Desde a Antiguidade até o século XVIII, preponderou no pensamento ético ocidental o chamado jusnaturalismo, a ideia de que existe um Direito Natural acima ou anterior ao Direito Positivo, isto é, ao direito efetivamente aplicado. A partir do século XIX, começou a se fortificar a ideia de que não existe tal coisa como “Direito Natural”, mas apenas o Direito efetivamente posto e observado na realidade histórica e sociopolítica das comunidades, tese central do chamado Positivismo Jurídico.[1]
Aqui cabem algumas distinções importantes. Em primeiro lugar, o Direito Natural seria um conjunto de normas absolutas que deveriam fundamentar os ordenamentos jurídicos positivos. A doutrina que apoia a existência dessa lex naturalis se denomina jusnaturalismo. Alguns jusnaturalistas afirmam que a lei provém da vontade de Deus, sendo estes os jusnaturalistas teológicos; e outros sustentam que provém da natureza do homem ou da razão. A doutrina que visa extrair a lei a partir das normas inerentes à razão humana se chama jusracionalismo, e pode ser considerada uma vertente da filosofia do Direito Natural.[2]
Em adição, o Direito Positivo é aquele efetivamente realizado, posto, obedecido. Ele não necessariamente precisa estar escrito, como alguns pensam. Pode haver normas jurídicas positivas não escritas (como as oriundas dos costumes, por exemplo). O que caracteriza o direito positivo é a sua real manifestação na realidade. Caso uma norma do Direito Natural se incorpore a um ordenamento jurídico existente, então essa norma se torna positiva, ela é positivada. Isso não significa que ela perde o status de lei natural, mas que ganha o de lei positiva. Os conceitos não são excludentes. Em verdade, os adeptos do jusnaturalismo, ao reivindicarem a aplicação da lei natural, demandam que ela se torne positiva. Verdadeira oposição existe entre as doutrinas do jusnaturalismo e do juspositivismo. Pois, ao passo que os jusnaturalistas defendem a lei natural como um sistema a que todo direito positivo deve obedecer, os juspositivistas alegam que não existe nada como um “direito natural”, e que somente o direito concretamente realizado pode ser objeto de uma ciência jurídica.
A título de curiosidade, o Positivismo Jurídico dominou do século XIX até meados do século XX, quando surgiu o chamado “pós-positivismo”, doutrina que visava temperar o exagerado formalismo jurídico do século XX com a adoção de valores tidos como universais, tais como a dignidade humana. Esse movimento surgiu após os horrores perpetrados durante a Segunda Guerra Mundial pelo nazismo, que foram em grande parte válidos e legítimos do ponto de vista do ordenamento jurídico alemão daquela época. Daí viu-se que o aferro à norma, inobstante ponderações valorativas, pode conduzir a extraordinárias injustiças. Quiseram então reintroduzir a ética na produção do Direito, embora ainda não de maneira científica e wertfrei.
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É nesse período de desenvolvimento ainda do Positivismo Jurídico que Murray Rothbard, em 1982, publica A Ética da Liberdade, obra em que constrói um corpus ético-jurídico baseado na doutrina do Direito Natural. Nesta aula a exporemos, destacando seus principais pontos.
Murray Rothbard começa fazendo uma defesa da ideia de lei natural, como algo inerente à natureza humana e das coisas e que favorece o desenvolvimento do homem tal como ele foi feito para ser. “A ética da lei natural determina que, para todas as coisas vivas, o ‘bem’ é a realização de o que é melhor para aquele tipo de criatura; o ‘bem’ é, portanto, relativo à natureza da criatura em questão” (grifo nosso).[3] E mais à frente ele diz: “No caso dos seres humanos, a ética da lei natural declara que o bom ou ruim para o homem pode ser determinado pelo que satisfaz ou impede aquilo que é melhor para a natureza humana”.[4]
Assim, para demonstrar aquilo que é objetivamente melhor para o ser humano no mundo real, Murray Rothbard recorre à construção imaginária de Crusoé em sua ilha – mesma construção de que se serve em Homem, Economia e Estado para descobrir os elementos fundamentais da atividade econômica. Trata-se de um modelo, segundo Rothbard, não só útil como necessário às ciências da ética e da economia, porquanto através dele conseguimos abstrair o contingente para observar o essencial.
Suponha então que Robinson Crusoé acorde em uma ilha sem se lembrar de nada. Ele logo se defrontará com a sua própria consciência, o seu corpo e o mundo externo, fatos primordiais de sua existência. Nesse cenário ele descobre que possui desejos e necessidades e que terá de aprender a satisfazê-los – vindo a descobrir depois que a única maneira de atingir esse objetivo é transformando os recursos que a terra lhe provê.
Resumindo, ele precisa (a) escolher seus objetivos; (b) aprender como alcançá-los através do uso dos recursos existentes na natureza; e então (c) empregar sua força de trabalho para transformar estes recursos em formas e lugares mais úteis: i.e., em “bens de capital”, e finalmente em “bens de consumo” que possa consumir diretamente.[5]
Crusoé precisa destarte produzir para só então consumir. Com a introdução de Sexta-Feira no cenário, ele pode finalmente realizar trocas voluntárias e participar do sistema de divisão do trabalho, pelo que sua produção aumenta sensivelmente. Mas isso só pode acontecer se for admitido que ele tem propriedade sobre seu corpo e sobre os recursos com os quais “mistura o seu trabalho” (para a utilizar a consagrada expressão de John Locke, a qual Rothbard repete). Desse modo, Rothbard demonstra que a vida em sociedade depende de que se tenha propriedade sobre o próprio corpo e se possa também apropriar objetos externos: donde conclui ele que os princípios da autopropriedade e da apropriação original compõem o núcleo da lei natural humana (compreendida à luz da praxeologia).
Argumentando em favor do princípio da autopropriedade, Rothbard afirma que, no que respeita à propriedade sobre o próprio corpo, só há três possibilidades: a) cada qual possui seu próprio corpo, b) todos possuem os corpos de todos ou c) alguns possuem os corpos de todos. A primeira opção resulta em uma sociedade libertária, defendida por Rothbard. A segunda impõe um comunismo universal e encerra uma dificuldade intransponível: se os corpos de todos pertencessem a todos, então nenhum indivíduo particular poderia usar o seu corpo sem a prévia autorização de todos os outros, nem mesmo para pedir tal autorização, o que resultaria em uma trava generalizada e todos morreriam. A terceira opção gera uma sociedade de classes, na qual um grupo seria o dono do restante das pessoas. Essa terceira possibilidade é descartada porque não passa no chamado “teste da universalização”, que verifica se uma ética vincula a todos igualmente. “Nós não podemos ter aqui uma ética universal ou de lei natural para a raça humana”.[6] Dessa maneira, somente o princípio da autopropriedade subsiste.
Para justificar o segundo princípio, o da apropriação original (homesteading), Murray Rothbard recorre ao mesmo raciocínio, evidenciando as três únicas opções lógicas que, quanto à apropriação de bens externos, existem: a) o bem é daquele que o produziu ou encontrou primeiro, b) o bem é de outra pessoa ou grupo de pessoas (que podem, portanto, tomá-lo à força de seu produtor original) ou c) o bem pertence a todas as pessoas (o que também implicaria, na prática, um grupo controlador para se fazer cumprir a lei). Obviamente, Rothbard entende que,
se todo homem tem o direito de possuir seu próprio corpo, e se ele precisa usar e transformar objetos materiais naturais a fim de sobreviver, então ele tem o direito de possuir o produto que fabricou através de sua energia e de seu esforço, em uma genuína extensão de sua própria personalidade.[7]
As outras possibilidades além desta envolvem iniciar agressão contra aquele que primeiro obrou sobre as riquezas da terra, configurando um modo parasítico de sobreviver, contrário, na visão de Rothbard, à natureza humana.
O agressor, por outro lado, não é de nenhuma maneira um produtor, mas sim um predador; ele vive do trabalho e do produto de outros como um parasita. Consequentemente, ao invés de viver de acordo com a natureza do homem, o agressor é um parasita que se alimenta unilateralmente ao explorar o trabalho e a energia de outros homens. Aí está claramente uma violação completa de qualquer tipo de ética universal, pois o homem evidentemente não pode viver como um parasita; os parasitas precisam de produtores não-parasitas para se alimentar. O parasita não só deixa de contribuir com o total social de bens e serviços, ele depende completamente da produção do corpo hospedeiro. E, ainda, qualquer aumento do parasitismo coercitivo diminui ipso facto a quantidade e o rendimento dos produtores, até que, finalmente, se os produtores extinguirem-se, os parasitas irão rapidamente ter o mesmo destino.[8]
É assim que Rothbard elege a autopropriedade e a apropriação original como os fundamentos legítimos do jus naturale. O restante de sua obra se dedica a extrair as implicações desses dois princípios, a mais relevante delas sendo o caráter essencialmente criminoso do Estado. Aliás, tal conclusão se impõe devido à definição rothbardiana de “crime” como qualquer violação do direito natural à propriedade. Como o Estado consiste de um monopólio territorial da produção e aplicação do Direito, impedindo que outros indivíduos exerçam seu direito natural de usarem sua propriedade para oferecerem esses mesmos serviços em concorrência, e sobrevive de expropriações parasíticas da riqueza social (tributação), então Rothbard conclui que o Estado é uma “enorme organização criminosa”.[9]
Todos os desenvolvimentos dessa teoria legal são importantes, porque boa parte dela persiste até hoje e não há conhecer a doutrina ética libertária sem ciência do trabalho de Rothbard, todavia darei destaque a apenas mais um ponto que considero de fundamental relevância e imprescindível: que é a respeito da teoria da punição. Aqui Rothbard adota, sem justificação aparente, o princípio da proporcionalidade da pena, dizendo que o criminoso “perde seus direitos na extensão do que foi privado à vítima”.[10] Assim, se um criminoso rouba, Rothbard entende que seria proporcional que a vítima tivesse o direito de lhe tirar o dobro do que roubou mais uma quantia extra para compensar o “martírio sofrido”.[11] Se ele mata, a vítima (no caso, os herdeiros) tem o direito de lhe tirar a vida. E assim por diante, sendo a proporcionalidade um padrão de pena máxima, isto é, um teto que limita a punição.
A vítima, portanto, tem o direito de exigir uma punição até um grau proporcional determinado pela extensão do crime, mas ela também é livre para permitir que o agressor compre sua liberação da punição, ou para perdoar parcialmente ou completamente o agressor. O nível proporcional de punição determina o direito da vítima, o limite máximo permissível de punição; mas o quanto, ou se, a vítima irá exercer este direito, cabe a ela decidir.[12] (grifo nosso)
Há aqui, contudo, um problema: tal princípio não tem fundamento na natureza humana, e o cálculo que ele prescreve é impossível. Em primeiro lugar, Rothbard comete aqui o mesmo erro que denuncia em outros cientistas sociais: o de introduzir em suas teses conceitos derivados das ciências físicas, tais como “extensão” e “proporcionalidade”. De fato, esse princípio, bem como qualquer modo de aferir penas, é arbitrário, fundando-se sobre juízos de valor daquele que julga. Ademais, é importante salientar que o que Rothbard está propondo é, mais precisamente, que a punição seja proporcional ao dano sofrido pela vítima. Dano é um conceito derivado do conceito de valor, podendo ser definido como valor negativo causado por outrem. E uma vez que o dano seja uma espécie de valor, trata-se de um fenômeno subjetivo, sendo por esse modo, como o próprio Rothbard elucidou, impossível de quantificar. Aquilo que não tem medida não tem proporção. Mais à frente no curso abordaremos a verdadeira teoria da pena.
Desta exposição pode-se ver que a doutrina ético-legal rothbardiana, embora seja muito boa e bastante acertada, ainda não supera a dicotomia ser/dever-ser apresentada por David Hume. Do fato de que a instituição da propriedade privada seja necessária para o homem viver não se deduz que ela deva ser absoluta. O próprio Rothbard admite que sua doutrina se baseia em julgamentos valorativos:
Por mais de 30 anos eu tenho pregado à profissão econômica que isso não pode ser feito: que economistas não podem chegar a quaisquer conclusões de políticas (e.g., de que o governo deveria fazer X ou não fazer Y) estritamente de uma Economia livre de juízos de valor.[13]
Portanto, até aqui, a Escola Austríaca ainda não possui uma teoria legal baseada em proposições absolutamente verdadeiras e isenta de juízos de valor. O problema da ordem social continua sem solução.
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Notas
[1] Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico.
[2] Aqui se enquadra a ética argumentativa hoppeana.
[3] Rothbard, A Ética da Liberdade, p. 65.
[4] Idem, p. 65.
[5] Idem, p. 86.
[6] Idem, p. 104.
[7] Idem, p. 107.
[8] Idem, p. 109.
[9] Idem, p. 237.
[10] Idem, p. 148.
[11] Idem, p. 149.
[12] Idem, pp. 149-150.
[13] Rothbard, “Para além do Ser e Dever Ser”. Disponível em: <https://rothbardbrasil.com/para-alem-do-ser-e-dever-ser/>.