originar uma revolução do proletariado que irá permitir à eletricidade triunfar sobre os grilhões que o capitalismo coloca sobre ela.

É difícil afirmar essa posição sem rejeitá-la imediatamente como besteira. Em adição a todas as falhas no materialismo histórico que nós vimos acima, não há uma cadeia causal que ligue uma tecnologia a uma classe, ou que permita classes econômicas incorporarem os grilhões de uma tecnologia ou das “relações de produção”.

Não é oferecida nenhuma razão para que tais classes devam, ou até possam, plausivelmente, agir como fantoches determinados contra ou a favor de novas tecnologias. Por que os senhores de terra feudais tentam suprimir o moinho a vapor? Por que os senhores de terra feudais não podem investir em moinhos a vapor? E por que não podem os capitalistas investir alegremente em eletricidade, tal como já fizeram com o vapor?

Na verdade, eles têm de fato investido alegremente em eletricidade, e em todas as outras tecnologias econômicas bem-sucedidas (bem como as trouxeram à tona, em primeiro lugar). Por que os capitalistas inevitavelmente são oprimidos sobre o feudalismo, e por que o proletariado é igualmente oprimido sob o capitalismo? (Sobre a tentativa de Marx de responder a última questão, veja abaixo).

Se, finalmente, a luta de classes e a dialética material trouxerem uma inevitável revolução do proletariado, por que a dialética, como Marx mantém, é claro, chegará a um fim naquele ponto? Pois crucial ao marxismo, assim como para outras crenças milenaristas e apocalípticas, é que a dialética não pode durar para sempre.

Pelo contrário, o quiliasta, seja pré- ou pós-milenarista, invariavelmente vê o fim da dialética, ou o fim da história, como iminente. Muito em breve, iminentemente, a terceira era, ou o retorno de Jesus, ou do Reino de Deus na terra, ou o total autoconhecimento do homem-Deus, irá efetivamente colocar um fim à história.

A dialética ateísta de Marx, também, previu a iminente revolução proletária, que iria, após o estágio “comunista bruto”, trazer um estágio de “comunismo superior”, ou talvez um estágio “além do comunismo”, o qual seria uma sociedade sem classes, uma sociedade de total igualdade, de não-divisão do trabalho, uma sociedade sem governantes. Mas, uma vez que a história é a “história da luta de classes” para Marx, o estágio comunista supremo seria o último, de modo que, com efeito, a história chegaria a um fim.

Críticos de Marx, de Bakunin até Machajski e Milovan Djilas, apontaram, é claro, profeticamente e em retrospecção, que a revolução proletária, seja qual for seu estágio, não eliminaria as classes, mas, pelo contrário, estabeleceriam uma nova classe dominante e uma nova classe dominada. Não haveria igualdade, mas outra desigualdade de poder e inevitavelmente de riqueza: a elite oligárquica, a vanguarda, como dominadores, e o resto da sociedade como os dominados.

A fim de completar seu sistema, Marx estava interessado nos trabalhos dialéticos do passado, de passagens do despotismo oriental ou “modo asiático de produção” para o mundo antigo, então [do mundo antigo][11] ao feudalismo, e do feudalismo ao capitalismo.

Mas seu interesse principal, compreensivelmente, estava em demonstrar o mecanismo preciso pelo qual o capitalismo supostamente daria lugar, iminentemente, à revolução do proletariado. Após elaborar esse amplo sistema, o resto da vida de Marx foi, em grande parte, devotado a demonstrar e desenvolver esses supostos mecanismos.

12.4 A doutrina marxiana da “ideologia”

Até Marx devia reconhecer vagamente que nenhuma “força material produtiva”, nem mesmo “classes”, agiam no mundo real, mas apenas consciências e escolhas individuais. Até mesmo na análise marxista, cada classe, ou os indivíduos dentro dela, necessitam tornar-se consciente de seus “verdadeiros” interesses de classe, a fim de agir para persegui-los ou conquistá-los.

Para Marx, o pensamento de cada indivíduo, seus valores e teorias, são todos determinados, não por seu autointeresse individual, mas pelo interesse da classe ao qual ele supostamente pertence. Essa é a primeira falha fatal no argumento; por que no mundo cada indivíduo deveria sempre manter sua classe como superior a ele próprio?

Segundo, de acordo com Marx, esse interesse de classe determina seus pensamentos e pontos de vista, e devem fazer isso, pois cada pessoa é apenas capaz de “ideologia” ou falsa consciência no interesse de sua classe.

Não é capaz de uma busca objetiva e desinteressada pela verdade, nem em perseguir seu próprio interesse ou o de toda a humanidade. Mas, como von Mises apontou, a doutrina de Marx pretende ser uma ciência pura, não ideológica, e ainda assim escrita expressamente para avançar o interesse de classe do proletariado.

Mas, enquanto toda economia “burguesa” e todas as outras disciplinas do pensamento eram interpretadas por Marx como falsas por definição, como racionalizações “ideológicas” do interesse de classe, os marxistas

não eram consistentes o bastante para atribuir a suas doutrinas um caráter meramente ideológico. Os princípios marxistas, eles insinuaram, não são ideologias.

Eles são um antegozo do conhecimento da futura sociedade sem classes que, livre dos grilhões dos conflitos de classe, estaria em posição de conceber um conhecimento puro, imaculado por manchas ideológicas.[12]

Dr. David Gordon resumiu apropriadamente esse ponto:

Se todo o pensamento sobre os assuntos sociais e econômicos é determinado pela posição de classe, e quanto ao próprio sistema marxista? Se, como Marx orgulhosamente proclamou, ele pretendia fornecer uma ciência à classe trabalhadora, por qual motivo quaisquer uma de suas visões deveriam ser aceitas como verdadeiras?

Mises acertadamente nota que a visão de Marx é autorefutada: se todo o pensamento social é ideológico, então essa proposição é, em si, ideológica e as bases para acreditar nela são minadas.

Em seu Teorias da Mais-Valia, Marx não pode conter seu desprezo pelas “apologias” de vários economistas burgueses. Ele não percebeu que em suas constantes zombarias contra os vieses de classe de seus colegas economistas, ele estava apenas cavando a sepultura de sua própria gigantesca obra de propaganda em nome do proletariado.[13]

Von Mises também levanta o ponto que é absurdo acreditar que os interesses de qualquer classe, incluindo os capitalistas, podem jamais serem servidos melhor por uma doutrina falsa do que por uma doutrina correta.[14] Para Marx, o ponto da filosofia era apenas o alcance de algum objetivo prático.

Mas se, como no pragmatismo, a verdade é apenas “o que funciona”, então claramente os interesses da burguesia não seriam servidos agarrando-se a uma teoria falsa da sociedade. Se a resposta marxista for mantida, tal como é, que a teoria falsa é necessária para justificar a existência do governo capitalista, então, como von Mises aponta, do próprio ponto de vista marxista, a teoria não deveria ser necessária.

Uma vez que cada classe persegue implacavelmente seu próprio interesse, não é necessário para os capitalistas justificarem sua dominância e sua suposta exploração para si mesmos. Não é também necessário usar essas falsas doutrinas para manter o proletariado subserviente, uma vez que, para os marxistas, o domínio ou a queda de um dado sistema social depende das forças materiais produtivas, e não há caminho pelo qual a consciência possa atrasar esse caminho ou acelerá-lo. Ou, se há tais caminhos, e os marxistas implicitamente concedem esse fato, então há uma falha grave e autoderrotadora no coração da própria teoria marxiana.

É uma ironia bem conhecida e outra profunda falha no sistema marxiano que, para toda a exaltação marxiana do proletariado e a “mente do proletariado”, todos os líderes marxistas, começando com Marx e Engels, eram enfaticamente burgueses eles mesmos.

Marx era o filho de um rico advogado, sua esposa era um membro da nobreza prussiana e seu cunhado ministro prussiano do interior. Friedrich Engels, seu benfeitor e colaborador ao longo da vida, era filho de um rico fabricante, e era ele próprio um fabricante. Por que suas próprias visões e doutrinas não foram também determinadas pelos interesses de classe burgueses? O que permitiu suas consciências elevarem-se sobre um sistema tão poderoso que determina a visão de todos os outros?

Desta maneira, todo sistema determinístico busca fornecer uma saída-de-emergência para seus próprios seguidores, que são, de algum modo, capazes de escapar das leis deterministas que afligem todo o resto das pessoas. Sem querer, esses sistemas tornam-se, desta maneira, auto-contraditórios e auto-refutados. No século vinte, marxistas tais como o sociólogo alemão Karl Mannheim buscaram elevar essa saída-de-emergência até a Alta Teoria: que, de alguma maneira, os “intelectuais” eram capazes de “flutuar livremente” e levitar sobre as leis que determinam todas as outras classes.

12.5 A contradição interna no conceito de “classe”

Uma “classe” é um conjunto de entidades com alguma coisa identificável em comum. Portanto, há uma classe de “águias carecas” ou de “gerânios”, e tal classe pode ser expandida ou reduzida: por exemplo, a classe de “gerânios que são cultivados   em Nova Jersey”. Uma “classe social” é uma classe de seres humanos com uma coisa em comum. O número de classes sociais identificáveis é virtualmente infinito. Portanto: há a “classe de pessoas com mais de seis pés e quatro polegadas de altura”, a “classe de pessoas chamadas Smith”, a “classe de pessoas com peso inferior a 160 libras”, etc. ad infinitum.

Algumas dessas classes serão úteis para certos tipos de análises sociais (por exemplo, a “classe de pessoas acima de 65 anos de idade com diabetes”), para fins médicos, de seguro ou demográficos. Mas do nosso ponto de vista, em um estudo da teoria marxiana de classe, essas classes são todas insignificantes, pois não há um conflito inerente entre elas.

Na economia de mercado, na divisão internacional de trabalho e troca dos produtos, não há conflito inerente entre pessoas altas e baixas, pessoas de vários pesos e nomes, etc. Todas as classes vivem em harmonia através da troca voluntária de bens e serviços que mutuamente os beneficia.

Além disso, não há razão para um indivíduo, em uma sociedade livre, ou em uma economia de mercado, agir em nome “dos interesses de sua classe” ao invés, ou até mesmo como um substituto, de seu próprio interesse individual. Por acaso uma pessoa irá, quando decidir em qual profissão trabalhar, ou qual investimento fazer, primeiro e mais importantemente consultar seu “interesse de classe” como o membro de uma “classe com mais de 6 pés de altura”? A própria ideia é absurda.

Não há momento, então, em que as classes sociais estão em um conflito inerente? Sim, há tais tempos, mas apenas quando algumas classes são privilegiadas pela coerção estatal, enquanto outras classes são restringidas ou sobrecarregadas pela coerção estatal.

Ludwig von Mises perceptivelmente usou o termo “casta” para identificar grupos privilegiados ou sobrecarregados pelo estado, como distintos das “classes”, que são simplesmente grupos de pessoas em um livre mercado sem um conflito inerente em qualquer sentido.

O sistema de castas na Índia foi um caso clássico. As castas privilegiadas ou “dominantes” adquiriram poder, renda e status por meio da coerção do estado; as castas submersas ou “dominadas”, por exemplo, foram impedidas por coerção de abandonar as ocupações humildes de seus ancestrais. Outras “castas” ou classes dominantes e dominadas não são tão rígidas como no sistema de castas indiano, mas ainda assim elas compartilham do mesmo status coercitivamente determinado.

Assim, a casta Brâmane, privilegiada pelo estado, estava em conflito inerente com os Intocáveis, que foram subjugados como classe pelo estado. Essas castas, então, possuem um interesse de classe (ou “casta”) conflitante: os Brâmanes a manter seus privilégios, os Intocáveis ou até mesmo outras castas subjugadas a escapar de seus fardos. O ponto é que, pelo uso do poder estatal, cada indivíduo Brâmane possui um interesse comum ou de “classe” em manter seus privilégios; enquanto cada Intocável possui um interesse comum de classe de libertar-se da opressão.

Assim, mesmo nos casos menos rígidos que em um sistema de casta absoluto, a classe das pessoas altas e baixas, ou a classe de pessoas chamadas Smith, normalmente vivendo em paz e harmonia, podem tornar-se classes em conflito inerente.

Suponha, por exemplo, que o estado decrete um grande subsídio para todas as pessoas acima de 6 pés de altura, ou uma pesada taxação especial em todos aqueles abaixo de 5 pés e 5 polegadas. Se os privilégios especiais fossem concedidos às pessoas chamadas Smith, então isso seria uma classe privilegiada a custos de todos os outros, e haveria um incentivo econômico para tentar entrar na “classe dominante” (pessoas chamadas Smith) tão rápido quanto for possível.

Mesmo em tais situações, como Marx, na prática, não poderia negar, havia e há indivíduos que, por várias razões de ideologia e oportunismo, falham a seguir seu próprio interesse-de-classe comum. Havia e há Brâmanes que colocam a demanda por justiça (isto é, ideias ou princípios) acima que os interesses de sua própria classe, ou Intocáveis que, por interesse pessoal, se submetem à ordem existente.

Há uma contradição interna grave no coração do sistema marxiano, no conceito crucial de classe de Marx. Na dialética marxiana, duas potentes classes sociais enfrentam-se em um conflito inerente, a dominante e a dominada. Nos dois primeiros conflitos importantes da história: “despotismo oriental” e “feudalismo”, as classes sociais foram definidas por Marx no que nós vimos ser a maneira libertária, ou misesiana: as classes privilegiadas ou sobrecarregadas pelo estado.

Assim, no “despotismo oriental”, ou o “modo de produção asiático”, o imperador e sua burocracia tecnocrata governam o estado, e constitui sua “classe dominante”. Essa classe adquire privilégios do estado, taxa e controla as classes “dominadas”, isto é, todo o resto das pessoas, principalmente o campesinato, mas também artesões e mercadores. Aqui Marx adota a definição libertária (como nós vimos, tendo sido avançada por James Mill) de um sistema de duas-classes, os Poucos dominantes que ganharam controle do estado, que estão governando e explorando a Maioria dominada.

Sob o feudalismo, um conceito similar se aplica. A classe dos donos de terras adquiriu território através da guerra e da conquista, e se estabeleceu para oprimir o campesinato, os mercadores e os artesãos por meio de aluguéis coercitivos, impostos, regulações e servidão. Mais uma vez, as categorias de classe de Marx são categorias de “castas”: a classe dominante é o que ela é em virtude de ter ganho controle do estado, o principal aparato social de coerção.

Tudo bem. Mas então, de repente, quando Marx chega ao capitalismo, as categorias de classe se alteram, sem reconhecimento. Agora a classe dominante não é simplesmente definida como a classe que governa o aparato estatal.

Agora, de repente, o ato original de dominação ou “exploração” é o contrato de salários do livre mercado, o próprio ato de um capitalista contratando um trabalhador e um trabalhador concordando em ser contratado. Isso em si, para Marx, estabelece um “interesse-de-classe” comum entre os capitalistas, explorando uma “classe comum” de trabalhadores.

É verdade que Marx também acreditou que essa “classe capitalista” domina o estado, mas apenas como um “o comitê executivo da classe dominante”, isso é, uma classe dominante que previamente existia no livre mercado, por conta do sistema de salários.

Então o que Marx, enquanto analista do despotismo oriental ou feudalismo, consideraria como uma exploração da classe-dominante ainda existe sob o capitalismo, mas apenas como um adendo à exploração capitalista pré-existente dos trabalhadores sob o sistema de salários. A exploração da classe-dominante sob o capitalismo é singular em exercer uma dupla exploração: primeiro, no mercado como uma parte do contrato de salário, e segundo, a alegada exploração pelo estado enquanto comitê executivo da classe dominante.

Deveria ser evidente que a análise de classes de Marx é, a essa altura, uma confusão, um total desastre; duas definições contraditórias de classe são colocadas juntas, não fundidas e não reconhecidas. Por que o capitalismo deveria, de todos os sistemas, ser capaz de cobrar uma exploração “dupla” da qual nenhuma outra classe dominante no esquema histórico de Marx pode desfrutar?

Mas o ponto crucial é que a definição de Marx de classe e de conflito de classe sob o capitalismo é irremediavelmente confusa e totalmente errada. Como podem os “capitalistas”, mesmo na mesma indústria e muito menos no sistema social inteiro, ter alguma coisa crucial em comum?

Os Brâmanes e os escravos, em um sistema de casta, certamente possuem um interesse-de-classe comum, em conflito com outras castas. Mas o que é o “interesse-de-classe” comum das “classes capitalistas”? Pelo contrário, as firmas capitalistas estão em contínua competição e rivalidade uma com a outra. Elas competem por material bruto, por trabalho, por vendas e clientes. Elas competem na qualidade e no preço, e em procurar novos produtos e novos caminhos para ultrapassarem seus competidores. Marx, é claro, não nega a realidade desta competição. Então como podem todos os capitalistas, ou até a “indústria do aço”, serem considerados uma classe com interesses comuns?

Novamente, em apenas um caminho: a indústria do aço apenas possui interesses comuns se ela pode induzir o estado a criar tais interesses através do privilégio especial. A intervenção estatal para impor uma tarifa de aço, ou um cartel de aço com produção restrita e industrialistas do aço. Mas nenhuma classe na qual existam interesses comuns pré-existem no mercado antes de tais intervenções se darem.

Apenas o estado pode criar uma classe privilegiada (ou uma classe subordinada e sobrecarregada) pelas ações da intervenção na economia ou sociedade. Não pode haver uma “classe capitalista dominante” no livre mercado.

Similarmente, não pode haver uma “classe trabalhadora” com interesses-de-classe comuns no livre mercado. Os trabalhadores competem uns com os outros, assim como os capitalistas ou empreendedores competem uns com os outros. Mais uma vez, se os grupos de trabalhadores podem usar o estado para excluir outros grupos, eles podem tornar-se uma classe dominante como contrária aos grupos excluídos.

Portanto, se as restrições de imigração governamentais mantêm fora novos trabalhadores, os trabalhadores nativos podem beneficiar-se (ao menos no curto-prazo) às custas das rendas dos imigrantes; ou se os trabalhadores brancos podem manter os trabalhadores negros fora de empregos qualificados por coerção estatal (como foi feito na África do Sul), o primeiro se torna uma classe privilegiada ou dominante às custas do último.

Um ponto importante aqui é que qualquer grupo que consiga controlar o estado, ou ganhar privilégios dele, pode tomar seu lugar entre os exploradores: podem ser grupos específicos de trabalhadores, ou homens de negócios, ou membros do Partido Comunista, ou seja o que for. Não há razão para assumir que apenas “capitalistas” podem adquirir tais privilégios.

Nesta análise de classe, Marx constantemente teve de lutar com o fato que nem os capitalistas e nem os trabalhadores agem, na prática, como se cada um deles fosse membro de classes conflitantes e monolíticas. Pelo contrário, os capitalistas persistem em competir um com o outro, bem como os trabalhadores. Mesmo em seu empolgante Manifesto Comunista, Marx e Engels tiveram de admitir que “A organização dos proletários em uma classe, e, consequentemente, em um partido político, está sendo continuamente perturbada novamente pela competição entre os próprios trabalhadores”. De fato.

Mas há mais problemas graves. Pois Marx tinha sua análise de duas-classes; a essência de cada conflito titânico na história é entre duas poderosas classes sociais: a dominante vs a dominada, a classe ascendente em sintonia com as novas forças materiais produtivas e a decadente fora de sintonia.

Mas uma coisa é empregar uma análise de duas-classes, dominante vs dominado, de acordo com a definição libertária ou Milliana; uma vez que de fato há interesses e conflitos comuns de casta, esse conceito é aqui uma simplificação, mas importante e viável.

Mas o que nós fazemos no mundo complexo e multi-classe da economia capitalista de mercado? Como nós podemos empregar um modelo de duas-classes aqui, seja ao mercado ou à ação política?

E não há dúvida que Marx está comprometido com o modelo de duas-classes: capitalistas vs proletários. Todas as outras classes desaparecem, então a poderosa, explorada e miserável classe pode levantar-se como um monólito para derrubar “a classe capitalista”.

Como Marx e Engels dizem no Manifesto Comunista:

“nossa época, a época da burguesia, possui, contudo, esse recurso distintivo: ela simplificou os antagonismos de classe: A sociedade como um todo está se dividindo mais em dois grandes campos hostis, em duas grandes classes diretamente confrontando uma à outra: Burguesia e Proletariado”.[15]

Mas, na prática, analisando a história recente ou eventos atuais, Marx e Engels são forçados a falar sobre muitas classes e grupos, e suas interações — portanto implicitamente, mas definitivamente traindo seu próprio modelo absurdo de duas-classes.

E então nós temos o problema de que as duas classes de Marx estão longe de ser monólitos, que seus membros competem um com o outro constantemente e colaboram muito raramente, e também que na sociedade capitalista, em particular, é impossível analisar a ação história comprimindo todos os agentes humanos em duas classes.

Na prática, contudo, Marx e outros marxistas felizmente usam um modelo multi-classe ao analisar eventos históricos: “capital de aço”, “capital têxtil”, “capital de armamento”, “capital de finança”, etc. Mas eles não parecem perceber que enquanto eles estão sendo muito mais realistas que quando estavam tagarelando sobre “capitalistas” vs “trabalhadores” como duas classes monolíticas, eles estão traindo totalmente a própria dialética marxiana.

Nenhuma revolução inevitável, por exemplo, irá em algum momento seguir da disputa multi-classes — certamente não a da querida classe proletária de Marx.

O próprio Marx, e os marxistas em geral, devotou muitos milhões de palavras para o conceito e uso do termo “classe”. Contudo em todos os seus escritos, Marx nem uma vez a definiu. Pois se ele tivesse tentado uma definição, a contradição interna gritante no conceito, o deslize entre a criação do estado e a mera ação do mercado, iria se tornar totalmente clara, e algo teria de acontecer.

Assim, na magnum opus teórica de Marx, O Capital, não há tentativa de definição de classe. Apenas um Volume I incompleto foi publicado no tempo de vida de Marx (1967), ponto em que ele havia substancialmente terminado de trabalhar no livro.

Após a morte de Marx em 1883, Engels trabalhou, editou e publicou o manuscrito restante em dois outros volumes (1885, 1894).[16] Apenas no famoso último capítulo do terceiro volume Marx finalmente chega em uma tentativa de definir o que ele e Marx estavam falando e escrevendo sobre durante quatro décadas.

É um capítulo inacabado de surpreendente brevidade — cinco curtos parágrafos. Neste capítulo, “Classes”, Marx inicia com a clássica tríade ricardiana: que as fontes de renda na economia de mercado são salários, lucros e aluguéis, e que os recebedores de tal renda constituem as “três grandes classes da sociedade moderna” — trabalhadores, capitalistas e donos de terra.[17]

Até agora tudo bem. Mas então Marx adiciona que até mesmo a Inglaterra,

“o mais clássico e altamente desenvolvido país capitalista, contém estratos intermediários e medianos que mesmo aqui obliteram linhas de demarcação em todos os lugares”.

Mas, ele rapidamente se apressa em garantir a seus leitores que esse problema é irrelevante, uma vez que a concentração e polarização das classes está ocorrendo em ritmo acelerado.

Marx então inicia o terceiro parágrafo deste capítulo aparentemente culminante.

“A primeira questão a ser respondida é: O que constitui uma classe?”

De fato. Ele, então, adiciona que a resposta a esta questão “segue-se naturalmente” da resposta a uma segunda questão relacionada:

“O que faz os trabalhadores-assalariados, capitalistas, e donos de terra constituírem as três grandes classes sociais?”

Nós agora estamos preparados para a resposta, primeiro à esta última questão ricardiana e, então, à primeira questão crítica, “O que constitui uma classe?”

Sobre a segunda questão, Marx afirma que “à primeira vista”, a identidade das rendas com seus recursos constitui a resposta. Afinal, os trabalhadores ganham salários de seus trabalhos, os capitalistas fazem lucro de seu capital, e os donos de terra obtêm aluguéis de suas terras. Mas Marx rapidamente alerta-nos que essa simples resposta não funcionará. Pois:

Contudo, desse ponto de vista, os médicos e oficiais, e.g., também constituiriam duas classes, pois eles pertencem a dois grupos sociais distintos, os membros de cada um desses grupos recebem suas receitas de apenas uma e mesma fonte.

O mesmo seria também verdadeiro à fragmentação infinita de interesse e classificação em que a divisão do trabalho social divide tanto os trabalhadores como os capitalistas e donos de terra — os últimos, por exemplo, em proprietários de vinhedos, donos de fazenda, donos de florestas, donos de minas e donos de pescarias.

Precisamente. Marx disse muito bem; seu querido modelo monolítico de duas-classes (ou três-classes, se adicionarmos o suposto “remanescente feudal” em declínio — a classe dos donos de terra) está totalmente em ruínas.[18]

Desse modo, a teoria marxiana de classes, e, portanto, o marxismo, foram destruídas pelas mãos de seu próprio criador. Mas se é sempre mais sombrio antes do amanhecer, se o sofrimento da classe oprimida é maior bem antes do momento apocalíptico revolucionário, nós esperaríamos que Karl Marx interviesse e triunfantemente salvasse o dia. Como ele fez isso? Como o drama se desenrola? Em um dos maiores momentos anti-climáticos na história do pensamento social, o manuscrito se encerra com as linhas que acabamos de citar. Há apenas uma nota de rodapé enigmática de Engels: “Aqui o manuscrito se interrompe”.

A maneira que Engels coloca isso implica que o Mestre foi abatido assim que sua caneta estava pronta para empunhar a Resposta que iria resgatar a decadente teoria marxista de classe e colocá-la em fundamentos sólidos.

Mas nós sabemos que isso não é verdade, pois a “interrupção” ocorreu 16 anos antes da morte de Marx. Marx teve um grande tempo para sua dramática e conclusiva resposta. Por que ele não a perseguiu? Nós podemos apenas concluir que ele não pôde, que ele estava parado, que ele percebeu que não havia resposta, e que o marxismo teria, doravante, de confiar na repetição e na fanfarrice para levar-se adiante.

12.6 A origem do conceito de classe

Nós vimos acima que James Mill, nas décadas recentes do século XIX, trabalhou em uma teoria simples de classes de duas-classes, mas eficaz e convincente; a classe dominante que domina o estado, e o restante da sociedade, que constitui os dominados.

Quase no mesmo tempo, durante o período de Restauração na França após a queda de Napoleão em 1814, um grupo de teóricos libertários de laissez-faire estavam trabalhando em uma versão muito mais sofisticada do mesmo modelo, um modelo que continha uma dimensão histórica e sociológica ausente em James Mill. Esse grupo eram descendentes físicos e espirituais dos ideólogos da era napoleônica, e a maior ligação era J.B. Say.

Say foi o inspirador e estadista mais velho deste grupo de Restauração, o qual foi guiado por seu genro Charles Comte (François Charles Louis Comte, 1782-1837) e Charles Dunoyer (Barthélemy Charles Pierre Joseph Dunoyer, 1786-1862). Um importante seguidor de Comte e Dunoyer foi o jovem Augustin Thierry (1795-1856), logo se tornaria o mais notável dos historiadores franceses.

No início da Restauração até 1820, Comte e Dunoyer fundaram e editaram Le Censeur seguido por Le Censeur Européen, periódicos que se tornaram o centro do novo movimento laissez-faire.

Como Mill, Comte e Dunoyer definiram classes conflitantes como aquelas que ganharam controle dos aparatos estatais enquanto contra aquelas que são controladas pelo estado. Mas eles também apontaram que a história foi uma história de tais lutas de classes (ou castas).

Sob o despotismo oriental, o imperador e sua burocracia constituíam a classe dominante; no início da Europa, tribos conquistadoras estabeleceram-se entre os conquistados para constituir um estado com uma classe dominante; historicamente, então, outro componente de tal classe dominante é que, ao menos inicialmente, ela foi de um grupo étnico diferente da classe dominada. Desta maneira, a opressão étnica reforçou a opressão de classe político-econômica pelo estado.

Mas, para Comte e Dunoyer, o novo elemento, o fator que traria a inevitável emergência e triunfo de uma sociedade sem classes (no sentido de “sem castas”) era o que eles chamavam industrielisme.

A emergência de uma sociedade industrial exigiu um livre mercado internacional para possibilitá-la funcionar; portanto, Comte e Dunoyer consideram como inevitável que uma economia de livre mercado se difunda pela Europa e, eventualmente, pelo mundo, dissolvendo as classes dominantes e trazendo uma região e um mundo libertários, um mundo livre da opressão do estado.

Portanto o estado, nessa visão, definharia para ser dissolvido em uma economia de mercado de trocas, e, na linguagem explícita de Comte e Dunoyer, “o governo dos homens seria substituído pela administração de coisas”.

Portanto, Comte e Dunoyer viam o mundo como sendo dividido em classes produtivas (trabalhadores, empreendedores, produtores de todas as coisas), prejudicadas e oprimidas pelas classes “não-produtivas”, que usam o estado para arrecadar tributos sobre os produtores.

Os “não-produtores” são, em particular, políticos, oficiais do governo, e rentistas vivendo de títulos do governo, bem como homens de negócios subsidiados ou recebedores de privilégio governamental. O “pico de perfeição”, o qual Comte e Dunoyer viam como eventualmente chegando, “seria alcançado se todo o mundo trabalhasse, e ninguém governasse”.

Em suas análises, Comte e Dunoyer foram além de seu mentor, J.B. Say, com sua dádiva, para adicionar as dimensões filosóficas, históricas e sociológicas para aquilo que era estritamente econômico.

O movimento Comte-Dunoyer estava firme e os militantes acreditavam em liberdade individual e direitos de propriedade. Assim o ataque de Dunoyer ao igualitarismo: “Igualdade seria o reverso daquela lei fundamental da humanidade e da sociedade” a qual fornece a renda e a posição de cada homem “dependente sobretudo de sua conduta, e é proporcionada à atividade, à inteligência, moralidade e persistência de seus esforços”.

E sobre a liberdade, Dunoyer escreveu isso por 40 anos,

“Eu defendi os mesmos princípios: liberdade em todas as coisas, na religião, na filosofia, na literatura, indústria, na política. E por liberdade eu entendo o triunfo da individualidade […]”.[19]

A minhoca na maçã, o caminho no qual a análise social libertária de classes transmuta-se em uma mistura de si mesma e de sua opositora, foi fornecida por um tagarela aristocrata francês Henri, Comte Saint-Simon (Claude Henri de Rouvroy, Comte Saint-Simon 1760-1825). Saint-Simon, um pensador irremediavelmente confuso, não foi auxiliado em sua confusão existencial por sua propensão de propagar ideias oralmente, em salões, ao invés de ser pela leitura sistemática.[20]

Por um tempo, durante o período Censeur, Saint-Simon, o qual havia aprendido as ideias de Comte-Dunoyer em salões, era o que podia ser mais bem descrito como um seguidor-de-viagem deles, e divulgou as ideias deles em seu próprio periódico, l’Industrie (1816-18). Depois disso, entretanto, Saint-Simon tornou-se cada vez mais autoritário e hostil ao liberalismo de laissez-faire. Tendo absorvido a análise de classes libertária de Comte e Dunoyer, ele caracteristicamente confundiu os conceitos, e introduziu a contradição fatídica e não reconhecida: entre classes conflitantes no sentido de quem governa o estado, ou é governado por ele, versus empregadores vis-à-vis assalariados no livre mercado.

A confusão marxiana foi a contribuição duvidosa de Saint-Simon ao pensamento social. Após a morte de Saint-Simon em 1825, seu discípulo Olinde Rodrigues, um engenheiro e filho de um burocrata, junto com Enfantin e Bazard, encontrou o jornal Saint-Simoniano Le Producteur que, seguido pelas conferências e tratados para o restante da década de 1820, converteram a confusa filosofia social de seu falecido mestre à uma proposta militante por um sistema totalitarista socialista.

Esse sistema seria governado por aquilo que os saint-simonianos consideravam os verdadeiros representantes do industrielisme: uma aliança dos engenheiros e outros intelectuais tecnocráticos com banqueiros investidores, coordenados e guiados por um banco central dominado por banqueiros.

Em suma, em contraste ao socialismo comunista, o qual era ao menos ostensivamente igualitário, o Saint-Simonianismo era francamente elitista, para ser dirigido pelas classes “boas” e supostamente modernas.

Portanto, os Saint-Simonianos, os quais foram os primeiros usuários da palavra “socialista”, repudiaram os capitalistas e empreendedores, em nome de suas classes favorecidas de banqueiros e intelectuais, representando os produtores-trabalhadores.

Não é coincidência, talvez, que, dos dois co-líderes máximos do Saint-Simonianismo, Enfantin e Bazard, Barthélemy Prosper Enfantin era o filho de um banqueiro, foi educado como um banqueiro e engenheiro, e foi um estudante de matemática de Olinde Rodrigues.

Não é surpreendente que o saint-simonianismo tenha atraído enormemente os investidores bancários, o Producteur sendo financiado pelo proeminente banqueiro Jacques Laffitte.

A cultura saint-simoniana alcançou o auge de sua notável influência na França de 1830-32, após o qual os dois papas desse culto político-religioso, Enfantin e Saint-Amand Bazard (1791-1832) tiveram uma cisão ardente na questão do amor livre, na qual todo discípulo devia tomar lado imediatamente.

Infelizmente, a destrutiva divisão entre os dois papas veio tarde demais, e o movimento socialista saint-simoniano já havia se tornado grandemente influente por meio da Europa. Na França, artistas e escritores tornaram-se saint-simonianos, incluindo George Sand, Balzac, Hugo e Eugene Sue, enquanto, na música, Berlioz tentou aplicar os princípios saint-simonianos compondo uma Música sobre a Instalação das Ferrovias, e Franz Liszt tocava piano nas reuniões saint-simonianas.

Na Inglaterra, o panteísta romântico reacionário Thomas Carlyle adotou o socialismo imediatamente, e se tornou seu principal porta-voz na Inglaterra, indo tão longe a ponto de traduzir e se dedicar a publicar a obra final do mestre, O Novo Cristianismo, no qual ele previu o desenvolvimento de seu movimento para o culto de uma nova religião.

De importância mais duradoura foi a profunda influência que o saint-simonianismo teve sobre John Stuart Mill. Pois foram os saint-simonianos que foram inicial e grandemente responsáveis pela quase conversão de Mill das visões rígidas pró-livre-mercado do seu pai ao semi-socialismo.

Em sua Autobiografia, Mill explica que ele leu todo o tratado saint-simoniano e como foi parcialmente por seus escritos que [seus] olhos estavam abertos ao valor limitado e temporário da economia da velha política, a qual assume a propriedade privada e a herança como fatos irrevogáveis e a liberdade de produção e de troca como o motivo mais básico da melhora social.

De fato, em uma carta ao principal saint-simoniano francês, Gustave d’Eichtal, um amigo de Rodrigues, Mill foi tão longe a ponto de conceder que alguma forma de socialismo saint-simoniano “é provavelmente a condição final e permanente de nossa raça”, embora ele se diferenciasse deles em acreditar que levaria um grande tempo à humanidade para que ela se torne capaz de alcançar tal estado feliz.[21]

Não há país, contudo, que tenha aceitado o saint-simonianismo com mais gosto que a Alemanha. No início da década de 1830, o saint-simonianismo “foi como um incêndio no mundo literário alemão”.[22] Seus adeptos entusiastas incluíam o eminente escritor político, Friedrich Chuchholz, e o famoso poeta Heinrich Heine, enquanto a Jovem Escola Alemã de poetas tornou-se adepta ao saint-simonianismo.

Mas a influência mais importante do saint-simonianismo na Alemanha foi sobre os Jovens Hegelianos, Jovens poetas Alemães tais como T. Mundt e G. Kuehne que eram professores universitários hegelianos de filosofia.

Mais diretamente, o saint-simonianismo exerceu uma influência formativa em Marx. Em primeiro lugar, a cidade natal de Marx, Trier, fazia parte da Renânia Alemã, ocupada pela França por duas décadas das guerras francesas revolucionárias.

Portanto a cidade tornou-se grandemente suscetível às influências de intelectuais franceses. Como resultado, Trier estava cheia de agitação saint-simoniana quando Marx era um jovem adolescente; tanto que o arcebispo se sentiu obrigado a condenar as doutrinas saint-simonianas do púlpito. Ludwig Gall, ex-secretário do conselho municipal de Trier, foi um escritor saint-simoniano proeminente e prolífico. Há pouca dúvida que Marx leu os escritos de Gall.

Outra influência poderosa sobre Marx foi um de seus professores favoritos da Universidade de Berlin, Eduard Gans, um dos discípulos favoritos de Hegel, que ensinou lei criminal. Gans foi um hegeliano e também um saint-simoniano, e a interpenetração das duas doutrinas na Alemão profundamente modelou as visões dos Jovens Hegelianos, dos quais Marx tornou-se um líder.

Como Billington nota,

“Todo o fenômeno do hegelianismo de esquerda foi nada mais que um saint-simonianismo hegelianizado ou um hegelianismo saint-simonianizado”.[23]

Mergulhado em Saint-Simon, bem como em Hegel, Marx encontrou o conceito de luta de classe, pronto para usar e adequado à incorporação em seu próprio Grande Design.

Em adição à luta de classes entre os proletários e os capitalistas, Marx também adotou a versão saint-simoniano da indústria e sua personificação (entre os Saint-Simonianos e em Marx, os trabalhadores) como inevitavelmente vitoriosa, junto com o futuro objetivo da história como o desaparecimento do estado e a “substituição do governo dos homens pela administração das coisas”.

Havia, é claro, uma diferença crucial entre esse conceito abortivo e seu original. Entre Comte e Dunoyer, o estado utópico seria puramente uma sociedade livre de proprietários individuais e comerciantes do livre mercado; para Marx, era para ser uma “auto” propriedade coletiva comunal de todos os bens pelo “homem”, sem divisão de trabalho, especialização, dinheiro ou troca existente.

O próprio Marx testemunhou uma influência saint-simoniana particularmente poderosa sobre ele, conforme transmitido por seu amado mentor, pai substituto, e futuro sogro, Baron Ludwig Westphalen.

Perto do fim de sua vida, Marx contou a seu próximo amigo e admirador, o aristocrata liberal russo Maxim Kovalevsky, que ele havia absorvido o saint-simonianismo de von Westphalen, que era aparentemente um admirador fervoroso da doutrina saint-simoniana.

Nós já vimos que no Manifesto Comunista, Marx e Engels escorregaram para o libertário original, ao invés da teoria de classe saint-simoniana-marxista, confundindo os privilegiados pelo estado com os capitalistas que contratam trabalhadores no mercado. Em uma discussão penetrante, o Professor Ralph Raico apontou que o termo “burguesia” como usado no Continente forneceu a base àquela confusão. Como Raico nota:

Quando Marx diz que a burguesia é a principal classe exploradora e parasita na sociedade moderna, “burguesia” pode ser entendida em dois caminhos diferentes.

Na Inglaterra e nos Estados Unidos, ela tendeu a sugerir a classe de capitalistas e empreendedores que ganham a vida comprando e vendendo no (mais ou menos) livre mercado […] No Continente, contudo, o termo “burguesia” não possui tal conexão necessária com o mercado: pode significar com a mesma facilidade a classe de “funcionários públicos” e rentistas da dívida pública como a classe de empresários envolvidas no processo da produção social.[24]

Raico prossegue afirmando que a exploração sistemática das outras classes pelos burocratas e detentores da dívida-pública “era um lugar-comum no pensamento social do século XIX”; Tocqueville, por exemplo, denuncia o governo da “classe média” sob a “monarquia burguesa” de Luís Felipe (1830-48) como se segue: “Instalou-se em todos os escritórios, prodigiosamente aumentou o número de escritórios, e adquiriu o hábito de viver do Tesouro público quase tanto quanto de sua própria indústria”.[25]

Mas isso está longe de ser tudo. O Professor Raico mostra que, analisando eventos históricos específicos, particularmente na história contemporânea da França, Marx e Engels continuam caindo na análise do tipo libertário, de duas classes, vinculada ao estado.

Portanto, considerando o XVIII de Brumário de Luís Bonaparte (1852), analisando os eventos que levaram ao golpe de Bonaparte de 2 de dezembro de 1851, o qual o próprio Marx retratou como uma “demonstração de como a luta de classes na França criou as circunstâncias e relações que tornaram possível para uma mediocridade grotesca desempenhar o papel de um herói”. No XVIII de Brumário, Marx escreve indignado sobre:

Esse poder executivo, com sua burocracia enorme e organização militar, com sua engenhosa máquina de estado, abraçando camadas simples, com uma série de funcionários que somam meio milhão, esse terrível corpo parasita, que envolve o corpo da sociedade francesa como uma rede e sufoca todos os seus poros, surgiu nos dias da monarquia absoluta […]

Todo interesse comum foi imediatamente separado da sociedade, contrapondo-se a ele como um interesse geral superior, arrancado da atividade dos próprios membros da sociedade e tornado objeto de ação governamental, de uma ponte, uma escola e uma propriedade comunal de uma comunidade de aldeia às ferrovias, a riqueza nacional e a universidade nacional da França […]

Todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina ao invés de esmagá-la. As partes que contenderam, por sua vez, consideraram a posse deste enorme edifício estatal como o principal despojo do vencedor […] Sob o segundo Bonaparte […] O estado parece ter feito ele próprio completamente independente. Como contra a sociedade civil, a máquina estatal consolidou sua posição […][26]

Marx não está apenas usando aqui uma análise de luta de classes limitada pelo estado, mas ele prenuncia o desenvolvimento libertário da ideia do estado como um instrumento anti-social, como em Herbert Spencer e em Franz Oppenheimer, e até mesmo a análise libertária avançada de Albert Jay Nock do século XX do “poder do estado” como um interesse inerentemente oposto e explorador do “poder social”.

Bom. Mas onde em tudo isso estão os capitalistas e seu uso do estado como seu “comitê executivo” para redobrar sua exploração do proletariado? Onde, de fato, estão os capitalistas e proletários?

Como Raico aponta, há uma deleitosa ironia aqui. Pois a análise libertária sofisticada não fala apenas do poder estatal, mas também dos vários grupos na história — o despotismo burocrata asiático, os donos de terra feudais, Partidos Comunistas, ou seja o que for — que conseguiram obter o controle do estado e usar seu aparato coercitivo de governo explorador sobre o resto da sociedade. Portanto, como Raico nota, a análise marxiana

“ignora aqui completamente o uso massivo do poder estatal por segmentos da classe capitalista, e limita a si próprio às atividades exploratórias daqueles diretamente no controle do aparato de estado”.

Por que Marx e Engels

“deveriam ser cautelosos para encobrir os capitalistas dessa forma”,

Raico conclui ironicamente,

“Eu não posso dizer”.[27]

Marx repetiu uma análise similar 20 anos depois em seu A Guerra Civil na França (1871) na ascensão e queda da Comuna de Paris. Essa Comuna, escreveu ele, visava devolver

“ao corpo social todas as forças até então absorvidas pelo parasita do Estado que se alimentava e obstruía a livre circulação da sociedade”.

Em particular, a Comuna foi capaz de ter sucesso, ao menos por um tempo,

“destruindo as duas maiores fontes da despesa do governo — o exército permanente e o funcionalismo do Estado”.

Finalmente, Engels em seu prefácio de 1891 à Guerra Civil na França, aplicou essa mesma análise libertária, e muito anti-marxista, à situação política existente nos Estados Unidos:

Em nenhum lugar os “políticos” formam uma seção [classe?] mais separada e poderosa da nação do que precisamente na América do Norte.

Lá, cada um dos dois principais partidos que se sucedem alternadamente no poder é, por sua vez, ele mesmo controlado por pessoas que fazem da política um negócio […] É na América que nós melhor vemos como lá toma lugar esse processo do poder estatal tornado a si próprio independente, em relação à sociedade […] nós encontramos duas grandes gangues de especuladores políticos, que alternadamente tomam posse do poder estatal e exploram-no pelos mais corruptos meios e pelos mais corruptos fins — a nação é impotente contra esses dois grandes cartéis de políticos que são ostensivamente seus servos, mas na realidade a dominam e saqueiam.[28]

O Professor Raico conclui sua análise como se segue:

Parece, portanto, que há duas teorias do estado (bem como, correspondentemente, duas teorias da exploração) dentro do marxismo: há a costumeiramente discutida e bem familiar [e a que o próprio Marx proclamou], do estado como instrumento da classe dominante (e a teoria concomitante que localiza a exploração dentro do processo de produção); e há a teoria do estado que o coloca contra a “sociedade” e “nação” (dois termos surpreendentes e significantes para encontrar neste contexto […]).

Além disso, parece sugestivo que é a segunda teoria que predomina naqueles escritos em que Marx que, por conta de seus sofisticados e ressaltados tratamentos da realidade política concreta e imediata, muitos comentadores encontraram ser as melhores exposições da análise histórica marxiana.[29]

12.7 O legado de Ricardo

Como Karl Marx mergulhou na economia do capitalismo que iria ocupar o resto de sua vida, ele achou pronta às mãos uma arma maravilhosa: A economia ricardiana.

Em contraste a J.B. Say e a tradição da França, Ricardo concentrou-se não na troca do mercado e seu inevitável foco nos agentes individuais e vendedores beneficiando-se da troca, mas na “produção” seguida pela “distribuição” de renda como processos distintos e separados.

O foco principal de Ricardo era em como essa renda social da produção é “distribuída”. Enquanto Say ou Turgot olharam aos fatores individuais de produção e como suas rendas emergem da produção e da troca, Ricardo focou-se unicamente nas supostamente homogêneas “classes” inteiras de produtores: trabalhadores ganhando salários, capitalistas ganhando “lucros” e donos de terra adquirindo aluguéis.

Como von Mises apontou:

“No mercado há sempre apenas indivíduos singulares […] Até Marx teve de fazer questão de explicar que as compras e vendas são realizadas apenas entre indivíduos singulares, não é admissível olhar a eles como relações entre classes sociais”.[30]

Para Ricardo, então, tautologicamente, dada a produção total, a qual estava misteriosamente e não explicada, mais do total fixo do bolo obtido por uma classe precisa significar menos para outras classes.

Não há, como nós lembramos, empreendedores em Ricardo, pois os ricardianos tinham seus olhos firmemente fixados em um equilíbrio de longo prazo, o qual supostamente descreve a realidade viva, e em tal equilíbrio, desprovido de mudança ou incerteza, não há espaço para empreendedorismo. Portanto, para Ricardo, já existiam as condições para uma teoria de luta de classes da economia capitalista.

Não apenas isso. Pois o Marx encantado achou que a doutrina ricardiana era, com efeito, uma teoria do valor de quantidade de trabalho.

A utilidade saiu, e uma vez que apenas bens reproduzíveis e bens não-reproduzíveis, tais como pinturas de Rembrandt, eram considerados explicáveis, apenas o custo de produção era considerado um determinante do valor incorporado dos bens. E uma vez que Ricardo identificou o “aluguel” como supostamente não uma parte do custo, o único custo possível exceto horas de trabalho era lucro (juros) ou custos de capital, e isso era tão pequeno que podia ser prontamente negligenciado.

Além disso, os lucros são alegadamente apenas um resíduo decrescente após o pagamento dos salários, que estão condenados a continuar crescendo em dinheiro, mas não em termos reais, à medida em que a população continua a pressionar a oferta de alimentos.

Na perspectiva sombria ricardiana, há dois caminhos lógicos em direção ao pedido por mudança no status quo.

Para Marx, a teoria do valor-trabalho, a visão que o trabalho é o único produtor de valor, significava que os retornos do capitalista, o lucro, constituía a extração exploratória da “mais-valia” dos trabalhadores. Os trabalhadores produzem todo o valor, mas os capitalistas são capazes, de algum modo, de coagir os trabalhadores a aceitarem salários que são inferiores ao produto completo.

De fato, adotando a visão malthusiana-ricardiana da população, aos trabalhadores é pago um salário de subsistência, enquanto os capitalistas extraem o restante do produto dos trabalhadores como sua mais-valia, ou lucro. Para o velho problema malthusiano: o mesmo problema de superpopulação não impediria uma economia socialista? A resposta marxista foi que essa lei férrea dos salários (para adotar o termo de Lassalle) não se aplicaria no socialismo.

Estranhamente, nem Marx nem seus críticos jamais perceberam que há um lugar na economia onde a teoria marxista da exploração e mais-valia se aplica: não à relação capitalista-trabalhador no mercado, mas à relação de mestre e escravo sob a escravidão. Uma vez que o mestre possui seus escravos, eles realmente pagam apenas seus salários de subsistência: o suficiente para viver e para reproduzir, enquanto os mestres embolsam o excedente do produto marginal dos escravos seus custos de subsistência.

Essa mais-valia extraída dos escravos constitui os lucros dos mestres da propriedade dos escravos. Em uma sociedade livre, em contraste, os trabalhadores, donos de seus próprios corpos e seus próprios trabalhos, embolsam seu produto marginal inteiro (descontado, como um austríaco adicionaria, pelo retorno de juros, os trabalhadores pagam livremente e de boa vontade aos capitalistas para fazer avançar o valor de sua produção agora, em vez de esperar até que o produto seja produzido e vendido).

Contudo, tal é o processo de capitalização no mercado que, em um sistema de escravidão no meio de uma economia geral de mercado (como na América do Sul), a mais valia será capitalizada (aumentando o valor e, portanto, o preço de venda e compra dos escravos).

A tendência de longo prazo será que o negócio da escravidão produza um retorno igual àquele de qualquer outra indústria. Os lucros excedentes serão transferidos para a taxa de retorno geral sobre o capital.

Retornando para Marx, ele também achou muito útil o conceito smithiano (não, para crédito deste último, muito empregado por Ricardo) que apenas commodities materiais, e não serviços imateriais, constituem produção ou valor. Os bens materiais são trabalho congelado, ao passo que os serviços de trabalho imateriais são, em termos marxistas, “não-produtivos”.

Nessa área, Marx dá um gigante passo para trás de Ricardo a Adam Smith. Tudo isso, contudo, encaixou-se totalmente no materialismo filosófico marxista.

Marx também descobriu que Ricardo já havia tratado todo trabalho como homogêneo, com quaisquer diferenças na qualidade simplesmente ponderadas por algum tipo de índice para reduzi-las à quantidade de horas de trabalho.

Um caminho lógico para um ricardianismo radical, claramente, foi pedir pela expropriação da mais valia, e pelo estabelecimento de um sistema no qual os trabalhadores ganham o valor completo de seu produto. Como nós veremos brevemente, esse foi o caminho tomado pelos escritores “socialistas ricardianos” na Grã-Bretanha.

Mas havia outro caminho, mais lógico. Depois de tudo, os ricardianos podiam e disseram que o capital ganhava lucros com o fornecimento de bens de capital aos trabalhadores, com “trabalho congelado”. Em tal serviço é claro, caso contrário, os trabalhadores não teriam de depender dos capitalistas para obter dinheiro enquanto trabalhavam no produto.

A resposta de Marx é que os bens de capital, sendo trabalho congelado, deveriam ser da posse dos trabalhadores esquece o ponto de que alguma coisa, algum serviço deve ter sido adicionado pelos capitalistas — os quais, como nós já vimos, era essencialmente economia e, se assim podemos dizer, quem estava fazendo avançar o “tempo congelado” dos trabalhadores.

Um caminho radical muito diferente, muito mais ricardiano e mesmo já trilhado por James Mill, era concentrar-se em outra possível classe de bixo-papão no sistema ricardiano: os donos de terra — eles quem simplesmente extraem um retorno sem trabalharem, por simplesmente sentar-se sobre os “poderes originais e indestrutíveis do solo”.

Ademais, em sua própria visão das leis históricas, os ricardianos ortodoxos viram os capitalistas perdendo lucro, os trabalhadores estáticos no nível de subsistência, e o produto social cada vez mais consumido pela classe dos proprietários parasitas. A nacionalização do aluguel da terra, então, a rota “pré-Henry Georgista”, foi tomada por outros discípulos, incluindo o último dos ricardianos consistentes e radicais, Henry George.

Mas como Marx conseguiu resolver a questão da terra que tanto agitou Ricardo e Mill? Primeiro de tudo, Marx era o grande profeta do homem enquanto trabalhador; em sua versão do Hegelianismo, o homem criou a natureza, e, de fato, todo o universo. Uma vez que a terra é criação do homem, não há lugar para preocupações sobre o valor da terra ou terra-criada. Trabalho é tudo. Segundo, terra como a base para a tecnologia, a economia, e todo o sistema social, é uma chave para o sistema feudal, mas o feudalismo era parte da decadente ordem pré-industrial, um remanescente reacionário indigno de atenção.

Basicamente, então, Marx simplesmente assimilou a terra no “capital”, e o retorno da terra em lucros. Portanto, a terra — a terceira classe de fatores supérfluos e irritantes — podia sair e abrir espaço para a poderosa polarização de duas classes e a luta de classes final entre os capitalistas e o proletariado.

12.8 Socialismo ricardiano

Marx dificilmente foi a primeira pessoa a chegar às conclusões radicais proletárias do sistema ricardiano e a teoria do valor de trabalho. No meio entre Ricardo e Marx estavam os “socialistas ricardianos”, os quais influenciaram grandemente Marx, mas sua influência tem sido depreciada pelos marxistas — incluindo o próprio Marx — os quais gostam de pensar que o único gênio de seu mestre na chegada ao socialismo neo-ricardiano não tinha predecessores.

O primeiro socialista ricardiano foi William Thompson (1775 – 1833), um senhorio irlandês próspero de County Cork. O trabalho prolixo e repetitivo de Thompson, Uma Investigação sobre os Princípios da Distribuição de Riqueza, publicado em 1824, veio em três edições na próxima metade do século.

Um utilitarista benthamista extremo, Thompson em sua Investigação também simplesmente declarou que “trabalho é o único pai da riqueza”. Nem a utilidade, prazer, ou escassez tem qualquer coisa a ver com ela. A partir dessa afirmação direta, a teoria do valor-trabalho seguiu-se rapidamente.

Como Alexander Gray coloca, com sua sagacidade característica,

 “deve ser óbvio que, se a definição selecionada fornece antecipadamente que o trabalho é o único pai da riqueza, isso deve ser uma ajuda considerável para provar que a riqueza pode ser atribuída inteiramente ao trabalho”.[31]

Thompson advogou por um mundo de trocas livres e voluntárias como um caminho para garantir que os trabalhadores ganhem seu produto. Mas o que do sistema existente de troca? Antecipando Marx, essas trocas eram, de acordo com Thompson, coagidas, pelos capitalistas “vendendo o produto deles [dos trabalhadores] pela força”.

Mas aqui, nos limites do marxismo, Thompson recuou para uma análise libertária de classe. Pois o que constitui tal coerção? Todo um espectro de “recompensas, protestos, aprendizagens, guildas, corporações, monopólios” — o que se parece muito com Comte, Dunoyer ou James Mill.

Mas Thompson continua. Renda e lucro são, em particular, “mais-valia” (na frase original de Thompson) extraída dos trabalhadores explorados.

Mas então Thompson recua novamente de sua visão completa, concedendo que “o trabalhador deve pagar pelo uso deles (bens de capital), quando tão infeliz a ponto de não possuí-los”. Então mesmo que Thompson esteja cheio de acusações contra os capitalistas gananciosos e ambiciosos, ele concede que eles performam uma função necessária. Quanto, então, eles devem ser pagos? Não é surpreendente que Thompson tenha se atrapalhado tentando descobrir tal princípio.

Thompson acabou, então, longe de ser um revolucionário; ao invés disso, sua solução moderada pré-John Stuart Mill foi encorajar cooperativas como um meio de chegar à harmonia entre classes (em seu Trabalho Recompensado, 1827). Mas isso mal exauriu as heresias de Thompson como um pré-marxista. Pois, sendo dedicado às livres trocas, Thompson sensatamente teve de admitir que da troca geralmente emerge a acumulação, e da acumulação surge a terrível classe capitalista.

Assim:

“você não pode limitar as trocas e consequentes acumulações do capitalista sem, ao mesmo tempo, restringir todas as trocas”.

E, além disso, admitindo a volta da serpente dos salários e do aluguel ao Éden:

“Por que não permitir o trabalhador a trocar pelo uso de uma casa, de um cavalo, de uma máquina, bem como por sua posse?”[32]

O outro pai fundador do socialismo ricardiano na década de 1820, John Gray (1799-1883), estava possuído, assim como Thompson, de um espírito não-marxiano da moderação.

Como um jovem escriturário escocês em uma casa de atacado em Londres, Gray publicou sua obra socialista Lições sobre a Felicidade Humana em 1825. Um arqueo-utilitarista, e expositor da teoria de valor de trabalho ricardiana, Gray fulminou contra capitalistas como exploradores da classe trabalhadora, e, como Marx, viu as sementes de tal exploração na troca ou permuta.

Se a inovação de William Thompson era o enunciado “mais valia”, a contribuição particular de John Gray para a mistura marxista era trazer de volta, de uma maneira pesada, a noção fisiocrata de Adam Smith do trabalho produtivo vs o trabalho improdutivo, e, portanto, resgatar esse conceito imperfeito da negligência ricardiana.

Não apenas isso: mas Gray estreitou consideravelmente o padrão smithiano de trabalho produtivo. Como Gray coloca,

eles são somente membros produtivos da sociedade se aplicam suas próprias mãos seja para o cultivo da terra ela mesma, ou a preparação e apropriação da produção da terra para os usos da vida”.

Tendo estreitado a definição de produtivo, Gray, então, começa a fazer concessões curiosas, admitindo, por exemplo, que algumas ocupações podem ser até certo ponto “úteis”, embora “improdutivas”.

John Gray então começa felizmente a repassar a lista das ocupações britânicas, e a alocá-las de uma maneira obviamente puramente arbitrária as porcentagens de “produtividade” ou “utilidade” em cada ocupação.

Portanto, Gray afirma que os comerciantes, fabricantes e outros que são “meros distribuidores de riqueza”, podiam ainda ser “úteis”, mas “apenas em um número suficiente”. Gray concluiu que as classes produtivas estavam bem menores que metade da população total.

Voltando, mesmo inconscientemente, aos gregos antigos, Gray reservou um pouco de seu veneno preferido para os varejistas, a quem ele atacou como “produtivos” apenas de “engano e falsidade, loucura e extravagância, escravidão do corpóreo e prostituição das faculdades intelectuais do homem”.[33]

Acontece que para Gray, o pecado principal, o mal crucial, é a competição. A competição de trabalho empurra os salários do trabalho para um mínimo. Jargão marxista padrão, sem dúvida. Mas, em adição, até mesmo o trabalho é supostamente o único criador do valor, Gray também se preocupa que a concorrência, com igual perniciosidade, também reduza ao mínimo a quantidade de lucros e aluguéis.[34]

John Gray conclui com o princípio geral que todo indivíduo na sociedade, exceto aqueles vivendo com salários fixos, tem suas rendas limitadas e empurradas para baixo pela competição.

Acontece que a exploração do trabalho, na verdade de todos, é arquitetada pela própria competição, a qual “limita” a produção.

Colocar um fim à competição, então, e não apenas o mundo ideal chegará, onde os trabalhadores ganham seu produto completo, como também a riqueza será assim multiplicada “sem qualquer limite conhecido”. O mundo é apenas empobrecido por conta da competição; eliminando-a, a riqueza será abundante para todos.[35]

Mesmo que Gray mantivesse que a competição pudesse ser abolida imediatamente e com apenas bons efeitos, ele foi perturbadoramente vago sobre como realizar essa façanha. Ele pareceu favorecer algum tipo de cooperativa abrangente, deste modo terminando perto da reforma thompsoniana.

Logo, no entanto, Gray voltou sua atenção para as “limitações” na produção supostamente impostas pelo dinheiro forte, e assim ele se voltou cada vez mais para um pedido de quantias cada vez maiores de dinheiro fácil e barato.

Assim, em 1831, o livro de Gray, O Sistema Social, clamou por crédito barato e abundante para abastecer e financiar uma produção crescente, guiada por um banco governamental nacional. Gray, é claro, também defendia o papel-moeda irresgatável e a abolição do padrão ouro. Essa análise foi desenvolvida mais amplamente no último trabalho de John Gray, Lições sobre a Natureza e Uso do Dinheiro (1848).

Após 1848, os protestos sociais John Gray cessaram completamente, e então até recentemente foi assumido pelos historiadores que ele tinha morrido “por volta de 1850”. Acontece, no entanto, que Gray, pouco tempo após a publicação de sua Lição sobre a Felicidade Humana, fundou com seu irmão James a famosa editora de J. & J. Gray de Edimburgo. À medida que a empresa florescia, especialmente depois de 1850, Gray estabeleceu-se para uma existência confortável e morreu com a idade avançada de 84 anos em 1883.

Uma década e meia após Thompson e Gray, o terceiro principal socialista ricardiano fez sua aparição: John Francis Bray (1809-97), em sua obra principal, muito citada por Marx, Erros do Trabalho e a Remediação do Trabalho (1839). Bray nasceu em Washington DC, o filho de atores ingleses, e, quando sua mãe morreu, seu pai doente trouxe John Francis de volta para Leeds, na Inglaterra, em 1822. Em Leeds, Bray se tornou um compositor e mergulhou no movimento sindical, tornando-se tesoureiro da e Leeds Working Men’s Association em 1837.

Como os outros, um utilitarista extremo, Bray, em seu Erros do Trabalho, afirma que Deus queria que os homens fossem felizes, mas que a infelicidade foi injetada no mundo pela instituição da propriedade privada, a qual destruiu a instituição justa da propriedade comunal, particularmente na terra.

Da propriedade privada surgiu a odiosa divisão do trabalho e o conflito de classes, a exploração dos trabalhadores e a extração de sua mais-valia pela classe capitalista.

Além disso, Bray afirmou que a raiz do problema é o suposto fato de troca desigual. Embora entendendo que, nas trocas de mercado, cada parte se beneficia, Bray afirma que, principalmente em um contrato de trabalho, isso não é suficiente, que a troca e seus benefícios devem ser “iguais”.

Não percebendo que não há sentido em qualquer troca a menos que o valor, para cada homem, de cada um dos dois bens trocados seja desigual, Bray, em uma notável passagem pré-marxista, afirma:

Os homens possuem apenas duas coisas as quais eles podem trocar uns com os outros, a saber, trabalho e o produto do trabalho; portanto, deixe-os trocar como quiserem, eles simplesmente dão, por assim dizer, trabalho por trabalho.

Se um sistema de trocas fosse aplicado, o valor de todos os outros seria determinado pelo custo total de produção, e valores iguais seriam sempre trocados por valores iguais.[36]

Aqui, reunimos em um pequeno compasso uma série de falácias marxistas cruciais: que apenas commodities são produzidas ou importantes (em contraste aos supostos serviços não-produtivos); a antiga falácia aristotélica que a troca implica igualdade de valor; a teoria de valor de trabalho; e a ideia de que em um mundo justo, preços irão todos serem iguais aos seus custos de produção, basicamente a quantidade de horas de trabalho despendidas na produção.

Para John Bray, como para Marx após ele, o remédio para todo esse mal sistêmico é o comunismo, “a mais perfeita forma de sociedade que o homem pode instituir”.

Mas em contraste para Marx, Bray não viu um mecanismo inevitável ou lei da história para produzir aquele grande evento. Pelo contrário, e em contraste aos outros comunistas de seu dia, John Bray percebeu que o comunismo exigia um Novo Homem Comunista para trabalhar, mas que o advento desse novo homem definitivamente não estava no horizonte. Qualquer comunismo se depararia com “o egoísmo imundo e asqueroso que agora mais ou menos acompanha toda ação, se apega a todo pensamento e polui toda aspiração”.[37]

Em vez disso, Bray focou sua visão, não no objetivo final impraticável e remoto, mas em sua transição supostamente prática, ou objetivo social intermediário.

Acontece que essa era uma versão hipertrofiada dos esquemas cooperativos que haviam se mostrado tão atraentes para Thompson e Gray. Bray propôs que o mundo fosse organizado em uma vasta rede cartelizada de corporações cooperativas: ou seja, cooperativas organizadas com base no princípio de um acionista, um voto. A rede cartelizada seria alcançada pelos trabalhadores e cooperadores comprando todos os capitalistas existentes. Bray não parecia ver que adquirir o capital para financiar essa aquisição mais massiva de todos os tempos pode ser ainda mais impraticável do que organizar a violenta revolução proletária de Marx.

Arranque um socialista dessa época e você encontrará uma manivela de dinheiro. Com certeza, Bray imaginou que o cartel cooperativo, uma vez estabelecido, eliminaria o dinheiro existente e substituiria por um banco nacional que emitiria notas para cada trabalhador com base na quantidade de tempo de trabalho que ele gastou na produção. Os bens que o trabalhador compraria, por sua vez, seriam precificados pela quantidade de tempo de trabalho despendida neles.

Talvez se Marx algum dia tivesse se interessado em mapear sua futura economia comunista, as anotações sobre o tempo de trabalho poderiam ter feito parte de seu pacote.

Estritamente, não haveria razão para que as notas de trabalho marxianas aumentassem, mas John Bray, como um inflacionista, é claro que não via dessa forma. A função de seu banco nacional seria manter o dinheiro emitido e fluindo

“como sangue dentro do corpo vivente, […] igualmente por meio da sociedade em geral, e infundir saúde e vigor universais”.

A emissão da nota seria, é claro, sempre mantida “dentro dos limites do capital efetivo real existente” — uma forma de argumento das “necessidades de comércio” pelo menos tão absurda quanto a variante usual.[38] Pois o “valor” nominal do capital existente seria, é claro, aumentando à medida em que a oferta continuasse aumentando.

Alguns anos após a publicação do Erros do Trabalho, em 1842, Bray retornou aos Estados Unidos. Um segundo livro, Uma Viagem da Utopia, foi finalizado em manuscrito, mas permaneceu não-publicado até a década de 1950.

Pelo resto de sua vida nos Estados Unidos, Bray escreveu esporadicamente, contribuindo com muitas cartas para jornais trabalhistas e socialistas, bem como para capítulos no meio da década de 1950 pelo livro não finalizado, A Era Vindoura.

A vida de Bray foi tão esporádica quanto sua produção. Ele descobriu que ganhar a vida era precário, trabalhando para pequenos empregos como impressor de jornais e reclamando, um tanto inconsistentemente com suas doutrinas, que os empregadores americanos eram muito mais exploradores do que os britânicos, os “Yankees”, como o professor Dorfman parafraseou Bray, “parecendo mais jogadores e aproveitadores do que homens de negócios honestos”.[39]

Por fim, Bray foi para o oeste, para o Michigan, onde herdou algumas terras e ganhava a vida como jornalista e pequeno fazendeiro. Durante a década de 1870 e 1880, Bray tornou-se vice-presidente da Liga da Reforma do Trabalho e foi um membro da organização socialista Cavaleiros do Trabalho.

Seus escritos posteriores, alguns dos quais denunciam o espiritualismo, enfatizam ataques ao padrão ouro e uma pedida pela abundância do dinheiro de papel estatal que iria supostamente levar as taxas de juros para zero. Esse ideal comunista foi agora abandonado como utópico.

Dois dos últimos escritos de Bray são dignos de nota. Mesmo que ele se opusesse à escravidão no Erros do Trabalho, sua oposição à Guerra Civil em seu panfleto anônimo anti-guerra, Destino Americano: O que Deve Ser, Republicano ou Cossaco? (1864) guiou ele a julgar a escravidão como realmente sendo menos pior do que países amaldiçoados por uma grande dívida pública.

Ademais, o estado natural do homem negro, para Bray, é “nudez e indolência”, de modo que um Sul que libertasse seus escravos decairia irremediavelmente, com o capital desaparecendo e as plantações voltando ao deserto.

Em seu livro final, Deus e o Homem, uma Unidade e Toda Humanidade uma Unidade (1879), John Bray adicionou ao seu inflacionismo financeiro a ideia de uma “religião não-teológica”, na qual estabelecer as instituições sociais certas trariam um tipo de “imortalidade” deste mundo.

Uma anomalia marcante é um escritor da década de 1820 e depois que é invariavelmente listado pelos historiadores como um importante socialista ricardiano, mas que enfaticamente não era nem ricardiano nem socialista.

Thomas Hodgskin (1787-1869) foi um teórico político brilhante, inovador e autodidata que, longe de ser um socialista, era um libertário de laissez-faire ao ponto de ser um anarquista individualista.

O pai de Hodgskin era um lojista no estaleiro naval que mandou seu filho para o mar aos 12 anos. Eventualmente, os instintos e princípios individualistas de Hodgskin friccionaram-se contra a disciplica naval, e um dia, ele escreveu,

“Eu reclamei do dano feito a mim, por um comandante-em-chefe, para ele mesmo, em uma linguagem que eu pensei que merecia; ele tinha injustamente privando-me de toda chance de promoção a partir de meus próprios esforços, e isso estava roubando-me toda esperança”.[40]

Como alguém poderia esperar, o comandante naval de Hodgskin não gostou da sua explosão de justa indignação, e Hodgskin foi forçado a aposentar-se da Marinha, com metade do salário, com uma idade de aposentadoria relativamente jovem de 25 anos. Amargurado, Hodgskin prontamente vingou-se da marinha publicando seu primeiro livro, Um Ensaio sobre a Disciplina Naval (1813), um ataque violento à tirania militar.

Eloquentemente, Hodgskin inicia sua obra apresentando a principal lição que ele havia aprendido: “Submeter-se pacientemente à opressão (por conta de que ela vem de um superior) é um vício: superar seus medos desse superior, e resistir a ele, é uma virtude”.[41]

A experiência de Hodgskin deixou-o um opositor ferrenho do governo e da intervenção governamental em todas as suas formas; e diferentes anos de viagem pela Europa, lendo e conhecendo pessoas fortaleceu e aprofundou essas convicções.

Retornando à Grã-Bretanha, Hodgskin publicou um livro de viagem de dois-volumes, Viagens no Norte da Alemanha (Edimburgo, 1820), no qual, como Alexander Gray coloca, “inocentes Reisebilder são intercalados com digressões anarquistas, sem dúvida para o espanto e perturbação de muito de seus leitores”.[42]

Estabelecido em Londres, Hodgskin foi, pelo resto de sua vida, trabalhar como palestrante e jornalista. Ele trabalhou por um tempo com pessoas que pareciam ser seus aliados naturais pelo laissez-faire: Francis Place, James Mill e os radicais filosóficos.

Mas muito em breve tornou-se claro que havia várias diferenças filosóficas entre eles. Em primeiro lugar, Hodgskin abandonou seu anterior utilitarismo benthamista por uma posição incisiva, militante da lei natural e dos direitos naturais. Em seu trabalho brilhante e lógico, O Direito Natural e o Artificial de Propriedade Contrastados (1832), Hodgskin apresentou uma visão lockeana radicalizada de direitos de propriedade. Um defensor ardente do direito de propriedade privada, incluindo uma defesa do homesteading da propriedade privada na terra, Hodgskin corrigiu vários deslizes de Locke a partir de uma posição “lockeana” consistente.

Para Hodgskin, era tão claro quanto o cristal que os direitos “naturais” de propriedade privada eram sólidos e justos (cada homem em sua própria pessoa, ou na propriedade que ele cria ou na terra que ele apropria, ou na propriedade que ele adquire em uma troca de títulos justos de propriedade).

Por outro lado, um grande dano foi realizado pelos direitos de propriedade “artificiais”, isto é, direitos criados pelo governo artificialmente, em desafio à lei natural e aos direitos naturais. O trabalho de Hodgskin permanece hoje como uma das melhores exposições da doutrina dos direitos naturais de propriedade.

Outra diferença com os benthamistas foi que, infelizmente e anomalicamente, Hodgskin absorveu a teoria do trabalho do valor de outro influente “socialista ricardiano” da época, o pseudônimo “Piercy Ravenstone”.[43]

Ravenstone denunciou a propriedade privada da terra e do capital por criar propriedade roubada, ou “artificial”, ao passo que, uma vez que o trabalho é o único criador da produção, por direito ou naturalmente, toda a renda deveria redundar em trabalho. Renda e lucro, afirmou Ravenstone, são extraídos do produto do trabalho: esse “fundo para a manutenção dos ociosos é o excedente do trabalho dos trabalhadores”.

Ademais, Ravenstone apresentou uma teoria realmente bizarra do capital, na qual “capital” é um conceito não existente designado para encobrir o roubo do excedente de trabalho. O capital, Ravenstone absurdamente declarou, “pode ser acrescentado a qualquer quantidade imaginável sem adicionar às riquezas reais de uma nação”.[44]

A partir de então, Hodgskin foi afligido por uma anômala combinação de anarquismo laissez-faire e uma teoria do valor-trabalho ravenstoniana. Como conciliar os dois? Em primeiro lugar, Hodgskin tentou fazer atribuindo à exploração, a “mais valia” do trabalho, apenas para tais intervenções governamentais — como as Leis de Combinação, as quais restringiram o direito de formar sindicatos de trabalho.

Assim, Hodgskin ajudou a fundar a Mechanics’ Magazine, e então sua afiliada, o Mechanics Institute de Londres, uma instituição de palestras para as classes trabalhadoras. Durante o curso da bem-sucedida agitação ricardiana-benthamista pela revogação das Leis de Combinação em 1824, Hodgskin escreveu seu livreto ravenstoniano, Trabalho Defendido Contra as Afirmações do Capital (1825), seguido pelas palestras do Mechanics Institute publicadas como Economia de Política Popular (1827).

Particularmente bizarro foi o desenvolvimento de Hodgskin da visão ravenstoniana de que o capital é sem importância e inexistente. Hodgskin nega que qualquer economia esteja envolvida no capital, qualquer adiantamento do consumo perdido. O capital circulante, ele diz sofisticamente, não é produzido antecipadamente; o pão que o trabalhador compra é assado todos os dias ao invés de ser armazenado antecipadamente pelo capitalista.

Na verdade, é claro, ninguém afirma que o capitalista realmente guarda a comida dos trabalhadores e outros meios de subsistência antecipadamente; mas esse dinheiro economizado é adiantado à produção e venda ao trabalhador, o qual permite o trabalhador comprar sua subsistência agora ao invés de ter de esperar por anos.

Quanto ao capital fixo, não apenas é trabalho armazenado — um argumento geral ricardiano — mas essas máquinas são apenas “matéria inerte, decadente e morta”, a menos que seja “guiada, dirigida e aplicada por mãos habilidosas”.

Hodgskin conclui que “o capital fixo não deriva sua utilidade do trabalho prévio, mas do trabalho presente”, ignorando grotescamente o fato de que apenas porque o capital e o trabalho exigem um ao outro não torna o trabalho o único fator de produção. No absurdo culminante, Hodgskin declara que “é uma desilusão miserável chamar o capital de algo poupado”.

Não há dúvida de que o ultra trabalhismo de Hodgskin influenciou Karl Marx, mas essa teoria de valor-trabalho extremo não o faz um ricardiano, muito menos um socialista.

Na verdade, Hodgskin era altamente crítico de Ricardo e do sistema Ricardiano, denunciou a metodologia abstrata de Ricardo e sua teoria do aluguel, e considerou ele mesmo um smithiano ao invés de um ricardiano. A lei natural de Smith e a doutrina da harmonia-de-interesse do livre mercado eram muito mais adequadas ao Hodgskin.

Apesar de continuar sendo um trabalhista, Hodgskin tornou-se cada vez mais repelido pelo movimento trabalhista inglês, e seu movimento crescente na intervenção estatal. Ele não via mais os sindicatos como um remédio, muito menos como uma panacéia. Cada vez mais, ele via que o único caminho para reconciliar o trabalhismo e o laissez-faire era pressionar pela revogação de toda intervenção governamental, na verdade, de toda lei positiva que não é simplesmente uma re-afirmação da lei natural e dos direitos naturais.

Pois toda lei desse tipo é uma invasão dos direitos de propriedade. Em contraste aos socialistas ricardianos que exaltavam as cooperativas semelhantes a cartéis, Hodgskin pediu pela remoção de todas as restrições governamentais sobre a competição livre e ilimitada.

Ele entusiasticamente juntou-se a Cobden e Bright na agitação pela revogação das Leis do Milho, e na revogação das leis feudais que restringiam e envolviam a venda livre de terras fora da família.

De 1846 até 55, Hodgskin serviu como editor da Economist, o campeão jornalístico do laissez-faire, sem nenhuma incompatibilidade de pontos de vista com o editor-chefe James Wilson. Ali ele tornou-se um amigo e mentor do jovem Herbert Spencer, saudando o trabalho de Spencer, Estatísticas Sociais, com a exceção de denunciar o socialismo de terra pré-georgista de Spencer em nome do individualismo lockeano.

Ademais, mesmo em sua fase mais trabalhista na década de 1820, Thomas Hodgskin, em contraste a John Gray, ampliou ao invés de estreitar a definição de “trabalho”.

A atividade mental é tanto “trabalho”, ele apontou, quanto esforço muscular, então ele alertou contra limitar o termo “trabalho” às “operações das mãos”. Não apenas isso: Hodgskin também apontou convincentemente que o capitalista é também muito frequentemente um gerente, e, portanto, também um “trabalhador”. Então, enquanto os capitalistas podem ser opressores, os empresários em sua capacidade de gerentes ou “mestres”, “são trabalhadores, assim como os jornaleiros”. E não há nada errado com os salários de gerenciamento.[45]

Em adição, o Hodgskin da década de 1820 saudou os varejistas como “agentes indispensáveis”, e elogiou os atacadistas e mercadores em termos smithianos como indivíduos que conferem bênçãos à sociedade perseguindo seus próprios interesses.

Até mesmo banqueiros “são ainda muito importantes, e há muito tempo são trabalhadores bastante úteis”. O setor bancário,

“nunca esqueçamos […] é um negócio completamente privado, e não mais precisa ser regulado por estadistas intrometidos do que o negócio da fabricação de papel”.

Finalmente, em seu Economia Política Popular, Hodgskin elogiou o sistema de preço de mercado, o qual, em um sentido profundo, é

“o dedo indicador do Céu, apontando para todos os homens como eles podem empregar seu tempo e talentos de maneira mais proveitosa para eles mesmos, e mais benéfica para a sociedade inteira”.[46]

Após sua aposentadoria do conselho editorial da Economist, Hodgskin continuou a escrever artigos para aquele jornal. Lá ele elogiou o comércio

“Nós somos todos comerciantes […] e […] a troca é o único serviço mútuo por acordo mútuo”); a especulação (“sem a especulação nós deveríamos não ter ferrovias, nem docas e nem grandes empresas […]”

E a competição

“a alma da excelência, e entrega a todo homem sua recompensa justa”.[47]

Em sua publicação final, de palestras sobre lei criminal proferidas em 1857, Thomas Hodgskin resumiu sua economia e filosofia política.

O desejo das pessoas por padrões de vida mais elevados, ele declarou,

“pode apenas ser satisfeito por uma maior liberdade, e menos impostos”.

Os princípios da livre troca da década de 1840 devem ser apenas um trampolim para um laissez faire ainda mais puro e consistente. Em última análise, todos os serviços governamentais devem ser privatizados e sujeitos aos requerimentos do livre mercado:

A competição irrestrita, que a natureza estabelece, deve ser a regra de todas as nossas transações; e pela disputa do mercado, que é a ação livre e mútua, os salários de todos os oficiais [do governo] e os pagamentos do sacerdócio devem ser regulados bem como o lucro do lojista e os salários do trabalhador.

Ao imprimir suas palestras, Hodgskin anunciou sua intenção de completar e publicar uma obra-prima, A Absurdidade da Legislação Demonstrada, que mostraria, “em uma forma conectada didática”, que

“toda a legislação, o que claramente inclui o governo, é fundada em suposições falsas”.[48]

Infelizmente, Hodgskin nunca completou a obra, ou publicou qualquer coisa a mais, e quando ele morreu, em 1869, na idade de 82 anos, esse homem, uma vez tão amplamente influente, não recebeu uma única notícia obituária nos jornais de Londres. Mas, de qualquer forma, é sabido o suficiente para rejeitar a visão de que esse individualista, apesar do trabalho que influenciou Marx, era em qualquer sentido um socialista, ou mesmo um ricardiano.

 

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Notas

[1]          Como Gray coloca com humor, a dialética geralmente parece “tornar-se ao forasteiro analfabeto e ignorante um mero brinquedo que permite que todo balanço de cada pêndulo seja considerado como a personificação de um grande princípio filosófico”. Alexander Gray, The Socialist Tradition (Londres: Longmans, Green, 1947), p.300.

[2]          Em Igor Shafarevich, The Socialist Phenomenon (Nova York: Harper & Row, 1980), p. 210.

[3]          Adição do Tradutor para evidenciar a elipse.

[4]          Ludwig von Mises, Theory and History (1957, Auburn, Ala.: Mises Institute, 1985), pp. 111-2.

[5]          Ibid., pp. 109-10.

[6]          Em A Miséria da Filosofia, Marx furiosamente denunciou Proudhon por fazer esse mesmo ponto, que a divisão de trabalho precede as máquinas.

[7]          Veja M.M. Bober, Karl Marx’s Interpretation of History (2nd rev. ed., Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1948), p. 9.

[8]          John Plamenatz, German Marxism and Russian Communism (Nova York: Longmans, Green & Co., 1954), p. 29.

[9]          Ibid., p. 27.

[10]        Para uma defesa da monocausalidade tecnológica como uma chave para o marxismo pelo fundador do marxismo russo, George V. Plekhanov (1857-1918), ver Plekhanov, The Development of the Monist View of History (Nova York: International Publisher, 1973). Cf. David Gordon, Critics of Marxism (New Brunswick, MJ: Transaction Books, 1986), p. 22. Para uma crítica do marxismo-plekhanovismo, ver Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism (Oxford: Oxford, University Press, 1981), pp. 340-2.

[11]        Adição do Tradutor para evidenciar a elipse.

[12]        Von Mises, op. cit., nota 3, p. 126.

[13]        David Gordon, “Mises Contra Marx”, The Free Market, 5 (Julho de 1987), pp. 2-3.

[14]        Para a refutação de outro ponto aliado na doutrina da ideologia de Marx, que cada classe econômica possui uma estrutura lógica diferente da mente [“polilogismo”], ver Ludwig von Mises, Human Action (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1949), pp. 72-91.

[15]        Na primeira sessão, “Burgueses e Proletários”, do Manifesto Comunista, Marx e Engels continuamente confundem os conceitos de “casta” e “classe”, i.e., classe como privilégio especial contra conjuntos de indivíduos no livre mercado. Assim: “Nas épocas passadas da história, nós encontramos quase em todo lugar um arranjo complicado da sociedade em várias ordens, uma gradação múltipla de classificação social. Na Roma antiga nós temos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Medieval, lordes feudais, vassalos, mestres de guilda, jornaleiros, aprendizes, servos; em quase todas essas classes, novamente, há gradações subordinadas, [i.e., classes enquanto castas]”. Ademais, “A sociedade burguesa moderna que brotou das ruínas da sociedade feudal […] estabeleceu novas classes, novas condições de opressão […] [O salto não investigado de uma classe de casta para uma situação de livre mercado]”.

[16]        Durante a década de 1870, Marx levou Engels a acreditar que ele estava trabalhando duro e constantemente nos Volumes II e III do Capital. Na morte de Marx, Engels ficou surpreso em descobrir que Marx praticamente não havia feito trabalho algum no manuscrito desde 1867, em suma, que Marx havia mentido descaradamente para seu amigo e patrão. Ver W.O. Henderson, The Life of Friedrich Engels (Londres: Frank Cass, 1976), II, p. 563.

[17]        Veja abaixo sobre a contribuição Ricardiana à teoria marxiana de classes.

[18]        Cf. esses insights do proeminente oponente do marxismo no século XX, Ludwig von Mises: “A teoria do conflito inconciliável de classes é ilógica quando não continua ao dividir a sociedade em três ou quatro grandes classes. Levada às suas conclusões lógicas, a teoria teria de continuar, e então dissolver a sociedade em grupos de interesses até que alcançasse grupos cujos membros exerçam precisamente a mesma função. Não é suficiente separar os donos em donos de terra e capitalistas. A diferenciação precisa proceder até que atinja grupos como fiandeiros de algodão que manufaturam a mesma quantidade de fios, ou os manufatureiros de couro chevreau preto, ou os manufatureiros de cervejas leves. […] Nenhum interesse comum especial une os proprietários de terras aráveis, de florestas, de vinhas, de minas ou imóveis urbanos […] Também não há interesses comuns entre os trabalhadores. O trabalho homogêneo é tão inexistente quanto o trabalhador universal. O trabalho do fiandeiro é diferente do trabalho do minerador e do trabalho do médico. […] Nem o trabalho não qualificado é homogêneo. Um catador é diferente de um bagageiro.” Ludwig von Mises, Socialism: And Economic and Sociological Analysis (4th ed., Indianapolis: Liberty Classics, 1981), pp. 300-301 [Ver, em português, Socialismo: Uma Análise Econômica e Sociológica, (Editora Konkin, 2021), págs., 330-331.]

[19]        Veja James Bland Briscoe, “Saint-Simonianism and the Origins of Socialism in France, 1816-32” (dissertação de doutorado em história, Columbia University, 1980), p. 59.

[20]        É difícil não concordar com a afirmação de Alexander Gray de Saint-Simon, como citada pelo filósofo social francês Émile Faguet: “Saint-Simon é um raro exemplo de incoerência em sua vida, incoerência em seu caráter, e incoerência em suas ideias detalhadas, combinadas com uma fixidez em suas visões que o regiam”. (Tradução do autor.) Gray, op. cit., nota 1, p. 160n.

[21]        Veja F.A. von Hayek, The Counter-Revolution of Science (Glencoe, Ill.: The Free Press, 1952), p. 158.

[22]        Ibid., p. 159.

[23]        James Billington, Fire in the Minds of Men: Origins of the Revolutionary Faith (Nova York: Basic Books, 1980), p. 225.

[24]        Ralph Raico, “Classical Liberal Exploitation Theory: A Comment on Professor Liggio’s Paper”, The Journal ofLibertarian Studies, 1 (Verão 1977), p. 179.

[25]        Alexis de Tocqueville, Recollections, ed. por J.P. Mayer e A.P. Kerr (Garden City, Nova    York: Doubleday & Co. 1970), p. 5.

[26]        Raico, op. cit., nota 22, pp. 179-80. O Professor Tucker, suficientemente curioso, saúda The Eighteenth Brumaire como uma “obra-prima brilhante”, e uma aplicação da análise de luta de classes e a concepção materialista da história. Mas não é essa obra uma demonstração exatamente do oposto? Ver Robert C. Tucker (ed.), The Marx-Engels Reader (2nd ed., Nova York: W.W. Norton, 1978), p. 594.

[27]        Raico, op. cit., note 22, p. 180.

[28]        Ibid., p. 180, 183n4.

[29]        Ibid., p. 180.

[30]        Von Mises, op. cit., nota 16, p. 292; ele nota que essa passagem no Vol 1 do Capital não estava na primeira edição de 1867, mas foi adicionada por Marx na edição francesa (1873). A inserção estava conectada com as mudanças desesperadas feitas por Marx em sua teoria no Volume III do Capital, não publicado até sua morte.

[31]        Gray, op. cit., nota 1, p. 271.

[32]        Do Trabalho Recompensado. Ver Gray, op. cit., nota 1, p. 276.

[33]        Ibid., p. 290n.

[34]        Ibid., p. 294.

[35]        Ibid., pp. 294-5.

[36]        Citado em G.D.H. Cole, Socialist Thought: The Forerunners, 1789-1850 (Londres: Macmillan, 1959), p. 137.

[37]        Gray, op. cit., nota 1, p. 287.

[38]        Em Joseph Dorfman, The Economic Mind in American Civilization, 1606-1865 (Nova York: Viking Press, 1946), II, p. 688.

[39]        Ibid., p. 689.

[40]        Elie HaIevy, Thomas Hodgskin (Londres: Ernest Benn, Ltd, 1956), p. 30

[41]        Ibid., p. 31.

[42]        Gray, op. cit., nota 1, p. 278.

[43]        Piercy Ravenstone, A Few Doubts as to the Correctness of Some Opinions Generally Entertained on the Subjects ofPopulation and Political Economy (Londres, 1821).

[44]        Halévy, op. cit., nota 38, pp. 89n-90n. Ravenstone aparentemente também não era um socialista. As melhores indicações são de que ele o era são o reverendo Edward Edward, um clérigo anglicano High Tory, ou Richard Puller, o filho igualmente conservador de um diretor da South Sea Company, o esquema bancário especulativo Tory. O objetivo de Ravenstone era aparentemente desferir um golpe efetivo contra o capitalismo e o livre mercado por um de seus antigos inimigos, os defensores do estatismo e do governo grande, os High Tory.

[45]        Gray, op. cit., nota 1, p. 282.

[46]        44.             Ibid., p. 280. Gray, um adepto da Escola Austríaca, adiciona uma nota provocante e humorada sobre seus colegas austríacos: “Mesmo um economista ortodoxo de hoje, educado na Tales from Viennese Woods, pode muito bem ser perdoado se sua fé vacilar quando convidado a identificar o sistema de preços com o dedo indicador do Céu.”

[47]        Em HaIevy, op. cit., nota 38, pp. 148-9.

[48]        Ibid., p. 164.

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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